De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toleto (séculos VI-VII) – GREIN (FH)

GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toleto (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019. 292p. Resenha de: PROENÇA, Vinícios da Silva. O início das unções régias no Reino Visigodo de Toledo e a valorização do papel político de Taio de Zaragoza: uma releitura. Faces da História, Assis, v.7, n.2, p.429-434, jul./dez., 2020.

As pesquisas na área de história podem sofrer revisões ao longo do tempo, uma vez que os acontecimentos do presente instigam os historiadores a questionar o passado, permitindo que temas já estudados possam ser reinterpretados. Como ensina o historiador francês Marc Bloch “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa.” (BLOCH, 2002, p. 75). Esse é o caminho que percorreu Everton Grein, quem propôs releitura da tese de Abilio Barbero de Aguilera sobre um antigo problema historiográfico acerca do início das unções régias no Reino Visigodo de Toledo, bem como ressaltou a relevância de Taio de Zaragoza (600-683) no período pós-isidoriano como um importante elemento do florescimento cultural do século VII, algo que, na perspectiva do autor, a historiografia não se preocupou em realçar.

Abilio Barbero de Aguilera em seu livro intitulado La sociedad visigoda y su entorno histórico, dedicou o primeiro capítulo a compreender o pensamento político visigodo e às primeiras unções régias ocorridas no Ocidente europeu, haja vista que os visigodos foram os primeiros a realizá-las. Barbero de Aguilera defendeu a ideia de que a formação de uma teoria política no Reino Visigodo foi obra de Isidoro de Sevilha, tendo sido evidenciada no IV Concílio de Toledo em 633. Nesse sentido, Everton Grein também buscou com sua pesquisa compreender a concepção teórica da realeza cristã, como escolhiam e legitimavam os soberanos no interior dessa sociedade.

Fruto de uma tese de doutorado, o livro foi organizado em quatro capítulos. Munido de epístolas, atas conciliares, documentos jurídicos, dentre outras fontes sobre o tema, Grein demonstrou conhecer bem os manuscritos e a historiografia sobre o período. Vale ressaltar que, além do material tradicional sobre o tema, o pesquisador se valeu de poesias visigóticas, algo inovador na medida em que tais fontes, na perspectiva de Grein (2019, p. 43), foram marginalizadas pelos pesquisadores. Esse conhecimento em relação às fontes fora salientado por Luis A. García Moreno (2019), pesquisador da área, ao escrever o “Prólogo” da obra, no qual teceu elogios a Everton Grein pela finura e inteligência com que concebeu sua pesquisa.

No primeiro capítulo, o autor apontou que o reino dos godos foi construído sobre as antigas estruturas do Império Romano, tendo absorvido muitos aspectos da sua forma de organização, o que Edward Arthur Thompson (2014) constatou em sua obra Los godos en España. Na sequência, iniciou sua narrativa a partir da conversão pessoal de Recaredo ao catolicismo em 587, dando enfoque ao projeto de unificação política e religiosa intentado por Leovigildo. O referido monarca, ao associar seus filhos como consortes regni, teve de lidar com a revolta de seu filho mais velho, Hermenegildo. O pesquisador descreveu, de maneira detalhada, as implicações dessa disputa familiar para a unificação do reino e apontou como os prelados da época descreveram Leovigildo e seu filho rebelde. Ao analisar os escritos visigodos e os exteriores ao reino, observou diferenças na forma de compreender o ocorrido, sendo alguns apoiadores de Hermenegildo enquanto outros ficaram ao lado de Leovigildo.

Notou-se que, pelo menos em Hispania, os clérigos optaram por ficar do lado de Leovigildo que, embora ariano, tinha um projeto de unificação para o povo godo da península. Findadas as disputas, foi a missão de Recaredo concluir o projeto de seu pai, convertendo o reino visigodo em católico através do III Concílio de Toledo, sob a presidência de Leandro de Sevilha. Tal bispo foi descrito pelo autor como figura central na consolidação dos visigodos como herdeiros do Império Romano, tendo no III Concílio de Toledo adotado insígnias correspondentes ao período imperial, dando a conotação de que Recaredo seria o continuador de tal herança. Além disso A ideia de realeza entre os godos ganhou, portanto, a partir do III Concílio de Toledo, contornos mais nítidos daqueles que até então se apresentavam. O papel desempenhado pelo bispo Leandro de Sevilha foi determinante no processo de edificação do conceito de realeza cristã entre os godos. (GREIN, 2019, p. 81).

