Pratiques funéraires et sociétés. Nouvelles approches en archéologie et en anthropologie sociale | L. Baray, P. Brun e A. Testart

O homem olha a morte com medo, curiosidade e reverência. Ela desperta, ao mesmo tempo, a sensação de termo e de recomeço, sendo interpretada de diversas formas pelas diferentes culturas e religiões ao longo de toda a história. De fato, o desconhecido e o âmbito do sobrenatural representados pela morte têm provocado e alimentado a imaginação humana em todas as sociedades e épocas. Inúmeros estudos de antropologia, sociologia e psicologia têm demonstrado que os enterramentos representam importantes marcos na vida social, porque pontuam a memória pessoal e coletiva, impõem uma ruptura na ordem social e suprem a necessidade de reorganização das relações pessoais e sociais ante a morte. Criam eles elos entre gerações presentes e pretéritas, fundando pontes entre o mundo dos mortos e dos vivos, dando a alguns mortos um lugar na memória e na vida de sua sociedade e a outros relegando ao total esquecimento e obliteração.

Os estudos sobre morte e funerais não são novidade na arqueologia francesa, nem tampouco nos estudos da Idade do Ferro Européia em geral. Em verdade, constituem os enterramentos o tipo de documentação arqueológica mais explorada e melhor conhecida, representando, pois, a base de nossos conhecimentos acerca dessas sociedades, sobretudo no que diz respeito à primeira Idade do Ferro na Europa Centro-Ocidental. Desde os primeiros inventários de monumentos publicados no século XIX que as tumbas em montículo, sobretudo as faustosas, têm despertado o interesse tanto de leigos quanto de pesquisadores profissionais. Então, assim como hoje, a pergunta central era a mesma: Como lidavam essas populações com a morte e com a perda de seus entes queridos, líderes e heróis?

A princípio, o principal foco de análise estava na descrição simples da forma e caráter desses enterramentos. Uma tal abordagem sempre se manteve aliada aos estudos de inventários locais e regionais, dominados pela descrição densa de sítios. Se por um lado não podemos dizer que essa abordagem tenha sido completamente descartada, por outro, é preciso destacar que novas abordagens foram se afirmando a partir dos anos 70, sobretudo ante os avanços das técnicas de análise e de novas metodologias de pesquisa, além das abordagens interdisciplinares. Essas se tornaram características da chamada “Nova Arqueologia”, onde a obra The Archaeology of Death (Chapman, Kinnes & Randsborg 1981) se tornou um dos grandes marcos. Seguia ela a trilha indicada pelos trabalhos de Ucko (1969) e Tainter (1978), que entendiam os enterramentos como prática social, para tanto defendendo o uso da etnografia para analisar os ritos e achados funerários, evitando, por conseguinte, uma análise simplista desses achados.

Na França, inúmeros foram os volumes e teses dedicados ao tema, tal como La Mort, les morts dans les sociétés anciénnes (Gnoli & Vernant 1982), e também inúmeros foram os congressos que o debateram; a exemplo dos colóquios Anthropologie physique et archéologie: méthodes d’étude des sépultures. Toulouse 1982 (Duday & Masset 1987), Monde des morts, monde des vivants en Gaule rurale. Orléans 1992 (Ferdière 2000), Archéologie de la mort, archéologie de la tombe au premier âge du Fer. XXIe colloque international de l’AFEAF, Conques – Montrozier 1997 (Dedet et al. 2000), e Archéologie des pratiques funéraires. Approches critiques. Glux-en-Glenne 2001 (Baray 2004), para só citar alguns. Mas, então, por quê novo evento sobre essa mesma temática? O quê, afinal, nos traz esta coletânea de novo?

Em poucas palavras: ação humana e abordagem interdisciplinar. Pode-se dizer que tal perspectiva não é em si uma inovação, mormente se considerarmos os trabalhos da academia de língua anglo-saxã, onde não só há um constante debate com a antropologia, como também uma ampla tradição de pesquisa acerca do que a morte nos diz sobre as sociedades viventes, isto é, acerca do que podemos inferir das sociedades a partir dos dados funerários; como postularam os trabalhos de Fleming (1972, 1973) para a pré-história inglesa (bem como todos que o sucederam – e não foram poucos) e, mais recentemente, para a Grécia Antiga, as publicações de Ian Morris (1987, 1992). Contudo, esses trabalhos não encontraram grande repercussão na arqueologia francesa, que até muito recentemente privilegiou abordagens dominadas por sítios e com poucos recursos ao diálogo com a antropologia. Assim é que a coletânea Pratiques funéraires et sociétés possui um forte diferencial.

