Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud – FONSECA (V-RIF)

FONSECA, Eduardo Ribeiro da. Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud. Curitiba: Editora UFPR, 2016. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.7, n.2, p.153-159, 2016.

O esforço de realizar um entrecruzamento de duas produções intelectuais pode ser conduzido pela capacidade de se gerar novas fugas e novas reflexo es, mas também pode – talvez muito facilmente – recair em uma espécie de linearidade erma que revela apenas aquilo que o próprio esforço suscitou. No caso do livro de Eduardo Ribeiro da Fonseca, Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud, a leitura parece ter transcorrido o rumo de novas e prolíficas ponderações, permitindo outras viso es na o apenas sobre a relação entre os dois autores, mas sobretudo fazendo evidenciar as muitas analises que podem partir dessa intersecção.

Os autores abordados pelo referido livro na o deixam de intensificar o problema de um possível entrecruzamento, já que, uma vez que na o se tratam de pensadores vinculados necessariamente por uma dimensão histórica e conceitual demasiado estrita – pois Freud na o e , a primeira vista, um filosofo e, tanto mais, um filosofo pós-kantiano –, pode então advir a tendência de se tomar o predecessor pelas lentes do sucessor. Isto e , a análise mais ligeira buscaria encontrar em Schopenhauer uma espécie de ancoradouro conceitual e até mesmo histórico para o trabalho clínico-especulativo realizado posteriormente por Freud, como que desenvolvendo uma fundamentação da psicanalise a s avessas, fazendo emergir, desde uma leitura a posteriori, uma espécie de legitimidade para o trabalho empreendido pelo me dico vienense. A primeira grandeza do livro de Eduardo Ribeiro da Fonseca e justamente a de declarar-se contra rio a essa posição, asseverando que:

Um dos nossos principais objetivos é ajudar a preencher a lacuna histórica e existente dentro da psicanálise, principalmente quanto ao reconhecimento de Schopenhauer como precursor do conceito de um psiquismo de base orgânica, baseado na noção de impulsos inconscientes e sem fundamento – isto é, irracionais. Essa é, essencialmente, a natureza do “golpe narcísico” que, segundo Freud, a própria psicanálise infligiu à humanidade (p. 25).

Trata-se, portanto, de permitir a composição de um estudo feito com base em uma igualdade e na o como uma espécie de causalidade fortuita. Nesse sentido, a escolha instrumental feita pelo autor indica a acuidade com o rigor da analise, pois encontra um ponto de reflexa o que obscurece os privilégios de um pensador perante o outro e destaca justamente os liames conceituais, sendo que “guardadas as diferenças específicas, aceita-se que, tanto para o filosofo quanto para o psicanalista, o corpo humano e a chave para o entendimento da função psicológica, tenda a sexualidade como ponto focal” (p. 29).

A estrutura do livro divide-se, então, em duas partes. A primeira e dedicada a analise da noção de corpo na obra de Schopenhauer, enquanto a segunda parte e voltada para a esta analise na obra de Freud. Os dois pensadores são tomados segundo as próprias características de suas produções, de modo que a primeira parte do livro, por exemplo, inicia-se com um dos pontos centrais do pensamento de Schopenhauer, isto e , a noção de representação, apontando que, para o filosofo alemão, “a noção de representação e um processo fisiológico, fruto da atividade do sistema nervoso central, dentro de um complexo processo de apercepça o da efetividade, submetida ao princípio de razão” (p. 36). Já se delineia aqui a tônica que conduz todo o trabalho, isto e , buscar evidenciar nos conceitos – seja de Schopenhauer, seja de Freud – de que maneira a estrutura de seus pensamentos e conduzida pela chave de leitura fornecida pelo corpo.

Em Schopenhauer, como demonstra Eduardo Ribeiro da Fonseca, o corpo e mais do que um simples adendo ao todo de uma teoria sistema tica, mas e muitas vezes o fenômeno que permite entender a dina mica daquilo que o filosofo alemão busca apreender (Vontade e Representação). Enquanto ponto central, a noção de corpo e , dessa maneira, extensivamente retrabalhada por Schopenhauer com vistas a continuamente obter resultados e reflexo es mais acuradas no que tange ao problema principal. A começar pelo traço imediato do conhecimento, inserido no âmbito da representação, o pensador de Frankfurt centraliza o corpo como primeiro motor das capacidades perceptivas, pois “através do sentimento do próprio corpo, a percepção de todos os outros objetos se realiza” (p. 40), de tal modo que “o conhecimento intelectual resulta da influencia exercida pelos dados exteriores junto ao corpo” (p. 41). A dinâmica da representação – sobretudo se considerada aquela derivada de uma estrutura estritamente kantiana – e sensivelmente alterada, pois “o estudo do corpo como objeto imediato expõe a fisiologizaçao do processo de apreensão do mundo como representação” (p. 44). O passo que da então Schopenhauer – e que bem destaca Eduardo Ribeiro da Fonseca – e avançar sobre essa noção de corpo deslocando-o também para o âmbito da mediação, delineando aqui os contornos gerais da relação conflituosa que o filosofo identifica como sendo central na existência de cada indivíduo, na o devido a um aparato transcendente, mas como uma inerência da estrutura imanente na qual o ser humano encontra-se.

E com base nessa estrutura conflituosa, a qual parte de um instrumento que, antecedente a razão, já tem sua própria dimensão operacional, que o filosofo pode então apresentar suas ponderações sobre os limites dessa mesma razão humana, já que, como bem pontua o autor do livro, para Schopenhauer “somos prejudicados pelo uso de um instrumento que deveria estar a nosso serviço” (p. 53), pois, demonstrando-se o conflito existente entre o âmbito imediato e mediato em que o corpo se situa, a razão acaba por apresentar-se como nada mais do que “deficitaria”. E com base nessa suspeita perante os alcances da razão que se desenvolvem as considerações sobre a Vontade e, na o por outra razão, e neste ponto que a noção de corpo enquanto chave de leitura acaba por encontrar as consequências mais prolíficas da analise desenvolvida pelo autor sobre o pensamento do filosofo alemão.