Everton Grein concluiu que o prelado foi o articulador da conversão dos visigodos ao catolicismo e o promotor da cristandade em Hispania. Dessa maneira, o pesquisador procurou ressaltar a relevância de Leandro de Sevilha para esse contexto, pois em alguns estudos o papel do prelado fica eclipsado por seu irmão mais novo, Isidoro. Contudo, é necessário destacar a ideia de unificação entre os godos é problemática, uma vez que esses grupos não podiam ser considerados homogêneos dado os múltiplos interesses das várias facções políticas. A ideia de que Leovigildo teria alcançado uma forma de coesão nos parece mais apropriada. Também se faz necessário destacar que, mesmo após a conversão oficial do reino visigodo ao catolicismo em 589, as práticas ditas pagãs permaneceram vivas na sociedade visigótica, não sendo apenas meros resquícios, mas parte da religiosidade popular, algo que Grein pouco explorou em sua pesquisa.

Ao final do primeiro capítulo, o autor destacou o papel de Isidoro de Sevilha e suas contribuições para a formação de uma teoria política no reino visigodo, apontando que anteriormente ao IV Concílio, o prelado já teria esboçado suas concepções através de suas Sentenças e Etimologias. Everton Grein concluiu que  De fato, a partir de inferência do pensamento de Isidoro de Sevilha – com a sacralização da instituição monárquica – verifica-se na Hispania visigoda uma espécie de necessidade de ajustamento entre Igreja e Estado, cuja expressão que melhor definiria tal necessidade seria a elaboração de uma teoria política que tomava como princípio o aspecto religioso, portanto, o caráter sagrado do poder. (GREIN, 2019, p. 97).

Já no segundo capítulo, o autor teve por objetivo versar sobre a consolidação do reino visigodo católico, bem como apresentou a praxiologia política aplicada ao século VII. Tomada de empréstimo da filosofia e sociologia, tal área de estudo visa compreender “as ações humanas, suas leis e comportamentos” (GREIN, 2019, p. 99). Dessa maneira, o pesquisador procurou analisar como determinados contextos produzem certos comportamentos. Embora o autor tenha realizado o trabalho utilizando a referida metodologia, já que a mesma centra sua análise nas ações dos indivíduos em determinadas situações, outro aporte metodológico que também poderia ter trazido resultados satisfatórios são os estudos discursivos, os quais poderiam lançar luz sobre o contexto em que tais narrativas foram produzidas, assim como sua efetividade ou não ao longo do tempo.

No tocante à consolidação da Monarquia católica, Grein destacou que, após o III Concílio de Toledo, Igreja e Estado precisaram se ajustar uma à outra, considerando-se que ambas eram as duas principais instituições de poder. Isidoro de Sevilha teve papel central nessa aproximação entre as instituições, pois contribuiu para o desenvolvimento do caráter sagrado da Monarquia. O pesquisador também salientou a importância de Bráulio de Zaragoza (590-651) no contexto analisado, por ter sido sucessor de Isidoro e ter vivido nesse período conturbado da primeira metade do século VII. Bráulio esteve presente no IV, V e VI concílios de Toledo, sendo considerado conselheiro dos monarcas Chintila, Chindasvinto e Recesvinto. Dessa maneira, o prelado esteve presente em momentos conturbados da história visigoda, período esse marcado por deposições e legitimações contraditórias.

Mesmo com a sacralização da realeza, na prática, as usurpações continuaram a ocorrer, sendo o IV Concílio de Toledo em 633 um exemplo disso. Suintila teve seu trono tomado por Sisenando em 631 que, com apoio da Igreja e dos francos, usurpou o trono. Tal acontecimento foi sui generis não pelo fato de ser uma usurpação, algo recorrente entre os godos, mas por ter sido legitimada no IV Concílio de Toledo. O referido concílio assemelhou Sisenando ao rei bíblico Davi, colocando-o como ungido do Senhor e tentando proteger o monarca de posteriores deposições. Esse cenário instável para os monarcas foi percebido em governos subsequentes, como o caso de Chintila (636-639) o qual sucedeu Sisenando. Everton Grein apontou que, no V Concílio de Toledo em 636, o então monarca teve por preocupação salvaguardar sua família e procurou legitimar-se enquanto governante. Com esses dados, pode-se perceber, mesmo com a sacralização da figura do monarca, sua segurança nem sempre foi assegurada.

