Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem | Eliane Garcindo de Sá

! Ay, señora Juana!

Vusarcé perdone,

y escuche las quejas de un mestizo pobre [2]

 

Um dos temas mais polêmicos e dramáticos do mundo contemporâneo é a invasão de imigrantes africanos ao continente europeu. Assistimos, diariamente, pela mídia, ao drama desses refugiados e à recusa dos países da comunidade europeia em abriga-los, utilizando uma série de subterfúgios. O candidato republicano à presidência da República dos Estados Unidos da América, Donald Trump, acirra o debate anunciando a expulsão do país dos mulçumanos e a construção de um muro para inibir a entrada dos mexicanos em território norte-americano, caso venha a ser presidente. O encontro/confronto entre diferentes culturas e etnias é sempre ameaçador.

Sabemos que essa polêmica não é recente. Cada época marca seu motivo. A verdade é que os movimentos de população permitiram o povoamento do mundo e significaram a expansão de etnias, línguas, religiões e conhecimento num emaranhado processo que dá ao mundo atual os traços de grande diversidade e riqueza cultural.

As chamadas Grandes Navegações, por exemplo, foram responsáveis pela colonização do continente americano a partir do século XVI e significaram a difusão da cultura dos europeus, a qual entrou em choque com as culturas das comunidades indígenas que já habitavam o território. Esse deslocamento populacional foi estimulado pelo expansionismo territorial das potências europeias da época que buscavam fontes de matéria-prima e novos mercados para seus produtos, portanto, tinham motivação geopolítica e econômica. Essa migração aumentou maciçamente no século XIX e começo do XX e resultou, além de outros fatores, na miscigenação dos povos, recriando novas características étnicas e culturais no continente americano.

A historiadora Eliane Garcindo de Sá tem estudado temas sobre o caráter desses deslocamentos e, consequentemente, o encontro/confronto entre diferentes culturas ao longo de sua vida acadêmica. Publicou vários trabalhos científicos, que trazem reflexões originais e marcadamente inovadoras sobre o assunto. A publicação do livro Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a Mestiçagem é resultado do conjunto desses estudos ordenados de forma que permitem acompanhar o desenvolvimento do pensamento da autora. Baseada em significativo estudo de fôlego documental e extensa pesquisa bibliográfica, a obra é muito bem escrita ressaltando a fluidez da narrativa e erudição, colocando de maneira bastante clara os problemas levantados e conduzindo o leitor a refletir sobre questões importantes que ainda afligem nossa sociedade.

A “questão da mestiçagem” na América Ibérica fornece o eixo central em torno do qual se articulam as duas partes em que se divide o livro. Nessa obra, a historiadora também promove o debate, ainda bastante contemporâneo, sobre a tradição do pensamento social latino-americano e, através de múltipla abordagem da cultura mestiça, induz considerações sobre seu imbricamento com a construção simbólica da nacionalidade.

O Prólogo é escrito pelo professor Serge Gruzinski, detentor de alentada obra sobre a conquista e colonização da América. Em seu texto, Gruzinski justifica a opção da autora por uma abordagem latino-americana do tema: “Atualmente, inseridos em uma outra mundialização que passa por redefinição do papel continental e mundial do Brasil, nós não podemos continuar a escrever histórias confinadas na prisão das memórias nacionais”.[3]

A primeira parte do livro, “Mestiço no Universo Colonial”, é composta por quatro textos que esquadrinham uma série de problemáticas relacionadas à cultura mestiça durante o período colonial. A segunda, “Reflexões sobre o Universo Mestiço”, traz quatro textos que compõem as diferentes reflexões da autora sobre o tema. Gruzinski conclui em seu Prólogo:

Ao analisar a questão da mestiçagem, fundamental nas transformações sociais desta parte do mundo, e da emergência das sociedades coloniais, a historiadora carioca nos guia nos meandros do pensamento latinoamericano, de Buenos Aires ao México, de Sarmiento a Vasconcelos da raça cósmica, de Diego Rivera a Candido Portinari.[4]

O texto “Visões das Gentes na Experiência Colonial” dá início à primeira parte do livro e trata do impacto da grande imigração entre os continentes europeu e americano durante os séculos XV e XVI. Esse “encontro/confronto” entre sociedades e culturas distintas desorganiza todas as referências socioculturais de ambos os lados, forçando novas conexões, crenças e valores. Eliane assinala que “diante da novidade de descobertas de outras terras e outras gentes, diante do desafio das diferenças e estranhamentos” os protagonistas da formação da nova sociedade “elaboram produção em que expõem a construção de referências”.[5] Como suporte às suas reflexões, a autora usa obras dos cronistas Garcilaso de la Vega, Frei Vicente do Salvador, Felipe Guamán Poma de Ayala e Ambrósio Fernandes Brandão.

Nos três textos seguintes, “Entre os papéis da Audiência de Lima: as imagens dos mestizos”, “Os Cronistas e a Construção da Representação do Mestizo” e “Inca Garcilaso de la Vega: a representação do mestizo”, a autora optou por discutir aspectos necessários para fundamentar seus argumentos a respeito das diferentes conotações e representações sobre a palavra mestizo. Eliane Garcindo de Sá chama a atenção para o fato de que:

Os sistemas de representação forjados nas sociedades coloniais decorreram radicalmente da insuficiência patente dos recursos anteriormente disponíveis entre as sociedades “originais” em confronto. A intromissão de novos elementos obrigou à criação de novas designações, nomeações […].[6]

Essa complexidade de referências e significados é estudada com base na riquíssima documentação da Audiência de Lima (1543-1620) [7] em cotejo com os cronistas, o mestiço Inca Garcilaso de La Vega e o índio Felipe Guamán Poma de Ayala.

A segunda parte tem início com o artigo intitulado “Um Mundo ‘Uno’”, seguido de outro denominado “Ocidentalização” onde a autora analisa os efeitos da mundialização/ocidentalização nas sociedades hispano-americanas e a convergência de visões apocalípticas que marcaram os primeiros anos da Conquista da América. A historiadora ressalta a importância dos trabalhos de Serge Gruzinski, particularmente La penseé métisse [8] e a Primeira América, [9] este escrito em conjunto com Carmen Bernand, os quais consolidam questões pertinentes à ocidentalização e à perda de identidade/alteridade entre conquistadores e conquistados. O primeiro texto termina com a afirmação: “O mestiço foi, sem dúvida, um ‘outro’ construído”.[10]

Dois outros artigos compõem esse segundo bloco: “Raça Cósmica” e “Mestiço Ideal”. Chega-se, assim, à questão que norteia o pensamento da autora: por qual motivo e como se formou, no imaginário de alguns indivíduos, a conexão entre a mestiçagem e um complexo emaranhado de representações? O mexicano Jose Vasconcelos sugere uma “raça final”, a “raça cósmica”, idealiza uma “raça feita com o tesouro de todas as outras, cósmica, apontando para uma síntese superadora de uma questão que se coloca na região […]”.[11] Segundo a autora, para Vasconcelos “a mestiçagem era uma marca de originalidade ibero-americana, qualidade que marcaria as diferenças entre as sociedades na América ibérica, América anglo-saxã e ‘Velho Mundo’”,[12] entretanto o autor retira da conotação do vocábulo a negatividade presente em muitos outros escritores e cronistas.

Já o peruano Inca Garcilaso de la Vega, “diante de condições muito específicas de sua trajetória construiu e protagonizou o personagem do mestiço, que se construiu em referência dessa representação e do mito, com o qual se confunde”.[13] Garcilaso, o mestiço culto que superou sua condição social, passa a representar e referenciar o modelo do mestiço ideal. Entretanto, ao contrário de Vasconcelos, o Inca Garcilaso deixa indícios de sua visão negativa do mestiço e da mestiçagem. Nessas circunstâncias, os temas étnicos estarão no centro da discussão sobre identidade e carácter dos povos. Esse é outro ponto interessante das reflexões da autora buscando articulação entre a mestiçagem e os atributos que vão constituir as sociedades nacionais. O grande dilema dos protagonistas da independência da América espanhola foi o redimensionamento da questão nacional com a composição étnica, cuja grande maioria de negros, índios e mestiços, necessariamente teriam que estar incluídos nos projetos nacionais nascentes.