Para além de uma limitação epistemológica, Schopenhauer avança sobre a problema tica da Vontade partindo justamente das limitações encontradas no âmbito da Representação. A pretensa o do filosofo e , portanto, de ir ale m do mero reconhecimento da existência de representações, valendo-se então de uma via metafísica, sendo que “o que a metafísica do filosofo de Frankfurt sugere e que o querer confere sentido essencial ao corpo e deve ser considerado como o seu próprio íntimo, cuja característica mais profunda e a de ser, em grande medida, inconsciente” (p. 58). A amplitude desse ir além, como reconhece o Eduardo Ribeiro da Fonseca, na o se restringe a limitação de uma analise sobre os alcances da cognoscibilidade humana, mas visa atingir, em função de seu impulso metafísico, os tracejados cósmicos do que se encontra inscrito justamente na fenomenalizaçao privilegiada que e o corpo. Para o filosofo, “a Vontade nos aparece como um conceito obtido por extensa o a partir do conceito de vontade individual, não sendo, portanto, possível observa -lá em si mesma, mas apenas senti-la no corpo” (p. 72).

Ao analisar “cara ter e sexualidade” na obra de Schopenhauer – como o faz no terceiro capítulo – o autor apresenta o que ha de singular nas reflexo es do filosofo de O mundo como vontade e representação, isto e , a compreensão da sexualidade como vinculada a própria analise previa realizada sobre o corpo. Sexualidade, nesse sentido, e mais do que simples limitação física, mas e o ponto em que corpo se mostra como importante chave de leitura, pois o filosofo “ve na Vontade de viver e no desejo sexual que a expressa a possibilidade de estabelecer uma passagem da Vontade para a Representação” (p. 85). A passagem a qual se refere o autor encontra-se intimamente ligada com as diversas consequências que daí retira o filosofo, como a sua posição tomada por pessimista, ou mesmo o reconhecimento do confronto entre vida e morte situado na própria essência da existência, a qual na o encontra muitas saí das, salvo a sublimação perante os impulsos de vida e morte.

Na segunda parte, referente a s obras e pensamento de Freud, Eduardo Ribeiro da Fonseca, ja nas primeiras linhas destaca a diferença entre os autores. Enquanto o filosofo de Frankfurt possui um cara ter especulativo como traço central de sua produção, o psicanalista vienense, por sua vez, pretende dedicar-se a produção de uma ciência – como Freud bem pontua em seu Projeto para uma psicologia científica – e, de forma lateral ou muitas vezes indireta, vem a realizar exercícios especulativos. E interessante pontuar que, salvaguardando essa diferença, o autor consegue apresentar em seu livro os resultados semelhantes que as duas conduções metodológicas fornecem.

A perspectiva teórica de Freud parte de uma problema tica que mobiliza a reflexa o, já que “a consideração de que existe uma fronteira tênue entre o que caracteriza um indivíduo avaliador, o seu corpo orgânico e o objeto representado” (p. 112). já traz em si um problema. No caso de Freud, na o se trata de uma questão de reconhecimento da formação e limites do intelecto, mas, antes, da estrutura das dimensão es formadoras do âmbito psicológico em relação com a base orgânica. Repousa aí um conflito muito próximo aquele já apontado por Schopenhauer entre a base formativa do reconhecimento inicial do indivíduo perante ele mesmo (o corpo) e o mundo que cerca esse indivíduo, a tal ponto que, como evidencia o autor, “Freud, como Schopenhauer, pensa o Eu consciente como um representante psíquico do organismo diante do mundo efetivo, como um verdadeiro advogado dessa efetividade junto a s forças orgânicas que exigem satisfaça o” (p. 121).

E no esforço pela formulação conceitual e instrumental de sua nova ciência, a psicanalise, que Freud depara-se com a necessidade de explicitação da relação entre consciente e inconsciente de uma forma que Schopenhauer na o enfrentou. Reticente com o uso de atribuições consideradas como demasiado especulativas, parece ter sido a tônica do pensador austríaco buscar por esclarecimentos no campo da concretude “orgânica” do corpo, daí a relevância do corpo na formação de suas primeiras conjecturas sobre os conceitos centrais da psicanalise e, de igual modo, daí a aparente rejeição a categorias consideradas demasiado abstratas ou “metafísicas”. O embate e as restrições reconhecidos pelo filosofo alemão como decorrentes do desconhecimento sobre o psiquismo são tomados por Freud como a base da formulação da noção de repressão, evitando a todo custo o emprego de termos como Vontade, sobretudo a maneira utilizada por Schopenhauer. Entretanto, apesar dessa aparente divergência, e também nesse âmbito que se manifesta uma importante proximidade entre os autores;

A partir da noção de repressão revela-se todo um campo comum entre os autores, que envolve o problema do desconhecimento humano acerca da natureza do psiquismo. Para superar a dificuldade de investigar racionalmente algo que não segue as leis da consciência – e, portanto, desorienta o investigador –, ambos usam como bússola o corpo e seus impulsos conscientes, que são surpreendidos em ato, nos interstícios da racionalidade (p. 136).

E necessário pontuar que, quanto mais Freud avança em suas considerações sobre aquilo que se mostra como que vetado a primeira averiguação de um pesquisador, isto e , os mean [DR] os do inconsciente, mais o medico vienense depara-se com os rumos especulativos, a tal ponto que, ao considerar a relação do homem com a espécie, tem de fazer notar o caráter na o limitado as formulações mais imediatamente orgânicas. E o que ocorre, por exemplo, na apresentação do conceito de libido, em que Freud, valendo-se de explicações fisiológicas e orgânicas, tem de fornecer um salto tema tico para ser capaz de explicar o vínculo na o explicitamente orgânico que mobiliza toda organicidade, pois, nas palavras de Eduardo Ribeiro da Fonseca, “a função do cérebro, como a de qualquer coisa física, esta sujeita a lei da inercia, e se faz ativa apenas quando o intelecto e posto em movimento pela vontade”, considerando-se que, “na psicanalise, por outro lado, e a libido que ativa ate mesmo a unia o entre as células do organismo, que funciona de acordo com um princípio de prazer, sendo papel do aparelho psíquico reduzir ao máximo os efeitos da estimulação” (p. 150). A libido não e assumida por Freud como sendo uma espécie de vontade schopenhaueriana, mas também na o diz respeito unicamente a organicidade, mas revela um impulso que se perfaz no âmbito biológico sem reduzir-se a esse no sentido de uma causalidade.