Durante todo o terceiro capítulo, o pesquisador procurou ressaltar a relevância de Taio de Zaragoza, descrevendo sua inserção no cenário visigótico do século VII, bem como sua produção literária. Everton Grein, apontou como se dava a circulação dos manuscritos nessa sociedade, e também versou sobre a viagem de Taio a Roma. Grein salientou que “com efeito, nossas fontes da época, parecem de fato apontar que o fito da viagem de Taio foi a busca das obras de Gregório Magno” (GREIN, 2019, p. 139). O autor informou que as motivações que levaram Taio a ir para Roma possuem outras interpretações. Outro ponto evidenciado por Grein é a quantidade de epístolas produzidas no século VII, bem como suas potencialidades para se compreender tal contexto histórico.

Ao final do capítulo três, o autor analisou a obra Sentenças, escrita por Taio de Zaragoza, bem como a influência que Isidoro de Sevilha, Gregório Magno e Agostinho de Hipona tiveram nas obras do prelado. Grein ainda evidenciou que Taio de Zaragoza não era um simples compilador desses autores, mas alguém com uma leitura muito apurada e uma grande capacidade de síntese. O autor também relatou uma possível mudança na visão sobre o papel do rei e da realeza cristã no período de Taio de Zaragoza. Nesse sentido, o último capítulo teve como objetivo propor uma releitura, utilizando como base o livro V das Sentenças de Taio, sobre o pensamento político visigodo e as primeiras unções régias, tendo sugerido um novo ponto de vista sobre o tema.

No último capítulo, o autor fez uma exposição pormenorizada sobre a tese de Abilio Barbero de Aguilera, apontando como o visigotista construiu sua interpretação. Grein evidenciou a relevância de Isidoro de Sevilha na concepção da realeza visigoda cristã, e resumiu a perspectiva de Barbero de Aguilera sobre a teoria política isidoriana ao escrever que  Compreendida desse modo por Abilio Barbero, a teoria política elaborada por Isidoro de Sevilha apresenta pelo menos três pontos essenciais a considerar; a) para Barbero, a doutrina política isidoriana deriva ante do aspecto teórico do que prático; b) ainda que as condições em que se produziu a teoria isidoriana fosse em virtude dos desmandos e dos crimes de Suintila, bem como a usurpação de Sisenando, o ponto fundamental da doutrina era atribuir legitimidade às ações do usurpador face a atmosfera política do reino naquele momento; c) finalmente, através da citada doutrina, Isidoro atribui à Igreja, e unicamente a ela, a auctoritas sobre a condução e a destituição do régio poder. (GREIN, 2019, p. 177).

Nesse sentido, Everton Grein argumentou que a doutrina política isidoriana teria um caráter mais teórico do que prático, tendo ressaltado as condições e as motivações de sua confecção. Outro aspecto salientado por Grein fora o fato de que, a partir do IV Concílio de Toledo, a Igreja passou a ter um papel fundamental como representante da nobreza, tendo sua influência ampliada no referido concílio. Ao final de sua obra, o pesquisador procurou demonstrar que a teoria política visigoda se iniciou no século VI com Leandro de Sevilha, tendo Bráulio e Taio de Zaragoza um papel expressivo nessa formulação ao longo do século VII. Dessa maneira, Everton Grein procurou mostrar que tal empreendimento não fora obra exclusiva de Isidoro de Sevilha.

