In the Shadow of Justice. Postwar Liberalism and the Remaking of Political Philosophy | Katrina Forrester

 

Notas

1 Un esfuerzo similar puede verse en el estudio de la interacción entre “constelación de ideas” y los diferentes tipos de instituciones (departamentos académicos, comités de investigación y think thanks) que fundaron las bases de las teorías de la modernización emergentes en el contexto de la Guerra Fría. Véase Nils GILMAN, Mandarins of the Future. Modernization Theory in Cold War America, Nueva York, Johns Hopkins University, 2007. Leia Mais

Os brancos da lei: liberalismo/escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil | Jurandir Malerba

Não tem sido muito comum se fazer uma resenha de um livro em segunda edição. Os novos tempos acabam por nos impingir a última novidade. Contudo, assumimos esta ousadia por esse livro tratar originalmente de uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) de excepcional qualidade, de um historiador que se tornou referência nos estudos da história do Brasil. Tal é o caso do livro de Jurandir Malerba, cuja primeira edição remonta a 1994, publicado pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), oriundo da sua dissertação de mestrado defendida no PPGH-UFF, em 1992 – Sob o verniz das ideias: liberalismo, escravidão e valores patriarcais no Código Criminal do Império do Brasil – sob orientação do saudoso professor Hamilton de Matos Monteiro Leia Mais

A World after Liberalism – Philosophers of the Radical Right | Matthew Rose

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Matthew Rose | Imagem: Tikvah Fund

Matthew Rose é especialista em História das ideias teológicas e políticas e doutor pela Universidade de Chicago. Seu novo trabalho – A World after Liberalism – Philosophers of the Radical Right (2021) – foi pensado no contexto da campanha de Donald Trump e da crise dos refugiados de 2016, quando ele notou que jornalistas dos EUA e da Europa começavam a citar autores da extrema direita cuja tradição era “mais profunda e filosófica sobre a vida contemporânea e mais cética sobre o lugar do cristianismo na cultura ocidental” (Mclemee, 2022). Do desconhecimento inicial, o autor avançou para uma análise das ideias radicais do pensador “nacionalista” e de direita Samuel Francis, publicado na revista First Things (2018). O artigo se estendeu e se transformou na obra atual, acrescida de notas (ou retratos) biobibliográficos de mais quatro intelectuais: “o profeta” alemão Oswald Spengler, “o fantasista” italiano Julus Evola, “o antissemita” estadunidense Francis Parker Yockey e “o pagão” francês Alain de Benoist.

A word after liberalismRose é católico, democrata e, academicamente, orientado pelo trabalho de Heinrich A. Rommen (1897-1967) que, na condição de ex-aluno de Carl Schmitt (1888-1985), examinou a obra do mestre sob o ponto de vista da crítica que a “direita radical” disparava contra as ideias de “igualdade e justiça”, compreendidas como corruptoras “das mais altas inspirações humanas” (Mclemee, 2022). A meta explícita e modesta de Rose é tornar inteligíveis as ideias de pensadores que orientam o “novo conservadorismo” em seus ataques aos princípios de “igualdade humana”, respeito às “minorias”, “tolerância religiosa” e “pluralismo cultural” (Rose, 2021, p.5). A meta implícita e engajada é fazer a defesa do cristianismo em termos teológicos e apresentar valores cristãos de longa duração como possíveis respostas ao vazio ideológico de muitos jovens do seu tempo e país. Leia Mais

O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil | Esther Solano Gallego

Ester Solano Imagem Nocaute
Ester Solano | Imagem: Nocaute

No dia 8 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial brasileira, a editora Boitempo liberou gratuitamente o e-book O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil, organizado pela socióloga Esther Solano Gallego, com o objetivo e “ajudar a compreender” como havíamos chegado à situação na qual o retrógrado Jair Bolsonaro estava à frente nas pesquisas e com grandes chances de vencer a eleição. Às vésperas de um novo certame, em junho de 2022, as preocupações com as ameaças (algumas delas já concretizadas) à democracia brasileira, as teses, as propostas de resistência ao “fascismo” comunicadas naquele livro permanecem na “ordem do dia”. Por essa razão, revisitaos a obra tantas vezes resenhada para reavivar as suas assertivas.

O odio como politicaOs 22 autores que compõem o projeto são, em maioria, professores universitários brasileiros das áreas das ciências humanas e sociais, ativistas e cartunistas e um religioso identificados com o campo progressista. Todos contribuem para o cumprimento da meta do livro, descrita por Gallego: “aprofundar-se nas complexas dinâmicas das direitas desde diversos pontos de vista e análises”. Se quisermos de fato lutar contra as direitas, continua a organizadora, “com frequência antidemocráticas e retrógradas, devemos primeiro observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la. Não sabemos tudo. Aprendamos juntos.” (p.8). [i]

Para iniciar o aprendizado, compreendamos que as “direitas” às quais o título da obra se refere são plurais na terminologia. Os autores a tratam como “conservadorismo radical”, “direita”, “direita radical”, “extrema direita”, “grupos de direita”, “nova direita” e “novas direitas”. Abordadas, em sua maioria, como lideranças políticas, partidos políticos, movimentos e instituições da sociedade civil, as direitas nascem nos anos 80, a partir da reorganização “das classes dominantes”, representadas em várias instituições de pesquisa e financiamento (think thanks), como também das ameaças sofridas por essas classes médias em suas “oportunidades”, da conjunção de identidades e da conjuntura propiciada pelas redes sociais e internet, já nos anos 2000/2010.

Alguns autores destacam o caráter militante desses grupos (ao contrário do caráter financiado desses grupos), o transbordamento dessa militância para além dos partidos, alcançando editoras, movimentos e grande mídia, marcando a sensibilidades de jovens da periferia que passaram literalmente da esperança dos anos de crescimento econômico à indignação com a indiferença do Estado em termos de segurança e oportunidades, por exemplo. Outros ainda ressaltam as consequências que essas direitas de orientação militarizadas trouxeram à vida dos negros, dos pobres, das mulheres e das pessoas GLBTI. A “democracia, os direitos humanos, ao Estado laico e à diversidade humana”, segundo um desses autores, foram as principais vítimas dos fundamentalismos e extremismos advindos das novas direitas.

O diagnóstico está presente na maioria dos textos, enquanto as declarações propositivas são minoritárias. Como sair dessa situação? Em geral, estudar, denunciar, protestar são as medidas. Apenas um se engaja em solução radical: transformar “as condições socioeconômicas que lhe fornecem a base material” (p.35).

No que diz respeito ao espírito deste dossiê de Crítica Historiográfica, vale destacar as ideologias atribuídas às novas direitas brasileiras. Se hoje, autores divergem nos critérios de classificá-las e nos termos empregados para as designações, imaginem há quatro anos. Os autores agrupam os mesmos étimos de modo diferente, embora na maioria das combinações o libertarianismo esteja presente: “libertarianismo” (ultraliberalismo), “fundamentalismo religioso” (antiaborto, homofobia) e “anticomunismo”; “libertarianismo”, “monetarismo” (Chicago) e “neoliberalismo” (Áustria); “libertarianismo”, “conservadorismo” e “reacionarismo”; “libertarianismo”, “fundamentalismo religioso” e “anticomunismo”; “fundamentalismo religioso cristão” e “extremismo religioso cristão” (que ganham a forma de “protofascismo”).

Autores também significam as palavras de modo diferente e até divergente. Eles afirmam que os “conservadores” são os mais aguerridos combatentes da (falsa) “ideologia de gênero”; que o “conservadorismo radical” (mapeado nas redes sociais) divide brasileiros em “pessoas de bem” e “vagabundos”, ou seja, denunciam esse segundo tipo como humanos de comportamento desviante, resultantes de uma educação equivocada e do culto aos direitos humanos, que corrompem a inocência das crianças, cujo líder é Lula e os instrumentos são movimentos sociais, sindicatos e Supremo Tribunal Federal. Eles afirmam, por fim, que a ideologia das novas direitas pode ser sintetizada na ameaça do “inimigo interno”, sobrevivente do Discurso de Segurança Nacional dos tempos da ditadura, na reação ao estado de bem-estar social (neoconservadorismo) e na implantação de políticas de “austeridade” (neoliberalismo).

No que diz respeito especificamente ao lugar do direito, três textos se destacam. Dois deles tratam de direitos de grupos determinados e um da ação do poder judiciário. Em “Precisamos falar da ‘direita jurídica’”, Rubens Casara denuncia o “populismo jurídico” e o “ativismo jurídico” como ameaças à democracia, assim como os operadores do direito que interpretam as leis ao modo conservador e neoliberal, ou seja, que concebem o poder judiciário como “um mero homologador das expectativas do mercado” ou “instrumento de controle tanto dos pobres […] quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal” (p.92)

Precisamos falar da direita juridica Imagem UOLCULT

Precisamos falar da direita jurídica | Imagem: UOL/CULT

Dos dois que tratam de grupos, o primeiro descreve ações dos fundamentalistas aos “direitos LGBTI” na Constituinte de 1988 (orientação sexual) e no parlamento, de 2006 a 2015 (anti-homofobia, união estável de pessoas do mesmo sexo e identidade de gênero). “Moralidades e direitos LGBTI nos anos 2010”, de Lucas Bulgarelli, põe formalmente os direitos LGBTI e os direitos humanos em posições separadas, ambos combatidos pelos conservadores. O segundo texto – “Feminismo: um caminho longo à frente”, de Stephanie Ribeiro –, denuncia a negação do “direito ao aborto seguro e legal” (de modo direto pela direita e indireto pela esquerda) e a vertente feminista de orientação “liberal”. Segundo a autora, trata-se de “um feminismo sem comprometimento com outras mulheres […] ou que não precisa ter um posicionamento político […] pautado em ascensão individual e não em rompimento com estruturas opressoras” (p.133)

Apesar dos esclarecimentos, das denúncias e alertas, a coletânea não está isenta de afirmações controversas e/ou usos equivocados de conceitos. Duas delas chamam a atenção pelo primarismo: a inclusão do conservadorismo (uma macro ideologia) em pé de igualdade com o neoliberalismo, por exemplo, a afirmação de que a defesa do estado de direito é uma “reivindicação conservadora” que serve ao capital. Outras não menos inquietantes são: a admissão da existência de “neoliberais de esquerda”; a declaração de que o Ministério Público foi partícipe de todos os golpes de Estado; que o neoliberalismo” e a “nova direita” são ideais antagônicos; e que a esquerda liberal e neoliberalismo progressista são ideais sinônimos.

Usos equívocos que merecem a atenção do leitor são a tomada do fundamentalismo como fundamentalismo religioso, a definição de extremismo como uso de violência, sem a respectiva definição de violência; e o emprego de “feminismo liberal” com o sentido de feminismo neoliberal.

O grande termo ausente, porém, é o “ódio”, que está no título do livro e na apresentação da editora. Ele aparece (antifeminista e pró segurança pública) tangencialmente como o par oposto da esperança (orçamento participativo e bolsa família) entre os jovens pobres de Porto Alegre, o ódio às minorias, disparado pelas “classes dominantes” (FHCC), o discurso de ódio experimentado pelos pobres, diante da falta de “dignidade” resultante da crise econômica (F), o ódio ao pensamento livre disparado pelos reacionários contra os professores pelo ESP (FP), demonstrando que não é sentimento de esquerda ou de direita (contraditando, de certo modo, o que sugere a designação da obra).