Enquanto a teoria da libido na o apresenta maiores problemas em uma consideração pontual, isto e , no aspecto singular da manifestação orgânica dos indivíduos, e com relação ao fundamento da libido – o impulso – que Freud encontra a necessidade de formulação es mais especulativas. A explicação que fornece Eduardo Ribeiro da Fonseca sobre a noção de impulso faz antever o ponto de aproximação mais inusitado entre os dois autores analisados:

Do ponto de vista de Freud, o impulso é uma força poderosa, radical, indeterminada, atemporal, arcaica, avaliativa e própria não só dos organismos complexos, mas do conjunto integral da natureza. O registro do impulso vai além do indivíduo e de sua espécie, portanto, adquire uma conotação metafísica, sendo que, ainda que esta ampliação do conceito escape aos domínios próprios da psicanálise, ela é sempre considerada pelo psicanalista vienense (p. 170).

Esse e o ponto em que se pode antever um dos traços mais originais do trabalho de Eduardo Ribeiro da Fonseca, uma vez que esse, na comparação analítica entre os dois autores, tomando o corpo como chave interpretativa e avaliativa, faz evidenciar um processo inverso ao habitualmente conferido para a analise de autores sucedidos temporalmente (sobretudo quando trata-se da psicanalise, já tão conhecida por produzir jogos de espelhos a seu favor): na o e Schopenhauer quem serve como que indiscriminadamente a pretensa o de legitimidade dos conceitos freudianos, mas, como pode ser antevisto, e Freud quem confere o privilegio da originalidade a produção filosófica schopenhaueriana. Ale m disso, parece estar indicado, ainda que de forma indireta, a possibilidade de se considerar a relação de ambos os autores frente a especulação metafísica, já que o filosofo de Frankfurt declara a necessidade de enfrenta- lá e o medico vienense reluta tanto quanto possível a ceder aos seus encantos, sendo que e , ao fim e ao cabo, as expansões de suas especulações metafísicas o que confere os traços mais inovadores de ambos os pensamentos. Cabe a Eduardo Ribeiro da Fonseca o me rito de ter demonstrado mais do que a estreita passagem que o corpo representa enquanto chave interpretativa nas obras dos pensadores elencados, mas também por ter viabilizado um novo caminho hermenêutico que faz voltar as atenções para Schopenhauer na o apenas como o pensador que primeiro lançou as bases para uma das teorias mais relevantes do século XX, mas por ser o pensador que transcende, com suas especulações metafísicas, as próprias dimensões e limitações dessa teoria.

Lucas Piccinin Lazzaretti – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]

 

O mundo como vontade e representação. Tomo II – SCHOPENHAUER (RFA)

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tomo II. Tradução de Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Ed. da UFPR, 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.27, n.42, p.941-946, set./dez, 2015.

A obra de Arthur Schopenhauer foi tradicionalmente recepcionada fragmentariamente, não apenas na contemporaneidade, mas também em seu tempo. A publicação do primeiro tomo de sua obra-prima, O Mundo como vontade e representação, em 1818, não foi um grande acontecimento, tampouco abalou as estruturas da filosofia alemã de sua época — filosofia essa que conhecia nas figuras de gigantes como Hegel, Schelling e Fichte a manifestação de certa tendência pós-kantiana. Essa mesma tendência de distância dos holofotes acadêmicos manteve-se quando da publicação do segundo tomo, em 1844, conjuntamente com uma reedição do primeiro tomo, de tal modo que Schopenhauer teve de apelar a seu editor, justificando-se em considerações que afirmavam ser possível ler os capítulos do segundo sem uma necessária referência ao primeiro. Essa artimanha negocial de Schopenhauer não expressava, no entanto, sua verdadeira intenção, já que, para o filósofo alemão, a leitura séria deveria ser realizada para com o todo da obra, sendo que o segundo tomo não serviria como uma complementariedade alienada do primeiro, mas, antes, uma verdadeira conjunção de unidade.

A pretensão do filósofo, no entanto, não parece ter alcançado a realidade efetiva na Alemanha de sua época, uma vez que Schopenhauer passa a ser lido apenas em seus últimos anos de vida e, além disso, ocorreu certa tendência fragmentária na recepção de sua obra em outros países, entre eles o Brasil. Apenas no início dos anos 2000 o Brasil recebeu uma efetiva tradução do primeiro tomo de O mundo como vontade e representação, realizada por Jair Barboza, e, finalmente, em 2014, recebeu a tradução do segundo tomo, realizada por Eduardo Ribeiro da Fonseca. Desde uma perspectiva inicial, o feito que representa a tradução desse segundo tomo, obra tão volumosa, já merece destaque, não por seu aspecto quantitativo, porém por seu destaque qualitativo.

Desempenhada com verdadeiro esmero, a tradução recobre o árduo labor de ter de verter para uma língua latina uma língua germânica, o que, desde o princípio, é sempre um entrave e um convite ao trabalho rigoroso. Ademais, não se pode negar o fato de que Schopenhauer está inserido em uma tradição da filosofia alemã que não apenas remonta a Kant, mas que estabelece vivo diálogo com a filosofia clássica alemã, isto é, com o idealismo alemão, de tal maneira que, ao realizar a tradução, Eduardo Ribeiro da Fonseca teve de atentar para o uso técnico-filosófico das palavras, ação na qual foi plenamente satisfatório. O cuidado em apresentar a grafia de termos em alemão — tais como Wirklichkeit, Witz ou Erfahrung — não é mero preciosismo acadêmico, mas denota o cuidado para com a tradição na qual se encontrava o autor traduzido. De igual maneira, o tradutor empenhou-se em apresentar a grafia original de termos empregados por Schopenhauer em línguas diversas ao alemão, tais como grego e latim, o que representa um respeito ao autor e permite com que o leitor se aperceba da erudição do filósofo alemão.