Em “Considerações Finais”, a epígrafe que abre o texto sintetiza determinadas ideias daquele contexto envolto pelo estranhamento dos “diferentes” e referências imagéticas desse confronto/encontro. Em sua fala, Garcilaso ressalta o confronto de visões em relação ao próprio continente: “[…] que no hay más que un mundo, y aunque llamamos Mundo Viejo y Mundo Nuevo, es por haberse descubierto éste nuevamente para nosotros, y no porque sean dos, sino todo uno”.[14] O cronista, que transitou nos “dois mundos”, não os entende divididos, mas como parte de uma mesma formação social, histórica e cultural. A historiadora considera que o conceito de pensamento mestiço cunhado por Serge Gruzinski é importante categoria de análise para o confronto de questões impostas pelas relações sociais durante o período de conquista. É com base nesse referencial que Eliane Garcindo de Sá conclui sua exposição de ideias: “A intensificação e o aprofundamento da mundialização, os efeitos da globalização, potencializam o fluxo e as contradições das relações entre as sociedades e suas parcelas, entre cada um e cada grupo que se autorreferencia ou é visto como um outro”.[15]

Não se pode deixar de mencionar as ilustrações selecionadas para o livro, uma vez que completam e corroboram o discurso que fundamenta a obra. No primeiro grupo, encontram-se seis ilustrações de Felipe Guamán Poma de Ayala onde, na narrativa sobre a conquista, escrevia e desenhava os acontecimentos que queria relatar. No segundo, Eliane recorre a diferentes artistas, Cândido Portinari, Jose Clemente Orozco, Diego Rivera e Emiliano Di Cavalcanti, e, através da linguagem plástica, complementa os significados com diferentes representações sobre o mestiço.

Assim, nos oito textos que compõem o livro, a historiadora consegue demonstrar sem observância cronológica rígida, porém obedecendo determinada linha de tempo, as condições que permitiram a formação de uma cultura mestiça e seus desdobramentos. Essa visão da autora está consubstanciada nas relações de encontro/confronto como nos processos de mundialização e ocidentalização. Nesse sentido, o trabalho apresenta o panorama geral das diligências da autora sobre o tema e fomenta impacto no ambiente acadêmico, uma vez que as discussões de questões relativas à mestiçagem, particularmente em países miscigenados como os da América Latina, são sempre muito relevantes. Por outro lado, as reflexões sobre raças e etnias são questões contundentes para sociedades contemporâneas na luta contra o racismo e a discriminação étnica-cultural.

Em suma, pode-se dizer que a obra de Eliane Garcindo de Sá discute, de forma muito precisa, mas dialética, problemas que contribuem de maneira importante para a compreensão de referências que explicam, em parte, nosso preconceito contra o “outro”. A documentação é densamente trabalhada, e as obras dos cronistas analisadas nos textos avaliam a presença e a função dessas obras nos contextos anterior e posterior à conquista da América. A emergência dessas ideias e as condições que permitiram a mobilização em uma sociedade majoritariamente indígena é parte relevante da obra.

O livro apresenta uma das mais importantes análises sobre a ”questão da mestiçagem”. A publicação da obra referenda e demonstra a complexidade de determinadas visões consolidadas sobre aquela que foi, e talvez ainda seja, a principal matriz histórica e cultural do continente latino-americano.

Notas

2 OQUENDO, Marco Rosas de. Nova Espanha: finais do século XVI. In: GONZÁLEZ, Luiz. El encontro de la conquista: sesenta testemonios. Mexico: Cien-SEP, 1984. p. 234-236.

3 CNRS – Centre National de la Recherché Scientifique; EHESS – L’Ecole des Hautes Estudes en Sciences Sociales. Princeton University.

4 GRUZINSKI, Serge. In: GARCINDO DE SÁ, Eliane. Universo Mestiço: resenha de Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Prólogo.

5 GARCINDO DE SÁ, Eliane. Op. cit., p. 29.

6 Id., p. 63.

7 Na parte dedicada às fontes, p. 305-313, a autora identifica toda a documentação pesquisada na Audiência de Lima.

8 GRUZINSKI, Serge. La Pensée Métisse. Paris, Éditions Fayard, 1999.

9 BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. In: Historia de Nuevo Mundo 2: (1550-1640). Mexico: Fondo de Cultura Econòmia, 1999.

10 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 61.

11 VASCONCELOS, José. La raza cósmica. Mexico: Espasa-Calpe Mexicana SA, 1948.

12 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 199.

13 VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios Reales. 1ª parte. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 1985.

14 Id., p. 159.

15 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 270.

Francisca Nogueira de Azevedo – Historiadora, professora associada do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Autora do livro Carlota Joaquina – na Corte do Brasil, Civilização Brasileira, 2003. E-mail: [email protected]


GARCINDO DE SÁ, Eliane. Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2013. Resenha de: AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.15, p. 221-225, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

 

O lugar da diferença no currículo de educação em direitos humanos – RAMOS (HCS-M)

RAMOS, Aura Helena. O lugar da diferença no currículo de educação em direitos humanos. Rio de Janeiro: Quartet,2011. 195pp. Resenha de: COSTA, Hugo Heleno Camilo. Um convite ao lugar da diferença no currículo de educação em direitos humanos. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 21 n.2 Apr./June 2014.

Inicio este texto com a ideia derridiana de disseminação. Para o filósofo franco-argelino (Derrida, 2001), a disseminação, diferentemente da polissemia, produz uma infinidade de sentidos, tornando impossível o acesso à origem do pensamento, do conhecimento. Essa concepção é um convite que a produção derridiana nos faz para pensar os desdobramentos generativos da interpretação, e é com essa deixa que, neste breve texto, convido à leitura do disseminador livro O lugar da diferença no currículo de educação em direitos humanos, de Aura Helena Ramos.

A dívida assumida ao ler/resenhar um livro é impagável e sempre uma injustiça, porque há, de praxe, traição interpretativa, violência para com discussões singulares e importantes, que são muitas ao longo do livro e que não cabem neste contexto. Defender uma vigilância na leitura/apresentação do texto, ou um melindre para com esta resenha, é, entretanto, tão importante quanto desnecessário, porque é impossível a precisão total, o controle absoluto sobre o entendimento do leitor deste texto, que já é uma supervisão. Dominar o pensamento da autora é a impossibilidade que nos cabe. Estar na interlocução, por meio da leitura do livro, é, de todas as maneiras, a possibilidade parcial que o papel de leitor viabiliza.

Meu convite se dá, então, na interpretação de que o livro em questão é um trabalho com potência para disseminar novos sentidos no âmbito das discussões sobre currículo para a Educação em Direitos Humanos (EDH) e, em seu dinamismo, instabilizar muitas questões que, frequentemente, tendem a ser supostas como fundamentais. Termos como o humano, diversidade, igualdade e direito, perdem, pelo trabalho de Aura Ramos, seu status de pressupostos e são submetidos à crítica pós-estrutural e pós-fundacional a partir de um olhar atento à diferença.

Assumindo como problemática central a necessidade de uma reconceptualização do que se entende por “direitos humanos” e, especificamente, EDH, a autora se volta para a necessidade de operar uma densa discussão no campo em foco a partir dos estudos da diferença. Uma leitura de diferença como produção discursiva, produção cultural, como enunciação. Leitura que, articulada pela autora no campo discursivo da EDH, lhe permite defender tais direitos como não estando fixados em seus sentidos, como não sendo objetos de conhecimento a difundir nas escolas, mas como produção diferencial escolar.

Para Ramos, mais importante e produtivo do que pensar a EDH de um ponto de vista normativo e de regulamentação da vida escolar, é operar com a leitura de que se constitui em experiência a ser construída, uma ética própria a ser performada, produzida, desenvolvida na relação com a diferença, com o outro. Isto é, assumir o conflito e a assimetria como meio de também enfatizar a dimensão política que caracteriza a vida social e oportuniza a circulação de sentidos provisórios.

Para a defesa de uma ética da diferença no currículo para a EDH, Aura Ramos empreende uma escavação nos pressupostos que dão base às discussões sobre o tema. A autora se volta para as construções discursivas nas políticas sobre EDH instalando um constrangimento no caráter de verdade última a que se pretendem as visões críticas e liberais, que colonizam as discussões sobre direitos humanos. Dessa forma, longe de pretender colaborar para a manutenção de tais verdades, assume um exercício de desconstrução dos discursos modernos, dos quais derivam diferentes visões a respeito desse tema.

Em seu trabalho de crítica ao embasamento moderno das discussões em torno dos direitos humanos, Ramos focaliza os discursos liberal e crítico, chamando a atenção para o fato de que, embora também se desenhem como críticas aos princípios e valores modernos e se oponham entre si, não deixam de operar no mesmo registro e de aspirar à condição de verdades inquestionáveis. Tais construções, segundo a autora, favorecem uma perspectiva violenta para com sua leitura de cultura e diferença, constituindo-se em críticas que tendem a suavizar o conflito, o dissenso, a relação com o outro, a produção cultural híbrida que compõe o currículo para a EDH.

