Key Thinkers of the Radical Right | Mark Sedgwick

SEDGWICK M Radical Right
SEDWICK Mark. Foto: Rascunho.com /

SEDGWICK M Key thinkers of the radical right Radical RightQuando pensamos em uma direita radical, podemos imaginar skinheads e neonazistas usando suásticas. Existem, porém, intelectuais da direita radical que ocupam um espaço cada vez mais relevante e, embora alguns tenham explicitamente apoiado nazistas e fascistas, outros, de fato ou retoricamente, se afastam dos estereótipos mencionados. O livro organizado por Mark Sedgwick, historiador especializado no estudo do tradicionalismo, islamismo, misticismo sufi e terrorismo, busca expor, de forma sintética, os pontos centrais do pensamento de 16 intelectuais ligados à direita radical.

Cada capítulo é escrito por um autor diferente e dedicado a um dos intelectuais, passando por autores clássicos, da chamada Nouvelle Droite, identitários, libertarianos (ou libertários), neoconservadores, paleoconservadores, contrajihadistas, neorreacionários e a denominada alt right.

É importante ressaltar que a obra não é uma apologia dos pensamentos desses formadores de opinião da direita radical, mas uma relevante ferramenta para compreender os argumentos, posicionamentos e táticas desse campo ideológico bastante plural, uma vez que é possível verificar no decorrer do livro uma variação muito grande de pensamento e uma forte discordância entre os autores, o que serve para demonstrar as nuances existentes dentro da direita radical, a qual poderia ser considerada, erroneamente, como monolítica.

O livro é dividido em três partes: Classic Thinkers, Modern Thinkers e Emergent Thinkers. O primeiro capítulo aborda quatro pensadores clássicos: Oswald Spengler, Ernst Jünger, Carl Schmitt e Julius Evola. Todos, exceto Spengler, produziram durante o período em que o nazismo alemão e o fascismo italiano estavam no poder, mas apenas Schmitt foi um membro ativo do partido nazista, enquanto Evola teve aproximações com nazistas e fascistas.

A obra mais conhecida de Spengler [2] é “O declínio do Ocidente” cujo primeiro volume foi publicado logo após o final da Primeira Guerra Mundial. A filosofia histórica de Spengler era baseada em dois pontos: a existência de entidades sociais chamadas de “culturas” como os maiores atores da história, sendo que esta não possuiria objetivo ou sentido metafísico. O segundo ponto é que a evolução dessas culturas corresponderia aos estágios de um ser vivo, tendo uma infância, juventude, idade viril e velhice. A cultura ocidental teria adentrado seu último estágio com a ascensão de Napoleão e as ideias calcadas na tecnologia, expansão, imperialismo e sociedade de massas. Seu declínio se daria a partir do ano 2000. Esse pensamento é responsável por duas ideias importantes da direita radical: a visão apocalíptica de um declínio e o foco em culturas e civilizações em detrimento de nações ou Estados.

Jünger [3], por sua vez, possui como obra de destaque In Stahlgewittern (Tempestades de aço), uma memória de sua participação na Primeira Guerra Mundial e que apresentava um olhar sobre sua atuação na guerra, apresentada como heroica e masculina. Na sua visão, a guerra trazia os homens de volta a um estado natural, revelando os ritmos primordiais violentos da vida que ficavam abaixo do verniz da civilização. As suas ideias de virilidade e luta, bem como uma construção posterior de que a única forma de se proteger de demagogos e tiranos que manipulavam a tecnologia para atingir as massas seria se afastar para um “eu autônomo”, ou, como Jünger coloca, um Anarco, repercutem até hoje nos meios da direita radical.

O jurista alemão Carl Schmitt [4] talvez seja o mais conhecido fora dos círculos de direita, uma vez que foi considerado o jurista principal do nacional-socialismo. Sua maior contribuição para a direita radical é sua distinção entre amigo e inimigo, nós e eles, um pensamento binário ainda facilmente encontrado na retórica extremista. Schmitt também opôs dois conceitos, o “Estado de Normalidade” e o “Estado de Exceção” para argumentar que, em certos casos, seria necessário um governo ditatorial para representar uma comunidade política através de decretos, não da lei, como forma de estabilizar as relações legais. Obviamente esses argumentos possuíam um potencial antidemocrático e foram utilizados pelos nazistas.

O italiano Julius Evola [5] tem forte ligação com o tradicionalismo no sentido dado pelo francês René Guénon [6], apesar de possuírem pontos de discordância. Seu estudo do tradicionalismo é mais bem refletido em sua obra “Revolta contra o mundo moderno”. A tradição integral derivaria de um perenialismo no qual todas as visões metafísicas de mundo e as mais importantes religiões seriam teriam uma origem divina, imutável e inquestionável. O mundo moderno, caracterizado pela civilização ocidental, tecnologia e baseado no materialis materialismo, seria “vindo de baixo”, o exato contrário da tradição. O tradicionalismo poderia ser visto em suas últimas luzes no catolicismo medieval, entrando em declínio durante a Renascença e, especialmente, após a Revolução Francesa. O mundo estaria, portanto, em declínio, e uma recuperação só seria possível após o colapso do mundo moderno, ou seja, seria necessário “cavalgar o tigre” (Cavalcare la tigre, título de sua obra pós-guerra) até que ele desabe.

A segunda parte do livro, destinada aos pensadores modernos, inicia com dois autores franceses ligados à Nova Direita (Nouvelle Droite), Alain de Benoist e Guillaume Faye. De Benoist [7], autodeclarado pagão, assim como Evola, publicou 106 livros e mais de 2 mil artigos. Após a independência da Argélia, de Benoist decidiu deixar de lado o ativismo nas ruas, visto como inútil, e focar na metapolítica, retirando do comunista Antonio Gramsci a ideia de que a hegemonia ideológica é a condição da vitória política. Assim, se alguém quer que suas ideias modelem a sociedade, é necessário trabalhar no plano das ideias antes.