Em relação às unções régias, diferentemente de Barbero de Aguilera que apontou para seu início no IV Concílio de Toledo em 633, Grein argumentou que tal prática teria se iniciado com Recesvinto em 653. Isso porque, ao analisar o escrito de Juliano de Toledo, Historia Wambae Regis, notou-se que o prelado fez menção ao fato de tal prática seguir um antigo costume godo. Tendemos a discordar de Grein em relação ao início das unções régias no reinado de Recesvinto. Na perspectiva de Barbero de Aguilera (1992, p. 68), é possível que as unções tenham se iniciado na época de Sisenando, haja vista que foi no IV concílio de Toledo onde se teve pela primeira vez a referência de que o rei seria um “ungido do Senhor”. Nas atas conciliares (VIVES, 1963, p. 217), podemos observar a alusão ao Salmos 105:15 onde se alerta a não tocar nos ungidos de Deus, bem como a associação de Sisenando à figura bíblica de Davi. Pode-se verificar que Sisenando adquiriu no referido concílio a aparência de um rei ungido de Deus, possuindo legitimidade para governar assim como o Davi bíblico de outrora. Dessa maneira, baseado na associação feita com a narrativa bíblica pelo concílio, tendemos a acreditar que Sisenando teria sido o primeiro monarca godo que experenciou a unção régia no Reino Visigodo.

A tese não apresentou ineditismo quanto ao tema, pois o início das unções régias no Ocidente goza de ampla bibliografia, mas teve sua inovação na proposta do pesquisador de apontar uma nova leitura sobre o início das unções régias, além do fato de ter ressaltado a relevância política de figuras como Leandro de Sevilha e Taio de Zaragoza, o que pode contribuir para o surgimento de pesquisas voltadas à compreensão do papel que esses prelados desempenharam em seus contextos.

Referências

BARBERO DE AGUILERA, Abilio. El pensamiento político visigodo y las primeras unciones regias en la Europa Medieval. In: BARBERO DE AGUILERA, Abilio. La sociedad visigoda y su entorno histórico. XXI, Siglo vinteuno de España. Madrid: Editores,1992. p. 1-77.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

GARCÍA MORENO, Luis A. Prólogo. In: GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019. p. 17-18.

GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019.

THOMPSON, Edward Arthur. Los godos en España. Madrid: Alianza editorial, 2014.

VIVES, José. (Ed.). Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Ed. Bilingue (Latim-Espanhol). Madrid: CSIC, 1963.

Vinícios da Silva Proença – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis-SP, e Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação da mesma Instituição. E-mail: [email protected].

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Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andra de Filho

A Península Ibérica sempre ocupou dentro do mundo romano um espaço importante no tocante não apenas a sua localização, mas também como um dos mais ricos celeiros do Imperium. Com o fim político do Império Romano do Ocidente, a região, que, no passado, abrigou povos de etnias várias como lusitanos, iberos, celtas e celtiberos, vivenciaria até o século VIII a ocupação de seu território por dois povos de origem germânica, os quais para lá estenderam seus domínios após sua migração, a saber, suevos e visigodos. Estes últimos assentaram-se preferentemente na Hispânia romana, em um contexto sócio-histórico e religioso bastante peculiares. Exatamente sobre estas singularidades do mundo germânico em um território antes celta e romano debruça-se Ruy de Oliveira Andrade Filho.

Cada vez mais estudos historiográficos sobre a Alta Idade Média (ou Primeira Idade Média) [como queiram] realizados por pesquisadores brasileiros concentram-se sobre a movência, assentamento e contribuições de toda a ordem legados, apropriados, fundidos e refundidos pelo estrato populacional germânico no ocidente europeu. Vinícius Dreger, Mário Jorge Bastos, Leila Rodrigues da Silva, Renan Friguetto, apenas para citar alguns nomes, compõem esse espectro de investigadores. Caso nos ocupemos em especial com a Espanha medieval, o nome do professor da Universidade do Estado de São Paulo, citado no primeiro parágrafo, deve assomar como um dos principais e Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VIVIII) preenche uma lacuna cronológica e historiográfica nesses estudos.

O medievista sintetiza em cinco capítulos e 253 páginas os acontecimentos sobre a relação Monarquia-Igreja presentes no desenvolvimento do reino visigodo de Toledo ao longo de três séculos e para alcançar este objetivo, divide seu trabalho em cinco capítulos teórico-práticos, nos quais expõe não apenas seu instrumental de trabalho e análise das fontes investigadas, como também seu vasto arcabouço teórico que subjaz as suas práticas de pesquisa.