Sem negligenciar um interessante diálogo sobre cultura e globalização, com autores como Vera Candau e Boaventura de Souza Santos, Ramos parte de uma afirmação radical da diferença, apoiando-se, para isso, nos estudos pós-críticos de Bhabha, Laclau e Mouffe. Com base nas perspectivas teóricas desses autores, vai focalizar o significante/nome vazio “direitos humanos” a partir das ideias de “universal” e “igualdade”, que tendem a favorecer a subordinação do “outro”, impondo-lhe o “mesmo” como condição para ser. Dito de outra forma, a autora busca pensar as ideias mencionadas em suas potencialidades de se constituir como padrões e verdades. E, como decorrência de tal construção universal, focaliza a tensão entre “igualdade” e “diferença” no âmbito escolar. Tensão que coloca a escola como lugar privilegiado para a socialização dos saberes elaborados, considerados universais, cuja finalidade seria a formação do cidadão, que, uma vez alcançada, levaria à igualdade social, à justiça social. É justamente na universalização de um modelo de cidadão, de humano, e, portanto, de educação, de valor, que se configura o alvo das críticas na obra de Ramos.

Em seu ritmo, a autora analisa os diferentes sentidos atribuídos à expressão “direitos humanos”, chamando a atenção para o conflito em torno de sua significação. Para isso, retoma marcos das discussões de um contexto social mais amplo, atentando para questões como a globalização e a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU), através da difusão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na tentativa de estabilização de uma visão universal de direitos humanos. Focaliza também, produções acadêmicas que tratam do tema, bem como lança mão de textos de entrevistas realizadas com lideranças nacionais que atuaram na produção de documentos de grande repercussão na definição de políticas de currículo para a EDH, tais como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (Brasil, 2003) e Subsídios para a elaboração das diretrizes gerais da Educação em Direitos Humanos (Dias, Nader, Silveira, 2007).

Tendo em vista tais documentos e pautada na teorização de Laclau e Mouffe, Aura Ramos propõe pensarmos as diferentes leituras que perpassam a denominação direitos humanos no cenário dos conflitos em prol da hegemonização de sentidos, de ideias. Conflitos que, para a autora, não devem ser entendidos nos termos de um “etapismo” histórico-social, mas como movimentos que, em cada contexto específico, produzem sentidos e fixam significados provisórios e contingentes. Com base nessa discussão, a autora pondera que não há um fechamento, ou significado, último em torno desse conflito, mas somente a produção de consensos conflituosos entre diferenças, entre diferentes demandas sociais.

Como via de acesso à parte de tais conflitos, ou consensos conflituosos, que marcam a produção das políticas de currículo para EDH, a autora chama a atenção para os processos de identificação e constituição dos grupos, compreendidos como elementos de uma comunidade política, que atuam no contexto de produção dos textos curriculares de EDH. A preocupação de Ramos, no que diz respeito aos fazeres de tais grupos, não está em destacar e culpar os atores envolvidos, mas em compreender as marcas de discursos, as tentativas de representação, que são provisoriamente constituídas nos documentos produzidos.

Trata-se, em sua opinião, de interpretar tais construções textuais para além de asserções objetivas, da superficialidade do que se coloca como pleito. Segundo Ramos, na abordagem aos textos da política, importa entendê-los como resultados contingentes das tensões entre distintos projetos envolvidos na política. Isso é conceber a produção da política como embate, negociação e hibridismo de sentidos, levando à hegemonização de verdades, presenças, ausências e silenciamentos.

Destaca-se, em termos de organização metodológica, a apropriação da teoria do ciclo de políticas de Stephen Ball, com vistas a pensar a produção da política como não detentora de uma gênese, um espaço originário, mas como uma produção textual discursiva contínua, que se dá no hibridismo de diferentes sentidos, no entrelaçamento de muitas verdades tramadas na política. Sentidos e verdades que circulam tanto em um cenário social mais amplo como naqueles que, em linhas gerais, se poderiam dizer mais restritos ou associados ao campo da educação.

Como resultado de seu trabalho de análise, Ramos propõe pensarmos “direitos humanos” como um significante vazio. Um significante, um nome, disputado em sua significação por diferentes grupos e que se desdobra para a/na escola com toda a sua rasurada significação, sendo ressignificado também na própria escola. A autora ressalta, como uma problemática, o desenvolvimento de tal conflito no campo discursivo da modernidade, no qual estão em confronto os discursos liberal e crítico, que se destacam em construções jurídico-políticas projetadas, marcadamente, por um viés universalista associado às perspectivas modernas.

Chama a atenção também para os deslizamentos de sentidos, no campo da corrente crítica, que tendem, na atualidade, a produzir sentidos híbridos, associados à discussão da diferença. O que, segundo a autora, tende a sustentar uma leitura de diferença nos termos da diversidade/pluralidade, cuja pretensão está na hegemonização das ideias de convivência multicultural e tolerância. A esse respeito, Ramos coloca sua crítica argumentando sobre a permanência da cultura como objeto de conhecimento, como repertório de sentidos a ser partilhados nas escolas.

Para Ramos, no âmbito das discussões sobre a EDH, a saída via a tolerância mantém a estratégia moderna de universalização de valores particulares que nada mais são do que uma visão particular que, entre tantas outras, foi universalizada. Um universal que não é considerado verdade a ser ensinada nas escolas, algo capaz de suplantar, negligenciar ou minimizar, a diferença, o local. Justamente por não considerar tal pretensão universal como uma totalidade fixa, mas mantida por muitas articulações, a autora vai chamar a atenção, a partir de Mouffe e Bhabha, para o fato de que, além dos binarismos (liberal e crítico), o ímpeto discursivo colonial, ou seja, toda tentativa de colonização do outro, precisa negociar seu reconhecimento com a diferença, com o particular.

No entanto, apesar da consideração acima, a autora não supõe que a negociação com a diferença seja capaz de anestesiar os discursos modernos universalizados. Antes, chama a atenção para a importância de que sejam problematizadas, no âmbito do próprio discurso moderno, ideias como autonomia e diálogo, uma vez que tendem a ser pensadas a partir de decisões já tomadas, de verdades já estabelecidas. Portanto, “uma” autonomia e “um” diálogo controlados, circunscritos ao terreno das verdades modernas.

Para a autora, ainda é novo o campo de investigação em EDH e significativamente (ainda) pensado nos marcos da modernidade. Pensar os direitos humanos a partir da afirmação da diferença e não da universalidade de valores é o cerne do trabalho de Aura Ramos, desenhado como uma proposta de “abordagem agonística”, expressão cunhada nas discussões de Chantal Mouffe e que supõe a negociação contínua com o outro. Uma proposta de “diálogo e consenso conflituosos” que, segundo a autora, reiteram a provisoriedade e contingência da política, da democracia. Um diálogo que não pretende estabelecer um último vencedor, mas favorecer políticas culturais que ampliem os espaços de negociação com a diferença, que preserve a interpretação do outro, que conceba a diferença como constitutiva e inerradicável do social.

Concluo pontuando o livro de Aura Ramos como uma grande contribuição à investigação em EDH. Argumento que a singularidade de sua produção consiste, também, no convite a um recuo estratégico na relação com o modo como são pensadas as justificativas, prioridades e metas para a educação em direitos humanos. Em seu trabalho investigativo, a autora provoca uma fratura no piso em que são assentadas as propostas no campo. Uma crítica severa aos significativos movimentos políticos/discursivos que tendem a assumir como problema os meios para a efetivação de ideais acertados pela modernidade, tanto por intermédio de perspectivas liberais, como críticas. O trabalho de Ramos vem de encontro à efervescência dos movimentos em prol da difusão de valores universais, tidos como absolutos e fundamentais ao social, à educação. Valores que, pretendidos à universalidade, tendem a ser incorporados ao campo da educação sem as devidas críticas e preocupações com a originalidade do local, da escola, da diferença. É na atenção para com essas dinâmicas que reside o convite da obra de Aura Ramos. Um convite a que desloquemos o olhar moderno sobre o humano e seus direitos (na educação), para pensar nos termos do direito humano à diferença.