As bases principais nas obras escritas por de Benoist podem ser sumarizadas em três pontos: primeiramente, a crítica à primazia dos direitos individuais, que seriam uma consequência do humanismo do século XVIII e resumidos nas Revoluções Americana e Francesa. A segundo base é que o perigo central que o mundo estaria enfrentando poderia ser visto na hegemonia do capital e na busca de interesses próprios. Sua crítica ao capital não deve ser tomada em um sentido marxista, mas dentro da tradição anticapitalista nacionalista, uma vez que o risco do consumismo e do livre mercado seria o apagamento das identidades dos povos. Por fim, o terceiro ponto é sua oposição ao Estado-nação, favorecendo a ideia de uma Europa federalizada com o reconhecimento de comunidades baseadas na etnia, linguagem, religião ou gênero.

Faye [8], por sua vez, contribuiu para a direita radical com o que chamou de “arqueofuturismo”, a aceitação dos avanços científicos e tecnológicos combinada com uma sociedade que permaneceria tradicional. Após considerar os regimes árabes como aliados naturais da França e criticar o papel dos EUA, Faye se transformou em um defensor do nativismo, discursando contra a imigração e os muçulmanos e em defesa dos interesses étnicos europeus. Os imigrantes estariam colonizando a Europa através de altos índices de natalidade, impondo uma substituição étnica. Seguindo uma ideia pseudodarwinista, a luta pela sobrevivência se daria no plano das civilizações.

Os três autores seguintes explorados no livro são norte-americanos: Gottfried, Buchanan e Taylor. Os dois primeiros são conhecidos paleoconservadores, sendo que Gottfried [9] se destaca pela sua desconfiança em relação às elites globais que, segundo ele, suportariam um “Estado gerencial” contrário às bases tradicionais da sociedade, aproximando-se, portanto, do tradicionalismo.

Buchanan [10] assemelha-se a Gottfried na visão de que a sociedade norte-americana é baseada na sua história e na herança europeia branca, não em princípios universais abstratos. É possível verificar uma visão apocalíptica em seu pensamento, especialmente em sua obra principal, The Death of the West, segundo a qual os EUA e os países europeus estariam na linha de frente de um ataque. Os europeus (brancos) estariam enfrentando uma ameaça comparável à peste negra, uma vez que as taxas de natalidade teriam caído drasticamente. Um dos culpados por essa decadência seria o feminismo, que, somado a outras formas de ataques culturais à tradição ocidental, poderia ser ligado a pessoas com objetivos marxistas ou à Escola de Frankfurt, a qual Buchanan considera um suspeito principal. Sua combinação de um comunitarismo europeu branco, hostilidade às elites globais que não dariam importância às raízes locais e preocupação com a imigração mexicana nos EUA teve impacto nas eleições norte-americanas de 2016.

Jared Taylor [11], de seu lado, possui um foco quase exclusivo na questão racial. Apesar de acreditar em fatores culturais e históricos, Taylor enfatiza o papel da genética e das raças nos tipos de sociedades existentes. Uma das intenções de Taylor é fazer com que as pessoas brancas possam se expressar em relação a si mesmas e à questão racial sem ser demonizadas em relação a isso. Vendo como imprescindível para a nação uma homogeneidade cultural, racial e linguística, argumenta que a maior preocupação nos EUA deveria ser a limitação ou impedimento da imigração de não brancos.

O autor abordado na sequência é Alexander Duguin [12], conhecido ideólogo russo que mistura doutrinas diversas, passando pelo tradicionalismo, a nova direita francesa e o eurasianismo, pregando uma renovação do nacionalismo russo por meio das tradições europeias. Para isso, seu pensamento se apoia em dois conceitos-chave: a questão da Eurásia, através da qual Duguin acredita no papel central da Rússia como Estado e da Eurásia como civilização capaz de regenerar a nação russa. Em segundo lugar, o conceito de uma revolução conservadora. Ao contrário de prezar mudanças graduais, Duguin acredita em uma revolução conservadora para se opor ao liberalismo e avançar as pautas conservadoras. No seu livro The Fourth Political Theory, ele renuncia ao que chama de segunda e terceira teorias políticas (comunismo e nacionalismo/ fascismo) e considera o liberalismo uma ideologia totalitária em virtude de seu caráter normativo. A quarta teoria política viria para negar a modernidade como um todo. Duguin talvez tenha mais impacto fora da Rússia do que dentro, tendo inclusive participado de um debate online com Olavo de Carvalho em 2011.

A última autora abordada é Bat Ye’or [13], proeminente contrajihadista que descreve a existência de uma conspiração envolvendo a União Europeia e países de maioria muçulmana do norte da África e Oriente Médio que buscariam estabelecer o controle muçulmano da Europa, ou “Eurábia”. Seu trabalho inspirou o terrorista de extrema-direita Anders Breivik na Noruega e continua a ser debatido no campo da direita radical em relação a uma “islamização” da Europa.

A terceira e última parte do livro diz respeito aos pensadores emergentes, mais jovens que os tratados anteriormente e que propagam suas ideias principalmente através da internet. Dos cinco autores tratados, quatro são norte-americanos e um é sueco, o que revela que a direita radical europeia ainda está dominada por pensadores da geração anterior, especialmente ligados à nova direita francesa e Duguin.

Mencius Moldbug [14], apelido de Curtis Yarvin, é um ex-libertariano (ou libertário, como preferem se autodenominar no Brasil) que prega a necessidade de se livrar do “controle de pensamento” feito por uma elite progressista e rejeitar o “vírus” da democracia, fazendo uma fusão entre o libertarianismo radical e o autoritarismo no que denomina “neorreação”. O regresso a uma autoridade e hierarquia contra a democracia e o igualitarismo poderia salvar a sociedade do seu declínio. Sua utopia envolve liberdade máxima, exceto na política. A ordem econômica seria gerida por uma sociedade inteiramente privatizada, enquanto a ordem política teria o modelo de uma corporação, com o Estado privatizado encabeçado por um CEO-monarca eleito por grandes proprietários.