Ela se originou de um seminário que reuniu etnólogos e arqueólogos no Laboratório de antropologia social do Collège de France, realizado em colaboração com a Unité Mixte de Recherche (UMR) Archéologie et Sciences de l’Antiquité (ArScAn) de Nanterre e a UMR 5594 Archéologie, Cultures et Sociétés de Dijon, de 2001 a 2003. Seu objetivo era aprofundar a compreensão do das práticas funerárias e seus usos e relevância sociais, trazendo um novo olhar que não estivesse preso tão somente às escavações. Contudo, como destacam os organizadores no prefácio da obra, a reflexão etnológica ficou restrita ao trabalho de Testart (pp.9-13), com os demais versando sobre a arqueologia funerária de diferentes períodos e sociedades, a saber: do Egito antigo (pp. 229-244, 245-256, 257-266), de Tell Shiukh Fawqâni (pp. 267-276, 277-284, 285-294), da Idade do Bronze em Oman (pp.295-319), da China da realeza Chu (pp.359-369), do México pré-colombiano (pp.371-390), de Fidji no séc. XIX (pp. 391-407), Chipre na Antigüidade e medievo (pp.409-415), da Antigüidade grega (pp.321-349, 351-358), da Europa mesolítica (pp.15-35) e neolítica (pp.37-67, 69-76, 77-90, 91-99), da França nas Idades do Bronze (pp.101-114, 115-132) e do Ferro (pp.133-154, 155-167, 169-189) e conquistada por Roma (pp.191-205, 207- 228).

A questão central desse amplo debate é: O que se pode dizer das sociedades a partir de seus vestígios funerários? Como destaca Testart (pp.9-10), uma tal pergunta apresenta grandes dificuldades de resposta. Primeiramente, por conta da grande diversidade de práticas funerárias e pelas diferenças de conhecimento e procedimento das próprias disciplinas, haja vista a resistência dos etnólogos em lidar com os dados materiais e também a raridade desses dados para as sociedades com que eles costumam lidar (p.9). Depois, porque, tradicionalmente, esse questionamento implicaria tratar de desigualdade social, produção, acúmulo ou redistribuição de riqueza, implicando que: a) no que se refere à construção das tumbas, que “…para a maior parte dos etnólogos e historiadores da religião (…) [se deveria a] razões religiosas” (p.10), mas que para os cientistas sociais aludiria também a questões sociais; b) no tocante aos depósitos funerários, se apresentaria o debate acerca deles como propriedade ou não do morto e de seu grupo de parentesco. Para responder a essas questões não se pode fazer conclusões preconcebidas ou descontextualizadas. Ao contrário, “é preciso hipóteses fortes, um conhecimento mínimo das variações etnográficas em matéria de política funerária e uma elaboração de critérios arqueológicos novos” (p.11). Logo esse o debate desse seminário, tal como de toda a arqueologia interpretativa, se coloca na definição dos limites de interpretação e dos critérios de análise e de comparação.

No tocante às sociedades celtas (área de concentração do presente periódico), nos interessam, particularmente os capítulos acerca da França proto-histórica e galoromana. Essas contribuições se dividem em dois grupos: 1) estudos de casos, 2) estudos regionais, e 3) reflexões amplas, propondo modelos gerais.

No primeiro grupo, encontramos dois trabalhos sobre necrópoles no Aisne, um sobre a região do Languedoc ocidental e outro sobre um caso de Luxembrugo. Le Guen e Pinard (pp.101-114) nos apresentam os resultados preliminares das práticas funerárias da necrópole da Idade do Bronze de Presles-et-Boves, “Les Bois Plantés” (Aisne). Com uma detalhada análise de antropologia física associada ao estudo da tipologia e cronologia dos demais depósitos, mostram eles a diversidade existente nas práticas de cremação dessa necrópole. Diferentemente, Desenne, Auxiette, Demoule e Thouvenot (155-167) fazem um estudo mais denso do caso da necrópole de Bucy-leLong “La Héronnière” no período de La Tène A (cerca de 475 a 300 a.C.), propondo a análise da forma das prática funerárias (considerando as etapas de preparação do morto, da tumba e dos depósitos) como via de percepção da estrutura social. Eles mostram que, se por um lado, os achados de Bucy-le-Long não diferem das demais necrópoles do vale do Aisne, por outro, eles se destacam pela maior concentração de tumbas com carros (quatro no total) – e por serem todas elas femininas; vale destacar que “na cultura do Aisne-Marne, só 5% das tumbas com carros (…) contêm um mobiliário claramente feminino” (p.166). Nessa necrópole, como no restante daquelas da Idade do Ferro francesa encontra-se uma combinação de práticas locais (com seleções específicas de objetos), aliadas a regras funerárias mais amplas, com a organização por grupos familiares e regras estipuladas de deposições funerárias.

Também tratando das necrópoles da Idade do Ferro, Florent Mazière (pp.133- 154) examina a questão da morte no sul da França a partir do caso do Languedoc ocidental no séc. VII a.C. Centrando suas observações na transformação social da passagem do bronze final para a Primeira Idade do Ferro, Mazière se debruça sobre a questão do aumento de complexidade social, a construção de uma sociedade fortemente hierarquizada e de uma chefia forte, se propondo a apontar as nuanças e complementos desse esquema tradicional. Para tanto, traçando um rápido balanço da documentação funerária dessa região e dos recentes trabalhos de escavação, Mazière vem mostrar como é possível ter um novo olhar acerca desses achados. Sua análise traça desde os detalhes das formas de enterramento e violação de tumbas ainda na Antigüidade até a emergência de uma pequena elite (cujos enterramentos se encontram nas proximidades das necrópoles tradicionais) e suas relações com o Mediterrâneo. Trata-se de abordagem que bebe na tradição, mas que também explora novas possibilidades; tem, pois, grande potencial e avança no debate.