Referências

BRASIL. Comitê Nacional de Educação e m Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação. 2003. [ Links ]

DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica. 2001. [ Links ]

DIAS, Adelaide A.; NADER, Alexandre Antônio Gili; SILVEIRA, Rosa M.G. (Org.).  Subsídios para a elaboração das diretrizes gerais da educação em direitos humanos: versão preliminar. João Pessoa: Editora Universitária UFPB. 2007. [ Links ]

Hugo Heleno Camilo Costa – Professor, Faculdade e Programa de Pós-graduação em Educação/Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Afinidades atlânticas: impasses, quimeras e confluências nas relações luso-brasileiras – GUIMARÃES (HH)

GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal et al. (Orgs.). Afinidades atlânticas: impasses, quimeras e confluências nas relações luso-brasileiras. Rio de Janeiro: Quartet, 2009, 140 p. Resenha de: MOTA, Maria Aparecida Rezende. Relações culturais entre Brasil e Portugal: novas perspectivas historiográficas. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. 318-324, nov./dez. 2011.

Reunindo cinco estudos de especialistas brasileiros e portugueses, a coletânea Afinidades atlânticas traz ao leitor aspectos do contato entre Portugal e Brasil, pouco visitados pela historiografia, reconstituindo um cenário de conflitos e aproximações, no qual, ao longo do século XIX e primeiras décadas do XX, letrados de ambos os países ocuparam-se com a (re)construção de uma comunidade cultural luso-brasileira.

No primeiro capítulo, “Pirataria literária: a questão da autoria entre Brasil e Portugal no século XIX”, Lúcia Maria Bastos P. Neves e Tânia Maria Bessone da Cruz Ferreira discutem o problema da propriedade intelectual e artística, cuja dupla perspectiva – o direito do autor sobre a obra e o direito de todos de usufruí-la – atualiza-se, em nosso presente, na discussão em torno do acesso a textos, vídeos, músicas e imagens interligados e executados no ciberespaço.

Entretanto, já no século XVIII, de acordo com Neves e Bessone, é possível observar medidas relacionadas ao direito autoral, adotadas na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.

De privilégio concedido pelo soberano a direito “legítimo e sagrado”, o percurso de concepções distintas acerca do direito autoral em Portugal, colocou em campos opostos aqueles que, como Almeida Garrett, consideravam que as prerrogativas de autores, editores e livreiros deveriam ser regulamentadas; e os seguidores de Alexandre Herculano que entendia a obra intelectual como um bem público, pertencente à humanidade, pois que promovia o seu avanço. À medida, entretanto, que o mercado literário e livreiro consolidava-se no Brasil e que a legislação portuguesa sobre a matéria aperfeiçoava-se, cresciam as acusações de escritores portugueses à usurpação de seus direitos por editores brasileiros. Obras de Antonio Feliciano de Castilho, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco eram constante e sistematicamente “pirateadas”, suscitando reclamações e acusações. Embora o governo português tenha tentado resolver a questão, durante décadas, apenas em 1889, quando o tema já motivara, na Europa, congressos, acordos internacionais e a criação da Associação Literária Internacional, Sua Majestade Imperial, D. Pedro II, assinaria o decreto que regulamentava a questão.

A partir do exame minucioso de fontes diversas, convenientemente listadas ao final do texto, Neves e Bessone procuram demonstrar que, ao longo do século XIX, bem mais do que os atos oficiais entre os Estados envolvidos, foi a atuação de letrados brasileiros e portugueses que contribuiu decisivamente para a superação dos impasses em torno do direito autoral. Contudo, na medida em que o foco da análise dirige-se às diligências portuguesas, é possível que o leitor sinta falta de mais informações sobre as opiniões dos brasileiros acerca do assunto. A tutela do Estado Imperial sobre as elites intelectuais, talvez explique, em parte, esta ausência, uma vez que as autoras salientam, ao final do capítulo, o caráter incipiente da opinião pública, àquela altura. Debates dessa natureza, segundo elas, ainda teriam que aguardar muitas décadas para que emergisse e se consolidasse, por aqui, uma esfera pública de discussão.

Dos conflitos e impasses, passa-se ao entendimento e à união luso- -brasileira, propósito da revista Atlântida, mensário artístico, literário e social para Portugal e Brazil, analisada por Zília Osório de Castro, em “Do carisma do Atlântico ao sonho da Atlântida”. Fundado pelo escritor português João de Barros e pelo brasileiro João Paulo Emílio Coelho Barreto – nosso conhecido João do Rio – e patrocinado pelas chancelarias dos dois países, o periódico, lançado em novembro de 1915, apresentava-se como um veículo de defesa dos interesses luso-brasileiros e de reconstrução dos laços que uniam os “povos irmãos”. Seu título, Atlântida, evocava o continente mítico, ponte metafórica entre as duas nações, partícipes de um mesmo passado. Entretanto, além do recurso à tradição comum que marcaria essa unidade, a autora destaca, no discurso de diretores e colaboradores da revista, a figuração do Oceano Atlântico como vocação e destino para qualquer iniciativa econômica ou política que Portugal e Brasil pretendessem executar. O que estava em jogo, portanto, de acordo com Castro, era um projeto geopolítico: a criação de uma potência internacional, uma nova Atlântida. Sua realização implicava, entretanto, a implementação de uma política cultural – congressos, palestras, visitas e publicações conjuntas, como a própria revista – e de ações efetivas, tais como a assinatura de tratados de livre comércio; a elevação do consulado do Rio de Janeiro a embaixada; ou, ainda, a promoção da emigração portuguesa.

Castro sugere que o eixo do projeto construiu-se em torno de uma tríplice percepção: as possibilidades criadas pela guerra; a necessidade de impedir o avanço da “onda germânica”; e a consciência da decadência portuguesa e do atraso brasileiro, aliás, temas recorrentes entre os letrados de ambos os países, desde o Oitocentos. Fundamentando o argumento com trechos de artigos, nos quais o Atlântico aparece dividido em duas áreas de influência, uma anglo- -saxônica, ao norte, e outra, latina, ao sul, a autora ressalta que, no entendimento de seus autores, a aproximação luso-brasileira concorreria para o fortalecimento da latinidade, ameaçada pelo imperialismo alemão, além de prover os recursos políticos e econômicos necessários para a criação de uma nova potência no palco internacional. Embora considere a dimensão nacionalista desse discurso – chegando a registrar certo espanto com o seu caráter extremado, seu conservadorismo e seu apelo recorrente ao ideário racialista –, nota-se alguma timidez na forma com que Castro explora as contradições nele presentes, parecendo, em alguns momentos, participar do mesmo entusiasmo algo ingênuo, vivenciado pelos ideólogos do mensário. Preferindo sublinhar seu significado identitário, Castro critica-o, entretanto, como “conceitualmente fora do tempo e ideologicamente fora dos ideais republicanos”, parecendo, com isso, acreditar na existência de um conceito atemporal de república, por um lado e, por outro, ignorar o mal-disfarçado imperialismo desse discurso, e seu oportunismo, numa conjuntura de rearranjo das potências no quadro mundial.

Observa-se, ainda, no capítulo, a ausência de notas explicativas sobre personagens e fatos aludidos e, sobretudo, de informações, nas notas de rodapé, quanto à datação das passagens transcritas. Nelas, consta, apenas, o número da edição, não podendo o leitor identificar mês e ano, na medida em que não se encontra, ao final do artigo, nem a referência completa das fontes, nem a bibliografia consultada. Por outro lado, a súbita suspensão da revista – apesar de anunciado um próximo número –, para a qual Castro não sugere hipóteses explicativas, talvez possa ser interpretada pelo leitor como um recurso dramático da autora que a faz desaparecer, ao final, tal qual a mítica Atlântida, oculta sob o oceano.

Se a divulgação, entre portugueses, da literatura aqui produzida e, em sentido inverso, da portuguesa, em terras brasílicas, foi um dos objetivos de Atlântida, pode-se constatar no capítulo seguinte, “A literatura brasileira na Universidade de Coimbra”, de Maria Aparecida Ribeiro, que ele foi atingido, pelo menos na segunda direção, a despeito de inúmeros percalços.

Os problemas começaram, de acordo com Ribeiro, pelo atraso na colocação em prática da Lei n. 586, de 12 de junho de 1916, que criava uma cadeira de Estudos Brasileiros na Faculdade de Letras de Lisboa, assumida, finalmente, pelo historiador Oliveira Lima, em 1923. Na Universidade de Coimbra, no entanto, não foi instituída propriamente uma cadeira curricular, mas, oferecidos cursos e conferências, sobretudo voltados a temas literários, o que deu origem, como informa a autora, à área de literatura brasileira, cujas disciplinas, obrigatórias para alguns cursos e opcionais para outros, quase sempre foram ministradas por docentes portugueses, pela dificuldade de se contratar especialistas brasileiros, conforme previa a lei.

