Inmigración, Trabajo y Servicio Doméstico en la Europa Urbana, Siglos XVIII-XX – ISIDORO DUBERT (LH)

ISIDORO DUBERT, Vincent Gourdon (org). Inmigración, Trabajo y Servicio Doméstico en la Europa Urbana, Siglos XVIII-XX. Madrid: Casa de Velázquez, 2017, 304 pp. Resenha de: ABRANTES, Manuel. Ler História, v.75, p. 288-291, 2019.

1 O estudo do trabalho doméstico tem florescido na última década, ganhando visibilidade em vários campos científicos. A contiguidade destes campos é tão evidente quanto os benefícios do diálogo interdisciplinar. Ao debruçar-se sobre o livro Inmigración, Trabajo y Servicio Doméstico en la Europa Urbana, Siglos XVIII-XX, um sociólogo que estuda as características contemporâneas deste sector de trabalho não tarda a recordar certas leituras iniciáticas ; e, assim impelido a abrir mais uma vez o extraordinário tratado de Wright Mills sobre a imaginação sociológica, reencontra as páginas nas quais o autor norte-americano propõe que “as ciências sociais são elas próprias disciplinas históricas” e que “precisamos da variedade disponibilizada pela história até para formular questões sociológicas de forma apropriada, quanto mais para lhes responder”.1

2 O livro aqui analisado, organizado pelos historiadores Isidro Dubert e Vincent Gourdon a partir de um colóquio que se realizou em Santiago de Compostela em 2013, é constituído por três partes encadeadas numa ordem lógica : de uma matriz mais geral (visões panorâmicas) para uma matriz mais particular (análises de casos específicos). A primeira parte é dedicada à relação entre a mobilidade populacional campo-cidade e os processos de urbanização e industrialização. O foco empírico incide sobre cidades da Europa que, tendo vivido estes processos em graus e ritmos diversos, têm em comum o facto de se distinguirem do paradigma de industrialização tout court privilegiado nos estudos anglo-saxónicos. Como se sublinha desde logo no capítulo introdutório do livro, os desenvolvimentos ocorridos em Paris, Turim, Santiago de Compostela, Lisboa ou Porto, ainda que difusos ou ambíguos, são exemplificativos de uma parcela substancial do fenómeno de urbanização no continente europeu.

3 Começamos por um texto de enquadramento, no qual Jean-Pierre Poussou sintetiza grandes tendências do século XVIII aos dias de hoje. De seguida, Teresa Ferreira Rodrigues e Susana de Sousa Ferreira concentram-se no período de 1850-1930 em Portugal, examinando as ligações entre migrações internas, sistema urbano e políticas de industrialização. Para este fim, tomam em consideração não só os fluxos demográficos mas também os padrões de comportamento em dimensões como a nupcialidade, a fecundidade, os quotidianos e os modos de apropriação do espaço urbano. São elementos importantes para compreender os desequilíbrios de um país que se movia a diferentes velocidades ; um país cuja população aumentou de 3,5 milhões em 1850 para 6,8 milhões em 1930, aumento absorvido em larga medida pelos movimentos migratórios que resultavam de assimetrias regionais de crescimento demográfico e desenvolvimento. Por outro lado, as autoras não deixam de salientar várias diferenças significativas em função do género (percursos de homens e de mulheres), da duração (migrações permanentes, temporárias e sazonais) e da distância geográfica (migrações internacionais, do interior para o litoral, e das zonas rurais para as zonas urbanas). As redes migratórias que na mesma época se desenvolviam em Madrid e Paris são estudadas por Rubén Pallol Trigueros e Manuela Martini, respetivamente.

4 A segunda parte do livro reúne trabalhos que procuram compreender a concomitante transformação dos mercados de trabalho rurais e urbanos, detendo-se com especial atenção nas dinâmicas associadas à composição familiar e ao ciclo de vida. Llorenç Ferrer-Alós dedica-se ao caso da Catalunha no século XIX e Isidro Dubert à cidade de Santiago de Compostela nos séculos XIX e XX, enquanto François-Joseph Ruggiu nos leva ao século XVIII em Charleville, actualmente Charleville-Mézières. Por último, os capítulos da terceira parte cruzam a análise estatística com a reconstrução de percursos de vida – a partir de fontes diversas como recenseamentos, registos fiscais ou testemunhos orais – para examinar a relação entre fluxos migratórios, mercados de trabalho e serviço doméstico ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX. Aprofundamos assim a compreensão de dinâmicas específicas do trabalho doméstico pago em Turim (por Beatrice Zucca Micheletto), Charlevillle (por Fabrice Boudjaaba e Vincent Gourdon), Granada (por David Martínez López e Manuel Martínez Martín) e Corunha (por Luisa María Muñoz Abeledo). O capítulo sobre Granada, por exemplo, mostra que nessa cidade as consideráveis flutuações na dimensão do sector do serviço doméstico dentro dos limites temporais do estudo – de 1890 a 1930 – não seguiram um padrão linear, antes acompanhando transformações culturais relacionadas com práticas e atitudes de classe, com a economia da prestação de cuidados e com a própria (des)valorização deste tipo de trabalho. A segmentação entre serviço interno e externo comporta uma clara marca de género que lança luz sobre desenvolvimentos posteriores do sector.