Apesar de suas ideias parecerem esdrúxulas, Moldbug possui contatos com o site Breitbart, Steve Bannon e o bilionário Peter Thiel, além de ter boa inserção nos meios jovens ligados à tecnologia, bem como na alt right.

Greg Johnson [15], por sua vez, também esteve próximo do libertarianismo e é editor-chefe do site Counter–Currents, que se propõe a criticar a liberdade liberal na América do Norte à luz do tradicionalismo e das ideias da nova direita europeia. Johnson é mais um pensador que foca seus esforços na questão da metapolítica, visando criar um movimento cultural e intelectual que seja capaz de promover mudanças políticas reais e, finalmente, o estabelecimento de um etno-Estado branco, uma vez que ele é defensor de uma etnopluralidade, segundo a qual todas as raças e etnias deveriam ter sua própria pátria. Johnson é o único entre os autores modernos e emergentes que expressamente revela simpatia pelo nazismo.

O terceiro pensador emergente tratado é o conhecido Richard Spencer [16], presidente do National Policy Institute, um think tank nacionalista branco fundado pelo multimilionário William Regnery II. Spencer se diz responsável pela criação do termo “alt right”. Tamir Bar-On, autor do capítulo sobre Spencer, sintetiza os contornos do seu pensamento:

Uso da internet como o principal veículo para provocar tanto conservadores quanto liberais com ideias e linguagem politicamente incorretas; rejeição do multiculturalismo liberal; desdém pelo capitalismo, já que ele tem a tendência de homogeneizar diversos povos e culturas; apoio a comunidades políticas unidas a identidades europeias brancas; o desafio a elites “heroicas”, brancas e europeias a criar uma revolução nas mentalidades e valores […] contra o multiculturalismo e a imigração; e o desejo de criar etno-Estados brancos homogêneos (“pátrias”) dos dois lados do Atlântico (2019, p. 225).

Como pode ser visto, a questão racial é central no discurso de Spencer, bem como o chamado à ação para uma direita revolucionária, antiliberal e anticapitalista que tenha como foco a metapolítica e as táticas da nova direita.

O capítulo 15 é dedicado a Jack Donovan e seu tribalismo masculino.[17] Donovan acredita que a igualdade é uma farsa, a violência é necessária e que a questão principal não é a raça, mas sim o gênero. Não somente homens brancos, mas todos os homens devem ser livres e fortes. Donovan é abertamente homossexual e prega o tribalismo masculino, uma ideologia de supremacia masculina formada ao redor da ligação entre guerreiros através de rituais de união. Na sua visão, a masculinidade é atacada atualmente por feministas, burocratas e homens ricos que buscam a passividade dos homens. Em 2013, Donovan passou a defender o que denominou de “anarcofascismo”, em que tribos de homens se unem em oposição à ordem institucional feminista, corrupta e antitribal. Donovan possui influência na chamada manosphere, uma subcultura da internet que acredita que as mulheres possuem poder em demasia, e na alt right, que adota sua posição misógina.

O último autor abordado é Daniel Friberg [18], sueco, para quem o método é mais importante do que a própria questão ideológica. Assim como outros autores citados, Friberg acredita que a mudança política só pode ser obtida através da educação, mídia e expressão criativa, ou seja, na metapolítica. Em virtude disso, Friberg tomou diversas inciativas para popularizar obras tradicionalistas, como a Arktos, maior editora de obras da direita radical e tradicionalistas, e o site Metapedia, uma alternativa à Wikipedia. Em 2015, publicou o livro The Real Right Returns, um manual de estratégias para ativistas da direita radical de como se conduzir politicamente e atacar o establishment liberal.

A obra editada por Sedgwick é de extrema importância na atualidade, permitindo compreender a pluralidade de pensamentos existentes dentro de uma direita radical que se torna cada vez mais proeminente em vários países do mundo, especialmente na América Latina, Estados Unidos e Europa.

Assim, o livro se mostra como uma importante ferramenta para todos os que buscam entender as linhas de pensamento da direita radical desde seus primórdios até a atualidade, sem, claro, esgotar todos os autores que impactam nesse meio. René Guénon e Frithjof Schuon, por exemplo, são escritores interessantes para o estudo da ala da direita brasileira encabeçada por Olavo de Carvalho, enquanto David Duke poderia ainda ser visto como uma influência para os supremacistas brancos norte-americanos.

A leitura de Key Thinkers of the Radical Right é bastante agradável; todos os capítulos contam com extensas referências e deixam em aberto um caminho para quem pretende se aprofundar em algum dos pensadores abordados. Certamente historiadores que pesquisam movimentos ligados à extrema radical tirarão bom proveito da obra, uma vez que são raros os livros que tratam de forma séria e criteriosa a respeito do tema.

Notas

3. Capítulo escrito por Elliot Y. Neaman.

4. Capítulo escrito por Reinhard Mehring.

5. Capítulo escrito por H. Thomas Hakl.

6. Os autores tradicionalistas possuem divergências entre si. Para melhor compreensão sugerimos o livro Against the Modern World: Traditionalism and the Secret Intellectual History of the Twentieth Century, também de Mark Sedgwick.

7. Capítulo escrito por Jean-Yves Camus.

8. Capítulo escrito por Stéphane François.

16. Capítulo escrito por Tamir Bar-On.

17. Escrito por Matthew N. Lyons.

18. Capítulo escrito por Benjamin Teitelbaum.

Referências

SEDGWICK, M. (org). 2019. Key Thinkers of the Radical Right: Behind the New Threat to Liberal Democracy. New York, Oxford University Press, 325 p.

SEDGWICK, Mark. 2009. Against the Modern World: Traditionalism and the Secret Intellectual History of the Twentieth Century. New York, Oxford University Press, 2009, 369 p.