Por outro lado, enveredando pelo período galo-romano, Polfer (pp.191-205) propõe uma reflexão sobre os problemas metodológicos para a análise social de enterramentos, tomando por base o estudo do caso da necrópole de Septfontaines (Luxemburgo). Dentre os pontos por ele levantados destaca-se o questionamento do postulado tradicional que considera os depósitos funerários como expressão direta da riqueza e do status sócio-político do morto quando em vida; ponto este também debatido por diversos contribuintes da presente coletânea e que se mostra de vital importância para os estudos de pré- e proto-história, onde não há documentação textual de época para contrapor-se à material.

No segundo grupo, encontramos, não por acaso, os trabalhos de Brun e Baray, que não apenas possuem vasta produção na área (o primeiro como grande nome da área de estudos proto-históricos franceses e o segundo que tem despontado desde idos de 2000 como especialista de práticas funerárias da Idade do Ferro francesa), mas que se destacam, sobremaneira, pela criação de modelos téoricos. Patrice Brun (pp.115- 132) propõe, aqui, uma reflexão sociológica mais ampla para as práticas funerárias da Europa da Idade do Bronze. Em verdade, ele vem debater alguns dos grandes problemas – e limitações – com que se deparam os arqueólogos ao analisar os vestígios funerários e suas implicações para a análise sociológica de sociedades da proto-história. Traçando um breve panorama das diferentes regiões européias na Idade do Bronze, Brun mostra que à primeira vista, apesar das trocas interregionais, deparamo-nos com fenômenos regionais que não estão interligados e não são interdependentes; donde, configuram variabilidades de hierarquização tanto a nível temporal quanto espacial. Porém, alerta ele que, numa análise macroscópica sincrônica (que por sinal é a marca de seu trabalho intelectual), temos um mesmo fenômeno: o aumento de complexidade social, com a formação de elites emergentes. Em linhas correlatas, Baray (pp.169-189) se propõe a compreender o aumento de complexidade e as transformações sociais na Europa ocidental da Idade do Ferro. Lançando mão de uma análise que correlaciona a materialidade dos depósitos e da questão da riqueza, Baray cria um modelo tripartite da riqueza na Europa ocidental da Idade do Ferro, calcado no prestigio e num sistema de clientela. Para ele, os depósitos funerários revelam não somente o estatuto do morto, mas, acima de tudo uma ideologia política. No seu próprio dizer, para o período da primeira Idade do Ferro (principalmente da segunda metade do séc.VI a.C. ao primeiro quartel do séc. V a.C.), “o depósito de riqueza age como metáfora do sucesso social do morto” (p.186). Assim, ele traça dois ideais funerários: o ideal do valor guerreiro e de competição sócio-política, que predomina nos enterramentos (do séc. VIII a meados do séc.VI a.C. e do segundo quartel do séc. V ao fim do séc.IV a.C.), e o ideal da sociabilidade e das redes de clientela personificadas pelo banquete, que vigora nos períodos de meados do séc.VI ao primeiro quartel do séc. V a.C. e do IIIº ao Iº séculos a.C.

A esses dois trabalhos, vem se unir a contribuição de Blaizot, Bonnet e Batigne Vallet (pp.207-228). Analisando o uso de depósitos de cerâmica em enterramentos galo-romanos, voltam-se eles para as práticas e gestos rituais; temática pouco explorada, posto que a maioria dos arqueólogos se preocupa mais com a questão desses depósitos como oferenda para o morto e expressão de sua condição estatutária (p.207). Para tanto, os autores não enveredam pelo tradicional exame da funcionalidade e qualidade dos vasos, preferindo, ao invés, tratar dos usos rituais desses objetos. Eles observam uma distinção entre depósitos primários (vasos com oferendas sólidas) e depósitos secundários (vasos com oferendas líquidas) (pp.209- 210), cuja deposição sugere uma seqüência de deposição na cerimônia fúnebre. Como esperado, eles mostram que os conjuntos de depósitos não são homogêneos na Gália romana e que vários desses artefatos passavam por um tratamento especial (queima, quebra ou mutilação) quando incluídos no depósito ritual (pp.218-220); procedimento de fato corrente em depósitos votivos e funerários em toda a Europa proto-histórica. Contudo, sua principal contribuição está em chamar a atenção dos pesquisadores para o fato de que os estudos cerâmicos podem nos fornecer mais dados do que somente a cronologia dos enterramentos ou o status do morto, permitindo-nos “reconstruir” parte significativa da seqüência ritual que envolvia atos de deposição. Como vários estudos recentes têm destacado, é na ação humana que se encontra nossa nova fronteira de pesquisa.

Apesar desse termo “ação humana” não estar claramente afirmado nessa obra, e de ainda estar pouco presente no debate acadêmico francês, ao contrário do anglosaxão onde tem proliferado a reflexão sobre o tema (cf. Dobres 2000, Gardner 2004), essa é, a nosso ver, a grande contribuição dessa coletânea. É em si um primeiro passo rumo a esse debate, procurando demonstrar que não é preciso abandonar os perfis tradicionais de pesquisa da arqueologia funerária francesa, mas sim associá-lo a novas formas de pensar e de inquirir os vestígios materiais.

Se retomarmos, então, a questão central desse livro, vemos que os trabalhos acerca das sociedades da proto-história da Europa ocidental vêm também nos chamar a atenção para o fato de que os enterramentos não devem ser vistos como um mero reflexo nem das crenças no Outro Mundo, nem da estrutura social ou das formas de sociabilidade. É preciso (e possível) ir além.