No primeiro capítulo, “Uma Hispânia convertida?”, evidencia-se um levantamento crítico com opiniões de diversos renomados estudiosos acerca da extensão, penetração e aceitação do cristianismo na região, preferentemente entre os séculos IV e VIII. Ao lado da superstitio e das gentes que professavam o judaísmo e defendiam as heresias, assiste-se também a presença dos innumeri christiani (p. 40). O historiador aponta, com sólida erudição, as questões que perpassavam os citadinos de então, bem como a massa de camponeses, com suas visões e práticas muitas vezes diferenciadas da própria experiência cristã, em que escolhas (heresias) não ligadas à ortodoxia, como o caso do priscilianismo, também encontraram espaço de circulação dentro do território majoritariamente hispânico. Esse estado de coisas, assevera Ruy, serviu também como circunstâncias, nas quais as estruturas de Sippe visigodas foram lentamente sofrendo modificações em favor de uma monarquia consolidada. Para isso, a influência da Igreja e sua habilidade em amalgamar na imagem de unus Dei populus, unumque regnum, expressa no Terceiro Concílio de Toledo, foram fundamentais. O paulatino mas inexorável avanço do cristianismo sobre as práticas pagãs dos rustici fora aberto.

“Cultura e Religião no Reino de Toledo” é o título do segundo capítulo, no qual o binômio “cultura/religião” é abordado no reino de Toledo, porém até chegar no medievo, o autor elabora um percurso histórico dessa relação, iniciando sua viagem na Tardoantiguidade, mais precisamente, no século III, com a sacralização do poder imperial, reafirmado e remoldado a partir da implantação do cristianismo como religião oficial do império um século depois. Contudo, ainda sentia-se na Hispânia uma forte presença de traços pagãos dentre os senadores e os camponeses, o que, a posteriori, com o fortalecimento da monarquia dos visigodos e em especial após a conversão do rei Recaredo, ainda tenderia a se manifestar. Um fator que contribui sobremaneira para a difusão da religião “oficial” foi, sem dúvida, uma rede de “escolas episcopais, paroquiais e monásticas, cuja finalidade principal era … a formação de clérigos” (p. 80). Igreja e Monarquia apoiam-se mutuamente em Toledo, porém no tocante à saúde, física e d´alma, sente-se uma simbiose de práticas e costumes populares com a utilização de elementos cristãos, configurando uma união perene entre corpo/alma e lhe dando juízo de fé pública. Interessante notar que o historiador ressalta dois aspectos importantes nesse processo: o primeiro prende-se à conversão dos monarcas e de seu séquito mais próximo; já o segundo, a cristianização, ainda necessitava de uma implementação maior, pois o maravilhoso, o insólito, o estranho que fugiam à compreensão dos eclesiásticos ainda rodeavam e povoavam estratos significativos da população visigótica da Hispânia e de Toledo.

Nada mais justo, portanto, que o próximo capítulo “Religiosidade ou Religiosidades?” também apresentasse uma indagação como tema central. A questão do encontro entre modos de vivenciar o sagrado expresso pela dicotomia paganismo X cristianismo no território hispânico é debatida e o historiador aponta desde o início para o fato de que obras como os Capitula Martini ou o De correctione rusticorum, de Martinho de Braga, “não parecem estar dotadas de uma intenção apenas preventiva ou lutando contra lembranças residuais ou obscuras, ´meras impurezas´” (p. 103). Tais textos demonstrariam a coexistência de duas formas de religiosidade, uma oficial e outra ´popular`.

Para Ruy Andrade, o termo `religiosidade popular` situa-se na esfera de um embate que oporia o cristianismo, uma religião da cultura escrita, a um conjunto de crenças e práticas, que sobressaiu exatamente a partir da expansão dominadora do credo cristão, pois o estudioso defende para o período “a religiosidade como elemento catalisador dos descontentamentos, e não seu agente elaborador.” (p. 109) Portanto, vislumbrar-se-ia uma antinomia campo X cidade, em que o meio rural manteria tradições e expressões de religiosidade dissonantes daquelas das cidades, ligadas ao círculo real e de certa forma aliadas ao poder eclesiástico. Esta “cisão de fé”, se é que assim podemos denominar tal fenômeno no reino visigodo de Toledo, colocava em lados opostos a magia pagã e o milagre cristã, embora, afirma o historiador, questionando-se ao fim do capítulo, se é realmente possível falarmos de ´religiosidade popular´, na medida em que este termo parece englobar mais que simplesmente uma escolha ou prática não referendada pela Mater Ecclesia, revelando-se como um outro viés da religião do Cristo.