O maior mérito da tradução, no entanto, diz respeito ao cuidado do tradutor em produzir uma vasta gama de notas que servem não só como um auxílio ao texto de Schopenhauer, mas também como fomento da pesquisa sobre o autor em solo brasileiro. A publicação desse segundo tomo, assim, é duplamente valorosa para a pesquisa filosófica brasileira, já que serve aos estudiosos o texto completo da principal obra de Schopenhauer, além de ser acompanhado de um minucioso trabalho de análise e sopesamento da relação de Schopenhauer com outros pensadores, sobretudo com Nietzsche e Freud.

Sobre esse ponto há que se tecer um breve comentário. O tradutor, Eduardo Ribeiro da Fonseca, apresenta profunda honestidade intelectual ao declarar, em seu texto introdutório à tradução, as veredas e os caminhos que trilhou, tanto para chegar a Schopenhauer quanto para partir de Schopenhauer. Ter se aproximado do filósofo alemão pelas vias do dramaturgo sueco August Strindberg revela muito não apenas sobre o tradutor, mas sobre certa tendência de “descoberta” de Schopenhauer.

É inegável o fato de que o filósofo alemão foi muitas vezes salvaguardado e mesmo “mantido avivado” pelas forças literárias. Assim como Nietzsche encontrou primeiramente leitores de verve não estritamente necessária — com Hermann Hesse ou Robert Musil —, Schopenhauer encontrou em diversos autores de literatura sua primeira recepção fora da Alemanha. É o caso de Pío Baroja, na Espanha, de Augusto dos Anjos e Machado de Assis, no Brasil, e, é claro, de August Strindberg. Assim, quando o tradutor designa sua origem, o faz de maneira a inscrever-se em uma sólida tradição.

Por outro lado, ao partir de Schopenhauer, Eduardo Ribeiro da Fonseca passa — quase que necessariamente — por Nietzsche, mas encontra-se, por fim, com Freud. É esse o encontro que rende maior impacto sobre a tradução e, mais precisamente, sobre as notas ali inseridas. O tradutor faz referência a seu trajeto acadêmico e confessa ter realizado pesquisa sobre a relação existente entre Schopenhauer, Nietzsche e Freud1 . Dessa forma, boa parte das notas que a tradução insere com referência ao texto tem por intenção evidenciar essa relação entre os três mencionados autores, sobretudo entre Schopenhauer e Freud. As muitas notas que complementam a tradução, é certo, não se restringem à relação existente entre Schopenhauer e Freud, havendo uma série de referências pertinentes ao auxílio da leitura. Contudo, é considerável o número de vezes em que é suscitada a possibilidade de relação entre o filósofo alemão e o psicanalista vienense.

Mais do que orientar a leitura, a presença de tantas menções à possível relação entre Schopenhauer e Freud acaba delimitando uma espécie de sentido, não apenas para a tradução, mas para o próprio texto de Schopenhauer. Isso quer dizer que, em uma leitura acurada dessa tradução do segundo tomo do Mundo como vontade e representação, é quase impossível sair ileso a essa tendência relacional que o tradutor se esforça para marcar. Em determinado momento, sentese que há quase indubitavelmente uma pré-existência de certas teses freudianas no pensamento de Schopenhauer, principalmente no que diz respeito à questão do conceito de Trieb.

Essa força, advinda da leitura conjunta de tradução e notas, configura importante fator para a pesquisa de um autor que, como apontado anteriormente, havia sido recepcionado de maneira fragmentária. Por meio do trabalho de Eduardo Ribeiro da Fonseca, a leitura de Schopenhauer é animada, não pela simples existência de uma tradução, mas pela concomitante abertura de uma possibilidade de leitura e de análise, ou seja, aproximando o filósofo alemão de certa tendência psicanalítica.

No sentido de uma análise crítica, ou seja, ao se tecer ponderações que em nada apontam uma negatividade, mas apenas uma possível vacância do trabalho realizado na tradução, o traço mais marcante que se pode apresentar é quiçá uma determinação demasiado pesarosa. Tamanha é a tendência que impõe o tradutor na relação entre Schopenhauer e Freud, que acaba não demarcando outros aspectos da obra do filósofo alemão, sobretudo quando essa pode ser pensada em relação a sua própria tradição.

Schopenhauer não é apenas um autor influenciado pela filosofia de Kant. É um kantiano, que, por sua vez, travou um embate com outros kantianos. São muitas as relações e indicações presentes no segundo tomo de O Mundo como vontade e representação que colocam Schopenhauer em franco debate com a filosofia de seu tempo. Se o solo onde se trava o embate é demarcado pela filosofia kantiana, é certo que há mais personagens que Kant. Dessa maneira, quando Schopenhauer abriu o segundo tomo de sua obra-prima com um capítulo denominado “Sobre a visão fundamental do Idealismo”, estava, de alguma maneira, apontando quais eram seus principais alvos. Alvo ainda mais evidente quando se considera, por exemplo, o capítulo XII, “Sobre a Doutrina da Ciência”, já que esse termo, famoso pelo uso dado por Fichte — Wissenschaftslehre —, está presente em outros autores, entre eles Schelling e Hegel, a quem Schopenhauer visa opôr-se em seu pensamento.

De igual maneira, seria possível estabelecer, pelo uso das notas — que tão belamente o tradutor faz no caso de Freud —, a relação, ainda que de crítica e oposição, entre Schopenhauer e os românticos alemães. O capítulo XXXI, “Sobre o gênio”, talvez seja o ponto mais evidente em que certas considerações são feitas tendo em vista não só a Crítica do Juízo de Kant, mas também todo o escopo de teorias sobre o gênio no pensamento de Friedrich Schlegel, de Novalis, Jean Paul, e, novamente, Fichte, Schelling e Hegel.

