Relações de gênero e história: emoções, corpos e sexualidades | Projeto História | 2021

A virada epistemológica da historiografia na segunda metade do século XX, marcada por diversos movimentos sociais e uma grande ebulição política, econômica e cultural, possibilitou a emergência de uma categoria polissêmica, multifacetada e diretamente ligada às questões que discutem as relações de poderes na sociedade: os chamados estudos de gênero, categoria analítica cunhada por Joan W. Scott em seu ensaio “Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995). Em meio a essa renovação analítica, os estudos culturais na historiografia avançaram e propuseram mudanças epistemológicas fundamentais para a escrita da História. Tendo como ponto de reflexão as discussões de pesquisadoras como Joan Scott, Judith Butler, Joana Maria Pedro, Maria Izilda Matos, Rachel Soihet e Margareth Rago, a História precisou caminhar para um novo escrever e narrar sobre os corpos, os desejos, as emoções e as sexualidades. Dentro da perspectiva de uma então recente História cultural emergiram análises e críticas fundamentais aos alicerces de poderes, saberes e narrativas sobre o passado, provida de um olhar que entendia que “o pessoal é político” e histórico e, portanto, do ofício das/dos historiadoras/es. Leia Mais

Mulheres, práticas políticas e gênero: História(s), Vivência(s) e Experiência(s) do(s) feminino(s) / História Revista / 2014

A introdução dos estudos de gênero no Brasil encontrou campo fértil na história das mulheres, caracterizada como uma produção de saber interdisciplinar, que ganhou consistência nos anos de 1970. As pesquisas envolveram esforços de historiadoras, sociólogas e antropólogas, feministas que tiveram coragem de dar voz às mulheres, retirá-las do apagamento e do silêncio da História, destacando as “vivências comuns, os trabalhos, as lutas, as sobrevivências e as resistências das mulheres no passado” (PEDRO, 2005, p.85). Nesse avanço das lutas sociais e das críticas feministas, tem vazão a controvérsia em torno da história das mulheres, que parecia sinalizar a exaustão da categoria mulher, vista, muitas vezes, como generalizada e universal. Abria-se, então, o campo para os gender studies ou o estudo das relações de gênero, que ganharam relevância nos Estudos Unidos, no início dos anos 1990 (RAGO, 1998, p.89).

A partir disso, abriu-se um campo de pesquisa interdisciplinar que busca compreender como se constituem o masculino e o feminino cultural e historicamente, na perspectiva das relações de gênero. A introdução dessa categoria iluminou a análise ao incorporar à experiência a dimensão da sexualidade e das identidades construídas, contrapondo-se à tendência de se pensar a identidade sexual como algo biologicamente dado (NICOLSON, 2000, p.9).

Dentre as contribuições do conceito de gênero, destacam-se: a rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual; a dimensão relacional entre as mulheres e os homens, indicando que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois sexos poderia existir sem um estudo que os tomasse em separado; a ênfase no caráter social e cultural das distinções baseadas no sexo, que contribuiu para desnaturalizar o discurso biológico; a dimensão das relações de poder que perpassa as assimetrias e hierarquias nas relações entre homens e mulheres (SOIHET e COSTA, 2008, p.43). Como Jane Flax (1991, p.226) afirma, a problematização das relações de gênero consiste no mais importante avanço isolado da e na teoria feminista no final do século XX. Definitivamente, inaugura-se um novo paradigma para compreensão da História.

O presente dossiê representa e confirma a importância e a abundância de pesquisas em torno da temática das relações de Gênero na História. As pesquisas pretendem compreender como as vivências e experiências de mulheres e homens questionaram / conformaram / inventaram a profunda desigualdade nas relações de gêneros, e simultaneamente espaços e lugares públicos e privados interditados e repensados. As construções sociais, históricas e culturais em torno dessa rede simbólica é, muitas vezes, composta de silêncios ratificados em discursos que buscam naturalizar a diferença, significados criados politicamente e necessariamente imprecisos (SCOTT, 2012).