As ausências e as situações controversas, ao contrário de borrarem a obra, somente reforçam a importância da sua leitura. Para profissionais do direito, principalmente, o livro pode auxiliar na mudança de sensibilidade dos apartidários e imparciais “operadores” para as causas das mulheres e da população LGBTQIA+. Para os professores de História, o livro serve duplamente: como testemunhos dos anos quentes do golpe e da campanha eleitoral de 2018 e como roteiro de para a ação, seja no planejamento da formação continuada, seja na orientação da ação no interior da escola. Aliás, os objetivos anunciados pela organizadora (e cumpridos com sobras) são em si mesmos pragmáticos e beneméritos: “observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la.” (p.9).

Sumário de O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil

Prólogo | Gregório Duvivier

Apresentação | Esther Solano Gallego

  • A reemergência da direita brasileira | Luis Felipe Miguel
  • Neoconservadorismo e liberalismo | Silvio Luiz de Almeida
  • A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo | Carapanã
  • As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo | Flávio Henrique Calheiros Casimiro
  • O boom das novas direitas brasileiras: financiamento ou militância? | Camila Rocha
  • Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista | Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
  • Periferia e conservadorismo | Ferréz
  • A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção | Edson Teles
  • Precisamos falar da “direita jurídica” | Rubens Casara
  • O discurso econômico da austeridade e os interesses velados | Pedro Rossi e Esther Dweck
  • Antipetismo e conservadorismo no Facebook | Márcio Moretto Ribeiro
  • Fundamentalismo e extremismo não esgotam experiência do sagrado nas religiões, Henrique Vieira
  • Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010 | Lucas Bulgarelli
  • Feminismo: um caminho longo à frente | Stephanie Ribeiro
  • O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido” | Fernando Penna
  • Sobre os autores
  • Charges

Resenhista

Lucas MirandaLucas Miranda Pinheiro é Doutor em História (UNESP/Franca), professor do Departamento de Relações Internacionais (DRI) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Entre outros trabalhos, publicou (em coautoria) Perspectivas e Debates em Segurança, Defesa e Relações Internacionais e Relações Internacionais: Olhares Cruzados. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6576943412041943; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4821-0168; E-mail: [email protected].

 


Para citar esta resenha

GALLEGO, Esther Solano. O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. 133p. Resenha de: PINHEIRO, Lucas Miranda. Bolsonarismo à direita? Crítica Historiográfica. Natal,.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/um-elemento-ausente-resenha-de-o-odio-como-politica-a-reinvencao-das-direitas-no-brasil-organizado-por-esther-solano-gallego/>.

O que há de novo na “nova direita”? identarismo europeu, trumpismo e bolsonarismo | Marcos Paulo dos Reis Quadros

Marcos Paulo dos Reis Quadros Imagem Radio
Marcos Paulo dos Reis Quadros | Imagem: Radio Caxias

O que há de novo na nova direita, de Marcos Paulo dos Reis Quadros, resulta de uma investigação conduzida em seu estágio pós-doutoral, realizado na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde também cursou doutorado em Ciências sociais. O autor é professor e pró-reitor acadêmico do Centro Universitário Estácio Belo Horizonte (ESTÁCIO BH) e ministra cursos sobre “Direitas” e “Teoria Política” no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS. Seus três livros discutem federalismo, e a relação “soft power” e violência em favelas no Brasil e trajetórias das direitas no Brasil e em Portugal. No seu mais novo trabalho, como explicitam título e subtítulo, sua meta é avaliar “caracteres distintivos dessa nova direita na Europa (os partidos identitários) e no Brasil (o bolsonarismo), fazendo, ainda, considerações sobre o “trumpismo nos Estados Unidos” (p.19). Suas questões são desafiadoras. Elas tocam nas causas da ascensão da direita e exploram a vivência das direitas em quatro planos: “pilares ideológicos”, “plataformas político-eleitorais”; comportamento nos parlamentos e comportamento nos governos. Dada a quantidade de planos, é uma tarefa desafiadora que ele se propõe a cumprir em três capítulos.

O que ha de novo na nova direitaNo primeiro – “Sobre os sentidos das direitas” –, o autor defende a validade da díade esquerda/direita como demarcador ideológico. Seu critério é o de N. Bobbio, ou seja, a relação que as pessoas mantem com o valor da igualdade. Assim, se para a esquerda (representada instrumentalmente por J.-j. Rousseau), o ser humano é bom e aperfeiçoável, sendo legítimos a rebeldia e a mudança. Para a direita (representada instrumentalmente por T. Hobbes), o ser humano é mal e imperfeito naturalmente, sendo legítimos a conservação da herança e a ordem (T. Hobbes). A direita, como se vê, é constituída por um núcleo – conservação da herança – e por conceitos outros como “ordem”, “ceticismo” e “idade do ouro”, acrescidos de outros tantos em determinados contextos. Aliás, fiel a R. Rémon, o autor toma a descrição de direita como um tipo ideal, mas há limites: “Pode existir um conservadorismo de inclinações autoritárias e um conservadorismo de pendor liberal; jamais, sublinhe-se, um conservadorismo progressista.” (p.43). Leia Mais

Liberalismo, constitucionalismo e Parlamento: a revolução de 1820 | Almanack | 2022

O juramento de obediencia a Constituicao pelo principe D. Pedro no Real Teatro Sao Joao atual Joao Caetano no Rio de Janeiro Desenho aquarelado de Felix Emile Taunay. Museu Hisorico Nacional
O juramento de obediência à Constituição pelo príncipe D. Pedro, no Real Teatro São João (atual João Caetano), no Rio de Janeiro | Desenho aquarelado de Félix-Émile Taunay. Museu Hisórico Nacional

Repensar a memória dos acontecimentos marcantes da História constitui um exercício de rever os “lugares”, onde ela efetivamente se materializou, por meio de indivíduos, processos e práticas que se compuseram como seus símbolos e representações mais marcantes.7 Portanto, todas as datas que definem grandes comemorações devem ser pensadas não apenas como a celebração de uma efeméride, mas como a possibilidade de um novo desafio para a sua revisitação à luz dos estudos historiográficos do presente, possibilitando o surgimento de novas abordagens e perspectivas de análise.

Nesse sentido, insere-se o dossiê Liberalismo, constitucionalismo e Parlamento: a revolução de 1820, trazendo à tona temas que possibilitem analisar um período que foi fundamental para a entrada do Império português na política moderna.8 Justifica-se tal afirmativa porque foi naquele contexto da revolução liberal, iniciada no Porto em agosto de 1820,, continuada em Lisboa em setembro e propagada no Brasil em 1821, que se produziu uma grande mudança política, conhecida pela historiografia ibero-americana como Triênio Liberal (1820-1823)9 . Apesar de não ser uma conjuntura plenamente vitoriosa, ela possibilitou o surgimento de novas linguagens, novos vocabulários e imaginários que anunciavam um tempo de rutura e de aceleração10, indicando a proposta de uma ordem liberal e constitucional, legitimada na vontade e na soberania da nação e dos povos e, não mais, na “figura simbólica do rei” ou em uma ordem imemorial sancionada por Deus11. Os atores históricos, que vivenciavam aquele momento, preocupavam-se com um imaginário político e social que não se ancorava nas experiências e nos ensinamentos do passado, que davam sentido ao seu mundo, mas vislumbravam a possibilidade de uma perfectibilidade do homem e de uma crença no progresso. Leia Mais

El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823)

O bicentenário do triênio liberal (1820-1823-2020-2023) espanhol ensejou comemorações e lançamentos menores do que o impacto dos eventos de duzentos anos atrás. Se ninguém mais afirma, como Menéndez Pelayo, que foi um tempo “patológico” na história espanhola [3], a atenção concedida ainda é pequena, principalmente se comparada aos conflitos atlânticos da década anterior.

A “Espanha de Fernando VII” voltou a ser estudada com afinco ao menos desde a célebre obra de Artola, [4] mas o triênio liberal ainda tinha como seu livro mais conhecido um opúsculo do começo da década de 80, a síntese de Alberto Gil Novales [5]. Desde então, houve uma renovação historiográfica gigantesca, principalmente na história política. Ganharam maior fôlego os estudos sobre territórios específicos, sobre a imprensa, novas sociabilidades e, principalmente, aqueles que “desnacionalizavam” os episódios [6].

Dentro dessa perspectiva “internacionalista”, o triênio liberal tem dois atrativos únicos. O primeiro é seu inegável impacto europeu, pois o levantamiento de Riego foi feito numa Europa que, no começo de 1820, era dominada pela Santa Aliança e pelas monarquias restauradas. Ao impulso espanhol, houve também revoluções importantes em Portugal e nos territórios italianos. O segundo é sua faceta atlântica. Se no começo da década de 20 se concretizaram as independências na América, também foi naqueles anos que mais uma vez se colocou em jogo a possibilidade de uma nação atlântica, experiência fundamental tanto para o mundo hispânico quanto para oportuguês [7]:

La revolución española de 1820 tuvo desde el inicio una repercusión que trascendía al espacio peninsular. En primer lugar, porque habiendo estallado en el seno de las tropas reunidas en Andalucía para combatir la insurrección de los territorios de ultramar, su triunfo supuso la paralización de la política de expediciones militares que pretendía devolver los territorios de América a la obediencia de la monarquía española. (…) Y, en segundo lugar, porque el triunfo del movimiento en España colocó en el primer plano de la actualidad el valor de la Constitución de 1812 como instrumento para transformar las monarquías en regímenes liberales. (p. 155)

É justamente no esforço de desnacionalizar o período que a nova obra de Pedro Rújula e Manuel Chust faz sua maior contribuição ao condensar em poucas páginas um apanhado das últimas contribuições historiográficas dos dois lados do Atlântico. A envergadura espacial da obra também resulta, em parte, das trajetórias individuais dos dois autores. Ao passo que Chust tem enveredado pelo tema americano, Rújula é especialista nas questões aragonesas entre o triênio liberal e as guerras carlistas [8].

O resultado é um livro único que atualiza o objetivo de Gil Novales nos anos 80, o de fazer uma obra de referência para os estudos do triênio liberal, agora juntando a questão americana, antes ausente. De fato, não apenas adiciona o tema das independências, mas o toma como um dos mais importantes para definir os rumos do Triênio.

Há um esforço de distanciamento dos antigos preconceitos acerca do Triênio, de ter sido um intervalo liberal de pouca profundidade, com baixa popularidade entre as classes populares e tomado pelo caos das facções. Para isso, enfatiza principalmente a experiência política que significou, extrapolando o caráter parlamentar e difundindo novas culturas políticas tanto entre os liberais – exaltados e moderados [9] – como entre os absolutistas:

el marco constitucional establecido por la revolución de 1820 permitió la aparición de una esfera pública donde los ciudadanos comenzaron a participar según sus posibilidades y sus intereses. El Gobierno moderado hubiera deseado que la política se hiciera en el seno de las instituciones, pero existían otros actores que habían experimentado la posibilidad de actuar en el terreno político y que no estaban dispuestos a renunciar a potenciales parcelas de poder. El debate fue muy intenso. (p. 46)

Como é negada a tese reacionária de que a Constituição de 12 e o primeiro liberalismo eram ideias importadas, exógenas à Espanha, resta aos autores pincelar respostas a questões inevitáveis para o triênio. Por que fracassou? Qual a relação entre os liberais e as independências na América?