Referências

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DEDET, B., GRUAT, P., MARCHAND, G., PY, M., SCHWALLER, M. (eds.) Archéologie de la mort, archéologie de la tombe au premier âge du Fer. Actes du XXIe colloque international de l’AFEAF, Conques – Montrozier 8-11 mai 1997. Lattes, CNRS (Monographies d’Archéologie Méditerranéenne), 2000.

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FERDIÈRE, A. (ed.) Monde des morts, monde des vivants en Gaule rurale. Actes du Colloque ARCHÉA/AGER (Orléans, Conseil Régional, 7-9 février 1992). Tours, FÉRACF/LA SIMARRE, 2000.

FLEMING, A. Vision and Design: Approaches to Ceremonial Monument Typology. Man (N.S.) 7(1), 1972, pp. 57-73.

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GNOLI, G., VERNANT, J.P. (eds.) La Mort, les morts dans les sociétés anciénnes. Cambridge: Cambridge University Press & Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1982.

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Adriene Baron Tacla – Pós-doutoranda, LABECA MAE/USP. E-mail: [email protected]


BARAY, L., BRUN, P. et TESTART, A. (Eds.). Pratiques funéraires et sociétés. Nouvelles approches en archéologie et en anthropologie sociale. Dijon: Éditions Universitaires de Dijon, 2007. (Collection Art, Archéologie & Patrimoine). Resenha de: TACLA, Adriene Baron. Arqueologia funerária francesa: Novas perspectivas. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.8, n.1, p. 111-116, 2008. Acessar publicação original [DR]

Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe | R. Bradley

O conceito de “ritual” tem sido largamente debatido por antropólogos desde a criação da Antropologia como disciplina. Em arqueologia, o âmbito do ritual, bem como aquele da religião, foi, até recentemente, considerado como vago, impreciso, irracional e incerto, e, por conseguinte, amplamente evitado por grande parte dos arqueólogos. Em verdade, ritual era mais freqüentemente empregado sem claros critérios e aleatoriamente para nomear estruturas e achados cuja função era, a princípio, obscura para os arqueólogos, a ponto de se tornar “anedota” – tudo o que não tinha função prática aparente, passava, então, a ser designado como “ritualístico” (cf. Orme 218-19; Whitehouse 1996). A década de 90 trouxe, porém, um largo manancial de estudos, sobretudo na academia de língua anglo-saxã, preocupados com questões referentes à religião e às formas rituais, visando “reabilitar” o âmbito do ritual para a pesquisa acadêmica, rompendo com a visão do sagrado como epifenômeno e demonstrando sua relevância para a interpretação da cultura material. Entre os préhistoriadores, destacou-se sobremaneira o trabalho de Parker Pearson (1996) [1], que descortinou novas possibilidades de análise, tornando-se grande divisor de águas. Seguindo a linha de análise apontada por Parker Pearson, a tese de doutoramento de J.D. Hill (1995) tornou-se, sem sombra de dúvida, um marco no campo. Hill questionou profundamente os modelos de análise de hillforts para os assentamentos da Idade do Ferro em Wessex (Sul da Inglaterra). Refutando a idéia desses assentamentos como centros controladores da produção e de redistribuição nessas sociedades, propôs ele que tais assentamentos eram, em verdade, centros cerimoniais. Isto porque os depósitos em poços/covas nos assentamentos eram resultado de rituais e não de restos de lixo residencial, de modo que tais depósitos constituíram vias de ritualização da vida cotidiana.

É justamente na trilha indicada por Hill, que Bradley (doravante referido como B.), desenvolve seu Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe. Rompendo com a visão bipolar de “sagrado” x “profano”, “irracional” x “racional”, procura B. demonstrar a profunda relação entre o sagrado e a vida cotidiana, entre práticas rituais e a vida nos assentamentos da Europa pré-histórica desde o Neolítico até a Idade do Ferro. Fazendo uso dos trabalhos de Bell (1992) e de Humphrey e Laidlaw (1994), prefere ele, tal como Hill, o uso do conceito de “ritualização” ao de “ritual”, pois que se trata de prática, que, como define Bourdieu (1977), consiste em habitus, isto é, um conjunto de disposições habituais que define e in-forma as convenções sociais. Tal fornece ao pesquisador meios de compreender a performance ritual não como algo distante e/ou a parte do cotidiano, mas sim como permeando todas as instâncias da vida de uma comunidade.

Para tanto, B. estrutura seu argumento em sete capítulos, organizados em duas partes – “Parte 1 – a importância das coisas comuns” (capítulos 1 a 3) e “Parte 2 – onde incide a ênfase” (capítulos 4 a 7). Parte 1 consiste, em verdade, no desenvolvimento do artigo “A life less ordinary: the ritualisation of the domestic sphere in later prehistoric Europe” publicado por B. em 2003, e originalmente apresentado como palestra em Cambridge em 2002. No capítulo 1, B. define a problemática e abordagem teórica adotada no livro, propondo que, ao invés da tradicional distinção entre sítios sagrados e assentamentos, encontra-se, na Europa pré-histórica, uma união desses âmbitos. No capitulo 2 “A consagração da casa”, ele aponta como aspectos da vida doméstica (e, sobretudo, das estruturas de habitat) da Europa pré-histórica estão marcados por um significado ritual que os distingue e torna não-ordinários, a ponto de em Heuneburg o local de uma habitação de alto status ter sido utilizado como base para a construção de um montículo funerário (p. 57). No capitulo 3 “Uma questão de Cuidado”, ele demonstra como “na pré-história, o ritual deu à vida doméstica sua força, e [como], em retorno, a vida doméstica proveu uma organização de referência para rituais públicos. [Donde,] ritual e vida doméstica (…) formavam duas camadas que parecem ter sido precisamente superimpostas” (p.120).