Alcileide Cabral do Nascimento e Alexandre Vieira da Silva Melo fazem uma profícua parceria no artigo “Melindrosas em revista: Gênero e sociabilidades do início do século XX (Recife, 1919-1929) ao analisar o corpo feminino e suas ressignificações através da figura da Melindrosa – personagem instigante e amendrontadora da ordem de gênero – na moderna Recife da Primeira República.

Ana Maria Colling e Losandro Tedeschi abordam as questões sobre “Os Direitos Humanos e as questões de Gênero” analisando a desigualdade de gênero como “uma afronta à igualização proposta pelos Direitos Humanos desde a sua fundação no século XVIII”. Violência, direito à cidadania e espaços conquistados por mulheres ultrapassam assim fronteiras políticas para tentarem realizar um espaço de vivências igualitárias e democráticas, que deveriam ser asseguradas às mulheres, mas as disputas de poder das relações de gênero nos mostram que a história é repleta de conflitos e exceções.

Maria Izilda de Santos Matos nos brindou com o trabalho “Maria Prestes Maia: trajetória, luta política e feminista na qual investiga a importância da esposa do prefeito e urbanista Francisco Prestes Maia em meados do século XX – Maria Prestes Maia, imigrante lusa – nas atividades políticas, sociais, sua atuação na Federação das Mulheres no Brasil e como sua influência pode ter tido relevância para o traçado urbano de São Paulo efetivado pelo “Plano Avenidas”.

No artigo “Mulher, casamento e trabalho: um triângulo que não fecha?” de Maria Beatriz Nader embarcamos para outra cidade brasileira: Vitória e suas transformações nas três últimas décadas do século XX. A participação das mulheres nesse desenfreado processo de implantação de grandes indústrias, aumento populacional e econômico, sofre intensas mudanças, pois o mercado de trabalho rompe, ou pelo menos esgarça a tessitura do bordado tradicional do destino feminino de casamento e família.

Gleidiane de Sousa Ferreira aponta que o debate sobre o feminismo não é apenas nacional, mas internacional. Sua contribuição ao apresentar elementos de atuação política do Mujeres creando, grupo de atuação feminista anarquista boliviano desde 1992, é literalmente um espaço de reflexão sobre o que significa pensar as práticas do feminismo nos dias contemporâneos. Seu artigo “Produzir conhecimento sobre si mesmas: uma reflexão histórica sobre práticas feministas autônomas na Bolívia”, aborda as diversas formas de comunicação estabelecidas por essas mulheres, tendo como ponto de partida a noção de “tomar la palabra”: escrita teórica, rádio independente, o jornal alternativo, arte de rua.

“Tomar la palabra!”. É o que queremos e esperamos. Aproveitem os textos sobre práticas políticas e gênero e que destes surjam outras e tantas mais História(s), Vivência(s) e Experiência(s) do(s) feminino(s)!

Referências

FLAX, Jane. Pós-moderno e relações de gênero na teoria feminista. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa (Org.). Pós-modernidade e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p.217-250.

NICOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v.8, n.2, p.9-41, 2000.

SCOTT, JOAN W. Os usos e abusos do gênero. Tradução: Ana Carolina Eiras Coelho Soares. Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, Dez. 2012.

SOIHET, Rachel e COSTA, Suely Gomes. Interdisciplinaridade: história das mulheres e estudos de gênero. Gragoatá, Niterói, n.25, p.29-49, 2008.

Alcileide Cabral do Nascimento – Professora Doutora em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco; Coordenadora Nacional do Gt de Gênero ANPUH; Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Gênero / NUPEGE / UFRPE / CNPq.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares – Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em História e da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás; Coordenadora do GT regional de Gênero – Seção Goiás; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero / FH-UFG / CNPq.


NASCIMENTO, Alcileide Cabral do; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 19, n. 3, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Mulheres, Feminismos e Gênero: diálogos (in)tensos na História / História Revista / 2014

Os estudos de gênero ganham importância na academia, em fóruns de debates, nas agências de fomento à pesquisa e espaço no mercado editorial. A desigualdade de gênero e racial é profundamente questionada, o combate à violência contra as mulheres toma a cena pública, as sexualidades se rebelam e há uma desconfiança no ar a sinalizar que o binarismo (homes x mulher) no qual fomos forjados não responda à complexidade de ser no mundo hodierno. Assim, esse dossiê está em plena sincronia com as questões do presente e aposta numa sociedade melhor ao publicizar as pesquisas que falam das nossas travessias históricas de ser quem somos, onde as fronteiras normativas entre o feminino e o masculino são cada vez mais tênues.