Felipe Cittolin Abal –  Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. BR 285, Bairro São José. 99052-900 Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]


SEDGWICK, Mark. Key Thinkers of the Radical Right: Behind the New Threat to Liberal Democracy. Resenha de: ABAL, Felipe Cittolin. Os pensadores da direita radical: de Oswald Spengler a Daniel Friberg. História Unisinos, Porto Alegre, v.25, n.1, p.168-171, jan./abr., 2021. Acessar publicação original 

Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno – RYAN (RFA)

RYAN, Bartholomew. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.905-915, jul./dez, 2014.

Trilhada quase que exclusivamente sob uma linha mestra que desemboca em uma única vereda, a pesquisa sobre Sören Kierkegaard é demasiadamente pautada ora pelas migalhas que o autor dinamarquês legou, ora pelo interesse que ricocheteia sobre Kierkegaard. Explica-se: certa linha de pesquisa é ainda muito adstrita aos termos kierkegaardianos, realizando uma espécie de exegese textual que, embora essencial, por vezes apresenta limitação pelos próprios horizontes delineados; outra linha de pesquisa tangencia a obra de Kierkegaard quase como que por acidente, vindo a buscar nos textos do pensador de Copenhague uma solução específica e, não raramente, distorcida do autor. Assim, por um lado ocorre a consideração de categorias filosóficas engendradas por Kierkegaard — como instante, salto, angústia, desespero, liberdade, etc. —, por outro lado há uma aproximação capciosa, em que tanto a teologia — em um embate por certa sustentação da fé cristã por via de uma reforma — quanto a filosofia — pela influência exercida sobre Heidegger, Jaspers e outros — acabam gerando uma pesquisa circular e incapaz de corresponder ao devir da obra kierkegaardiana.

O grande mérito de Bartholomew Ryan com seu livro Kierkegaard’s Indirect Politics – Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno é deslocar, desde o início, a pesquisa realizada em torno da obra de Kierkegaard. Para além dos termos já marcadamente conhecidos acerca da produção kierkegaardiana, tais como existência, subjetividade ou religiosidade, Ryan arrisca-se na abordagem de uma temática pouco atribuída a Kierkegaard, ou seja, a questão política. E, conjuntamente, como o próprio título indica, faz essa abordagem temática exercendo uma conversação diferenciada, não com os já habituais filósofos do século XX que costumam acompanhar Kierkegaard (ou seja, o dito existencialismo francês e alemão), mas realizando um diálogo com o conturbado cenário político-cultural do início do século XX na Alemanha. Carl Schmitt, Theodor Adorno e Walter Benjamin são notoriamente figuras de relevância na construção do pensamento político alemão do período entreguerras. György Lukács, húngaro de nascimento, mas culturalmente germânico, é devidamente agrupado por Ryan à intelligentsia alemã. A força política dos autores do início do século XX é notória; o que não restaria evidente é o aspecto político presente na obra de Kierkegaard.

Ryan inicia seu livro assentando seus pressupostos teóricos. Prudentemente, põe-se a questão: “Faz sentido escrever um livro sobre ‘Sören Kierkegaard’ e ‘política’?”1 , tendo em vista a relutância kierkegaardiana de abordar a política manifesta em uma carta, onde o filósofo dinamarquês afirmaria: “Não, política não é para mim”. A aposta de Ryan visa a abordar a política em Kierkegaard não pela via direta, já que esta enfrentaria a resistência confessa do próprio autor, mas pela via indireta, servindo-se de aspectos biográficos, bibliográficos e filosóficos de Kierkegaard. A categoria filosófica, que também opera como método autoral, denominada pelo filósofo dinamarquês de comunicação indireta, é um dentre os pressupostos que Ryan utiliza para engendrar sua política indireta. Tal como no sentido da comunicação indireta, em que um conteúdo, não podendo ser comunicado diretamente, só pode ser feito indiretamente com o uso de recursos autorais dos mais sofisticados, também a política indireta só será comunicada lateralmente quando buscada dentro da obra kierkegaardiana, de forma que o conteúdo primeiro e mais imediato nunca é eminentemente político, mas que as profundezas de um conteúdo, o arcabouço e, mais, as consequências, possam, essas sim, ser políticas. Ryan expõe seu método com clareza:

Em um sentido simples, não podemos falar de Kierkegaard e política juntos. Mas a política indireta de Kierkegaard existe em um nível geral de duas maneiras. Primeiro, porque Kierkegaard não escreve teses políticas e despreza a política tradicional, sua política só pode ser indireta. Se o todo da autoria de Kierkegaard existe para transformar os seres humanos, então a ideia é que se as pessoas tornam-se mais conscientes [self-aware] de si mesmas como indivíduos formados por suas próprias decisões, isto pode levá-los também a questionar mais radicalmente as estruturas da autoridade que frequentemente buscam mascarar a autonomia humana, ou seja, o Estado e certas formas de dogmatismo político (RYAN, 2014, p.2).

A tentativa, portanto, não é retirar um conteúdo eminentemente político dos textos de Kierkegaard, mas estabelecer, por sua vez, um diálogo que, pela própria conversação, faça emitir conteúdos políticos. Não por outra razão os autores escolhidos possuem uma evidência política. Contudo, mais do que isso, os quatro autores escolhidos por Ryan para dialogarem com Kierkegaard são, curiosamente, leitores e estudiosos do pensador dinamarquês. O leitmotiv está, portanto, em definir um meio caminho entre a produção e originalidade da obra de Kierkegaard por um lado, a autoria e participação política dos filósofos escolhidos para o diálogo por outro lado e, em meio a esse trajeto, firmar um ponto de encontro que vá além do mero fato de que Kierkegaard foi lido por Lúkacs, Schmitt, Benjamin e Adorno.