Como já se afirmou, a intenção não é produzir uma ressalva, sequer uma crítica, mas uma mera consideração acerca dos níveis que poderiam ser dados na tradução. Se foi possível realizar um trabalho para com uma relação — Schopenhauer e Freud —, seria possível, igualmente, ter ressalvado esse trabalho histórico, inserindo o filósofo em seu tempo. Para além disso, por se tratar de uma primeira tradução do texto na tradição brasileira, é sobremaneira importante que sirva como uma verdadeira abertura, um convite para possíveis sentidos, e não como um direcionamento para um sentido mais preponderante.

Pouco foi considerado nos estudos brasileiros, é certo, sobre as influências mais eminentes que tiveram os pensadores posteriores a Schopenhauer — com exceção, é claro, de Nietzsche —, de modo que esse campo, já que Freud é certamente um autor posterior, também estaria aberto e passível de um tratamento. Há, por exemplo, acertada menção de Jorge Luis Borges, em Otras inquisiciones, sobre a influência de Schopenhauer em Philipp Batz2 , mas de igual maneira poderia ser considerada a influência sobre Eduard von Hartmann.

Essas considerações, no entanto, não passam de um desejo impulsionado tanto pela obra quanto pelo trabalho realizado pelo tradutor. Almeja-se mais justamente porque se vê a possibilidade para tanto, impulso esse que não seria possível por força de um trabalho parcial ou insuficiente. É pela magnitude de empreitadas como essa, da tradução, que Schopenhauer não é só revalorizado, mas também restituído de sentido valorativo dentro da filosofia.

Notas

1 Nesse sentido, é válida a menção à tese de doutorado de Eduardo Ribeiro da Fonseca, que foi posteriormente publicada em formato de livro: FONSECA, E. R. Psiquismo e vida: sobre a noção de Trieb nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche. Curitiba: Ed. da UFPR, 2012.

2 De forma poética, Borges considera: “pienso en aquel trágico Philipp Batz, que se llama en la historia de la filosofía Philipp Mainländer. Fue, como yo, lector apasionado de Schopenhauer. Bajo su influjo (y quizá bajo el de los gnósticos) imaginó que somos fragmentos de un Dios, que en el principio de los tiempos se destruyó, ávido de no ser. La historia universal es la oscura agonía de esos fragmentos. Mainländer nació en 1841; en 1876 publicó su libro, Filosofía de la redención.” (BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emecé, p.58).

Lucas Piccinin Lazzaretti – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]

 

Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno – RYAN (RFA)

RYAN, Bartholomew. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.905-915, jul./dez, 2014.

Trilhada quase que exclusivamente sob uma linha mestra que desemboca em uma única vereda, a pesquisa sobre Sören Kierkegaard é demasiadamente pautada ora pelas migalhas que o autor dinamarquês legou, ora pelo interesse que ricocheteia sobre Kierkegaard. Explica-se: certa linha de pesquisa é ainda muito adstrita aos termos kierkegaardianos, realizando uma espécie de exegese textual que, embora essencial, por vezes apresenta limitação pelos próprios horizontes delineados; outra linha de pesquisa tangencia a obra de Kierkegaard quase como que por acidente, vindo a buscar nos textos do pensador de Copenhague uma solução específica e, não raramente, distorcida do autor. Assim, por um lado ocorre a consideração de categorias filosóficas engendradas por Kierkegaard — como instante, salto, angústia, desespero, liberdade, etc. —, por outro lado há uma aproximação capciosa, em que tanto a teologia — em um embate por certa sustentação da fé cristã por via de uma reforma — quanto a filosofia — pela influência exercida sobre Heidegger, Jaspers e outros — acabam gerando uma pesquisa circular e incapaz de corresponder ao devir da obra kierkegaardiana.

O grande mérito de Bartholomew Ryan com seu livro Kierkegaard’s Indirect Politics – Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno é deslocar, desde o início, a pesquisa realizada em torno da obra de Kierkegaard. Para além dos termos já marcadamente conhecidos acerca da produção kierkegaardiana, tais como existência, subjetividade ou religiosidade, Ryan arrisca-se na abordagem de uma temática pouco atribuída a Kierkegaard, ou seja, a questão política. E, conjuntamente, como o próprio título indica, faz essa abordagem temática exercendo uma conversação diferenciada, não com os já habituais filósofos do século XX que costumam acompanhar Kierkegaard (ou seja, o dito existencialismo francês e alemão), mas realizando um diálogo com o conturbado cenário político-cultural do início do século XX na Alemanha. Carl Schmitt, Theodor Adorno e Walter Benjamin são notoriamente figuras de relevância na construção do pensamento político alemão do período entreguerras. György Lukács, húngaro de nascimento, mas culturalmente germânico, é devidamente agrupado por Ryan à intelligentsia alemã. A força política dos autores do início do século XX é notória; o que não restaria evidente é o aspecto político presente na obra de Kierkegaard.

Ryan inicia seu livro assentando seus pressupostos teóricos. Prudentemente, põe-se a questão: “Faz sentido escrever um livro sobre ‘Sören Kierkegaard’ e ‘política’?”1 , tendo em vista a relutância kierkegaardiana de abordar a política manifesta em uma carta, onde o filósofo dinamarquês afirmaria: “Não, política não é para mim”. A aposta de Ryan visa a abordar a política em Kierkegaard não pela via direta, já que esta enfrentaria a resistência confessa do próprio autor, mas pela via indireta, servindo-se de aspectos biográficos, bibliográficos e filosóficos de Kierkegaard. A categoria filosófica, que também opera como método autoral, denominada pelo filósofo dinamarquês de comunicação indireta, é um dentre os pressupostos que Ryan utiliza para engendrar sua política indireta. Tal como no sentido da comunicação indireta, em que um conteúdo, não podendo ser comunicado diretamente, só pode ser feito indiretamente com o uso de recursos autorais dos mais sofisticados, também a política indireta só será comunicada lateralmente quando buscada dentro da obra kierkegaardiana, de forma que o conteúdo primeiro e mais imediato nunca é eminentemente político, mas que as profundezas de um conteúdo, o arcabouço e, mais, as consequências, possam, essas sim, ser políticas. Ryan expõe seu método com clareza:

Em um sentido simples, não podemos falar de Kierkegaard e política juntos. Mas a política indireta de Kierkegaard existe em um nível geral de duas maneiras. Primeiro, porque Kierkegaard não escreve teses políticas e despreza a política tradicional, sua política só pode ser indireta. Se o todo da autoria de Kierkegaard existe para transformar os seres humanos, então a ideia é que se as pessoas tornam-se mais conscientes [self-aware] de si mesmas como indivíduos formados por suas próprias decisões, isto pode levá-los também a questionar mais radicalmente as estruturas da autoridade que frequentemente buscam mascarar a autonomia humana, ou seja, o Estado e certas formas de dogmatismo político (RYAN, 2014, p.2).