Com a reforma curricular de 1957, entretanto, a cátedra passou a ser regida, com frequência, por docentes brasileiros, para os quais são dedicadas várias páginas, desde a baiana Ivanice Sampaio Passos, contratada em 1960, até a própria autora que, em 1991, assumiu a disciplina. Em seguida, cobrindo o mesmo período, Ribeiro enfoca todos os conteúdos de curso, transcrevendo alguns na íntegra (sobretudo os que ministrou nas disciplinas literatura brasileira I e II), e comentando a carga horária, ou a inclusão, ou não, de certos autores e temas. Na parte final, além de louvar as cinco pesquisas de doutoramento em curso, Ribeiro discute as vantagens e os prejuízos, para as disciplinas da área de literatura e cultura brasileiras, advindos da implementação da Declaração de Bolonha, em 2007. Embora não traga uma nota explicativa, é possível que o leitor esteja familiarizado com esse documento, assinado em 1999, pelos ministros da Educação de 29 países europeus, na cidade italiana de Bolonha, no qual os países signatários comprometiam-se a promover reformas em seus sistemas de ensino.

Essencialmente empírico-descritivo, o artigo resume dados colhidos em fontes produzidas pela própria Universidade de Coimbra: as Atas do conselho da faculdade de Letras; o Guia do estudante (1980-2003), publicado anualmente; os Livros de sumários (1960-2007), com os conteúdos das disciplinas; e os processos de contratação e rescisão de cada docente. A natureza dos documentos compulsados, contudo, pode favorecer trabalhos mais analíticos em torno da recorrência, ou da ausência, de certas temáticas e autores, em contextos políticos diversos, no longo período em questão.

No capítulo seguinte, Lucia Maria Paschoal Guimarães traz ao leitor “os subterrâneos das relações luso-brasileiras”, em dois estudos de caso: a (re)inauguração da Sala do Brasil, na Universidade de Coimbra, em 1937, e o Congresso Luso-brasileiro de história, em 1940. Trata-se de interessante incursão no universo da diplomacia cultural entre Portugal e Brasil, ao tempo das ditaduras de António de Oliveira Salazar e Getúlio Vargas. Antes, entretanto, de discorrer sobre o sucesso do primeiro e o fracasso do segundo, a autora comenta as iniciativas que, nos primeiros anos do século XX, procuraram reatar os laços luso-brasileiros, um tanto enfraquecidos pelo rompimento diplomático, em 1894, e pelo nacionalismo jacobino que, desde então, grassava, sobretudo, na capital da república brasileira. De acordo com ela, no Brasil, o debate, embora intenso nos círculos literários e na imprensa – onde posições favoráveis a Portugal, como as de Olavo Bilac e Afrânio Peixoto, eram rechaçadas por publicações antilusitanas e por intelectuais do porte de Manoel Bonfim e Antônio Torres –, teve pouca repercussão no campo político-institucional. As relações institucionais do Brasil com Portugal só seriam fortalecidas após a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, como consequência da afinidade ideológica entre o regime varguista e o salazarista e o programa implementado, em 1934, pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, para promover o Brasil no estrangeiro. Neste quadro, inaugura-se o Instituto Luso-brasileiro de Alta Cultura, em Lisboa; programas de intercâmbio estudantil são postos em prática; artistas, cientistas e letrados seguem para Portugal, a convite de órgãos do governo português. Os exemplos arrolados pela autora, sempre perfeitamente documentados, são inúmeros, destacando-se o papel de Arthur Guimarães de Araújo Jorge, à frente da Embaixada do Brasil, em Lisboa, cuja intervenção foi decisiva para a (re)inauguração, em 7 de dezembro de 1937, da “Sala do Brasil”, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Em sua pormenorizada análise das suntuosas cerimônias que marcaram o evento, sobressaem os interesses políticos de ambos os governos, preocupados, por motivos diversos, porém convergentes, com suas imagens na cena europeia.

Ao contrário do sucesso da recuperação da “Sala do Brasil”, o fracasso do Congresso Brasileiro de História evidencia a ampliação do controle da diplomacia cultural, por parte do regime varguista. O evento acadêmico realizava-se no âmbito das Comemorações centenárias, amplo conjunto de festividades, em torno da fundação do reino e da Restauração, promovidas por Salazar, em busca do apoio interno e da aprovação externa à atuação de Portugal no ultramar; nelas, o Brasil participaria da Exposição do mundo português e do Congresso luso-brasileiro de história. As vicissitudes da montagem da participação brasileira, descritas e analisadas pela autora, com o apoio de farto material documental do Arquivo Histórico do Itamaraty e do Arquivo Histórico- Diplomático do Ministério dos Estrangeiros, constituem um quadro fascinante das disputas nas quais se envolveram intelectuais, políticos e funcionários governamentais. Em plena Segunda Guerra, esses conflitos, no entanto, manifestavam, de acordo com a interpretação judiciosa de Lucia Guimarães, a magnitude do investimento simbólico que o conjunto de eventos representava para ambos os países.

A despeito, entretanto, dos regimes autoritários em ambos os lados do Atlântico, “Um rasgo vermelho sobre o Oceano: intelectuais e literatura revolucionária no Brasil e em Portugal”, último capítulo da coletânea, traz ao leitor a crítica literária alinhada ao ideário marxista, produzida e divulgada em plena vigência do regime salazarista. Tendo, inicialmente, o cuidado de apresentar as referências teórico-conceituais que informavam, àquela altura, o debate na Europa acerca do estatuto do artista/escritor (autonomia criativa individual versus comprometimento social), Luís Crespo de Andrade aponta a precocidade da literatura social e politicamente engajada, nomeadamente em Jorge Amado, Amando Fontes, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo, em relação à literatura portuguesa de então. Neste sentido, os novos romancistas brasileiros tornar-se-iam fonte de inspiração e exemplo para os jovens autores portugueses, leitores de Josef Stalin, George Plekhanov e Máximo Gorki.

Interessado em problematizar as críticas correntes ao programa literário – realismo socialista, romance proletário, neorrealismo – formulado por esses escritores de formação marxista, acusados de sobreporem seus objetivos ideológicos aos conteúdos especificamente literários e estéticos, o autor propõe- -se a investigar a validade dessa crítica pelo exame de uma das mais representativas publicações da nova geração literária portuguesa: Sol nascente: quinzenário de ciência, arte e crítica, fundada na cidade do Porto, em 1937, e que viria a ser publicada, um ano após, em Coimbra, prosseguindo até 1940, quando foi proibida.

Para além, entretanto, da simples refutação de uma tese, Andrade envolve o leitor no surpreendente mundo dos intelectuais e artistas portugueses engajados – em tempos de censura prévia e de controle das consciências pela polícia política – na criação e sustentação de periódicos doutrinários. Neles divulgava-se o materialismo dialético, defendiam-se as teses soviéticas sobre política internacional e promovia-se um movimento literário e artístico comprometido com o combate à exploração e à opressão entre os homens.

No caso de Sol nascente, acrescente-se a admiração pelo Brasil e pelos novos autores brasileiros. Abundante em transcrições de passagens reveladores do entusiasmo de seus articulistas pela vida e pelas letras brasileiras, Andrade, entretanto, não descura de seu objetivo central. Oferece ao leitor um conjunto de argumentos – nos quais se observa, claramente, sua simpatia pelo discurso crítico neorrealista – no tocante aos critérios estéticos e culturais a partir dos quais Alves Redol, Afonso Ribeiro, António Ramos de Almeida e Joaquim Namorado formularam, nas páginas de Sol nascente, suas apreciações sobre a qualidade do produto literário vindo do Brasil.

É possível que Sol nascente não tenha alcançado plenamente um de seus principais objetivos, o de promover a criação de um “luso-brasileirismo” intelectual. Todavia, para além dos excessos retóricos, como os de Alberto Lima, advogado e publicista portuense que, no nº. 12 da revista (maio/1937), Maria chegou a propor a constituição de uma comunidade portuguesa, onde o Brasil teria papel proeminente por sua diversidade racial, abundância natural, energia de suas gentes e intensa vida cultural (!), o que Luís Crespo de Andrade destaca é a tendência editorial que resultou da recepção favorável aos novos romancistas brasileiros nas páginas da revista. Paralelamente à circulação, nos meios intelectuais e oposicionistas, das edições brasileiras de nossos autores, editoras portuguesas passaram a publicá-los, a princípio, timidamente, depois – nos anos 1940, 1950 e 1960 – com mais constância e com tiragens significativas.

Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo passaram, desde então, conforme as palavras de Andrade, a ocupar um lugar proeminente no imaginário revolucionário português.

A contribuição de Afinidades atlânticas para a consolidação do campo de estudos voltado para o exame das relações culturais entre Brasil e Portugal é inegável. A edição e a qualidade gráfica do livro, contudo, deixam a desejar: erros tipográficos, reproduções pouco nítidas de documentos e fotografias, ausência de uma padronização no tocante à listagem de fontes e de referências bibliográficas. Essas imperfeições que poderiam agastar o leitor, entretanto, não devem impedi-lo de se beneficiar largamente da originalidade das temáticas abordadas e das sugestões de novos caminhos para pesquisas em torno desses diálogos transatlânticos.

Maria Aparecida Rezende Mota – Professora adjunta Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:  [email protected] Rua Ministro João Alberto, 100 – Jardim Botânico 22461-260 – Rio de Janeiro – RJ Brasil.

Vozes femininas do Império e da República – LÔBO; FARIA (REF)

LÔBO, Yolanda; FARIA, Lia (orgs.). Vozes femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet : FAPERJ, 2008. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Contar, é preciso. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2 May/Aug. 2009.

É fato que a história das mulheres e sua inserção no espaço público foram marcadas por uma longa trajetória de preconceitos e de dificuldades, por isso faz-se, ainda hoje, necessário contar essa história tantas vezes silenciada ao longo dos séculos. E com certeza foi essa a intenção de Yolanda Lôbo e Lia Faria quando reuniram, em Vozes femininas do Império e da República, uma coletânea de artigos com a intenção de “descortinar ideologias e utopias presentes no imaginário feminino, apontando assim para a construção histórica do gênero feminino em Portugal e no Brasil” (p. 16).

Com 368 páginas, o livro publicado pela Editora Quartet e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2008, está a serviço de contar a história das mulheres por meio de experiências pessoais que ultrapassam a esfera do individual. Pode-se afirmar que a diversidade de assuntos abordados e os diferentes enfoques são perpassados e conduzidos por dois eixos centrais: educação e gênero.

Estruturalmente, o livro apresenta-se dividido em três partes: “Falas Imperiais”, “Falas Literárias” e “Falas Apaixonadas”. Na primeira constam dois artigos cuja temática é a educação no Oitocentos. Na segunda aparecem cinco textos que tratam de nomes importantes de mulheres na imprensa, na educação e na literatura. E em “Falas Apaixonadas” concentram-se quatro artigos que enfocam a atuação política e as intervenções de mulheres na educação e na cultura.

Sobre educação, é possível uma “volta” ao passado com Maria Celi Chaves Vasconcelos em “Vozes femininas do Oitocentos: o papel das preceptoras nas casas brasileiras”, em que a autora recupera parte da história das mulheres que encontraram nessa prática educativa um meio de subsistência. Como destaca a autora, as preceptoras foram, no século XIX, as primeiras educadoras “oficialmente instituídas que tornaram o seu ‘fazer’ uma ‘atividade profissional’ remunerada, representando a abertura do mercado de trabalho intelectual à condição feminina” (p. 38).

Sobre a educação feminina, cabe destacar o enfoque dado por Suely Gomes Costa em “Diário de uma e outras meninas: práticas domésticas e educação”, em que o olhar da pesquisadora se volta ao Diário de Helena Morley, publicado em 1942. A partir das experiências pessoais vividas na infância em Diamantina, narradas no diário, registra-se “um painel de trabalho de muitas mulheres a sua volta, das mais às menos instruídas, entrelaçadas em rede, nessa luta comum por sobrevivência” (p. 67). As confissões relatam a participação de meninas nos afazeres domésticos diários e a dificuldade de conciliar a casa e a escola. Destacam, ainda, como aponta Suely, a participação feminina na captação de moedas por meio do trabalho restrito ao âmbito do lar, as chamadas “prendas femininas”. Por fim, o artigo ressalta que a luta pela sobrevivência, nesses casos, criou “reiteradas restrições de acessos à educação” (p. 70).

Será a educação, ainda, pano de fundo em “Vozes católicas: um estudo sobre a presença feminina no periódico A Ordem (anos 1930-40)”. No artigo, Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi resgata a participação de algumas mulheres na revista e destaca o caráter de “apostolado doutrinário e espiritual” da publicação. Atenta para a participação, dentre outras, de Lúcia Miguel Pereira na seção “Crônica feminina”, criada em 1932. Nas crônicas assinadas pela autora, há uma reflexão sobre os novos rumos da vida social que impactariam na condição feminina. Sobre o assunto, a cronista deixa explícita sua preocupação com risco de a mulher deixar-se seduzir por um ritmo, uma “trepidação”, própria dos tempos modernos, que a conduziria ao trabalho remunerado na esfera pública, quase sempre marcado pelo individualismo. É o foco no social a maior defesa da autora, que enfatiza a importância da educação feminina para um projeto segundo o qual a mulher deveria “pôr a serviço do bem comum as riquezas de sua psicologia materna “(p. 98), como bem destaca a autora do artigo.

É ainda pelo viés da educação e da literatura que Constância Lima Duarte nos apresenta Nísia Floresta, nome importante no avanço da educação feminina no Brasil, que traz em quase todos os seus livros “o propósito de formar e modificar consciências” e o projeto de “alterar o quadro ideológico-social” (p. 106). Em “Nísia Floresta e a educação feminina no séc. XIX”, a pesquisadora destaca o caráter inovador das ideias e práticas educativas de Nísia, como sua defesa por uma educação feminina pautada menos na educação da agulha e mais em uma formação multifacetada. Lembra ainda que, na produção da escritora, há textos que se inscrevem na tradição de uma “prosa moralista de intenção nitidamente doutrinária”, com o objetivo principal de “transformar a mulher indiferente em mãe amorosa e responsável”, contribuindo – sem o saber – para a cristalização de uma “mística feminina” (p. 140). A pesquisadora afirma que, a posteriori, “é fácil de perceber a manipulação ideológica desse discurso e as conseqüências na vida das mulheres” e destaca como o elogio da maternidade tornou-se uma “nova forma de enclausuramento” (p. 140).

Em “Carmen Dolores: as contradições de uma literata da virada do século”, Rachel Soihet e Flávia Copio Esteves se unem para apresentar ao leitor outra mulher à frente de seu tempo. Ciente das aptidões e dos papéis de cada gênero como construções sociais, Carmen Dolores usou a escrita para tratar de assuntos de interesse das mulheres, como a desmistificação da maternidade como seu único destino e a defesa do divórcio em nome da integridade familiar, da política, da educação e do trabalho feminino. Convivem nas crônicas assinadas pela autora a busca da libertação feminina pela educação e pelo trabalho e a manutenção de alguns comportamentos femininos. Tal paradoxo, claramente apontado pelas autoras, deve-se ao fato de que a escritora é, como tantas outras, uma “expressão da cultura de seu tempo e de sua classe”, sendo preciso considerar “a flexibilidade da ‘jaula’ representada pela cultura” (p. 165-166).

Pelo viés memorialístico e pelo cunho autobiográfico dos diários, dos cadernos de anotações e dos álbuns de memórias da professora Maria Luiza Schmidt Rehder, textos analisados por Marilena A. Jorge Guedes de Camargo, em “Ecos de um passado feminino: entre escritos e sentimentos”, chegam a nós relatando a trajetória de uma mulher movida pelos sentimentos que se propõe a “fazer história com sua experiência”. Assim, ao narrar sua vida, em Rio Claro, registra também acontecimentos importantes da década de 1930. Relata, por exemplo, a formação de um exército de voluntários unidos sob ideais patrióticos em defesa de São Paulo e registra a participação das mulheres paulistas na Revolução de 1932, costurando fardas e cobertores, angariando donativos para a manutenção dos batalhões, além da atuação das enfermeiras em hospitais de campanha.

Ao falar da condição feminina impressa no romance A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, Tânia Navarro Swain propõe uma “leitura ativa” que em nada se pretende imparcial ou distanciada, “apropriando-se” da narrativa para criar e atribuir-lhe sentidos múltiplos. Assim, em “A doce canção de Caetana: meu olhar” busca investigar as imagens e representações sociais do feminino e do masculino que habitam o romance. Discute, entre outros assuntos, a instituição do casamento como valor social na manutenção do poder masculino; a “ilusória força masculina” pautada no “fantasma da potência sexual” e na “posse de corpos alheios”; e a prostituição como “criação social”, na qual, como destaca a autora, há “violência de corpos desprovidos de subjetividade” (p. 216).