A resposta que os autores oferecem para explicar o “fracasso liberal” passa pela atuação do rei Fernando VII e pela reação estrangeira. A tentativa liberal de reformar a monarquia, desde as propostas moderadas de instituir uma segunda câmara, tendo os exemplos ingleses e franceses como mote, até as mais revolucionárias, com as Sociedades Patrióticas e a diminuição do poder da nobreza e da Igreja, criava uma ameaça institucional permanente às monarquias mais absolutistas. Daí que foi justamente a Rússia a dar maior apoio a Fernando VII para abolir qualquer tipo de Constituição. Ao mesmo tempo, a invasão francesa de 1823 servia para reposicionar a monarquia bourbônica na balança internacional de poder, enfraquecida como estava após as derrotas napoleônicas.

É perceptível que a resposta de Chust e Rújula nega a própria ideia de “fracasso liberal”. O triênio acabou não por seus erros internos, mas por um verdadeiro golpe reacionário europeu. A inversão procedida pelos autores também é uma negação da historiografia que visava mais as questões socioeconômicas da época, muitas vezes crítica à ineficiência prática das medidas liberais. [10]

Quanto à questão americana, os autores também se alinham com a nova história política, principalmente na negação das nacionalidades pré-existentes [11]. Logo, não se poderia explicar as independências como luta da nação mexicana para se libertar da Espanha. Com a tomada do poder pelos liberais, os autores também negam que houvesse uma arbitrariedade por parte da Espanha em relação aos americanos, visto que a igualdade estava concedida pela Constituição, que transformava o Império num gigantesco Estado-Nação. Essa tese igualitária tem mais oponentes historiográficos, como Portillo Váldes.[12]

Recusando as explicações tradicionais, os autores mais uma vez se voltam às questões políticas, pensando principalmente o caso novohispano, o de maior repercussão ao longo do Triênio e também aquele sobre o qual Manuel Chust tem mais familiaridade.[13] Com base na análise do Plano de Iguala [14], a conclusão do livro é que um dos principais motivos para a independência foi o caráter revolucionário da Constituição de Cádis, que tirava poder da elite Criolla para distribuir a outros setores sociais, com destaque para o voto indígena. Sendo assim, a independência ganhava contornos moderados e até reacionários, em perspectiva já ensaiada também para o caso brasileiro:

Para la insurgencia fue mucho más difícil enfrentarse políticamente al liberalismo doceañista que al monarquismo absolutista, dado que ahora podían participar de los mismos presupuestos ideológicos, pero no políticos ni nacionales. Y además estaban los intereses particulares de las diversas fracciones del criollismo, cada vez más proclives a la independencia. No porque esta solo estaba ganando por las armas, sino porque su creciente moderantismo le podía asegurar un control social y político que el liberalismo doceañista podía poner en duda al ser más progresista en bastantes medidas políticas y sociales como, por ejemplo, dar voto a los indígenas universalmente (p. 112).

Livro de entrada nos estudos do período e de síntese de uma nova perspectiva política, El Trienio Liberal é uma defesa do período do liberalismo espanhol do início do século XIX. É notável a simpatia dos autores com os protagonistas estudados, como se escrever a história deles fosse também escrever a defesa de sua luta. Poucas épocas hispânicas foram vividas tão passionalmente quanto aqueles anos, daí que esse resgate histórico não deixa de ser um tributo àqueles sonhos e ilusões.

Notas

3MENÉNDEZ PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003, p. 1362. Vide DURÁN LÓPEZ, Fernando. “Menéndez Pelayo contra Blanco White, o la heterodoxia como patología.” TEJA, Ramón; ACERBI, Silvia. (org.). Historia de los heterodoxos Españoles”. Estudios. Santander: PubliCan, Ediciones de la Universidad de Cantabria, 2012.

4. ARTOLA, Miguel. La España de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999 [1968].

5. GIL NOVALES, AlbertoEl trienio liberal. Madri: Siglo XXI, 1980.

6. ROCA VERNET, JordiPolítica, liberalisme i revolució. Barcelona, 1820-1823. 840 f. Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea). Universitat autònoma de Barcelona, Barcelona, 2007; El argonauta español, nº 17, 2020. Exemplar dedicado a “El trienio liberal en la prensa contemporánea (1820-1823); RUIZ JIMÉNEZ, MartaEl liberalismo exaltado. La confederación de comuneros españoles durante el trienio liberal. Madri: Fundamentos, 2007. LA PARRA, Emílio. RAMÍREZ ALEDÓN, Germán (coord.) El primer liberalismo: España y Europa, una perspectiva comparada. Valencia: Colección literaria, 2003.

7. BERBEL, Márcia Regina. “A constituição espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.

8. HUST, Manuel. La cuestión nacional americana en las Cortes de Cádiz. Valencia: Centro Francisco Tomás y Valiente UNED Alzira-Valencia. Fundación Instituto Historia Social/ Instituto de Investigaciones Históricas de la Universidad Nacional Autónoma de México, 1999; Pedro Victor Rújula. Constitución o muerte: el Trienio Liberal y los levantamientos realistas en Aragón (1820-1823). Zaragoza: Edizións de l’Astral, 2000.

9. pesar dos nomes já consagrados, os estudos específicos sobre cada um desses “liberalismos”, inclusive para apontar seus muitos pontos de fricção internos, são bastante recentes. Vide MORANGE, ClaudeEn los Orígenes del moderantismo decimonónico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e índice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019; e BUSTOS, SophieLa nación no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinión Pública. Tese (Doutorado em História). Universidad Autónoma de Madrid, Madri, 2017.

10. A crítica vinha desde os próprios liberais exilados, passando depois por Marx e sua famosa análise: “en la época de las Cortes, España se encontró dividida en dos partes. En la Isla de León, ideas sin acción; en el resto de España, acción sin ideas”. New York Daily Tribune, 27/10/1854. Disponível em MARX, Karl; ENGELES, Friederich. La Revolución española. Artículos y crónicas, 1854-1873. Madri: AKAL, 2017. A crítica foi atualizada para os termos mais técnicos da historiografia na influente visão de FONTANA, JosepLa crisis del Antiguo Régimen, 1808-1823. Barcelona: Crítica, 1979.

11. As referências para o assunto, por vezes em vieses muito diferentes, são GUERRA, François-XavierModernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica e Fundación MAPFRE, 1992; e RODRÍGUEZ, JaimeThe independence of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

12. PORTILLO VÁLDES, José MaríaCrisis Atlántica – Autonomía e independencia en la crisis de la monarquía. Madri: Marcial Pons Historia, 2006.

13. Embora Chust tenha organizado livros sobre a independência em toda a América, nos artigos costuma trabalhar mais com a do México, como emCHUST, Manuel; SERRANO, José Antonio. “El ocaso de la monarquía: conflictos, guerra y liberalismo en Nueva España. Veracruz, 1750-1820”. Ayer, nº 74, 2009.

14. Sobre o Plan de Iguala, em abordagem também bi-hemisférica, vide FRASQUET, Ivan. Las caras del águila. Del liberalismo gaditano a la república federal mexicana. Castellón: Universitat Jaume I – Instituto Mora – Universidad Autónoma de México – Universidad Veracruzana, 2008.

Referências

ARTOLA, Miguel. La Espana de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999.

BERBEL, Marcia Regina. “A constituicao espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.

BUSTOS, Sophie. La nacion no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinion Publica. Tese (Doutorado em Historia). Universidad Autonoma de Madrid, Madri, 2017.

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MORANGE, Claude. En los Origenes del moderantismo decimononico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e indice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019.

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Lucas Soares Chnaiderman1;2 – Possui graduação em História – Universidade de São Paulo, mestrado em história pela mesma universidade (2015) e atualmente cursa o doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


RÚJULA, Pedro; CHUST, Manuel. El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823). Madri: Catarata, 2020. Resenha de: CHNAIDERMAN, Lucas Soares. Em defesa da experiência liberal. Almanack, Guarulhos, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

A nova Razão do Mundo – Pierre Dardot e Christian Laval / Rodrigo Perez /

O livro é importante porque nos ajuda a entender as diversas variações da linguagem liberal. O neoliberalismo não esgota o liberalismo. É sua radicalização, sua versão eticamente perversa. Isso não significa que outros repertórios liberais não possam ser importantes na construção de um mundo socialmente mais justo.

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Regionalismo, Liberalismo y Rebelión. Copiapó en la Guerra Civil de 1859 – FERNANDEZ ABARA (RHYG)

FERNANDEZ ABARA, Joaquín. Regionalismo, Liberalismo y Rebelión. Copiapó en la Guerra Civil de 1859. Santiago de Chile: Escuela de Historia Universidad Finis Terrae, RIL Editores, 2016. 317p. Resenha de: MOLINA JARA, Jorge. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.37, p.219-222, 2017.

Chile, desde que se constituye como una República independiente y tras las primeras luchas en torno a la forma que debía tener el Estado, se caracte­rizó por un fuerte presidencialismo y el predominio de la ciudad de Santiago sobre otras localidades del país. A pesar de que en algunos periodos históricos el eje del poder institucional y territorial pretendió moverse, esta situación se ha mantenido hasta nuestros días. En el año 2016, se inició en nuestro país un proceso de discusión sobre el cambio constitucional, reflotando con fuerza entre los participantes, la idea de una asamblea constituyente, la necesidad de descentralizar y avanzar en una regionalización auténtica.1 Esta mirada evidenció una latente percepción de postergación de las regiones, por una institucionalidad que favorecería a la zona central, particularmente a Santiago.

Ese mismo año, el historiador Joaquín Fernández Abara publica el libro que comentamos, donde analiza un momento de inflexión del Chile deci­monónico y que la historiografía no ha abordado en profundidad: el reclamo regionalista contra el Ejecutivo (asentado en Santiago), que se expresó en el levantamiento copiapino de 1859. El texto, de 317 páginas, secuenciadas en una introducción, cuatro capítulos, más las conclusiones, bibliografía y un anexo documental, recoge las investigaciones de Fernández desarrolladas en la última década en torno a esta problemática y amparadas en su tesis de magíster en la Universidad Católica. Leia Mais

Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780 -1860 – MARSON et al (RIHGB)

MARSON, Isabele; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780 -1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. 348 p. Resenha de: LYRA, Maria de Lourdes Viana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 175 (462) p.273-280, jan./mar. 2014.

A coletânea organizada pelas professoras/historiadoras Isabel Marson e Cecília Helena de Salles Oliveira e publicada em livro, sob o título “Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860” – reúne textos voltados à reflexão de uma questão central e necessária à ampliação do conhecimento histórico sobre o Brasil imperial, ou seja, o entrelaçamento entre política e negócios no processo de formação do Estado nacional. Escritos com maestria pelas organizadoras – ambas com larga experiência acadêmica e autoras de obras consagradas referentes ao tema – e por jovens pesquisadores – mestres e doutores por elas orientados nos cursos de pós-graduação em História na Unicamp e na USP –, os artigos representam expressivo subsídio à produção historiográfica do Brasil novecentista.

Pela proveitosa retomada da análise crítica sobre o período em pauta e elaborada com o devido rigor acadêmico sobre os paradigmas teóricos e interpretativos ainda persistentes, com o objetivo de demonstrar como ocorreu o processo de afirmação das práticas liberais nos domínios do Estado e da sociedade imperial.