No próximo capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, discute-se a partir da conversão ao cristianismo dos visigodos do reino de Toledo ocorrida no ano 589 o projeto de referendo da organização monárquica do reino em consonância com a esfera religiosa, já que “A unidade política assentava-se, pois, na unidade religiosa.” (p. 132) A coesão política do reino atrelava-se agora ao apoio eclesiástico, que ensejava e ansiava por uma “utopia monárquica”, em que bispos e nobres visigóticos possuiriam papel de destaque nos assuntos régios em Toledo.

Para a realização em terra de um ideal cristocêntrico até o fim do reino visigótico de Toledo em 711, a Igreja lança mão da metáfora do corpus Christi para direcionar os papéis sociais de todos, reis e súditos, no céu e na terra com a intermediação dos clérigos, representantes do Criador entre os homens. Para o historiador, uma aliança é estabelecida, tanto em nível civil quanto em teológico, entre realeza e igreja, a ponto de, cita o pesquisador brasileiro, se chegar em certos momentos “à promulgação pelos reis da lex in confirmatione concilii” (p.142). A lei e a Lei fundem-se, e a consagração em Toledo do rei Wamba, em 672, é marco na história ocidental.

A sacralização da monarquia, as etapas, as funcionalidades e as características deste momento histórico descritas no capítulo IV somam-se agora no capítulo V, Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo os resultados visíveis e depreensíveis de tal processo. Partindo de Paulo e Isidoro de Sevilha ter-se-ia a divisão do homem em sua integralidade em três instâncias: “espírito/pneuma, que corresponderia à parte que estava reservada para a imortalidade; alma/psykhe, que animaria o corpo; e corpo/soma, [este último par apenas para Paulo] a parte degradável que desapareceria.” (p. 166) O historiador analisa com argúcia a inserção do homem – visigodo – dentro do plano cosmológico cristão, em que a teia cultural do cristianismo e suas expressões de religiosidade servem de base e de argamassa para ordenar o mundo, já que, como bem explica Ruy Andrade, “´Cosmo´, significando ordem, estrutura, mundo, universo, também é uma palavra entendida como ´caos´…” (p. 171), o que logicamente pressuporia a existência prévia de uma falta de coesão. As uerba Dei mostram, num mundo ordenado, as belezas da Criação e caberia ao homem ser o espelho deste ordenamento e deste encanto. A natureza deve se sujeitar ao melhor specimen forjado por Deus, a cidade é eleita o seu melhor abrigo, embora sobre a terra ainda pairasse o a possibilidade da sedição do Mal.

Tal perigo, que lembraria ao ser humano a presença do demônio, pode ser polarizado pelos binômios catolicismo/arianismo devido à associação ao Mal de reis visigodos que professavam a doutrina de Ário. Todavia, o rei cristão verdadeiro traria a salvação e a saúde ao seu povo, sendo ambos os termos derivados etimologicamente de salus. Enfim, o Homem e o Reino do plano divino ver-se-iam então personificados e revividos na figura do monarca e seu reino terrestre. Nesse momento entende-se o porquê do título Imagem e Reflexo, como bem sumariza o historiador: “É uma condição básica: a moldura do espelho não lhe distorce a imagem, confere-lhe uma forma.” (p. 192)

Em suma, lançando questões, propondo interpretações aos moldes de uma História Argumentativa, amparado em sólida bibliografia e em uma linguagem acessível a estudiosos e leigos, Ruy de Oliveira Andrade filho leva-nos ao reino visigodo de Toledo, em uma viagem que se encerra no “eterno retorno” do mundo germânico medieval à plasmação da Europa que em grande parte ora conhecemos e que cada vez mais é objeto de investigação de historiadores brasileiros.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de línguas Anglo-Germânicas. E-mail: [email protected]


FILHO, Ruy de Oliveira Andrade. Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Germanos na Espanha medieval – entre Reis e Deus (es). Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 114-119, 2013. Acessar publicação original [DR]