A ideia desse dossiê surgiu em 2012 quando as professoras Alcileide Cabral e Ana Carolina Coelho se articularam para propor um simpósio temático no XXVII Simpósio Nacional de História que aconteceria em Natal, capital do Rio Grande do Norte, em 2013. O Simpósio intitulado “Mulheres, Feminismos e Gênero: diálogos (in)tensos na História” teve por objetivo discutir os significados históricos dos feminismos e da problematização das relações de gênero na virada do século XIX e nas décadas iniciais do século XX, buscando compreender como as mulheres questionaram a profunda desigualdade com os homens, ao mesmo tempo em que construíram possibilidades de inserção nos espaços públicos, redefinindo a dimensão do privado. Neste sentido, convidamos os / as pesquisadores / as a apresentarem seus trabalhos nas múltiplas direções abertas no âmbito dos estudos feministas e da história cultural a partir de fontes diversas como periódicos, revistas, fotografias, narrativas autobiográficas, ficção literária, discutindo a tensa e conflituosa relação entre feminino e o masculino, solo de uma episteme sobre as novas relações de e entre os gêneros e da emergência dos feminismos. Esse Simpósio rendeu bons frutos que agora chega ao público com este dossiê e temos a certeza de que nosso Grupo tem mesmo assumido a questão dos estudos de gênero como uma de nossas preocupações investigativas.

O estudo das relações de gênero abrange pesquisas acadêmicas interdisciplinares que procuram compreender as relações entre os gêneros – masculino e feminino – na cultura e na sociedade humanas. Essa compreensão entende que homens e mulheres estão numa perspectiva relacional e, ao mesmo tempo, são diferentes uns em relação aos / às outros / as e entre si. Considera-se ainda que essas relações são construídas historicamente, marcadas pela cultura e pelas relações de poder que fundamentam uma hierarquia e uma assimetria social entre homens e mulheres (SCOTT, 1991).

Esses esforços investigativos desde o último quartel do século XX, passaram a contar com a criação do Grupo de Trabalho de Gênero (Gt de Gênero Nacional) vinculado à Associação Nacional do Professores de História (ANPUH) em 25 de julho de 2001. Esse foi o ano da institucionalização dos Grupos de Trabalho vinculados à Associação, durante o XXI Simpósio Nacional da ANPUH, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Buscando fortalecer a pesquisa, o ensino e a extensão, O Gt de Gênero definiu como objetivos consolidar um espaço de intercâmbio científico-acadêmico sobre estudos de gênero e temas afins, no âmbito da história e das diferentes disciplinas; proporcionar um balanço do alcance de teorias e metodologias geradas pelos estudos de gênero e temas afins e de suas repercussões sobre o conhecimento, com vistas ao aperfeiçoamento do ensino da história em seus diferentes níveis; estimular no espaço universitário iniciativas de ensino, pesquisa e extensão voltadas para perspectivas teóricas e metodológicas abertas pelos estudos de gênero. Desde então, estimulou-se a criação dos Gt’ regionais com idênticos objetivos. Temos hoje nove Gt’s em diferentes regiões do Brasil.

Assim, este dossiê representa uma importante parceria entre o Gt de Gênero Nacional, coordenado por mim, em conjunto com Gt de Gênero de Goiás, sob a coordenação da Profa. Ana Carolina Eiras Coelho Soares [3] e dá concretude a um dos seus objetivos: implementar dossiês / revistas temáticas e publicação de coletâneas articulados com os desejos e problemáticas do presente.

Neste dossiê temos a confirmação da relevância e preocupação com as temáticas de gênero nas discussões intelectuais do Brasil. Pesquisadoras / es de várias regiões do país contribuíram para essa publicação com questões instigantes e demonstrando o aprofundamento e o refinamento das pesquisas sobre Gênero.