O aprofundamento da análise sobre circunstâncias específicas à estruturação do Estado nacional brasileiro vem, nos últimos tempos, despertando a atenção dos pesquisadores e ocupando espaço destacado nos estudos da História do Brasil. Sobretudo a partir das décadas finais do século XX, com o incremento da pesquisa histórica nos cursos universitários de pós-graduação e o consequente incentivo à abertura de novos ângulos de reflexão sobre o sentido do Estado brasileiro imperial. Caso singular no contexto das independências coloniais da América e ainda pouco explorado quanto à motivação da luta então empreendida para manter a unidade do vasto território colonial e a consequente implantação do único Estado independente monárquico e imperial no Novo Mundo. Ao mesmo tempo em que a necessidade de outras leituras sobre a história política se impunha, com o surgimento de questões histórico-políticas contemporâneas, então colocadas. Além do interesse na retomada da reflexão pontual sobre a transferência da sede da Corte monárquica portuguesa para a colônia Brasil. Acontecimento extraordinário ocorrido no início do século XIX e recolocado como foco de particular atenção, especialmente no contexto das comemorações do bicentenário, em 2008. Ocasião em que o questionamento sobre o sentido político/ideológico do Império edificado no Brasil, que já vinha sendo atentado, estimulou o aprofundamento da análise sobre as questões estruturais envolvidas no processo histórico decorrente e, consequentemente, à elaboração de estudos articulados sobre aspectos de ordem política, social, cultural e econômica.

É nesse quadro renovador de pesquisa e estudos históricos sobre o processo de formação do Estado e da sociedade brasileira que a coletânea aqui enfocada adquire valor e se destaca, pelo significativo avanço empreendido no estudo do tema. Ao centrar a atenção sobre os “princípios e formas de relacionamento que estruturaram e mediaram monarquia constitucional, liberalismo, mercado e escravidão na sociedade imperial”, apoiada em exaustiva exploração de fontes primárias e em expoentes teóricos “que questionaram metodologias e pressupostos liberais e marxistas ortodoxos”. Além do necessário diálogo empreendido com estudos renovadores elaborados nos últimos anos sobre a política e a sociedade imperiais e, sobretudo, pela consistência da reflexão resultante, ao demonstrar que: “princípios políticos liberais de diverso teor orientaram e estruturaram as relações vigentes na sociedade imperial, nela exteriorizando-se de múltiplas formas (…) desde a crise do Antigo Regime até o Segundo Reinado”.

Dividida em duas partes objetivamente demarcadas – a primeira intitulada: (Re)configuração de pactos e negociação na (re)fundação do Império; a segunda sob o título: Revoluções e conciliação: fluidez do jogo político, dos partidos e dos empreendimentos – a coletânea reúne nove alentados artigos interligados pelo objeto comum de análise: o de aprofundar o conhecimento sobre o processo histórico correspondente, através do estudo de ocorrência em locais diversos e em circunstâncias diversificadas, como: relações de dominação e de subordinação estabelecidas, mobilizações urbanas e/ou agrárias, manifestações na imprensa.

Busca realçar os fortes laços existentes entre os interesses da política e o mundo dos negócios e, principalmente, explicitar como “a disputa entre grupos pelo exercício do poder – frequente matriz de revoluções – resguardava os interesses pelos lucrativos negócios gerenciados por aqueles que comandassem o governo”.

Na primeira parte, encontram-se os artigos centrados na análise do período situado entre a conjuntura final do século XVIII e as décadas iniciais do XIX. E, o primeiro artigo, escrito por Ana Paula Medicci, “Arrematações reais na São Paulo setecentista: contrato e mercês”, analisa o sistema de arrematação dos contratos de arrecadação das rendas reais.

Tomando como referência especial o contrato do imposto dos dízimos – o de maior relevância pelo montante das rendas auferidas. Situa o estudo entre 1765, ano em que a capitania de São Paulo se tornou autônoma da principal (Rio de Janeiro) e 1808, quando a instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro alterou as relações de poder no contexto interno da Colônia Brasil. Ressalta a relação desse sistema com a concessão de honrarias e cargos na administração colonial e demonstrando quão forte era o enraizamento de interesses dos negociantes que, ao acumularem o encargo de arrecadadores de impostos, também participavam da administração pública. Resulta na imbricação dos interesses públicos e privados, em face da estreita relação político-administrativa então existente, e propiciando a criação de “vínculos que fortaleciam tanto as instituições administrativas quanto a unidade imperial”.

O texto escrito por Emílio Carlos Rodrigues Lopez sob o título “Festejos públicos, política e comércio: a aclamação de D. João VI”, centra o foco de análise na organização dos festejos públicos realizados no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1822. Dando especial atenção aos preparativos da festa para celebrar a aclamação do rei D. João VI, em fevereiro de 1818, sobretudo examinando o uso de imagens e símbolos utilizados na decoração das ruas da cidade engalanada e ressaltando o esmero na montagem de suntuosos exemplares de arquitetura efêmera: como o arco do triunfo de inspiração romana, com imagens do Tejo e do Rio de Janeiro apoiando as armas reais e sob a inscrição “Ao libertador do comércio”, que marcou a decoração executada pelos artistas franceses Jean Baptiste Debret e Gran-Jean de Montigny e financiada pelos principais negociantes locais, com o propósito de realçar o “projeto civilizador” do rei ilustrado, que “marcava a vitória da civilização sobre o mundo bárbaro”. Todos engajados no esforço de legitimar a Monarquia instalada nos trópicos, graças à “sabedoria do rei, que promovia a prosperidade do Império, expressa nas figuras das artes, da agricultura e do comércio” e fortalecia o recém -criado Reino Unido luso-brasileiro.

Cecília Helena de Salles Oliveira é a autora do artigo, “Imbricações entre política e negócios: os conflitos na Praça do Comércio no Rio de Janeiro”, em 1821, centrado na análise dos conflitos ocorridos na Praça do Comércio do Rio de Janeiro, local de reunião dos eleitores fluminenses para escolha dos representantes da província às Cortes Gerais e Constitucionais, revolucionariamente convocadas para realizar-se em Lisboa.

Apoiada em apurada pesquisa de fontes históricas, examina particularmente o processo judicial então instaurado, para apurar a razão de tais ocorrências, a autora revela “a matização do quadro político na cidade e Corte do Rio de Janeiro, bem como, a indefinição de alternativas às vésperas da partida de D. João para Portugal”. Argumenta que o confronto do dia 21 de abril de 1821, ocorrido no “edifício luxuoso”, que fora financiado pelos negociantes locais e inaugurado no ano anterior, constitui marco de significativa importância na tomada de posição de: “pessoas e grupos diretamente engajados, naquele momento, na defesa das bases constitucionais propostas pelos revolucionários em Portugal e na Espanha”.

Ao contrário do que é usualmente explicado pela historiografia, ou seja, como um simples choque de interesses entre “portugueses” e “brasileiros”.

Além de salientar o quanto “as vinculações entre política e mercado foram redefinidas e adquiriram outras fundamentações e aparências à medida que hierarquias, monopólios, isenções e privilégios coloniais foram sendo esgarçados e/ou reconstruídos por intermédio do movimento complexo de conflitos sociais, do qual a reunião na Praça do Comércio é emblemática exteriorização”.

O artigo escrito por Vera Lúcia Nagib Bittencourt, “Bases territoriais e ganhos compartilhados: articulações políticas e projeto monárquico -constitucional” analisa a conjuntura imediatamente seguinte ao conflito do Rio de Janeiro (1821), enfocando a ação política desenvolvida pelos agentes apoiadores do projeto de permanência da unidade luso-brasileira.

Aponta a aproximação de interesses políticos e financeiros entre os grandes proprietários e negociantes, militares e membros da alta burocracia da Corte, os quais, articulados com figuras oriundas de tradicionais famílias paulistas e proprietários de terra mineiros, desencadearam a ação de defesa das prerrogativas de Reino do Brasil e, portanto, a permanência de um centro de poder monárquico no Rio de Janeiro. Além da consequente “preservação dos diferentes ganhos obtidos pelos articuladores com a fixação da Corte na América portuguesa”.

O texto de João Eduardo Finardi Álvares Scanavini, “Embates e embustes: a teia do tráfico na Câmara do Império (1826-1827)”, encerra a primeira parte do livro, analisando o debate travado na Câmara de Deputados em torno do Tratado anglo-brasileiro para a Abolição do Tráfico de escravos, assinado em novembro de 1826 e ratificado em março de 1827.

Examinando o posicionamento dos parlamentares sobre a validade do trabalho servil e do tráfico de africanos para o País e no encaminhamento da discussão para a ratificação do Tratado, o autor amplia o quadro de análise.

Ao perscrutar o tom e o modo de negociação pleiteada pela representação parlamentar, ligada direta ou indiretamente ao lucrativo comércio de escravos e, portanto, empenhada em conservar a ordem escravocrata ou no mínimo adiar a abolição por prazo indefinido, ressalta a postura de oposição ao governo assumida pelos deputados, utilizando-se da tática de desqualificar o Tratado de 1826, levando à continuidade da prática ilícita do tráfico até 1850. Ao mesmo tempo em que atacavam as atitudes despóticas do governante, encaminhando o movimento que levaria à abdicação do imperador em 1831, fato que encerrava o tempo de vigência do Primeiro Reinado.

Na segunda parte, encontram-se os textos que analisam a conjuntura posterior à abdicação caracterizada pelo confronto “entre súditos-cidadãos por projetos, espaços de atuação bem colocados e oportunidades de negócios (…) guerras civis e conciliações compulsórias”, iniciada com o texto de Erik Hörner, intitulado “Partir, fazer e seguir: apontamentos sobre a formação dos partidos e a participação política no Brasil da primeira metade do século XIX”. Apoiado nas concepções teóricas do cientista político italiano Giovanni Sartori, o autor analisa o momento propiciador do surgimento de associações que dariam origem aos partidos: conservador e liberal. Demonstra o quanto os princípios do liberalismo e do mercado lastrearam o discurso e orientaram a prática dos políticos, nas décadas de 1830 e 1840; discutindo sobre as expressões utilizadas e a problemática dos esquemas traçados. Além da bipolarização partidária “tida como característica da política imperial” sob a argumentação de que “a complexidade do jogo político e do embate de grupos com interesses mais diversos do que poderia ser contido simplesmente em rótulos como liberais e conservadores”.

Isabel Marson é a autora de “Monarquia, empreendimentos e revolução: entre o laissez-faire e a proteção à ‘industria nacional’ – origens da Revolução Praieira (1842-1848)”, no qual desloca o foco de análise do cenário da Corte e circunvizinhança, centrando a atenção na província de Pernambuco, onde o jogo político-partidário era intenso, traduzido na disputa por cargos no governo local e obtenção de cobiçados contratos em obras públicas, desenrolado entre os que pleiteavam protecionismo à indústria nacional e os defensores do livre-cambismo, aqueles que comandavam a administração provincial desde 1837, ou seja, duas orientações de teor liberal que se confrontavam, expondo a complexidade da sociedade “constituída por grupos de interesses e expectativas de diverso matiz liberal”. Esmiuça as circunstâncias específicas daquela província, a autora aprofunda o estudo sobre as relações sócio-político-econômicas ali estabelecidas e de certa forma determinantes nas diretrizes governamentais do Segundo Reinado. Traçando um quadro esclarecedor sobre a sintonia da província com “a teia de negócios e orientações políticas no âmbito do Império e no quadro internacional”, contribuindo à ampliação do conhecimento sobre o confronto entre grupos políticos locais, que levou à “sangrenta guerra civil, celebrizada como Revolução Praieira”, em 1848. Investiga sobre as motivações que levaram os agentes de diversas colorações a fundar, em 1842, o Partido Nacional de Pernambuco – mais conhecido como Partido da Praia ou Praieiro – e pontuar o desdobramento marcado pelo confronto entre forças liberais: os “praieiros”, propondo maior participação dos setores médios da sociedade, preservação dos engenhos banguês, incremento de novas culturas; e forças conservadoras: os “guabirus”, reivindicando apenas melhorias na produção e no fabrico do açúcar. Além de apontar que a derrota dos “praieiros” resultou no longo afastamento dos liberais do centro de poder das decisões políticas imperiais e, consequentemente, na promoção exclusiva das práticas econômicas livre-cambistas pela administração central.