Atravessando o Atlântico, Áurea Adão e Maria José Remédios detêm-se na participação política das mulheres em Portugal de 1946 a 1961. Em “Os discursos do poder e as políticas educativas na governação de Oliveira Salazar: as intervenções das mulheres na Assembléia Nacional”, as autoras atentam para a atuação das deputadas na Assembleia Nacional bem como para a imagem do feminino que subjaz, explícita ou implicitamente, nas suas intervenções. Para tanto, analisam os discursos de seis mulheres parlamentares e observam que algumas áreas estavam restritas à intervenção pública feminina: a educação, a família, a assistência social e a saúde. Toda tentativa de ir além de tais assuntos era marcada por justificativas das parlamentares diante de seus pares. Ainda nos discursos dessas mulheres pode-se perceber, como destacam as autoras, a defesa da permanência da mulher no âmbito do lar, numa “valorização da função de mãe de família” e de “guardiã vigilante da harmonia e da felicidade do lar”, numa “verdadeira vocação de mulher” (p. 272), contribuindo para a manutenção de um questionável modelo social.

Seguindo ainda a trilha de mulheres que fizeram história, Lia Ciomar Macedo de Faria, Edna Maria dos Santos e Rosemaria J. Vieira da Silva seguem os passos da professora e historiadora Maria Yeda Linhares. De perfil “questionador e combativo” e de trajetória marcada “pela irreverência e coragem intelectual”, Maria Yeda se colocou em defesa do direito à educação e à garantia de uma escola pública efetivamente republicana, pois, para ela, segundo destacam as autoras em “Os múltiplos olhares de Maria Yeda Linhares: educação, história e política no feminino”, o sucesso da escola pública significa uma “questão de sobrevivência se quisermos existir como povo e nação” (p. 297).

A trajetória de outra professora, Myrthes de Luca Wenzel, também é abordada em “Alcachofras-dos-telhados: lições de pedagogia de uma educadora”, por Yolanda Lôbo. À frente da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, a educadora reuniu em torno de si um seleto grupo de intelectuais e foi, como destaca a autora do artigo, idealizadora de uma “pedagogia libertadora”, uma proposta educacional inovadora, que buscava a felicidade dos alunos, “com liberdade de criar, de viver em sociedade e ao mesmo tempo preparados de modo completo e científico” (p. 316).

Voltando-se ao espaço sociocultural português, Zília Osório de Castro, em “Na senda do feminismo intelectual”, discute a condição feminina a partir da reflexão do papel do intelectual. Destaca a criação das revistas Pensamento, O Diabo e O Sol Nascente, na década de 1930, que “apostavam na reforma cultural” e traziam em suas páginas o tema do feminismo em meio ao “confronto de valores culturais presente na sociedade portuguesa de então” (p. 340). A participação das mulheres nessas revistas representou, segundo a autora, uma evolução, seja por sua inserção em um espaço majoritariamente masculino, seja pelo reconhecimento de suas potencialidades e sua “comparticipação na criação da nova sociedade” ou pela “conscientização de uma outra idéia de mulher” (p. 340), ser humano dotado de direitos e deveres. Por meio dessas mulheres se deu um “feminismo interventivo e não apenas participativo, um feminismo cívico e não apenas político” (p. 341). Zília lembra o nome de Ana de Castro Osório no feminismo cultural dos anos 1930, que defendia o trabalho como “carta de alforria” da mulher com o objetivo de responsabilizá-la por seu próprio destino. Observa ainda, nos periódicos analisados, dois tipos de feminismo: um “feminismo feminino”, pelo qual a mulher reivindicava uma função social, além da revisão da sua situação familiar, profissional e política; e um “feminismo masculino”, pelo qual os homens escreviam em “defesa” das mulheres.

É interessante notar, pela leitura dos artigos reunidos em Vozes femininas do Império e da República, como o lento processo de “libertação” da mulher está ligado à promoção de sua educação, de seu desenvolvimento intelectual e de seu trabalho, reafirmando o que Virgínia Woolf teorizou tão bem em Um teto todo seu. O leitor que se aventurar nas instigantes trilhas propostas pelas autoras deste livro chegará ao final de sua leitura com a visão panorâmica das principais lutas e obstáculos vivenciados pelas mulheres ao longo dos séculos, em diferentes contextos, dos quais o reconhecimento da diferença e o direito à educação foram fundamentais ao que se convencionou chamar de feminismo.

Pode-se dizer que, nas páginas deste livro, configura-se um feminismo crítico através das vozes de 13 mulheres que se unem para contar histórias de outras mulheres, que, por sua vez, superam os relatos pessoais e fazem coro com as autoras dos artigos para narrarem juntas uma história bem mais ampla: a história das mulheres.

Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais

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Vozes femininas do Império e da República – LÔBO; FARIA (REF)

LÔBO, Yolanda; FARIA, Lia (orgs.). Vozes femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet : FAPERJ, 2008. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Contar, é preciso. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

É fato que a história das mulheres e sua inserção no espaço público foram marcadas por uma longa trajetória de preconceitos e de dificuldades, por isso faz-se, ainda hoje, necessário contar essa história tantas vezes silenciada ao longo dos séculos. E com certeza foi essa a intenção de Yolanda Lôbo e Lia Faria quando reuniram, em Vozes femininas do Império e da República, uma coletânea de artigos com a intenção de “descortinar ideologias e utopias presentes no imaginário feminino, apontando assim para a construção histórica do gênero feminino em Portugal e no Brasil” (p. 16).

Com 368 páginas, o livro publicado pela Editora Quartet e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2008, está a serviço de contar a história das mulheres por meio de experiências pessoais que ultrapassam a esfera do individual. Pode-se afirmar que a diversidade de assuntos abordados e os diferentes enfoques são perpassados e conduzidos por dois eixos centrais: educação e gênero.

Estruturalmente, o livro apresenta-se dividido em três partes: “Falas Imperiais”, “Falas Literárias” e “Falas Apaixonadas”. Na primeira constam dois artigos cuja temática é a educação no Oitocentos. Na segunda aparecem cinco textos que tratam de nomes importantes de mulheres na imprensa, na educação e na literatura. E em “Falas Apaixonadas” concentram-se quatro artigos que enfocam a atuação política e as intervenções de mulheres na educação e na cultura.

Sobre educação, é possível uma “volta” ao passado com Maria Celi Chaves Vasconcelos em “Vozes femininas do Oitocentos: o papel das preceptoras nas casas brasileiras”, em que a autora recupera parte da história das mulheres que encontraram nessa prática educativa um meio de subsistência. Como destaca a autora, as preceptoras foram, no século XIX, as primeiras educadoras “oficialmente instituídas que tornaram o seu ‘fazer’ uma ‘atividade profissional’ remunerada, representando a abertura do mercado de trabalho intelectual à condição feminina” (p. 38).

Sobre a educação feminina, cabe destacar o enfoque dado por Suely Gomes Costa em “Diário de uma e outras meninas: práticas domésticas e educação”, em que o olhar da pesquisadora se volta ao Diário de Helena Morley, publicado em 1942. A partir das experiências pessoais vividas na infância em Diamantina, narradas no diário, registra-se “um painel de trabalho de muitas mulheres a sua volta, das mais às menos instruídas, entrelaçadas em rede, nessa luta comum por sobrevivência” (p. 67). As confissões relatam a participação de meninas nos afazeres domésticos diários e a dificuldade de conciliar a casa e a escola. Destacam, ainda, como aponta Suely, a participação feminina na captação de moedas por meio do trabalho restrito ao âmbito do lar, as chamadas “prendas femininas”. Por fim, o artigo ressalta que a luta pela sobrevivência, nesses casos, criou “reiteradas restrições de acessos à educação” (p. 70).

Será a educação, ainda, pano de fundo em “Vozes católicas: um estudo sobre a presença feminina no periódico A Ordem (anos 1930-40)”. No artigo, Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi resgata a participação de algumas mulheres na revista e destaca o caráter de “apostolado doutrinário e espiritual” da publicação. Atenta para a participação, dentre outras, de Lúcia Miguel Pereira na seção “Crônica feminina”, criada em 1932. Nas crônicas assinadas pela autora, há uma reflexão sobre os novos rumos da vida social que impactariam na condição feminina. Sobre o assunto, a cronista deixa explícita sua preocupação com risco de a mulher deixar-se seduzir por um ritmo, uma “trepidação”, própria dos tempos modernos, que a conduziria ao trabalho remunerado na esfera pública, quase sempre marcado pelo individualismo. É o foco no social a maior defesa da autora, que enfatiza a importância da educação feminina para um projeto segundo o qual a mulher deveria “pôr a serviço do bem comum as riquezas de sua psicologia materna “(p. 98), como bem destaca a autora do artigo.