Lídia Possas nos brinda com um artigo excelente sobre a trajetória do GT Estudos de Gênero / ANPUH, recompondo através da memória, de documentos e falas, os fatos e acontecimentos deste grupo entre 2001- 2014. Em uma tentativa de pensar essa caminhada, nos damos conta do esforço da consolidação de espaço de um campo que lida justamente com as disputas de poder e as desigualdades na história.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares debate as narrativas visuais e as práticas de gênero nas artes gráficas criadas para a seção “O Menu do meu marido” veiculada pela Revista Feminina entre (1914-1936). No texto, as artes gráficas foram intencionalmente produzidas para criar símbolos e signos associados à modernidade, enquanto a seção ensinava a produzir refeições feitas pela esposa para o marido e seus filhos. As mudanças e contradições das relações de gênero, as práticas de viver, sentir e pensar e as ideias de modernidade, progresso e civilização convivem nas páginas de uma revista que era voltada para o público feminino.

Em “Notas sobre as representações do “feminino” nas páginas da revista Brasil-Oeste” de Eduardo de Melo Salgueiro incursionamos pelas páginas da publicação da revista Brasil-Oeste, mensário que circulou entre o período de 1956 e 1967, pensando nas representações das mulheres e da feminilidade deste periódico nacional que obteve até 1.500.00 exemplares editados.

Ana Maria Marques e Andréia Márcia Zattoni avançam no tempo, para discutir o feminismo e os debates no Centro da Mulher Brasileira (CMB) de 1975 e sua representação nas páginas da revista de informação semanal Veja no mesmo ano. A participação das mulheres e a resistência à ditadura militar são as temáticas que tornam esse artigo interessante, seja pelas contradições presentes nos diferentes órgãos de atuação, seja pela inevitabilidade da discussão da existência e participação de mulheres, inclusive exiladas, em um contexto de ditadura, mesmo que os discursos se apresentem de maneiras bastante diferenciadas.

A revista Veja é também pensado em outro artigo de Silvia Maria Fávero Arend e Douglas Josiel Voks intitulado: Revista Veja, masculinidades e consumo (década de 1970), na qual as masculinidades – categoria conceitual que se refina com as discussões sobre as relações de gênero e o feminismo – aparecem nas páginas da revista na década de 1970 através de uma indústria que vestia e gerava / dialogava com valores / produtos que passavam a representar os homens da classe média dos centros urbanos do país.

O tempo, esse senhor da narrativa do passado, volta para outra discussão feminista fundamental no texto de Elisângela Barbosa Cardoso, intitulado “Sufrágio, educação e trabalho: o feminismo na imprensa em Teresina nas décadas de 1920 e 1930”. O debate em Teresina nos mostra o alcance nacional das discussões feministas no Brasil, o que reforça o título deste dossiê, debates tensos e intensos na História de nosso país. O feminismo, muitas vezes, obliterado por uma narrativa tradicional, luta nas pesquisas atuais para ganhar espaço e visibilidade como fator de importância crucial para as mudanças sociais e das relações de gênero no país.

Acreditamos que esse dossiê veio para reafirmar nossa legitimidade enquanto campo de pesquisa e espaço de trabalho historiográfico. “tomar la palabra!”. Esperamos que todas / os aproveitem os debates e que estes gerem novas palavras, discussões e escritas sobre mulheres e homens que na experiência de suas vidas, criaram padrões, valores e uma lógica de existir cuja dimensão política requer mudanças na perspectiva de um mundo mais igualitário para homens e mulheres.

Nota

3. O GT Goiás é coordenado com a Profª. Dr.ª Eliane Martins de Freitas que não participa desta organização de dossiê em específico, mas é igualmente atuante em outros projetos desenvolvidos em Goiás.

Referências

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98, 2005.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o Gênero. Cadernos Pagu, Campinas / SP, n.11, p.89-98, 1998.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, p.71-99, jul. / dez. 1995.

Alcileide Cabral do Nascimento – Professora Doutora em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco; Coordenadora Nacional do Gt de Gênero ANPUH; Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Gênero / NUPEGE / UFRPE / CNPq.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares – Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em História e da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás; Coordenadora do GT regional de Gênero – Seção Goiás; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero / FH-UFG / CNPq.


NASCIMENTO, Alcileide Cabral do; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 19, n. 2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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