O texto seguinte, “Autobiografia, ´conciliação` e concessões: a companhia do Mucuri e o projeto de colonização de Theophilo Ottoni”, escrito por Maria Cristina Nunes Ferreira Neto, analisa a trajetória do líder da revolução de 1842 em Minas Gerais, confrontando o percurso de vida privada e pública do renomado “político liberal mineiro” com o relato autobiográfico por ele publicado em 1860, a Circular Dedicada aos Srs.

Eleitores de Senadores pela Província de Minas Gerais. A autora questiona as lacunas encontradas na Circular, sobre o empreendimento do Mucuri e a trajetória coerente e linear do ilustre personagem, traçadas por seus biógrafos; registra a sintonia existente entre o caminho seguido desde o início por Ottoni e o projeto de colonização do Mucuri, além de outros empreendimentos, todos dependentes de concessões do Estado e afinados com as propostas do Partido Liberal; apontando que a obtenção de concessões à fundação da Companhia do Mucuri, bem-sucedida até meados de 1858, se deveu à aproximação de Ottoni com os “progressistas”; sendo no contexto correspondente à perda de apoio político e às consequentes dificuldades financeiras, que a Circular fora escrita.

Encerra a coletânea, o texto de Eide Sandra Azevêdo Abreu “Um pensar a vapor”: Tavares Bastos, divergências na Liga Progressista e negócios ianques, que centra o foco de análise nas discussões parlamentares na década de 1860. Investiga o posicionamento do grupo que formou a Liga Progressista – entre “moderados” do partido conservador e do partido liberal –, com a pretensão de fundar um terceiro, o Partido Progressista.

Destaca a atuação dos agentes de maior projeção e a divergência das diretrizes de governo pretendidas: uma favorável ao investimento estrangeiro; outra defendendo proteção à empresa nacional. Tomando como parâmetro, a atuação de Aureliano Cândido Tavares Bastos na Câmara dos Deputados, pertencente à Liga Progressista, e ardoroso defensor da proposta de subvenção à navegação a vapor entre o Brasil e os Estados Unidos, projeto que encontrou forte resistência tanto de “moderados” conservadores, quanto de liberais “históricos” e, em cujo debate, “sobressai a imbricação da política imperial com o vasto mundo dos negócios”.

Não resta dúvida de que esse é um livro de leitura obrigatória, pela significativa contribuição à histografia brasileira, sobretudo pela abrangência da análise sobre cenários variados e circunstâncias diversas que caracterizam o tempo do Brasil imperial e que tem a virtude de instigar o leitor interessado em explorar aspectos e situações ainda pouco exploradas do nosso passado histórico.

Maria de Lourdes Viana Lyra – Doutora em História pela Universidade de Paris X-Nanterre. Sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 | Izabel Andrade Marson e Cecília Helena de Salles Oliveira

Durante longo tempo, os estudos de história política, social e econômica do Brasil Imperial foram tomados de forma bastante estanque, como se não houvesse uma continuidade entre o Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Reinado. De certa maneira, era lugar comum tratar as diferentes fases do processo que levou à formação do Estado Imperial apenas como rupturas. Desconsiderava-se a interdependência de temas como cidadania, comércio, escravidão, justiça e política externa, e não havia a preocupação em compor análises que indicassem as contradições do período. Dito de outro modo, não se tomava a formação do Estado Imperial a partir da ideia de processo.

Contudo, nos últimos anos esta visão tem sido alterada pelos inúmeros esforços de historiadores de diversas partes do país, o que pode ser demonstrado pela constituição de grandes projetos coletivos, de associações dedicadas ao estudo daquele período, materializados pela criação de novos laboratórios, grupos de estudo e linhas de pesquisas em importantes programas de pós-graduação brasileiros. Tais esforços ajudaram a romper o isolamento das pesquisas, permitindo que novos enfoques e novas abordagens fomentassem o diálogo entre diferentes autores, sendo possível estabelecer contatos até mesmo com pesquisadores que atuam em instituições internacionais, para pensar o Império do Brasil de forma que articule, equilibradamente, aspectos sociais, econômicos e políticos.

Novos trabalhos cheios de fôlego para romper com antigos paradigmas e propor questionamentos instigantes aos temas correlatos à formação e à consolidação do único Império no Hemisfério Sul estão reunidos em importante coletânea organizada por Izabel Marson e por Cecília Oliveira. Os artigos em foco percorrem temas como escravidão, liberalismo, redes de interesse mercantis, conflitos e competições na cena pública, bem como a opção pela monarquia constitucional representativa. O livro, como um todo, abrange desde a crise do Antigo Regime ao Segundo Reinado, explicitando que o Império do Brasil somente pode estruturar-se como tal porque contou com o suporte, sobretudo financeiro, garantido pelos negociantes de grosso trato, sempre interessados em obter vantagens econômicas e políticas, em momento em que, sob os matizes das práticas liberais, as coisas da vida pública e da vida privada coexistiam sem se confundir.

A coletânea em tela está dividida em duas partes: (Re)configuração de pactos e negociações na (re)fundação do Império e Revoluções e Conciliação: Fluidez do Jogo Político, dos Partidos e dos Empreendimentos. Ao todo, os nove artigos escritos por mestres e doutores demonstram como as redes de favorecimento impulsionaram o enraizamento do Estado português na América, bem como garantiram a consolidação do Estado Imperial do Brasil.

O primeiro momento é inaugurado por Ana Paula Medicci, autora de As arrematações das rendas reais na São Paulo setecentista: contratos e mercês. O estudo abrange o período de 1765, ano em que a capitania tornou- se autônoma ao Rio de Janeiro, a 1808, data da chegada da Corte, quando novos arranjos políticos alterariam o novo centro administrativo e a sua relação com outras localidades da Colônia. Ao discordar da perspectiva de que a capitania atravessava grave crise econômica quando se reorganizava administrativamente, a autora demonstra que a capitania de São Paulo favoreceu o enraizamento de negociantes que participavam da administração pública arrematando impostos, financiando empreendimentos estatais e comandando tropas de segunda linha. Comprova a existência de uma rede de compadrio que permitiu que, mesmo antes do século XIX, São Paulo fulgurasse como uma das mais expressivas províncias do Brasil, dispondo de homens ricos e influentes que, ao mesmo tempo em que intencionavam consolidar seus objetivos particulares de manutenção no poder, também fortaleciam as instituições representativas tão necessárias à unidade imperial.

O político e o econômico também aparecem como faces da mesma moeda no artigo Imbricações entre política e negócios: os conflitos na Praça do Comércio no Rio de Janeiro, 1821, de Cecília Helena de Salles Oliveira. As análises do tumulto, ocorrido durante assembleia de eleitores que indicaria os representantes do Rio de Janeiro em Lisboa, extrapolam as explicações simplistas de que foram apenas manifestações antilusitanas antecedentes à Independência. Possibilitam compreender as vinculações entre a política e o mercado a partir de um reordenamento de hierarquias, privilégios e monopólios disputados por diferentes agentes sociais. São resultados das contradições e dos múltiplos projetos em disputa, em um momento em que muito ainda estava para ser definido.

A fim de compreendê-los, Cecília Oliveira parte da análise de três importantes fontes históricas, escritas por contemporâneos que atribuíram interpretações variadas para os atos na “Bolsa”: a edição de 25 de abril de 1821 do jornal Gazeta do Rio de Janeiro; as impressões de Silvestre Pinheiro Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra; e os relatos anônimos publicados um mês após os eventos na Praça do Comércio, sob o título de Memórias. As três visões sobre o mesmo fato levaram-na a pensar sobre os projetos conflitantes, bem como a compreender as articulações em torno da figura de D. Pedro I: alternativa viável aos interesses mercantis de determinado grupo que ambicionava participar da redação de um texto constitucional que limitasse os poderes do governo e ainda garantir a preponderância do Rio de Janeiro como centro articulador da política e das negociações mercantis.

O terceiro artigo da coletânea também demonstra como os negociantes se valiam da aproximação com a política para obter vantagens para si. Festejos públicos, política e comércio: a aclamação de D. João VI, foi escrito por Emílio Carlos Rodriguez Lopez, e investiga a montagem e o financiamento das celebrações da monarquia, voltando-se especialmente para o evento de fevereiro de 1818. Revela como as mesmas famílias que estavam por trás do comércio de abastecimento da cidade eram também as principais financiadoras das festas públicas – o que as distinguia socialmente e reforçava ainda mais os laços com o soberano, que as recompensava com honrarias e outras mercês. Além disso, as festas difundiam a ideia de que a civilidade havia chegado aos trópicos. Reproduções do arco do triunfo, do templo grego e do obelisco egípcio eram exibidas próximas ao local da aclamação e ao centro do poder, simbolizando que novos padrões culturais estavam em voga no Brasil desde a vinda da Corte.

Avançando no tempo, Vera Lúcia Nagib Bittencourt escreveu Bases territoriais e ganhos compartilhados: articulações políticas e projeto monárquico-constitucional para entender o apoio a essa forma de governo no período posterior à Independência. Para ela, a emancipação política do Brasil e a adesão à figura de D. Pedro devem ser entendidas como resultantes de um árduo processo de negociações envolvendo interesses multifacetados, num momento em que as interações entre o Rio de Janeiro e as demais províncias se diversificavam frente à redistribuição de poderes. A autora propõe que as relações entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro sejam pensadas para além de suas dimensões territoriais, mas sim pelas dimensões políticas e econômicas estreitadas pelas práticas comerciais, pela expansão da agricultura e principalmente por uma extensa rede familiar de negócios que atuava na área. Podem ser pensados como “espaço com identidade econômica e social, em busca de poder e representação” (p. 156).

Encerrando a primeira parte da coletânea, João Eduardo Finardi Álvares Scanavini apresenta Embates e embustes: a teia do tráfico na Câmara do Império (1826-1827). O autor analisa a repercussão do tratado anglo-brasileiro de 23 de novembro de 1826, que visava pôr fim ao tráfico de escravos em um prazo de três anos, na Câmara dos Deputados. A partir dos debates travados naquela Casa do Legislativo, o autor mapeou o posicionamento dos grupos sobre o tema, procurando aprofundar a ligação entre esses homens e distintos interesses mercantis no Rio de Janeiro. Afirma que os deputados expressaram condutas ambíguas sobre a extinção do comércio de almas no país, defendendo a conservação da ordem escravocrata, a partir de um debate que se centrou, na maioria das vezes, em condutas anglóbofas ou anglófilas visando desqualificar o tratado de 1826.