A tentativa, portanto, não é retirar um conteúdo eminentemente político dos textos de Kierkegaard, mas estabelecer, por sua vez, um diálogo que, pela própria conversação, faça emitir conteúdos políticos. Não por outra razão os autores escolhidos possuem uma evidência política. Contudo, mais do que isso, os quatro autores escolhidos por Ryan para dialogarem com Kierkegaard são, curiosamente, leitores e estudiosos do pensador dinamarquês. O leitmotiv está, portanto, em definir um meio caminho entre a produção e originalidade da obra de Kierkegaard por um lado, a autoria e participação política dos filósofos escolhidos para o diálogo por outro lado e, em meio a esse trajeto, firmar um ponto de encontro que vá além do mero fato de que Kierkegaard foi lido por Lúkacs, Schmitt, Benjamin e Adorno.

Em seu primeiro capítulo, os apetrechos de que se vale Ryan para esse esforço são três: os termos Mellemspil (interlúdio), Skillevei (encruzilhada ou, mais liricamente, vereda) e Dagdriver (andarilho ou flâneur). O interlúdio [Mellemspil] é o instrumento que permite criar o diálogo entre os autores. Como pontua Ryan, “a política indireta é a brecha ou interlúdio que abre espaço para o salto dialético, a exceção, o exílio e o andarilho, e a esquiva negativa a toda totalidade” (RYAN, 2014, p.1). A vereda [Skillevei] diz respeito à vida de Kierkegaard, mais precisamente ao ano de 1848, ponto de virada em que o pensador dinamarquês escreve e publica uma série de textos que dizem respeito ao ambiente de revolução político-social dinamarquesa, como também da revolução pessoal de Kierkegaard. Em 1848 são escritos Duas Épocas: Uma Resenha Literária, Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra Enquanto Escritor, A Crise e uma crise na vida de uma atriz, parte dos Discursos Cristãos. Também nesse ano, Kierkegaard havia iniciado a escrita de Prática no cristianismo. Um ano de muita produção, em que grande parte dos textos busca responder ao ambiente social e político da Dinamarca daquele tempo. Por fim, Dagdriver, dificilmente traduzido como andarilho, tendo mais a característica de um flâneur, advém da característica de Kierkegaard de comportar-se como um observador e analisador cosmopolita e urbano, característica que se reflete nos textos e encontra similitudes com os autores escolhidos para os diálogos. Esses são os aparatos utilizados por Ryan, desde o início audaciosos e bastante inovadores quanto à pesquisa sobre Kierkegaard. Ainda que se tratem de categorias independentes e não correlacionadas em uma hierarquia, é certo que ao longo do livro o termo Skillevei tem maior ocorrência e relevância. Isso porque há maior proximidade entre a tese da política indireta e do produtivo ano de 1848 se considerado esse termo como central:

A imagem do Skillevei, traduzida como encruzilhada [vereda], é outro motivo limítrofe (literalmente) que é simbólico do ano de 1848. Como parte da política indireta, o Skillevei é o espaço, o entre, outro Mellemspil [interlúdio] entre momentos na história humana, entre viver e morrer, e na formação do indivíduo em si mesmo que é desafiado pela sociedade e, em contrapartida, confronta a sociedade. Isto está de acordo com o conceito de política indireta que é, antes de tudo, o espaço negativo entre disciplinas (RYAN, 2014, p.20).

Mais do que simplesmente embasar sua tese acerca da política indireta, Ryan realiza uma ponderação sobre textos que não raras vezes não estabelecem um diálogo dentro do corpo da obra kierkegaardiana. É por colocar lado a lado textos como os Discursos Cristãos e Duas Épocas que Ryan é capaz de apresentar um Kierkegaard que, de maneira plausível, poderia apresentar uma política indireta. A preparação do primeiro capítulo, no entanto, tem como pressuposto enunciado o fato de que os quatro autores que estabelecerão o diálogo com Kierkegaard são, dentre outros aspectos, pensadores políticos, de modo que se espera que se justifique com mais ênfase, por meio dos diálogos, a tese da comunicação indireta, sobretudo pela recepção que teriam exercido os filósofos políticos do início do século XX.

O método utilizado por Ryan para criar um cenário possível em que se realizem os diálogos é encontrar pontos de encontro que podem se transformar, conforme a análise, em uma aproximação ou em um distanciamento entre os autores. É assim que se procede, por exemplo, com o diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács no segundo capítulo. Pela via da influência kierkegaardiana na obra de Lukács, Ryan abre suas considerações:

Ao examinar os textos de Lukács, seja naqueles ainda fortemente sob a influência de Kierkegaard, como Alma e Forma e A Teoria da Novela, bem como na explosiva conversão ao marxismo em História e Consciência de Classe, ao período stalinista de A Destruição da Razão, que coloca Kierkegaard como um dos fundadores do irracionalismo e precursor do nacional-socialismo, Lúkacs transforma a interioridade de Kierkegaard em práxis revolucionária, mas no processo tenta aniquilar todos os traços de ambiguidade em uma homogeneidade, em um mundo totalmente unificado (RYAN, 2014, p.43).