Em seu primeiro capítulo, os apetrechos de que se vale Ryan para esse esforço são três: os termos Mellemspil (interlúdio), Skillevei (encruzilhada ou, mais liricamente, vereda) e Dagdriver (andarilho ou flâneur). O interlúdio [Mellemspil] é o instrumento que permite criar o diálogo entre os autores. Como pontua Ryan, “a política indireta é a brecha ou interlúdio que abre espaço para o salto dialético, a exceção, o exílio e o andarilho, e a esquiva negativa a toda totalidade” (RYAN, 2014, p.1). A vereda [Skillevei] diz respeito à vida de Kierkegaard, mais precisamente ao ano de 1848, ponto de virada em que o pensador dinamarquês escreve e publica uma série de textos que dizem respeito ao ambiente de revolução político-social dinamarquesa, como também da revolução pessoal de Kierkegaard. Em 1848 são escritos Duas Épocas: Uma Resenha Literária, Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra Enquanto Escritor, A Crise e uma crise na vida de uma atriz, parte dos Discursos Cristãos. Também nesse ano, Kierkegaard havia iniciado a escrita de Prática no cristianismo. Um ano de muita produção, em que grande parte dos textos busca responder ao ambiente social e político da Dinamarca daquele tempo. Por fim, Dagdriver, dificilmente traduzido como andarilho, tendo mais a característica de um flâneur, advém da característica de Kierkegaard de comportar-se como um observador e analisador cosmopolita e urbano, característica que se reflete nos textos e encontra similitudes com os autores escolhidos para os diálogos. Esses são os aparatos utilizados por Ryan, desde o início audaciosos e bastante inovadores quanto à pesquisa sobre Kierkegaard. Ainda que se tratem de categorias independentes e não correlacionadas em uma hierarquia, é certo que ao longo do livro o termo Skillevei tem maior ocorrência e relevância. Isso porque há maior proximidade entre a tese da política indireta e do produtivo ano de 1848 se considerado esse termo como central:

A imagem do Skillevei, traduzida como encruzilhada [vereda], é outro motivo limítrofe (literalmente) que é simbólico do ano de 1848. Como parte da política indireta, o Skillevei é o espaço, o entre, outro Mellemspil [interlúdio] entre momentos na história humana, entre viver e morrer, e na formação do indivíduo em si mesmo que é desafiado pela sociedade e, em contrapartida, confronta a sociedade. Isto está de acordo com o conceito de política indireta que é, antes de tudo, o espaço negativo entre disciplinas (RYAN, 2014, p.20).

Mais do que simplesmente embasar sua tese acerca da política indireta, Ryan realiza uma ponderação sobre textos que não raras vezes não estabelecem um diálogo dentro do corpo da obra kierkegaardiana. É por colocar lado a lado textos como os Discursos Cristãos e Duas Épocas que Ryan é capaz de apresentar um Kierkegaard que, de maneira plausível, poderia apresentar uma política indireta. A preparação do primeiro capítulo, no entanto, tem como pressuposto enunciado o fato de que os quatro autores que estabelecerão o diálogo com Kierkegaard são, dentre outros aspectos, pensadores políticos, de modo que se espera que se justifique com mais ênfase, por meio dos diálogos, a tese da comunicação indireta, sobretudo pela recepção que teriam exercido os filósofos políticos do início do século XX.

O método utilizado por Ryan para criar um cenário possível em que se realizem os diálogos é encontrar pontos de encontro que podem se transformar, conforme a análise, em uma aproximação ou em um distanciamento entre os autores. É assim que se procede, por exemplo, com o diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács no segundo capítulo. Pela via da influência kierkegaardiana na obra de Lukács, Ryan abre suas considerações:

Ao examinar os textos de Lukács, seja naqueles ainda fortemente sob a influência de Kierkegaard, como Alma e Forma e A Teoria da Novela, bem como na explosiva conversão ao marxismo em História e Consciência de Classe, ao período stalinista de A Destruição da Razão, que coloca Kierkegaard como um dos fundadores do irracionalismo e precursor do nacional-socialismo, Lúkacs transforma a interioridade de Kierkegaard em práxis revolucionária, mas no processo tenta aniquilar todos os traços de ambiguidade em uma homogeneidade, em um mundo totalmente unificado (RYAN, 2014, p.43).

Ao longo do segundo capítulo é possível acompanhar essa análise sobre a obra de Lukács e a possível influência de Kierkegaard presente no desenvolvimento do pensador húngaro. A proximidade entre Kierkegaard e Lúkacs no entorno da leitura e as impressões sobre o Fausto de Goethe, apresentadas logo no início do segundo capítulo, parecem ter antes o caráter de comprovar a relação entre os dois autores do que necessariamente lançar luz sobre a tese principal do livro: a política indireta. Isso porque, como Ryan afirma, a primeira fase da vida de Lukács, na qual ocorre a publicação de Alma e Forma, por exemplo, é ainda uma fase pré-marxista e mais voltada para a cultura e para a literatura do que propriamente para a política. A grande questão do diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács se dá pela apresentação da transformação que faz Lukács com a interioridade kierkegaardiana, alterando-a ou, mais precisamente, realocando-a para uma práxis revolucionária. Valendo-se de uma suposta linha de continuidade presente na produção do pensador marxista, Ryan afirma que uma vez que

no início de História e Consciência de Classe Lukács declara ‘postular-se, produzir-se e reproduzir-se — isto é realidade’”, esta seria a comprovação de que se teria utilizado “a interioridade como uma expressão da práxis revolucionária, componente que Lukács carrega para seu período marxista desde Alma e Forma e A Teoria da Novela (RYAN, 2014, p.57).

Entretanto, a influência de Kierkegaard sobre Lukács teria encontrado sua interrupção nesse pequeno adorno, ou seja, no fato de que, de alguma forma, o jovem Lukács, interessado por Kierkegaard — ao qual teria dedicado, inclusive, um belo ensaio em seu livro Alma e Forma —, teria se permitido levar para dentro do marxismo a concepção de interioridade kierkegaardiana. Porém, e isso Ryan parece tentar pontuar, Lukács leva Kierkegaard para dentro do marxismo, não para dentro do stalinismo, já que este condena o subjetivismo do filósofo dinamarquês e rejeita os pensamentos vindos de Copenhague, dando preferência aos prisioneiros da Sibéria. E aqui repousa todo contato Kierkegaard–Lukács.