A parte 2 procura, então, pontuar: 1) os contextos e locais onde tal superposição pode ser encontrada: agricultura (cap. 4), enterramentos, depósitos votivos e metalurgia (cap. 5); e 2) as performances de rituais públicos e rituais domésticos (cap.6). Neste último, B. mostra ser impossível traçar uma distinção entre oferendas rituais e o conjunto doméstico, posto que as atividades em assentamentos, monumentos e santuários não estavam dissociadas e seguiam o mesmo padrão.

A título de conclusão, o capítulo 7 desvenda novos pontos a serem abordados em pesquisas futuras seguindo esta forma de abordagem. Primeiramente, a transformação da relação homem-ambiente e da noção de propriedade com o desenvolvimento do processo de domesticação e sedentarização das sociedades pré-históricas européias. Depois, a inter-relação entre assentamentos, monumentos e santuários, a construção de enterramentos sobre assentamentos e/ou terras aráveis nas Ilhas Britânicas (no continente, ao contrário, os enterramentos encontram-se em terras não-aráveis), e o significado dos celeiros e poços de estocagem de alimentos, bem como sua relação com o sagrado, isto é, com a arquitetura de certas fontes sagradas e com os enterramentos em poços (muitas vezes realizados em antigos poços de estoque de grãos, haja vista os achados de Danebury). Finalmente, alerta ele para a necessidade de futura reflexão acerca das categorias teóricas empregadas para o estudo tanto da esfera ritual quanto da doméstica.

B. vem, com maestria, unir pontos que têm sido amplamente debatidos para o estudo das sociedades “pré-históricas” européias na academia de língua inglesa, a saber: 1) entender que ritual não se encontra vinculado tão somente à religião, mas que permeia toda a vida de uma sociedade; 2) a necessidade de compreender que grande parte dos achados arqueológicos de que dispomos advêm de contextos rituais (não somente em santuários e enterramentos, mas em fundações de casas, atividades artesanais, poços de estocagem e extração); e 3) a necessidade de abandonarmos a lógica simplista do “utilitário” x “simbólico” na interpretação desses achados.

Eis, pois, que uma nova forma de abordagem se consolida, oferecendo-nos a possibilidade de compreender as estruturas de assentamentos através de um viés menos simplista, menos corriqueiro, ressaltando, no dizer de B. (2003), “uma vida menos ordinária”.

Nota

1 Apesar de só ter sido publicado em 1996, este trabalho circulou entre os colegas ingleses desde 1990, causando grande impacto (Woodward 2002: 71).

Referências

BELL, C. Ritual Theory, Ritual Practice. New York/ Oxford: Oxford University Press, 1992.

BOURDIEU, P. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press, Cambridge studies in social anthropology – 16, 1977.

BRADLEY, R. A life less ordinary: the ritualisation of the domestic sphere in later prehistoric Europe. Cambridge Archaeological Journal 13 (1), 2003, pp. 5-23.

HILL, J.D. Ritual and Rubbish in the Iron Age of Wessex: a Study on the Formation of a Specific Archaeological Record. Oxford: Tempus Reparatum, BAR British Series 242, 1995.

HUMPHREY, C. & LAIDLAW, J. The Archetypal Actions of Ritual: A Theory of Ritual Illustrated by the Jain Rite of Worship. Oxford: Clarendon Press, 1994.

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Adriene Baron Tacla – Doutoranda em Arqueologia St Cross College, Oxford. E-mail: [email protected]


BRADLEY, R. Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe. London: Routledge, 2005. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. Práticas Rituais e Assentamentos Pré-históricos na Europa. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 57-59, 2006. Acessar publicação original [DR]

Territoires Celtiques – Espaces ethniques des agglomérations protohistoriques d’Europe occidentale | D. Garcia e F. Verdin

Desde a década de 70, a partir das transformações na geografia, do diálogo com a história e a antropologia, bem como do surgimento de novas formas e técnicas de análise com o uso de SGI (Sistema Geográfico de Informação), o estudo do espaço e da paisagem despontou como área de interesse para a arqueologia. Encontrando fértil terreno, sobretudo nos países de língua anglo-saxã, veio ele a se consolidar nos anos 90 como área de debate e especialização sob a forma de ‘arqueologia da paisagem’. Tendo por base a relação homem-ambiente, o estudo das formas de apropriação da paisagem tem contribuído largamente para o desenvolvimento da análise das sociedades ditas “pré-históricas”, apontando novas perspectivas para a compreensão da dinâmica dos assentamentos e das práticas sociais e religiosas de tais populações.

