A majestade do Xingu Z Moacyr Scliar

O novo romance de Moacyr Scliar, A majestade do Xingu, parece ser, a princípio, uma biografia romanceada do médico sanitarista Noel Nutels, imigrante russo de origem judaica que dedicou vida e profissão a cuidar dos índios brasileiros. Até aí não haveria nada de especial a destacar, uma vez que o romance seria unicamente a moldura que permitiria narrar a vida do biografado. A literatura seria apenas o expediente para cativar o leitor, e o interesse do texto reduzir-se-ia às peripécias da vida do médico. Mas, felizmente para a literatura, para a medicina e especialmente para o leitor, estamos diante de um texto que vai muito além de qualquer mecanismo mercadológico daquela espécie.

Felizmente para a literatura porque, ao invés de ser uma biografia romanceada, o livro constitui, antes de tudo, um romance, em que a biografia funciona como um catalisador, um ponto de partida e não de chegada. A diferença é vital: mais do que a vida do “médico dos índios”, o que importa ao autor são as relações dessa vida com o mundo que a cerca e, por extensão, com o mundo que nos cerca, a nós leitores. Não por acaso, a figura do narrador, um homem comum no leito de morte, meditando sobre sua vicia, ganha muito mais vulto do que a personagem de Noel Nutels. O médico paira sobre o texto, mas nunca é o seu centro absoluto, servindo antes de contraponto à vida e à narrativa desse moribundo, de onde emerge uma reflexão sobre a própria condição humana. Leia Mais

A paixão transformada: história da medicina na literatura | Moacyr Scliar

Se a doença é o lado reversível do amor, segundo Thomas Mann, então, como paixão transformada, ela manifesta elevados níveis de sensibilidade e transcendência que freqüentemente conduzem o ser humano a realizar obras inesperadas. Seja ela transformada num estado espiritual transcendente, numa descoberta profissional ou numa obra literária, a doença tem sido uma musa inspiradora para a arte e a ciência. E é o ofício do literato que tem beneficiado significativamente a simbiose doença/amor, numa perspectiva romântica, porém, ainda em voga nestes tempos pós-modernos se levarmos em conta a manifestação cada vez mais crescente de escritas e escritores inspirados pela “paixão transformada”.

Nesta linha, temos uma obra histórico-literária do médico-escritor Moacyr Scliar» sobre os momentos-chave da medicina mundial. Lendo o livro dos dois pontos de vista — literário e científico —, o leitor apercebe-se das qualidades e vantagens do duplo ofício de que o próprio autor vem se constituindo há tempos num exemplo vivo. A partir de citações extraídas de textos literários, memórias, diários, ensaios e aforismos escritos por médicos, escritores e médicos-escritores como Miguel Torga, William Carlos Williams e Oliver Sacks, Moacyr Scliar apresenta, através de comentários e interpretações que geralmente não excedem duas a três páginas, um vasto panorama da medicina e da sua história, sobretudo esta sendo uma história de vozes — as vozes misteriosas do corpo, da alma, da doença, do médico e do escritor. Como numa consulta médica, estas vozes nos falam de tal forma que cada leitor pode se identificar com o drama pessoal de cada enfermidade. Aliás, o livro consola o leitor contemporâneo pelo seu retrato íntimo da medicina visto através das suas múltiplas descobertas, errâncias e incertezas, desde a Antigüidade até nossos dias. É a abordagem honesta do perfil da medicina com seus altos e baixos que torna a leitura deste livro tão reveladora, pois demonstra como esta ciência é decididamente humana e que os caminhos para descobrir uma cura passam por um processo longo e árduo. Leia Mais