Ao longo do segundo capítulo é possível acompanhar essa análise sobre a obra de Lukács e a possível influência de Kierkegaard presente no desenvolvimento do pensador húngaro. A proximidade entre Kierkegaard e Lúkacs no entorno da leitura e as impressões sobre o Fausto de Goethe, apresentadas logo no início do segundo capítulo, parecem ter antes o caráter de comprovar a relação entre os dois autores do que necessariamente lançar luz sobre a tese principal do livro: a política indireta. Isso porque, como Ryan afirma, a primeira fase da vida de Lukács, na qual ocorre a publicação de Alma e Forma, por exemplo, é ainda uma fase pré-marxista e mais voltada para a cultura e para a literatura do que propriamente para a política. A grande questão do diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács se dá pela apresentação da transformação que faz Lukács com a interioridade kierkegaardiana, alterando-a ou, mais precisamente, realocando-a para uma práxis revolucionária. Valendo-se de uma suposta linha de continuidade presente na produção do pensador marxista, Ryan afirma que uma vez que

no início de História e Consciência de Classe Lukács declara ‘postular-se, produzir-se e reproduzir-se — isto é realidade’”, esta seria a comprovação de que se teria utilizado “a interioridade como uma expressão da práxis revolucionária, componente que Lukács carrega para seu período marxista desde Alma e Forma e A Teoria da Novela (RYAN, 2014, p.57).

Entretanto, a influência de Kierkegaard sobre Lukács teria encontrado sua interrupção nesse pequeno adorno, ou seja, no fato de que, de alguma forma, o jovem Lukács, interessado por Kierkegaard — ao qual teria dedicado, inclusive, um belo ensaio em seu livro Alma e Forma —, teria se permitido levar para dentro do marxismo a concepção de interioridade kierkegaardiana. Porém, e isso Ryan parece tentar pontuar, Lukács leva Kierkegaard para dentro do marxismo, não para dentro do stalinismo, já que este condena o subjetivismo do filósofo dinamarquês e rejeita os pensamentos vindos de Copenhague, dando preferência aos prisioneiros da Sibéria. E aqui repousa todo contato Kierkegaard–Lukács.

No que diz respeito ao diálogo ocorrido entre Carl Schmitt e Kierkegaard, a análise depende em grande parte do que Schmitt expressa em uma carta para Ernst Jünger e que acertadamente Ryan escolhe como epígrafe de seu capítulo: “Tais influências indiretas, que iludem qualquer documentação, são as mais fortes e de longe as mais autênticas.” É preciso admitir, como faz Ryan, que “pouco foi escrito sobre Carl Schmitt e Kierkegaard apesar da reverência que Schmitt faz ao pensador dinamarquês”, sobretudo pelo uso do termo exceção, empregado por Kierkegaard em Temor e Tremor e Repetição, e utilizado por Schmitt em sua definição de soberania no livro Teologia Política. Grande parte da análise de Ryan quanto a esse diálogo se fundamenta pelo uso feito por Schmitt da exceção e pela leitura que faz o pensador alemão dos textos do pensador dinamarquês:

Ler a leitura que faz Schmitt sobre Kierkegaard é um exercício frutífero em trazer à tona várias questões não resolvidas nos últimos escritos, e também acrescenta outro surpreendente membro à lista de radicais pensadores europeus na Weimar dos anos de entreguerras que caiu sob o feitiço de Kierkegaard e apropriou seu pensamento de formas excitantes e polarizadas. Neste capítulo iremos mais a fundo na política indireta da forma que esta fez seu caminho para a vanguarda da política global no século XX. O que é frequentemente negligenciado quando se lê Schmitt é, como em Kierkegaard, a injeção do teatro em seu trabalho, e como os motivos, máscaras e figuras do palco informam e inspiram seu trabalho. Aqui temos o ponto de advertência de uma tentativa de preencher o espaço negativo e Mellemspil que é a política indireta (RYAN, 2014, p.90).

A proposta é encontrar, portanto, elementos que justifiquem a tese sobre a política indireta na influência de Kierkegaard sobre Schmitt. Correntemente referido, o ponto inicial é o conceito de exceção, o qual Schmitt realoca desde o emprego que faz Kierkegaard em seus textos — de maneira interior e existencialmente concreta — para um âmbito político. Ryan demonstra o vivo interesse que Schmitt manifestou na leitura de Kierkegaard e reúne diversas citações sobre como o jurista alemão era um vivaz entusiasta dos ensinamentos de Kierkegaard. No entanto, não é oferecida tese consubstancialmente relevante que permita crer que o conceito de exceção, tão arraigadamente existencial, individual e próprio do homem concreto, tenha saltado para a aplicação política feita por Schmitt senão por uma influência que, mais do que indireta, seria quase opaca, lateral.

Em contrapartida ao emprego do conceito de exceção por parte de Schmitt em sua possível influência kierkegaardiana, Ryan faz. uma excelente análise ao considerar a severa crítica realizada por Schmitt contra o romantismo político em paralelo com a crítica social- -existencial feita por Kierkegaard contra o romantismo germânico. O conceito em questão é a decisão e Ryan demonstra haver similitudes entre as duas críticas. Tanto Kierkegaard quanto Schmitt se voltariam contra o romantismo, uma vez que essa corrente produz uma característica de inação e indecisão. O esteta kierkegaardiano não decide concretamente da mesma maneira que o parlamentar burguês também não o faz. Contudo, a decisão kierkegaardiana é própria do indivíduo, enquanto a decisão demandada por Schmitt é própria da estrutura jurídica e política de um Estado. As consequências são bem pontuadas por Ryan: pelo lado de Kierkegaard a decisão produz a singularização do indivíduo; pelo lado de Schmitt, produz a dicotomia amigo-inimigo, bem como todos os efeitos que dessa dicotomia decorrem. Por fim, ao avançar em sua análise, apresentando o soberano como desespero, Ryan assume posições que já são marcadas por uma interpretação de Schmitt que é pautada pelas leituras de críticos do século XX, dentre eles Agamben, obtendo, com isso, os mesmos resultados relutantes acerca da produção teórica de Schmitt.