O livro ‘Territoires celtiques. Espaces ethniques et territoires des agglomérations protohistoriques d’Europe occidentale’, organizado por Dominique Garcia e Florence Verdin, vem no bojo dessa transformação reunir pela primeira vez especialistas que não de língua inglesa para discutir a questão da interação humana com o ambiente e o espaço sob a forma de ordenação do território e, portanto, da paisagem nas sociedades pré-históricas da Europa ocidental. Consiste esta obra, em verdade, no resultado do ‘XXIV e colloque international de l’AFEAF. Martigues, 1-4 juin 2000’, onde ‘territórios dos assentamentos e dos povos proto-históricos da Europa ocidental’ constituiu o tema geral de debate com apresentação de vinte e dois artigos em contraposição a oito trabalhos em torno do tema regional ‘territórios étnicos e territórios cívicos no sudeste da Gália: permanência e mutação (sécs. II a.C. – II d.C.)’. Reúne ele, pois, especialistas franceses, espanhóis, suíços, alemães e belgas a tratar do estado atual da pesquisa arqueológica acerca da construção do território em diversas regiões da Europa ocidental a partir de diferentes metodologias de análise e teorias interpretativas.

Abrindo o volume, Philippe Leveau apresenta um balanço das linhas de estudo e abordagem do território, traçando a trajetória do termo e, tendo por base o contraponto com as sociedades greco-romanas, suas implicações políticas, étnicas ou cívicas. Porém, ao contrário do que se poderia supor, não está ele a propor a definição de fronteiras políticas estáveis de Estados tradicionais na Antigüidade, mas sim compreender a dinâmica dos territórios, apontando diferentes formas de uso do espaço e da paisagem. Conforme aponta o autor, mais do que um debate, apresenta-se aos pesquisadores o desenvolvimento do conhecimento arqueológico não só dos assentamentos, mas, sobretudo, da zona rural, que só recentemente, ainda que de forma restrita, começou a ser explorada.

Em verdade, esta obra procura pontuar os avanços do conhecimento e da prática arqueológica para a compreensão dos sítios e artefatos em relação aos locais onde foram encontrados. Assim é que a maior parte dos artigos concentra-se em estudos de caso ou estudos regionais, analisando a construção e a dinâmica territorial em regiões da Península Ibérica, França, Suíça, Alemanha e Bélgica, abrangendo desde o período do Bronze final até o período romano. Fazendo uso de diferentes métodos de análise – desde os polígonos de Thiessen até SGI, procuram os autores contribuir com estudos que combinam as mais diversas formas de documentos (assentamentos, enterramentos, cerâmica, numismática, epigrafia, depósitos votivos, santuários, textos clássicos e toponímia), dando uma noção de conjunto e complementaridade dos sítios e achados.

No entanto, não se pode dizer que haja um caráter uníssono nas contribuições (neste sentido, muito se lamenta a ausência das discussões na publicação). Por exemplo, os trabalhos de R. Plana Mallart e A. M. Ortega, de J. Sanmartí, e de C. Belarte e J. Noguera abordam a questão do território de sítios ibéricos segundo uma abordagem de cunho mais tradicional, que supõe a estruturação deste a partir da criação de lugares centrais (segundo a teoria de Christaller) que dominam vastas regiões (modelo/método dos polígonos de Thiessen), controlando vias de comunicação, a produção e toda uma hierarquia de assentamentos.

Dentre os numerosos artigos acerca das sociedades gaulesas, há igualmente uma predominância desta sorte de interpretação. Patrice Brun, em sua análise do território dos Suessiones, também emprega o método dos polígonos de Thiessen e o modelo de lugares centrais a fim de identificar a dinâmica do território dos Suessiones durante os séculos II e I a.C. Entende ele que os oppida constituiriam o centro de estruturação do território, constituindo um “… nó de redes econômicas, políticas, ideológicas que asseguram a coesão territorial” (p.313).

De forma um tanto diferente, Dominique Garcia faz um balanço das transformações do território no sul da Gália desde o Bronze final até fins da Idade do Ferro, traçando uma evolução do território, inicialmente ‘… pouco hierarquizado (…), descontínuo e temporário’ (p.91), sendo depois, durante a primeira Idade do Ferro, transformado em vastos territórios étnicos que sofreram profundas mudanças com a fundação de Massalía. Para a autora, o interesse massaliota no controle tanto da costa quanto da rota rodaniana altera a ordenação do território das populações indígenas da Gália meridional, ocasionando a criação de assentamentos ao longo dos rios e instigando, no seu entender, uma “urbanização” (pp.95-96). Em verdade, defende ela que tal fenômeno se deveria “… a uma evolução da organização social das populações indígenas (…), bem como da participação dos gauleses do sul na rede comercial mediterrânea” (p.100).

Já autores como Büchsenschütz, através do caso dos Bituriges, e Gruat e IzacImbert, com a análise do território dos Rutênios, procuram fazer uso de novos recursos e vertentes, aproximando-se da produção de linha anglo-saxã. Todavia, mesmo esses trabalhos não se desvencilham totalmente do modelo de lugares centrais a dominar e estruturar o território. Isso se deve em parte a uma limitação da documentação arqueológica, e parte ao uso de uma hierarquização tipológica das formas de assentamento.