A segunda parte do livro dedica-se a momento posterior à renúncia de Pedro I em nome do filho. É inaugurada por artigo de Erik Hörner, intitulado Partir, fazer e seguir: apontamentos sobre a formação dos partidos e a participação política no Brasil da primeira metade do século XIX. Valendo-se das concepções teóricas do cientista político Giovanni Sartori, Hörner afirma que ater-se às designações “liberais” e “conservadores” nos anos finais da Regência e no Segundo Reinado pode ser considerado um anacronismo por levar em consideração o bipartidarismo defendido por autores de época, como Justiniano José da Rocha, Theophilo Ottoni, Américo Brasiliense e Joaquim Nabuco. O esquematismo dos autores de época não se aplica às experiências das assembleias e dos governos do Brasil Imperial, sendo preciso levar em consideração as particularidades locais em relação às diversas esferas de poder em altercação.

Em Monarquia, empreendimentos e revolução: entre o laissez-faire e a proteção à “indústria nacional” – origens da Revolução Praieira (1842- 1848), Izabel de Andrade Marson analisa o jogo político partidário em face na Província de Pernambuco. “Guabirus” e “praieiros”, defensores, respectivamente, do “livre-cambismo” e da “indústria nacional”, opunham-se na cena pública, competindo por cargos de poder e por maior inserção nos negócios. Tal concorrência, somada à hostilidade entre conservadores e liberais, foi munição necessária à explosão dos conflitos de 1848. A vitória dos conservadores levou ao enfraquecimento do Partido Nacional de Pernambuco – PNP, afastando, por conseguinte, os liberais do poder por cerca de quinze anos. Tal hegemonia garantiu, segundo Marson, que práticas livre-cambistas encontrassem condições propícias para prosperar, ainda que achassem resistência entre os proprietários menos abastados.

Embora o PNP estivesse desarticulado após a Revolução Praieira, os ideais propalados pelo grupo seriam reavivados por volta de 1870, quando Henrique Augusto de Milet, no Jornal de Recife, buscava compreender as causas da crise das lavouras vividas pelas províncias do norte. Culpava os dirigentes do Império por terem buscado soluções estrangeiras (laissezfaire, alta do câmbio, juros elevados, etc.) para um problema nacional que tinha origem nas disputas sangrentas ocorridas em Pernambuco. A crise nas lavouras propiciou a revolta do “Quebra-Quilos”, expressão do descontentamento de vários setores sociais que, gradativamente, viam os sustentáculos do regime monárquico ruir.

Em Autobiografia, “conciliação” e concessões: a Campanha do Mucuri e o projeto de colonização de Theophilo Ottoni, Maria Cristina Nunes Ferreira Neto analisa as explicações sucintas do tarimbado político em documento dirigido aos eleitores da Província de Minas Gerais. Investiga as lacunas deixadas pelo signatário da Circular, escrita no calor da hora em meio à falência do projeto de colonização dessa rica região do nordeste mineiro, quando Ottoni desejava isentar-se das críticas de oportunismo e incompetência administrativa. Evidencia as relações entre o Estado e a iniciativa privada, demonstrando como Ottoni, inspirado pelos princípios liberais e contando com o auxílio do governo, usufruiu de concessões, privilégios e terras para levar adiante um empreendimento de grande porte. O projeto colonizador do Mucuri foi bem sucedido até 1858, quando Ottoni valeu-se das benesses concedidas pelo “Ministério da Conciliação” para obter empréstimos, garantir a compra de mais terras e a vinda de mais imigrantes para o trabalho braçal. Entretanto, após seus aliados políticos terem sido afastados do poder, a Companhia de Navegação e Comércio do Mucury enfrentou entraves financeiros e políticos. Um deles foi o veto concedido pelo então Ministro da Fazenda, Ângelo Muniz Ferraz, adversário de Ottoni, ao empréstimo que seria concedido pela Inglaterra para quitação de dívidas e de multas, bem como pagamento dos salários dos imigrantes.

Seguindo a mesma linha de argumentação para esmiuçar as relações entre interesses pessoais e as políticas de governo, Eide Sandra Azevêdo Abrêu encerra a coletânea, apresentando o artigo “Um pensar a vapor”: Tavares Bastos, divergências na Liga Progressista e negócios ianques. Mais uma vez o experiente Theophilo Ottoni aparece como um dos articuladores do grupo de políticos, que reunia representantes do partido conservador e do partido liberal, para fazer frente à lei de 22 de agosto de 1860, que criava empecilhos às liberdades de associação e de crédito. Zacarias de Góis e Vasconcelos, Pedro de Araújo Lima (Marquês de Olinda), José Thomaz Nabuco de Araújo, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Martinho Alvares da Silva Campos, Aureliano Cândido Tavares Bastos foram alguns dos representantes que, ao lado de Ottoni, constituíram a Liga. Novamente, evidenciam-se as dissenções entre os membros dos diferentes partidos políticos, rompendo-se com a ideia de homogeneidade no seio das agremiações. A própria Liga Progressista era rica em contradições, como demonstram os diferentes interesses que vieram à tona em face das argumentações pela subvenção à navegação entre o Brasil e os Estados Unidos.

Tavares Bastos, por exemplo, foi um dos defensores da proposta que favoreceria negociantes norte-americanos e brasileiros ligados à navegação, porque ele mesmo era um dos interessados em lograr vantagens junto ao Estado Imperial para tocar seus projetos econômicos ligados aos investidores estrangeiros. O autor reforça uma máxima que percorre todos os trabalhos do livro – indispensável para todos os interessados em entender a complexidade do Brasil Império: a indissociabilidade entre política e negócios, que devem ser tomadas como dimensões interdependentes, complementares, num momento em que homens alçados aos mais altos postos de governo integravam redes mercantis e estreitavam seus vínculos por meio de estratégias que visavam o fortalecimento dos seus interesses privados.

O livro em tela reforça a necessidade de que os novos estudos dediquem-se à superação de esquemas estanques, que tratam política e negócios a partir de relações antagônicas. Fatos e fontes históricas são revisitados com o frescor e a coragem de novas interpretações, em textos que fluem de maneira coesa e acessível. São apresentadas novas hipóteses que movimentam o debate histográfico e lançam ainda mais questões acerca do passado histórico rememorado e reconstruído sob a luz do presente.

Aline Pinto Pereira – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF – Niterói/Brasil). E-mail: [email protected]


MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013. Resenha de: PEREIRA, Aline Pinto Interesses públicos e privados nas tramas do Brasil Império. Almanack, Guarulhos, n.6, p. 163-167, jul./dez., 2013.

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Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 – MARSON; OLIVEIRA (H-Unesp)

MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: EDUSP, 2013, 348 p. Resenha de: PEREIRA, Milena da Silveira. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Monarquia constitucional, liberalismo, negócios e escravidão foram temas caros ao século XIX e a toda uma historiografia brasileira, que passou boa parte do século XX ressignificando tais conceitos e categorias com mais vigor, por vezes, que o próprio Oitocentos. Tomados por Izabel Andrade Marson, Cecília Helena L. de Salles Oliveira e outros colaboradores da obra como uma espécie de guia para se entender a formação e a constituição do Império do Brasil, tais conceitos são explorados a partir da constatação e negação de três assertivas que, como defendem as organizadoras da coletânea, estão no cerne de uma determinada leitura teórica e interpretativa da história imperial.

Dialogando diretamente com parte da historiografia brasileira produzida no século XX, as pesquisas que compõem Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 (publicação da EDUSP, com financiamento da Capes, CNPq e Museu Paulista) problematizam, debatem e refutam esses três paradigmas. O primeiro desses modelos questionado é aquele que afirma ter a sociedade brasileira do século XIX conservado uma herança colonial retrógrada, caracterizada pela inexistência de cidadãos conscientes de seus direitos e, consequentemente, impossibilitados de uma vivência revolucionária. O segundo é o que afirma que o período imperial foi concebido como uma fase de transição entre o Brasil Colônia, marcado por instituições ultrapassadas, e o Brasil República, caracterizado por uma experiência nacional “autêntica” e pela presença de instituições “modernas”, como a república, a cidadania burguesa, o trabalho livre, a vida urbana, a industrialização. O terceiro e último paradigma problematizado e rebatido nesta obra é o que defende a falta de cadência entre as vivências brasileiras e europeias e o comportamento e pensamento “imitativos” e “desprendidos” da realidade social brasileira.

A obra, retomando e realimentando um debate das décadas de 60 e 70 acerca da incompatibilidade entre liberalismo e escravidão no Oitocentos brasileiro e do descompasso histórico do Brasil em relação à Europa, pretende, pois, problematizar e revisar criticamente a denominada “tese do atraso” da sociedade brasileira – ou seja, “o inacabamento, a inorganicidade e a intangibilidade da nação brasileira” naquele tempo – a partir de diversificadas perspectivas do fazer histórico, como as de E. P Thompson, Hannah Arendth, Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault, Pierre Rosanvallon, Reinhart Koselleck, Quentin Skinner e John Pocock.

Assumindo tal propósito, esta reunião de escritos produzidos por pesquisadores do Museu Paulista, da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas está articulada em duas partes. A primeira, intitulada (Re)configuração de pactos e negociações na (re)fundação do Império, abarca trabalhos que exploram questões relacionadas: às negociações dos impostos, honrarias e cargos administrativos entre Portugal e Brasil; à análise dos festejos públicos da Monarquia e da arquitetura recriada por integrantes da missão artística francesa no Rio de Janeiro. Abarca também estudos que passam pelo mapeamento dos diferentes pronunciamentos e posicionamentos da Câmara do Império (1826-1827) sobre o tráfico e os significados da escravidão para o país; e, por fim, os “incidentes” ocorridos, em 21 de abril de 1821, na Praça do Comércio – centro de muitas e importantes negociações – , e seus desdobramentos políticos. Este primeiro momento tem como colaboradores Ana Paula Medicci, Cecília Helena de Salles Oliveira, Emílio Carlos Rodriguez Lopez, Vera Lúcia Nagib Bittencourt e João Eduardo Finardi Álvares Scanavini.

Compõe a segunda parte da coletânea os estudos de Erik Hörner, Izabel Andrade Marson, Maria Cristina Nunes Ferreira Neto e Eide Sandra Azevêdo Abrêu. Denominado Revoluções e conciliações: fluidez do jogo político, dos partidos e dos empreendimentos, este conjunto de textos inclui um trabalho que relaciona os princípios do liberalismo e do comércio à formação do Partido Liberal e do Partido Conservador e à participação política no Brasil da primeira metade do século XIX. Outro estudo trata da relação entre monarquia, empreendedorismo – voltado ao “livre-cambismo” e à defesa da “indústria nacional” – e Revolução Praieira (1842-1848). Compreende ainda esta segunda parte um artigo sobre a trajetória pessoal e pública do importante político liberal e negociante mineiro Theophilo Ottoni e um último que explora a proximidade dos embates entre orientações político-econômicas liberais e o fracasso da Liga Progressista, grupo formado por membros “moderados” do partido conservados e do partido liberal.

Em todas essas pesquisas, o leitor notará a preocupação dos autores em apresentar novas perspectivas sobre a história política, do ponto de vista de sua cultura, da formação da opinião pública, da atuação dos estadistas e dos grupos sociais. Notará igualmente a preocupação de perceber o político no cotidiano ou, como destacam as organizadoras, “nas ruas e praças, nas estradas, nas fazendas, nos festejos, nas manifestações, na imprensa, nos ambientes públicos e privados”. Todos esses espaços, como o próprio título da obra sugere, são analisados à luz das “imbricações entre política e negócios”. Aquele leitor interessado em revisitar a formação e a consolidação do Império brasileiro a partir das mediações entre monarquia constitucional, liberalismo, negócios e escravidão, encontrará, portanto, nesta coletânea um bom caminho.