No que diz respeito ao diálogo ocorrido entre Carl Schmitt e Kierkegaard, a análise depende em grande parte do que Schmitt expressa em uma carta para Ernst Jünger e que acertadamente Ryan escolhe como epígrafe de seu capítulo: “Tais influências indiretas, que iludem qualquer documentação, são as mais fortes e de longe as mais autênticas.” É preciso admitir, como faz Ryan, que “pouco foi escrito sobre Carl Schmitt e Kierkegaard apesar da reverência que Schmitt faz ao pensador dinamarquês”, sobretudo pelo uso do termo exceção, empregado por Kierkegaard em Temor e Tremor e Repetição, e utilizado por Schmitt em sua definição de soberania no livro Teologia Política. Grande parte da análise de Ryan quanto a esse diálogo se fundamenta pelo uso feito por Schmitt da exceção e pela leitura que faz o pensador alemão dos textos do pensador dinamarquês:

Ler a leitura que faz Schmitt sobre Kierkegaard é um exercício frutífero em trazer à tona várias questões não resolvidas nos últimos escritos, e também acrescenta outro surpreendente membro à lista de radicais pensadores europeus na Weimar dos anos de entreguerras que caiu sob o feitiço de Kierkegaard e apropriou seu pensamento de formas excitantes e polarizadas. Neste capítulo iremos mais a fundo na política indireta da forma que esta fez seu caminho para a vanguarda da política global no século XX. O que é frequentemente negligenciado quando se lê Schmitt é, como em Kierkegaard, a injeção do teatro em seu trabalho, e como os motivos, máscaras e figuras do palco informam e inspiram seu trabalho. Aqui temos o ponto de advertência de uma tentativa de preencher o espaço negativo e Mellemspil que é a política indireta (RYAN, 2014, p.90).

A proposta é encontrar, portanto, elementos que justifiquem a tese sobre a política indireta na influência de Kierkegaard sobre Schmitt. Correntemente referido, o ponto inicial é o conceito de exceção, o qual Schmitt realoca desde o emprego que faz Kierkegaard em seus textos — de maneira interior e existencialmente concreta — para um âmbito político. Ryan demonstra o vivo interesse que Schmitt manifestou na leitura de Kierkegaard e reúne diversas citações sobre como o jurista alemão era um vivaz entusiasta dos ensinamentos de Kierkegaard. No entanto, não é oferecida tese consubstancialmente relevante que permita crer que o conceito de exceção, tão arraigadamente existencial, individual e próprio do homem concreto, tenha saltado para a aplicação política feita por Schmitt senão por uma influência que, mais do que indireta, seria quase opaca, lateral.

Em contrapartida ao emprego do conceito de exceção por parte de Schmitt em sua possível influência kierkegaardiana, Ryan faz. uma excelente análise ao considerar a severa crítica realizada por Schmitt contra o romantismo político em paralelo com a crítica social- -existencial feita por Kierkegaard contra o romantismo germânico. O conceito em questão é a decisão e Ryan demonstra haver similitudes entre as duas críticas. Tanto Kierkegaard quanto Schmitt se voltariam contra o romantismo, uma vez que essa corrente produz uma característica de inação e indecisão. O esteta kierkegaardiano não decide concretamente da mesma maneira que o parlamentar burguês também não o faz. Contudo, a decisão kierkegaardiana é própria do indivíduo, enquanto a decisão demandada por Schmitt é própria da estrutura jurídica e política de um Estado. As consequências são bem pontuadas por Ryan: pelo lado de Kierkegaard a decisão produz a singularização do indivíduo; pelo lado de Schmitt, produz a dicotomia amigo-inimigo, bem como todos os efeitos que dessa dicotomia decorrem. Por fim, ao avançar em sua análise, apresentando o soberano como desespero, Ryan assume posições que já são marcadas por uma interpretação de Schmitt que é pautada pelas leituras de críticos do século XX, dentre eles Agamben, obtendo, com isso, os mesmos resultados relutantes acerca da produção teórica de Schmitt.

É sem dúvida pelo diálogo entre Walter Benjamin e Kierkegaard que o livro encontra seu ponto de maior efervescência. A começar pelas personalidades dos dois autores: ambos, Benjamin e Kierkegaard, exerceram uma espécie de fascinação por possuírem certas idiossincrasias que atraiam os leitores. Não são raros os escritos que dão mais importância às particularidades das vidas de Benjamin e Kierkegaard do que propriamente aos seus escritos. O que normalmente seria cotado como mera curiosidade sem fundo teórico relevante, no caso dos dois pensadores em questão parece ser o contrário, uma vez que suas idiossincrasias encontram reflexo em suas obras, como nota Ryan:

Igualmente ao corpo da obra de Kierkegaard, a variedade e riqueza dos escritos de Walter Benjamin levam o leitor a um vasto labirinto, pois como Kierkegaard oferece uma variedade de perspectivas e modos de vida por via de seus pseudônimos, Benjamin escreve com igual presença de espírito e paixão sobre tópicos como Marxismo, Kafka, A Bíblia, haxixe, cidades como Paris e Nápoles e o quase esquecido barroco alemão (RYAN, 2014, p.135).