Uma interessante contribuição para questionar os modelos generalizantes, em particular o monolitismo dos ‘lugares centrais’, é apresentada no artigo de P. Jud e G. Kaenel. Trabalhando com o caso das populações do Platô Suíço e sul do Reno na segunda Idade do Ferro ao início do império romano, eles demonstram a existência de três formas de ordenação do território, duas delas em regiões atribuídas aos Helvetes – na parte ocidental do Platô Suíço uma ocupação mais complexa, fortemente estruturada por meio da criação de pontes e rotas, santuários e numerosos oppida, enquanto no leste do Platô Suíço, ao contrário, não se verifica tão forte organização do território. Por outro lado, na região sul do Reno, atribuída aos Rauraci, revela-se uma ordenação do território com habitats fortificados localizados na periferia do território, assegurando suas fronteiras e o controle de vias de passagem essenciais para o eixo renaniano (p.304).

Vale, aqui, igualmente contrapor dois trabalhos que enfocam a relação entre território e enterramentos. Thierry Janin empreende uma análise das necrópoles e do espaço geográfico no Languedoc ocidental na primeira Idade do Ferro segundo uma ‘economia de bens de prestígio’, onde o processo de hierarquização promove a criação de centros ‘proto-urbanos’, que, por sua vez, vêm a estruturar o território dessas populações. Por outro lado, Laurent Olivier, Bruno Wirtz e Bertrand Triboulot, ao analisar os ‘Conjuntos funerários e territórios do domínio hallstattiano ocidental’, questionam as formas de análise espacial tradicionalmente empregadas na arqueologia, propondo, em seu lugar, o uso do conceito de informação espacial, obtido a partir do cálculo da combinação de atributos dos contextos funerários em estudo. Este método, que vai além dos métodos estatísticos geralmente empregados, permite traçar a posição e extensão dos grupos culturais e a agregação de suas necrópoles. Donde por meio de uma análise espacial aprofundada, propõem eles um estudo da distribuição e projeção territorial das populações da Idade do Ferro na Europa centro-ocidental.

Fechando a obra, Alain Daubigney articula um balanço das interpretações teóricas acerca da organização territorial e política aplicadas ao estudo do Bronze final e início da Idade do Ferro (até Hallstatt C) na França e na Europa ocidental, demonstrando a existência de elites locais emergentes controlando os territórios tribais.

Em verdade, evidencia-se, nesta obra, o conflito de paradigmas que hoje marca o estudo das sociedades “pré-históricas” européias. De um lado, as tradicionais abordagens estruturalistas, os modelos e métodos homogeneizantes amplamente empregados pela arqueologia processual, que mascaram as singularidades locais. De outro, temos as abordagens pós-processuais, chamando nossa atenção para estudos não generalizantes e uso de métodos que nos permitam analisar essas sociedades de forma mais aprofundada, enveredando pela dinâmica local.

Aqui, esse embate aparece de forma um tanto restrita, pois que a grande maioria dos autores se encontra parte ainda fortemente presa aos grandes modelos explicativos, e parte seduzida pelas possibilidades abertas por novas tecnologias e meios de análise da documentação. Trata-se, portanto, de um debate em aberto, e nem por isso menos fascinante.

Adriene Baron Tacla – Doutoranda em arqueologia Institute of Archaeology, University of Oxford. E-mail: [email protected]


GARCIA, D.; VERDIN, F. (eds.) Territoires Celtiques – Espaces ethniques des agglomérations protohistoriques d’Europe occidentale. Paris: Editions Errance, 2002. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. Territórios celtas. Um debate acerca da relação entre paisagem, poder e religião. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.1, p. 103-105, 2004. Acessar publicação original [DR]

Les Princes de la Protohistoire et l’Émergence de l’État | Pascal Ruby

Les Princes de la Protohistoire et l’émergence de l’État vem nos trazer o resultado da Table Ronde Internationale de Naples, organizada pelo Centro Jean Bérard e pela Escola Francesa de Roma em 1994, com o intuito de reunir arqueólogos e historiadores interessados em debater a questão do “poder” e da formação de “Estados” na pré-história, demonstrando que tais questões não são exclusividade das sociedades modernas e que as sociedades pré-históricas tampouco podem ser consideradas como “sociedades sem história”.

Os debates aqui apresentados fundamentam-se, sobretudo, na estreita relação entre a arqueologia e as ciências sociais para o estudo dos fenômenos evidenciados a partir da cultura material, tendo como preocupação central a emergência de “Estados tradicionais” e as desigualdades sociais, econômicas e políticas encontradas em tais sociedades. Não se trata, tão somente, de centralizar-se as discussões em torno do aumento de complexidade social, da mudança de “estágios”, como muitas vezes tem sido abordada essa questão, mas, em especial, de apontar outras possibilidades de interpretação dessas questões, indo além da dicotomia “sociedades de chefia” versus “Estados”. Mais do que explorar “… a validade (…) de um modelo evolucionista único, que faria dos ‘príncipes’ uma etapa necessária e suficiente, que, inevitavelmente, precede a emergência do Estado…” (p.7) ou do que avaliar o modelo de “sistema mundial”, visava-se aprofundar o diálogo acerca do “fenômeno principesco”, destacando outras perspectivas e formas de abordagem.