Milena da Silveira Pereira – Doutora em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, e professora substituta nos cursos de História e de Relações Internacionais, da UNESP/Franca. E-mail: [email protected].

 

Las caras del águila: del liberalismo gaditano a la república federal mexicana, 1820-1824 | Ivana Frasquet

Fruto de tese de doutoramento defendida em 2004 na Universitat Jaume I de Castellón e dirigida por Manuel Chust, o livro de Ivana Frasquet é contribuição historiográfica de peso. Não apenas porque vivemos tempos de hiperprodutividade acadêmica a resultar, no campo historiográfico, em uma enormidade de superficialidades e efemeridades – situação acentuada pela recente onda de comemorações dos supostos bicentenários das independências da América espanhola, a mesclar pontuais verdadeiras contribuições acadêmicas com uma montanha de redundâncias ou de ideias apenas rabiscadas; mas, sobretudo, porque a obra de Frasquet é boa por ela mesma, feliz encontro de um tema extremamente relevante com uma pesquisadora de alto nível que o conhece tão bem quanto dele gosta.

A independência do Vice Reino de Nova Espanha e a subsequente formação do Estado nacional mexicano são pautas que há muitas décadas têm merecido atenção de grande número de cientistas sociais, sobretudo os historiadores. Muitos mexicanos, vários norte-americanos e canadenses, poucos europeus; dentre estes, os espanhóis delimitam um círculo mais restrito ainda. Um mérito de antemão ao estudo de Frasquet? Em parte sim; mas apenas em parte, já que a pretensão da autora – tanto em Las caras del águila como no restante de sua numerosa produção tematicamente a ela correlata – não é, simplesmente, tratar de um tema de que seus conterrâneos pouco trataram. Essa eventual postura, ao mesmo tempo presunçosa e ingênua, é a de muitos historiadores de muitas histórias de muitos países, mas não a de Frasquet. É como uma historiadora do chamado liberalismo hispânico e da história mexicana em seus desenvolvimentos oitocentistas que ela deve ser efetivamente tomada, e é por aí que sua obra segue.

Os grandes temas de uma historiografia nacional não se esgotam jamais, todos sabemos. O caso aqui presente não é diferente. Conforme bem mostraram avaliações ao mesmo tempo quantitativas e qualitativas da numerosíssima historiografia acerca da formação do Estado mexicano, reunidas por Alfredo Ávila e Virginia Guedea ainda antes dos bicentenários (La independencia de México: temas e interpretaciones recentes. México: UNAM, 2007), o muito que se fez mostra o muito que não se fez, e, claro, a permanente reinvenção de tal objeto historiográfico. Frasquet encontra em seu livro um filão original, apenas parcialmente explorado por uma historiografia pretérita e da qual em vários momentos ela se mostra tributária (a de autores como Nettie Lee Benson, Jaime E. Rodríguez e do próprio Manuel Chust): os impactos das experiências político-constitucionais espanholas peninsulares (logo hispânicas) na definição de um movimento histórico que, na América, levaria à formação do Estado nacional mexicano. A delimitação cronológica de sua obra implica uma circunscrição: a ela importa sobremaneira o que se passa entre a eclosão da segunda onda constitucional espanhola, em 1820 (com a pronta reunião de novas cortes nacionais nas quais a deputação da Nova Espanha desempenharia papel paradigmático), e a queda da efêmera experiência monárquica mexicana, com a proclamação da Ata Federal de 1823. Cádiz e as Cortes de 1810- 1814 se fazem fortemente presentes na análise, mas como manancial do que se passa nos momentos mais cruciais de definição da independência e da formação do Estado que realmente interessam à autora.

O tema e sua delimitação temporal, por si sós, impõem um corte documental à autora, que realiza, então, uma minuciosa e aprofundada leitura de debates parlamentares, madrilenhos e novohispanos/mexicanos (há outra documentação variada complementar). De tal leitura resulta uma análise do problema central que é, simultaneamente, uma narrativa, passo a passo, do que pensaram, disseram e fizeram homens atuantes naqueles espaços parlamentares, cruzada com o essencial do que, em termos políticos, se passava fora deles, na Espanha, na Nova Espanha e no México. Uma “história política” (que prefiro chamar, apenas, de “uma história focada no político”, sem qualquer pretensão categorial) que muitos consideram fora de moda em afãs novidadescos pouco dignos de nota, mas que obras como as de Frasquet contribuem para tornar incontornável.

Ao longo de oito capítulos cronologicamente sequenciados que agrupam as quase quatrocentas páginas da obra, recheadas de citações primárias, menos de citações secundárias (que, afinal, são secundárias), Frasquet nos oferece magnificamente os ritmos e as direções de uma política construída em espaços parlamentares, permeada de embates, contradições, meias-palavras e mudanças repentinas de posição, em meio à qual discerne, de modo enfático, os momentos em que o constitucionalismo espanhol de Cádiz e de Madri se metaboliza em um constitucionalismo agora americano, também mexicano, ao fim e ao cabo hispânico; por vezes, momentos até mesmo em que aquele constitucionalismo é continuidade, isto é, oferece parâmetro de ação, porto seguro para a prática política dos legisladores americanos.

Ponto fundamental de sua tese é a constatação de que a atuação dos deputados de Nova Espanha nas Cortes de Madri tenha se pautado, até junho de 1821, por sinceras tentativas de construção de uma entidade política que abrigasse tanto a Espanha quanto o que restava de seus antigos domínios americanos, em um arranjo político que contemplasse as demandas de autonomia – não de independência – que aqueles deputados expunham. Afinal, será do esgotamento desta alternativa, resultado de um errático processo de embates nas Cortes nos quais diferenças políticas até então concebidas majoritariamente como pequenas se transformaram em verdadeiras incompatibilidades entre peninsulares e americanos, que emergirá um senso de distinção entre espanhóis americanos novohispanos e peninsulares capaz de, aí sim, amparar um projeto de total separação entre as partes (o paralelismo com o caso lusoamericano salta aos olhos. Quem se arriscará a enfrentá-lo?). Uma vez voltados para a construção de um novo Estado, tais deputados, ao irradiarem uma experiência e um conjunto de saberes, inspirações e modelos a outros indivíduos que com eles passariam a atuar no legislativo mexicano, seriam o elo mais concreto a interligar Espanha e México, tecendo os fios de um constitucionalismo que lhes serviu de parâmetro de ação em meio aos turbulentos anos de 1822 e 1823.

De um autonomismo hispano-americano a um autonomismo provincial mexicano (base da república federal de 1824), passando por uma revolução de independência que redefiniu não apenas os agentes de uma questão nacional, mas sua própria natureza (embora Frasquet seja pouco cuidadosa no tratamento deste arcabouço teórico importante, sobretudo ao utilizar de modo impreciso o termo nacionalismo nos três primeiros capítulos do livro), eis a síntese de uma trajetória complexa, que aqui ganha especial concretude.

Para tanto, contribui a arquitetura geral da obra, assentada em uma permanente reiteração, ao longo do livro, da tese central de sua autora. Leiamos então, suas próprias palavras. Logo em sua “Introducción”, afirma, a propósito de uma das “pontas” de seu recorte cronológico: “La participación de los diputados americanos, novohispanos concretamente, en las Cortes de Madrid de 1820 será de gran importancia para la consecución de las aspiraciones autonomistas de este grupo” (p.19); e, quanto à outra “ponta”, que “a partir de aquí [1822], el liberalismo mexicano aglutinará a todas las facciones que, de uma manera u outra, estaban luchando por la independencia de México. Insurgentes, autonomistas, liberales, monárquicos, republicanos, federalistas, centralistas, etc., todos se unirán para conformar el Estado-nación mexicano, eso sí, partiendo del liberalismo hispano que la legislación doceañista y la Carta de 1812 habían dejado en herencia a los diputados novohispanos” (p.21.) Logo em seguida, um cauteloso e benéfico esclarecimento:

Con eso no queremos decir que toda la obra de los constituyentes mexicanos sea fruto de la legislación doceañista, ni mucho menos. Pero sí queremos resaltar el espacio que el liberalismo hispano, que no español, nacido de las Cortes de Cádiz tuvo en la formación del Estado-nación mexicano. Desde nuestra visión global, integradora e contextualizada, no se puede explicar Cádiz sin América, ni América sin Cádiz (p.21).

Tese exposta e devidamente circunscrita, Frasquet dá início ao seu empreendimento, repitamos, com o fôlego que ele exige; embora exigisse também um tratamento mais circunspecto e polissêmico de termos como liberalismo, federalismo e monarquismo, a respeitar uma dinâmica conceitual com a qual a autora não se preocupou (vide os trabalhos de outro historiador espanhol, Javier Fernández Sebastián, não aproveitados por Frasquet). Como quer que seja, vemos sua tese central reiterada em muitas passagens do texto, relativas a fenômenos específicos por meio dos quais revelar-se-iam formas pelas quais a América continuava a se fazer parte do mundo hispânico. Assim, por exemplo, em 1822 “la frustración autonómica había desembocado en un deseo de independencia sentado sobre las bases del constitucionalismo hispano desarrollado en Cádiz” (p.100); ou “la independencia había sido posible gracias al trabajo de los autonomistas mexicanos que tenían en las Cortes de Cádiz y en la Constitución de 1812 el legado político y parlamentário que formaba parte de su tradición hispana” (p.121); finalmente, “la Constitución de 1812 y sus leyes eran el referente legislativo y liberal de los diputados mexicanos en la construcción de su próprio Estado-nación” (p.199), afirmação reiterada tal qual para o que ocorria em março de 1823 (p.291-292), quando “continuaba así el liberalismo mexicano el caminho iniciado en Cádiz sobre la concepción de los poderes” (p.300).

Em suma, Cádiz seguia siendo útil para sentar las bases de la construcción del Estado-nación mexicano, ¡en 1823! Y en un Estado que, como se insinuaba en el último artículo [das proposições apresentadas ao congresso mexicano em 07 de abril], caminaba hacia formas monárquicas de gobierno. ¿Sería eso posible? (p.307).

A aparente perplexidade da autora perante o que ela observa e as interjeições de seu discurso possuem função retórica, para enfatizar a validade de sua tese central, da qual, aliás, o leitor dificilmente discordará. Ponto positivo, talvez o mais importante. No entanto, após repetidas reiterações que nos acompanham até as última página do último capítulo – o livro de Frasquet não possui “Conclusões” formalmente compostas – algo parece ter mudado nessa tese. Progressivamente, o que fora enunciado na “Introducción”, primeiro ganha pertinência – com as consistentes demonstrações empíricas da autora –, para logo se converter em abandono de cautela e em ênfase excessiva. Ora, repitamos: há aqui um corte documental, que implica obviamente na segmentação de uma história (e não há outro modo de torná-la História). A formação do Estado mexicano se explica parcialmente pela continuidade modificada de conteúdos advindos das experiências constitucionais hispânicas. Com isso, certamente Frasquet se mostrará de acordo; de nossa parte, tal afirmação deve soar como uma valorização do que ela própria afirmou à p.21 (supra), e que parece ter ficado para trás à medida que seu livro caminha para o final. Algumas coisas se explicam por aí, muitas e fundamentais, mas claro que nem tudo.