É sem dúvida pelo diálogo entre Walter Benjamin e Kierkegaard que o livro encontra seu ponto de maior efervescência. A começar pelas personalidades dos dois autores: ambos, Benjamin e Kierkegaard, exerceram uma espécie de fascinação por possuírem certas idiossincrasias que atraiam os leitores. Não são raros os escritos que dão mais importância às particularidades das vidas de Benjamin e Kierkegaard do que propriamente aos seus escritos. O que normalmente seria cotado como mera curiosidade sem fundo teórico relevante, no caso dos dois pensadores em questão parece ser o contrário, uma vez que suas idiossincrasias encontram reflexo em suas obras, como nota Ryan:

Igualmente ao corpo da obra de Kierkegaard, a variedade e riqueza dos escritos de Walter Benjamin levam o leitor a um vasto labirinto, pois como Kierkegaard oferece uma variedade de perspectivas e modos de vida por via de seus pseudônimos, Benjamin escreve com igual presença de espírito e paixão sobre tópicos como Marxismo, Kafka, A Bíblia, haxixe, cidades como Paris e Nápoles e o quase esquecido barroco alemão (RYAN, 2014, p.135).

Sugestivamente, o quarto capítulo intitula-se Loafers of History, o que põe em questão um conceito que parecer ser caro a Ryan, ou seja, o loafer, Dagdriver ou flâneur, figura representativa do século XIX e XX que bem representa Kierkegaard e Benjamin. Descrever minuciosamente os interiores e os exteriores de um centro urbano é mais do que simplesmente uma atividade poética, é parte de considerações filosóficas que vão se compondo conforme a própria descrição. Nesse ponto, pela potencialidade imagética e por se tratar de uma capacidade criativa e estética avantajada, Benjamin e Kierkegaard encontram-se, conforme a análise de Ryan, em uma esquina para, em uma caminhada, passar a tecer considerações que inevitavelmente levam à política: Kierkegaard, na crítica ácida à Dinamarca de seu tempo, e Benjamin, nas considerações sobre a Paris de Baudelaire, sobre Nápoles ou Berlim. O grande impacto do diálogo estabelecido entre Benjamin e Kierkegaard repousa sobre o fato de que, ao contrário dos outros diálogos, Benjamin parece ter algo a oferecer à leitura da obra kierkegaardiana:

Quem era Kierkegaard? Aos olhos do público ele era um preguiçoso [loafer] de esquina, o Dagdriver, um ocioso sagaz. Kierkegaard via a percepção das pessoas sobre ele como um flâneur como algo negativo, mas o que Kierkegaard se torna por meio de seus escritos é exatamente isso, no sentido de Benjamin; como observador, transeunte e crítico da cidade e da sociedade dentro da qual se vive e respira (RYAN, 2014, p.147).

Lateralmente, a questão da política indireta fica adstrita a uma espécie de embate entre Benjamin e Schmitt, no qual Kierkegaard parece ter pouco a oferecer, salvo algumas considerações pontuais. A aproximação da questão messiânica surge no livro como uma abertura temática que encontra poucas linhas de intersecção entre Kierkegaard e Benjamin, restando a imagem de que se trata de autores de suma potência no pensamento, mas que ainda não trilharam caminhos suficientemente paralelos.

O último diálogo, por sua vez, diz o limite daquilo que as análises de Theodor Adorno podem dizer. Se por um lado Benjamin e Schmitt não dedicam nenhum escrito específico a Kierkegaard e Lukács o faz em meio a tantos outros ensaios e estudos, por outro lado Adorno apresentou de fato um trabalho mais extenso sobre o filósofo dinamarquês. É acertado quando Ryan afirma que “dentre todos os pensadores em conversa com Kierkegaard neste livro, Adorno cita o trabalho de Kierkegaard mais extensivamente” (RYAN, 2014, p.177). Contudo, é também acertado considerar que tal trabalho, Kierkegaard: Konstruktion des Ästhetischen, é fruto de uma série de desentendimentos de Adorno não tanto com Kierkegaard, mas com tudo aquilo que não serve ao hegelianismo do teórico de Frankfurt. Ryan delineia essa questão ao fazer uma análise sobre a utilização que faz Adorno de um trecho de um conto de Edgar Alan Poe. A desolação de Poe é usada como imagem para o que Adorno considera sobre Kierkegaard:

O que resta após se ler esta notável prosa é uma imagem de niilista interioridade, suspensa entre haver e não haver chão, aliada a nada, uma abundância de copes atrás das quais repousa um buraco negro de futilidade. Esta é a filosofia de Kierkegaard de acordo com Adorno (RYAN, 2014, p.179).

Sentencialmente está sanada toda a relação entre Adorno e Kierkegaard. Havia Hegel entre eles e Adorno já havia prestado seu juramento de ortodoxia. Ainda que se queira afirmar que há qualquer resquício de influência de Kierkegaard na dialética negativa de Adorno, isso é mais benevolência do autor do que necessariamente uma posição embasada. O diálogo entre eles é, em verdade, negativo: não acontece.

Considerando, por fim, a tese da política indireta de Kierkegaard e os efeitos que podem advir do diálogo, é Ryan quem afirma que “um aspecto central da política indireta, como explorada neste livro, é a influência de Kierkegaard sobre a formação do pensamento político de Lukács, Schmitt, Benjamin e Adorno”, mas, para além disso, “como esses quatro interlocutores por sua vez leem e criticam uns aos outros à sombra de Kierkegaard” (RYAN, 2014, p.233). Ao ter frisado a importância das veredas, Ryan adentra em um grande sertão que muitas vezes o põe como um loafer diante das obras e autores abordados. A política indireta emerge de forma colateral, não à maneira que uma tese se evidenciaria. E uma vez que a política indireta é a própria tese, resta certa aporia em meio a alguns dos diálogos propostos.

Em comparação à pesquisa realizada acerca da obra de Kierkegaard, Ryan propõe um ponto de vista singular e perspicaz, seguindo os caminhos que inicialmente foram trilhados por George Pattison. Contudo, como esses caminhos levam a veredas, é preciso ser uma espécie de viandante para seguir a senda ainda muito vasta que se apresenta para aqueles que visam concluir a tese intuída por Ryan acerca da política indireta de Kierkegaard.

Nota

1 As citações feitas com base no texto original do livro de Bartholomew Rya são traduções livres feitas exclusivamente para a presente resenha. Quaisquer lapsos estilísticos são antes deslizes do tradutor que falhas do autor.

Referência

RYAN, B. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014.

Lucas Piccinin Lazzaretti – Mestrando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]