Sugestivamente, o quarto capítulo intitula-se Loafers of History, o que põe em questão um conceito que parecer ser caro a Ryan, ou seja, o loafer, Dagdriver ou flâneur, figura representativa do século XIX e XX que bem representa Kierkegaard e Benjamin. Descrever minuciosamente os interiores e os exteriores de um centro urbano é mais do que simplesmente uma atividade poética, é parte de considerações filosóficas que vão se compondo conforme a própria descrição. Nesse ponto, pela potencialidade imagética e por se tratar de uma capacidade criativa e estética avantajada, Benjamin e Kierkegaard encontram-se, conforme a análise de Ryan, em uma esquina para, em uma caminhada, passar a tecer considerações que inevitavelmente levam à política: Kierkegaard, na crítica ácida à Dinamarca de seu tempo, e Benjamin, nas considerações sobre a Paris de Baudelaire, sobre Nápoles ou Berlim. O grande impacto do diálogo estabelecido entre Benjamin e Kierkegaard repousa sobre o fato de que, ao contrário dos outros diálogos, Benjamin parece ter algo a oferecer à leitura da obra kierkegaardiana:

Quem era Kierkegaard? Aos olhos do público ele era um preguiçoso [loafer] de esquina, o Dagdriver, um ocioso sagaz. Kierkegaard via a percepção das pessoas sobre ele como um flâneur como algo negativo, mas o que Kierkegaard se torna por meio de seus escritos é exatamente isso, no sentido de Benjamin; como observador, transeunte e crítico da cidade e da sociedade dentro da qual se vive e respira (RYAN, 2014, p.147).

Lateralmente, a questão da política indireta fica adstrita a uma espécie de embate entre Benjamin e Schmitt, no qual Kierkegaard parece ter pouco a oferecer, salvo algumas considerações pontuais. A aproximação da questão messiânica surge no livro como uma abertura temática que encontra poucas linhas de intersecção entre Kierkegaard e Benjamin, restando a imagem de que se trata de autores de suma potência no pensamento, mas que ainda não trilharam caminhos suficientemente paralelos.

O último diálogo, por sua vez, diz o limite daquilo que as análises de Theodor Adorno podem dizer. Se por um lado Benjamin e Schmitt não dedicam nenhum escrito específico a Kierkegaard e Lukács o faz em meio a tantos outros ensaios e estudos, por outro lado Adorno apresentou de fato um trabalho mais extenso sobre o filósofo dinamarquês. É acertado quando Ryan afirma que “dentre todos os pensadores em conversa com Kierkegaard neste livro, Adorno cita o trabalho de Kierkegaard mais extensivamente” (RYAN, 2014, p.177). Contudo, é também acertado considerar que tal trabalho, Kierkegaard: Konstruktion des Ästhetischen, é fruto de uma série de desentendimentos de Adorno não tanto com Kierkegaard, mas com tudo aquilo que não serve ao hegelianismo do teórico de Frankfurt. Ryan delineia essa questão ao fazer uma análise sobre a utilização que faz Adorno de um trecho de um conto de Edgar Alan Poe. A desolação de Poe é usada como imagem para o que Adorno considera sobre Kierkegaard:

O que resta após se ler esta notável prosa é uma imagem de niilista interioridade, suspensa entre haver e não haver chão, aliada a nada, uma abundância de copes atrás das quais repousa um buraco negro de futilidade. Esta é a filosofia de Kierkegaard de acordo com Adorno (RYAN, 2014, p.179).

Sentencialmente está sanada toda a relação entre Adorno e Kierkegaard. Havia Hegel entre eles e Adorno já havia prestado seu juramento de ortodoxia. Ainda que se queira afirmar que há qualquer resquício de influência de Kierkegaard na dialética negativa de Adorno, isso é mais benevolência do autor do que necessariamente uma posição embasada. O diálogo entre eles é, em verdade, negativo: não acontece.

Considerando, por fim, a tese da política indireta de Kierkegaard e os efeitos que podem advir do diálogo, é Ryan quem afirma que “um aspecto central da política indireta, como explorada neste livro, é a influência de Kierkegaard sobre a formação do pensamento político de Lukács, Schmitt, Benjamin e Adorno”, mas, para além disso, “como esses quatro interlocutores por sua vez leem e criticam uns aos outros à sombra de Kierkegaard” (RYAN, 2014, p.233). Ao ter frisado a importância das veredas, Ryan adentra em um grande sertão que muitas vezes o põe como um loafer diante das obras e autores abordados. A política indireta emerge de forma colateral, não à maneira que uma tese se evidenciaria. E uma vez que a política indireta é a própria tese, resta certa aporia em meio a alguns dos diálogos propostos.

Em comparação à pesquisa realizada acerca da obra de Kierkegaard, Ryan propõe um ponto de vista singular e perspicaz, seguindo os caminhos que inicialmente foram trilhados por George Pattison. Contudo, como esses caminhos levam a veredas, é preciso ser uma espécie de viandante para seguir a senda ainda muito vasta que se apresenta para aqueles que visam concluir a tese intuída por Ryan acerca da política indireta de Kierkegaard.

Nota

1 As citações feitas com base no texto original do livro de Bartholomew Rya são traduções livres feitas exclusivamente para a presente resenha. Quaisquer lapsos estilísticos são antes deslizes do tradutor que falhas do autor.

Referência

RYAN, B. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014.

Lucas Piccinin Lazzaretti – Mestrando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt – CASTELO BRANCO (C)

CASTELO BRANCO, P. H. V. B. Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt. Curitiba: Appris, 2011. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 187-190, maio/ago, 2012.

A obra de Carl Schmitt foi, durante muito tempo, lida em função das ligações de seu autor com o Terceiro Reich na Alemanha nazista. Entre essa e outras razões permaneceu silenciada na França, como nos indica o estudo de Jean-François Kervégan (2006), ao analisar as dimensões da ideia de político e da ação política nas obras de Hegel e Schmitt. Além disso, prossegue o autor, “o fato de Schmitt ter se alinhado ao nacional-socialismo, cuja vitória foi descrita por ele mesmo como ‘a morte de Hegel’, parece ser a confissão de um xeque especulativo: o decisionismo professado durante os anos 1920″. (2006, p. XIV). Isso, por acaso, não redundou somente na França, mas também na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, na elaboração de estudos polêmicos, cujo norte era justamente o de alinhar a obra de Schmitt ao antissemitismo e ao nazismo.