É ainda pelo viés da educação e da literatura que Constância Lima Duarte nos apresenta Nísia Floresta, nome importante no avanço da educação feminina no Brasil, que traz em quase todos os seus livros “o propósito de formar e modificar consciências” e o projeto de “alterar o quadro ideológico-social” (p. 106). Em “Nísia Floresta e a educação feminina no séc. XIX”, a pesquisadora destaca o caráter inovador das ideias e práticas educativas de Nísia, como sua defesa por uma educação feminina pautada menos na educação da agulha e mais em uma formação multifacetada. Lembra ainda que, na produção da escritora, há textos que se inscrevem na tradição de uma “prosa moralista de intenção nitidamente doutrinária”, com o objetivo principal de “transformar a mulher indiferente em mãe amorosa e responsável”, contribuindo – sem o saber – para a cristalização de uma “mística feminina” (p. 140). A pesquisadora afirma que, a posteriori, “é fácil de perceber a manipulação ideológica desse discurso e as conseqüências na vida das mulheres” e destaca como o elogio da maternidade tornou-se uma “nova forma de enclausuramento” (p. 140).

Em “Carmen Dolores: as contradições de uma literata da virada do século”, Rachel Soihet e Flávia Copio Esteves se unem para apresentar ao leitor outra mulher à frente de seu tempo. Ciente das aptidões e dos papéis de cada gênero como construções sociais, Carmen Dolores usou a escrita para tratar de assuntos de interesse das mulheres, como a desmistificação da maternidade como seu único destino e a defesa do divórcio em nome da integridade familiar, da política, da educação e do trabalho feminino. Convivem nas crônicas assinadas pela autora a busca da libertação feminina pela educação e pelo trabalho e a manutenção de alguns comportamentos femininos. Tal paradoxo, claramente apontado pelas autoras, deve-se ao fato de que a escritora é, como tantas outras, uma “expressão da cultura de seu tempo e de sua classe”, sendo preciso considerar “a flexibilidade da ‘jaula’ representada pela cultura” (p. 165-166).

Pelo viés memorialístico e pelo cunho autobiográfico dos diários, dos cadernos de anotações e dos álbuns de memórias da professora Maria Luiza Schmidt Rehder, textos analisados por Marilena A. Jorge Guedes de Camargo, em “Ecos de um passado feminino: entre escritos e sentimentos”, chegam a nós relatando a trajetória de uma mulher movida pelos sentimentos que se propõe a “fazer história com sua experiência”. Assim, ao narrar sua vida, em Rio Claro, registra também acontecimentos importantes da década de 1930. Relata, por exemplo, a formação de um exército de voluntários unidos sob ideais patrióticos em defesa de São Paulo e registra a participação das mulheres paulistas na Revolução de 1932, costurando fardas e cobertores, angariando donativos para a manutenção dos batalhões, além da atuação das enfermeiras em hospitais de campanha.

Ao falar da condição feminina impressa no romance A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, Tânia Navarro Swain propõe uma “leitura ativa” que em nada se pretende imparcial ou distanciada, “apropriando-se” da narrativa para criar e atribuir-lhe sentidos múltiplos. Assim, em “A doce canção de Caetana: meu olhar” busca investigar as imagens e representações sociais do feminino e do masculino que habitam o romance. Discute, entre outros assuntos, a instituição do casamento como valor social na manutenção do poder masculino; a “ilusória força masculina” pautada no “fantasma da potência sexual” e na “posse de corpos alheios”; e a prostituição como “criação social”, na qual, como destaca a autora, há “violência de corpos desprovidos de subjetividade” (p. 216).

Atravessando o Atlântico, Áurea Adão e Maria José Remédios detêm-se na participação política das mulheres em Portugal de 1946 a 1961. Em “Os discursos do poder e as políticas educativas na governação de Oliveira Salazar: as intervenções das mulheres na Assembléia Nacional”, as autoras atentam para a atuação das deputadas na Assembleia Nacional bem como para a imagem do feminino que subjaz, explícita ou implicitamente, nas suas intervenções. Para tanto, analisam os discursos de seis mulheres parlamentares e observam que algumas áreas estavam restritas à intervenção pública feminina: a educação, a família, a assistência social e a saúde. Toda tentativa de ir além de tais assuntos era marcada por justificativas das parlamentares diante de seus pares. Ainda nos discursos dessas mulheres pode-se perceber, como destacam as autoras, a defesa da permanência da mulher no âmbito do lar, numa “valorização da função de mãe de família” e de “guardiã vigilante da harmonia e da felicidade do lar”, numa “verdadeira vocação de mulher” (p. 272), contribuindo para a manutenção de um questionável modelo social.

Seguindo ainda a trilha de mulheres que fizeram história, Lia Ciomar Macedo de Faria, Edna Maria dos Santos e Rosemaria J. Vieira da Silva seguem os passos da professora e historiadora Maria Yeda Linhares. De perfil “questionador e combativo” e de trajetória marcada “pela irreverência e coragem intelectual”, Maria Yeda se colocou em defesa do direito à educação e à garantia de uma escola pública efetivamente republicana, pois, para ela, segundo destacam as autoras em “Os múltiplos olhares de Maria Yeda Linhares: educação, história e política no feminino”, o sucesso da escola pública significa uma “questão de sobrevivência se quisermos existir como povo e nação” (p. 297).

A trajetória de outra professora, Myrthes de Luca Wenzel, também é abordada em “Alcachofras-dos-telhados: lições de pedagogia de uma educadora”, por Yolanda Lôbo. À frente da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, a educadora reuniu em torno de si um seleto grupo de intelectuais e foi, como destaca a autora do artigo, idealizadora de uma “pedagogia libertadora”, uma proposta educacional inovadora, que buscava a felicidade dos alunos, “com liberdade de criar, de viver em sociedade e ao mesmo tempo preparados de modo completo e científico” (p. 316).

Voltando-se ao espaço sociocultural português, Zília Osório de Castro, em “Na senda do feminismo intelectual”, discute a condição feminina a partir da reflexão do papel do intelectual. Destaca a criação das revistas Pensamento, O Diabo e O Sol Nascente, na década de 1930, que “apostavam na reforma cultural” e traziam em suas páginas o tema do feminismo em meio ao “confronto de valores culturais presente na sociedade portuguesa de então” (p. 340). A participação das mulheres nessas revistas representou, segundo a autora, uma evolução, seja por sua inserção em um espaço majoritariamente masculino, seja pelo reconhecimento de suas potencialidades e sua “comparticipação na criação da nova sociedade” ou pela “conscientização de uma outra idéia de mulher” (p. 340), ser humano dotado de direitos e deveres. Por meio dessas mulheres se deu um “feminismo interventivo e não apenas participativo, um feminismo cívico e não apenas político” (p. 341). Zília lembra o nome de Ana de Castro Osório no feminismo cultural dos anos 1930, que defendia o trabalho como “carta de alforria” da mulher com o objetivo de responsabilizá-la por seu próprio destino. Observa ainda, nos periódicos analisados, dois tipos de feminismo: um “feminismo feminino”, pelo qual a mulher reivindicava uma função social, além da revisão da sua situação familiar, profissional e política; e um “feminismo masculino”, pelo qual os homens escreviam em “defesa” das mulheres.

É interessante notar, pela leitura dos artigos reunidos em Vozes femininas do Império e da República, como o lento processo de “libertação” da mulher está ligado à promoção de sua educação, de seu desenvolvimento intelectual e de seu trabalho, reafirmando o que Virgínia Woolf teorizou tão bem em Um teto todo seu. O leitor que se aventurar nas instigantes trilhas propostas pelas autoras deste livro chegará ao final de sua leitura com a visão panorâmica das principais lutas e obstáculos vivenciados pelas mulheres ao longo dos séculos, em diferentes contextos, dos quais o reconhecimento da diferença e o direito à educação foram fundamentais ao que se convencionou chamar de feminismo.

Pode-se dizer que, nas páginas deste livro, configura-se um feminismo crítico através das vozes de 13 mulheres que se unem para contar histórias de outras mulheres, que, por sua vez, superam os relatos pessoais e fazem coro com as autoras dos artigos para narrarem juntas uma história bem mais ampla: a história das mulheres.

Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais.

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