É possível que esta crítica esteja antes confinada à análise formal do discurso de Frasquet do que ao grosso de sua análise histórica. De todo modo, suas conclusões corroboram a percepção desse progressivo abandono de cautela na reiteração de sua tese. Nas últimas páginas do capítulo 8, ainda é possível ler-se, sem freios, que “a la altura de 1823 con la forma republicana declarada, las províncias levantadas en pro de su soberania, con los españoles todavia en suelo mexicano, con la discusión sobre federalismo o centralismo… ¡la Constitución doceañista y toda la legislación hispana emanada de las Cortes de Cádiz y de las de Madrid eran todavia punto de referencia para la construcción del Estado-nación mexicano!” (como discordar da autora? Ao mesmo tempo, como não sentir falta de um matiz do tipo um dos pontos de referência importantes…?). E no último parágrafo do livro, deparamo-nos com uma dura crítica a “algunos autores” que teriam realizado análises da “herencia liberal hispana” na formação do México “desde el presentismo, desde el conocimiento de como sucedieron los hechos en décadas posteriores y desde otras ciencias no históricas”, e que supostamente resultariam na impossibilidade de “que valoremos en su justa dimensión el impressionante cambio revolucionário que el liberalismo produjo en las sociedades del Antiguo Régimen” (p.367).

É razoável restringir o bom da historiografia ao que historiadores, digamos, de formação formal, fizeram? Ou imputar a todos os autores diretamente mencionados – José Antonio Aguilar, Roberto Breña, Rafael Rojas e Alfredo Ávila, referidos em rodapé, mas apenas parcialmente também na bibliografia final, e de posturas historiográficas bastante diferentes entre si – a pecha de anacrônicos? Minhas respostas são ambas negativas. Inclusive por que vejo em tais autores méritos e posturas em muitos casos perfeitamente compatíveis com muito daquilo que há no livro de Frasquet. Por exemplo, no fato de também eles (todos) terem se preocupado com as experiências constitucionais de Cádiz e de Madrid “lá” e “cá”, jamais confinando os escopos de suas também excelentes análises aos limites geográficos ou intelectuais desenhados pelo nacionalismo historiográfico mexicano (o que, aliás, esvazia a mal-humorada crítica historiográfica realizada por Jaime Rodríguez em seu “Prefacio” a Las caras del águila). Mérito de todos os aqui citados; méritos, aliás, de muitos outros, por toda a parte, voltados às independências e às formações estatais nacionais a elas subsequentes.

Esse antagonismo entre o que se apresenta em Las caras del águila e o que se apresentou antes dele não implode, sequer esvazia muitos de seus méritos, alguns dos quais sequer mencionei – ou teria condições de mencionar – aqui. Se várias de suas passagens, marcadas por um desmedido embate historiográfico, dão a impressão de uma tese em tom excessivo e fecham portas ao debate, todo o resto abre muitas e muitas outras, função última de obras historiográficas reveladoras, pujantes e importantes, qualidades últimas – repitamos – a definirem o livro de Frasquet.

João Paulo Garrido Pimenta – Professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil). E-mail: [email protected]


FRASQUET, Ivana. Las caras del águila: del liberalismo gaditano a la república federal mexicana, 1820-1824. Castelló de la Plana: Publicacions de la Universitat Jaume I, 2008. Resenha de: PIMENTA, João Paulo Garrido. A formação do México, entre a Espanha e a América. Almanack, Guarulhos, n.3, p.152-156, jan./jun., 2012.

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Diccionário Biográfico Español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista – NOVALES (LH)

NOVALES, Gil, Alberto, Diccionário Biográfico Español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista. Madrid: , Fundación Mapfre (Instituto Cultural), 2010. (3 volumes + CD interativo). Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História, n.62, p. 197-199, n. 62, 2012.

1 O autor é um prestigiado especialista das origens do liberalismo em Espanha. Doutorou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Saragoça, tendo continuado a sua carreira na Alemanha, Estados Unidos e, ao regressar a Espanha, após um período de alternância entre as Universidades de Madrid e Barcelona, acabou por estabilizar na Universidade Complutense. É atualmente professor emeritus desta Universidade. Dirige desde 1983 a revista Triénio- Ilustración y liberalismo.

2 A sua obra mais recente é o Diccionário biográfico español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista, fruto de mais de três décadas de investigação. Este culminar de uma vida de labor científico insere-se numa obra em que o interesse pela origem do liberalismo espanhol foi acompanhada desde longa data pela valorização do papel do indivíduo na história. Principiando por uma abordagem clássica no estudo sobre Joaquim Costa (tese defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Saragoça), desde cedo sucedeu-lhe uma abordagem prosopográfica no amplo estudo sobre as Sociedades Patrióticas, inovadora análise sobre a sociabilidade política: Las Sociedades Patrióticas (1820-1823): Las Libertades de expresión y de reunion en el origen de los partidos políticos (Madrid, 1975, 2 vols.). Alberto Gil Novales veio a Lisboa, creio que pela primeira vez a uma reunião científica, quando participou no colóquio O Liberalismo na Península Ibérica na 1ªmetade do século XIX, a primeira de um conjunto de intervenções em colóquios portugueses que viria a realizar nos anos subsequentesSeria extremamente interessante ouvi-lo agora falar-nos sobre esta sua recente obra, que inclui um CD interativo, permitindo dois tipos de pesquisa, uma simples pesquisa alfabética, e um tipo de pesquisa livre, pela palavra ou pelo nome no conjunto da obra.

3 O objetivo do Diccionário é, retomando palavras do autor «refletir as vidas, ideias, vicissitudes e aspirações dos nossos compatriotas de aqueles anos e dos não-espanhóis que estavam em contacto próximo com eles». Conhecer as vivências de um indivíduo ajuda a compreender não só as suas ideias, como as suas atitudes. A rede de relações sociais, de parentesco e de amizade, os altos e baixos do percurso individual esclarecem comportamentos porventura menos previsíveis. Estudo biográfico e estudo da sociedade em que viveu o biografado completam-se e cruzam-se nesta obra.

4 Esta monumental obra inclui 25.000 notícias biográficas, de todos os que tiveram um papel relevante, por pequeno que tenha sido, durante o reinado de Fernando VII. Recorde-se que durante este reinado tiveram lugar acontecimentos decisivos na história de Espanha: a Guerra da Independência, correspondente ao que em Portugal tem a designação de invasões francesas, as Constituições de Cádiz e de Bayonne, a independência das colónias sul-americanas e o Triénio Liberal. Trata-se de uma obra elaborada pelo autor ao longo de 35 anos. Foi sendo precedida de publicações parciais, colocando-se à disposição da comunidade científica e do público interessado sucessivos conjuntos já em si muito valiosos. Os Dicionários do Triénio Liberal (em colaboração, 1991), Dicionários biográficos de Extremadura (1998) e o aragonês (2005), precederam este grande marco da historiografia espanhola.

5 O período abrangido não se cinge às balizas temporais anunciadas, naturalmente há personagens que nasceram no século XVIII e outros que só desapareceram na década de 70 do século seguinte. Nestas notícias biográficas, intercaladas de algumas pequenas biografias mais alargadas (como é o caso de General Álava, Flórez Estrada, Riego, entre outros) estão presentes dominantemente homens. A presença feminina é menor do que se poderia desejar, nas palavras do autor, mas a época não permite mais.

6 Permitiu sim ao autor percorrer os diversos estratos da sociedade espanhola. Desde os burgueses e pequeno burgueses, capitalistas, empresários, comerciantes, industriais, viajantes, proprietários, lavradores, homens do campo, artesãos, operários, toureiros, oficias do Exército e da Marinha, guerrilheiros, conspiradores, agentes de polícia, espias, ladrões, bandidos, e até escravos residuais. O clero também está presente – frades e sacerdotes, bispos, algumas freiras milagrosas – assim como a aristocracia, a família real (recobrindo três reinados, Carlos IV, Fernando VII, José I), os altos funcionários administrativos, os chefes políticos, os deputados, das províncias e das Cortes, o corpo diplomático estrangeiro residente no reino e o espanhol em funções no estrangeiro, os jornalistas, os escritores, os poetas, os atores e atrizes de teatro, os artistas, os homens de ciência, os juristas e os eruditos, num desfile colossal de personagens que permitem reconstituir a trama social desta época. Não só todas as regiões de Espanha estão presentes, mas também gente das Américas e de outras zonas do mundo. Naturalmente que todas posições ideológicas, religiosas e políticas estão presentes nesta magnífica obra. Para sua realização, a enorme erudição e o profundo conhecimento desta época pelo autor foi determinante na meticulosa e inteligente análise de grande variedade de fontes, entre as quais se contam: registos paroquiais, guias vários, atas de sociedades, colégios e instituições de ensino, ordens religiosas e de igrejas seculares, imprensa, folhetos, correspondência privada.

7 O Dicionário biográfico encontra-se disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, onde, face ao reduzidíssimo intercâmbio cultural luso-espanhol, entendi dever colocar à disposição do público português o exemplar que me foi oferecido, guardando para mim unicamente o CD, dada a inexistência de um serviço de documentos audiovisuais nesta instituição.

Miriam Halpern PereiraProfessora catedrática emérita do ISCTE-IUL e investigadora do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: [email protected]

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Ocidentalismo: o Ocidente aos olhos dos seus inimigos – BURUMA; MARGALIT (PL)

Nas últimas décadas, as obras que refletiram a herança colonial européia na América, África e Oriente, consolidaram uma área distinta no campo dos estudos culturais que se convencionou chamar estudos pós-coloniais. Essa resenha considera o exemplar Ocidentalismo, livro de Ian Buruma e Avishai Margalit, motivado pelo atentado de 11 de setembro de 2001, quando o Word Trade Center, de Nova York, ruiu com o choque de aviões seqüestrados por terroristas da Al Qaeda, de Osama Bin Laden. Mas é possível relacionar Ocidentalismo à principal obra de Edward Said, Orientalismo, publicado em 1978. Nesta o intelectual palestino desmistifica a construção discursiva e histórica dos ocidentais acerca do que viria a ser o oriente, acenando que a opção a alteridade européia/norte-americana não seria o ocidentalismo, seu oposto. Foi justamente para substantivar o léxico que Buruma e Margalit enriquecem os estudos pós-coloniais com sua obra. Leia Mais

Economia Contemporânea em Moçambique: sociedade linhageira, colonialismo, socialismo, liberalismo | Beluce Belucci

O livro, elaborado por um pesquisador que trabalhou por mais de uma década com projetos de desenvolvimento em Moçambique, apresenta um panorama da formação da economia contemporânea do país, cuja inserção na divisão internacional do trabalho, desde a exploração colonial portuguesa, até a guerra de libertação do regime salazarista, passando pela experiência socialista do governo da Frelimo, hoje encontra-se frente ao impasse das exigências de uma “globalização” que possui todas as características de mais uma rodada espoliativa dos países centrais junto à periferia e índices de desenvolvimento humano que revelam que a opção pela liberalização da economia, feita sob a chantagem do Banco Mundial e do F.M.I. na década de 1980, deu-se muito mais como opção política ― inclusive da classe dirigente de Moçambique ― do que uma questão de julgar-se a eficiência ou viabilidade da economia planificada socialista. Leia Mais