Contudo, isso não significa que tais questionamentos tenham sido abandonados (haja vista o acalorado debate que perdura entre Patrice Brun e Michael Dietler sobre as chefias celtas da Europa central durante a Idade do Ferro (1)), mas sim que esteja buscando outras teorias, a fim de diversificar o debate, afastando os pesquisadores da hegemonia de um modelo teórico. Assim, os trabalhos contidos neste livro priorizam três pontos: o reconhecimento do fenômeno principesco; a articulação das dimensões simbólicas, imaginárias e reais deste fenômeno principesco e a instabilidade característica deste fenômeno e suas possíveis relações com a formação dos Estados, apontando questões teóricas e sua aplicação ao caso das sociedades da Península Ibérica, helênica, etrusca, hallstattianas, cita, africanas e polinésias, destacando a diversidade do fenômeno principesco e as singularidades regionais.

Esse encontro veio, então, contribuir, por um lado, para a contenda acerca das categorias conceituais usualmente empregadas para o estudo das sociedades ditas “pré-históricas” (mormente aquelas da Idade do Ferro) e sua disparidade ou imprecisão com relação às especificidades históricas de cada uma dessas sociedades e, por outro, para indicar outras vias de análise, que abarquem quer o conflito e a instabilidade no seio dessas sociedades (pouco abordado até então), quer a dimensão simbólica do poder, sua relação com o sagrado, os rituais e a construção da coesão social (fundamentais para alicerçar o poder político).

No que tange aos Estudos Célticos, tal discussão se revela assaz importante, uma vez que a maior parte dos estudos tem sido norteada pelo debate acerca dos processos de hierarquização e de institucionalização da chefia e de emergência de Estado, havendo uma hegemonia, até hoje pouco questionada, do modelo de “sistema mundial”; o qual é defendido, neste livro, por Patrice Brun, no capítulo A gênese do Estado: as contribuições da arqueologia e por Jean-Paul Demoule, em A sociedade contra os príncipes. Este último, no entanto, apesar de se manter vinculado ao modelo de “sistema mundial” e à concepção de que as mudanças verificadas nas sociedades hallstattianas se devem ao contato com o Mediterrâneo e ao controle do acesso aos bens de prestígio importados, ao levantar temas como “conflito”, “manipulações ideológicas”, “monopólios do imaginário”, “violência do poder” e “resistência ao poder”, contribui para ampliar os questionamentos a propósito do poder nas sociedades celtas da Idade do Ferro, principalmente sobre a institucionalização da chefia nas tribos hallstattianas e a emergência de Estados em fins do período lateniano na Europa centro-ocidental.

Por outro lado, consideramos de suma relevância nos afastarmos da supremacia desse modelo, trazendo para este debate o âmbito do simbólico e do sagrado a fim de que possamos ampliar nosso conhecimento sobre essas sociedades, tal como no caso dos capítulos de Michael Dietler, Rituais de comensalidade e a política de formação do Estado nas sociedades “princiescas” do início da Idade do Ferro, e Michael Rowlands, A economia cultural do poder sagrado. O primeiro, centra-se no estudo da “dimensão política dos rituais de comensalidade” marcados nos achados dos assentamentos da zona ocidental de Hallstatt, estabelecendo a relação entre as práticas rituais e o processo de hierarquização e fortalecimento da chefia nas tribos hallstattianas, demonstrando serem elas instrumentos fundamentais para o desenvolvimento de tais processos. O segundo, apesar de trabalhar com as regiões ocidentais de Camarões, renova o debate acerca do “poder sagrado” com sua proposta de “economia sacrificial”, de modo a nos permitir alargar a reflexão a respeito da relação entre o poder e as práticas rituais, enfocando a necessidade de se enveredar por uma abordagem que não ignore a dimensão ritual/ simbólica, nem tampouco se limite a reproduzir categorias ocidentais/ não-ocidentais.

De modo geral, a questão do simbólico permeia a maior parte dos trabalhos apresentados neste encontro de Nápoles, destacando-se como um dos aspectos centrais para a análise do poder, das práticas políticas e da própria formação dos Estados nas sociedades pré-históricas, mostrando ser necessário abarcarmos não somente aspectos sociais, políticos e econômicos, mas, também, culturais, sem os quais não nos será possível aprofundar o debate acerca do fenômeno principesco nessas sociedades.

Nota

1. Sobre este debate, além dos trabalhos de Dietler e Brun presentes neste livro, ver: ARNOLD, B. and GIBSON, D.B. (eds.) Celtic Chiefdom, Celtic State. Cambridge: Cambridge University Press, New Directions in Archaeology, 1995; BRUN, Patrice. Contacts entre colons et indigènes au milieu du Ier millénaire av. J-C. en Europe. Journal of European Archaeology, 3 (2), 1995: 113-123; DIETLER, Michael. The Cup of Gyptis: rethinking the colonial encounter in early-Iron-Age western Europe and the relevance of world-systems models. Journal of European Archaeology 3(2), 1995: 89-111.

Adriene Baron Tacla – Probationer Research Student Institute of Archaeology, University of Oxford. E-mail: [email protected]


RUBY, Pascal (Dir.) Les Princes de la Protohistoire et l’Émergence de l’État. Naples-Rome: Centre Jean Bérard/École Française de Rome, 1999. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. O Fenômeno Principesco e a Emergência do Estado. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.1, p.75-76, 2001. Acessar publicação original [DR]