Ainda que não parta de avaliação semelhante, a obra de Castelo Branco procura justamente destacar em que medida as tentativas de secularização da política e do direito permaneceram inacabadas na obra de Schmitt.

Versão revista de sua Tese de Doutorado, seu texto nos apresenta de que maneira Schmitt construiu seu projeto político e intelectual. Para Gabriel Cohn, que faz o prefácio da obra, secularização “é mais do que trânsito de ideias no éter dos significados”, pois é “literalmente trazê-las para o século, torná-las efetivas aqui e agora, manchá-las com a marca da empiria e da existência concreta”. (2011, p. 15). Para efetuar tal análise, Castelo Branco efetua um estudo minucioso da obra de Carl Schmitt, detalhando como  apreendia a questão da lei e da decisão, qual era a representatividade do Estado e qual era a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo. Nesse aspecto, sua hipótese é de que “o conceito de secularização é um pressuposto imprescindível para compreender alguns dos principais temas abordados por Schmitt nos seus estudos, como é o caso da decisão, do significado do Estado e do indivíduo e dos critérios do político”; assim, por “desempenhar um papel epistemológico no pensamento de Schmitt, entender seu conceito de secularização é uma condição essencial para tornar acessível o modo como o autor desenvolve outros conceitos, como decisionismo, exceção, mediação e soberania”. (2001, p. 20).

Desse modo, antes de aprofundar como Schmitt entende a secularização, o autor nos demonstra seu itinerário, tendo em vista que o progresso da razão universal e autônoma da época das Luzes do século XVIII teria eliminado os laços tradicionais e realizado a independência de uma esfera temporal. Sob este ponto de vista, os conceitos jurídicos e políticos do Estado moderno encontrariam seu fundamento racional no aperfeiçoamento moral e no progresso de um desenvolvimento histórico. O uso do conceito de secularização é objeto de disputa, por ser utilizado para legitimar a descontinuidade da modernidade e, consequentemente, do fundamento dos conceitos jurídicos que surgem com o Estado moderno. (p. 21).

E que, aliás, estaria na obra de Schmitt, apesar de suas preocupações, numa forma inacabada. Mas entender como tal questão se processa em sua obra não é uma tarefa nada fácil, e Castelo Branco conduz com desenvoltura seus argumentos para nos demonstrar que, ainda que esteja em estado inacabado, a ideia de secularização construída na obra de Schmitt é fundamental para entender todos os nexos de sua interpretação do político e do Estado, da lei e da decisão. Apesar de se aproximar da concepção de secularização de Löwith, que “não reconhece uma modernidade autônoma”, Schmitt percebe que a “transformação da religião em assunto privado não elimina a existência de um núcleo metafísico ou a crença de que o privado ocupe o lugar de algo sagrado”, entre outras razões, porque a “cultura da satisfação individual, do consumo ou da possibilidade de subjetivação de toda sorte de experiência, remete ao tema da secularização e, consequentemente, ao problema do esvaziamento de referências supraindividuais de orientação da conduta”. (p. 22). Por isso, o autor indica que “sob o ponto de vista político, mais importante do que a privatização dos bens da Igreja seria examinar a privatização do meio ambiente que fornece a medida ou diretriz às ações humanas” (p. 23), e é esse o caminho que segue para compreender a obra de Schmitt.

Ao centrar seu olhar sobre a obra de Schmitt, a partir da maneira que ele constrói seu conceito de secularização, o autor entende que sem ela esse não teria chegado a seu conceito de decisão. Daí a importância de inquirir a lei e a decisão, como se articulam e como são produzidas e empreendidas.

Com isso, passa a inquirir como a secularização constitui um dos alicerces fundamentais, para dar solidez à formação do Estado moderno, significado às suas instituições e bases às suas regulamentações. Por fim, demonstra como o conceito de secularização atua sobre o conceito de político.

Depois de efetuar tal análise, observa que “o sentido principal do conceito de secularização de Schmitt revela que a negação dos conflitos eleva o grau de contingência, aumentando o risco dos antagonismos”, pois a “omissão ou o encobrimento do conflito impede a sua restrição”, e o “reconhecimento da impossibilidade de se extinguir os antagonismos da vida humana abre a possibilidade para a sua contenção” (p. 291), ao se efetuar uma distinção clara entre amigo e inimigo. Além disso, o “conceito de secularização de Schmitt intenta recuperar as distinções nítidas alcançadas pelo Estado moderno europeu com a neutralização das guerras religiosas, a fim de postular o monopólio do político pelo Estado e evitar sua subordinação a categorias econômicas e princípios universalizantes”.

(p. 292). Por outro lado, após definir amigo e inimigo, e revelar o caráter inevitável dos antagonismos, o autor nos indica que secularizar, para Schmitt, “consiste em romper a generalidade e a regularidade de ordenamento de normas e expor a realidade concreta do sentido político do agir e decidir humanos”, tendo em vista que “não está mais em jogo o enfrentamento do poder espiritual de representantes da Igreja que buscam intervir na esfera secular de um domínio público, mas combater o encobrimento do político por parte do liberalismo e do positivismo”. (p. 295).

Portanto, ao descortinar os nexos e os significados do conceito de secularização na obra de Carl Schmitt, Castelo Branco, além de nos oferecer caminhos instigantes para rever a obra desse autor, a oportunidade de verificar que, apesar de aparecer de modo inacabado, a secularização constituía verdadeiramente um dos núcleos pelos quais Schmitt pensou a política, definiu a ideia de amigo e inimigo, como os antagonismos poderiam ser arrefecidos, mas não anulados completamente, e de que forma lei e decisão estavam articuladas em sua obra para perfazer a compreensão do conceito de político.

Referências

KERVÉGAN, J-F. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri: Manole, 2006. Recebido em 26 de abril de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems). E-mail: [email protected]

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