5 Se o capítulo de David Martínez López e Manuel Martínez Martín destaca a dimensão de género na organização do serviço doméstico, faz-nos falta o reconhecimento desta dimensão noutros momentos do livro, sob risco de se negligenciar a exploração das mulheres e o carácter estruturante da desigualdade entre mulheres e homens, tanto nas relações hierárquicas de classe como nas dinâmicas internas à classe trabalhadora e à burguesia. Esta perspectiva é fundamental para explicar as tensões e transformações do serviço doméstico – quer em retrospectiva, quer na actualidade. Como argumenta Rosemary Crompton, o género nunca deixou de ser, ao longo dos séculos XIX e XX, um elemento determinante na repartição de responsabilidades, na ideologia da vida privada e da vida pública enquanto esferas separadas, e nos modelos de divisão do trabalho daí decorrentes.2

6 A pluralidade dos estudos reunidos no livro, a par do diminuto conhecimento histórico do autor desta recensão, dificulta a elaboração de uma linha comum de leitura e interpretação. Certo é que o livro dá um contributo importante para se reconhecer a centralidade do serviço doméstico na História das sociedades europeias – seja de um ponto de vista económico, enquanto sector de trabalho volumoso, complexo e dinâmico, seja na estruturação das relações sociais e, por conseguinte, na organização das práticas quotidianas. Daqui decorre um convite claro a perscrutarmos as segmentações internas do serviço doméstico, das suas realidades mais públicas às dinâmicas mais íntimas e informais, estas últimas obscurecidas pela subalternização histórica das vozes e das experiências das mulheres – e, sobretudo, das mulheres da classe trabalhadora. Mas o desafio será também não perder de vista o quadro mais amplo ; não acantonar o serviço doméstico como objecto de investigação ; realçar as suas singularidades sem esquecer as interligações com outros sectores de trabalho e com outras componentes das relações de género.

7 Do ponto de vista metodológico, os organizadores do livro defendem consistentemente o potencial das genealogias e das análises de ciclo de vida para um entendimento mais fino das mudanças sociais. Propõem uma lente mesoscópica capaz de captar a agência dos indivíduos, as redes, as mediações, as relações com a cidade, as dinâmicas familiares. Rejeitando uma noção dos contextos de partida e de chegada como estanques, constatamos com efeito que a destruição das vidas e economias rurais esteve na origem de fluxos campo-cidade que pouco devem a aspirações pessoais. Ou seja, o aprofundamento do estudo das condições individuais não nos leva, de modo algum, a cair nas falácias de um individualismo metodológico : pode justamente ser um passo necessário para reduzir o factor individual à medida apropriada. Por tudo isto, o livro aqui recenseado é também um convite a reler o notável trabalho de Inês Brasão, que estuda a condição servil em Portugal entre 1940 e 1970 a partir dos processos de dominação e de resistência que a caracterizaram, baseando-se num conjunto amplo de fontes que vai de censos a testemunhos orais, de legislação a excertos de imprensa, de relatórios públicos a fotografias pessoais.3 A linha que pode unir as criadas de servir em épocas passadas e as empregadas domésticas do presente está por traçar ainda. O diálogo interdisciplinar é uma condição favorável para a concretização desta tarefa, bem como um elemento promissor para reforçar o diálogo entre as ciências sociais e a política pública relativa ao trabalho doméstico.

Notas

1 Charles Wright Mills, The Sociological Imagination. Oxford : Oxford University Press, 1959, pp. 1 (…)

2 Rosemary Crompton, Employment and the Family : The Reconfiguration of Work and Family Life in Con (…)

3 Inês Brasão, A Condição Servil em Portugal : Memórias de Dominação e Resistência a Partir de Narr (…)

Manuel Abrantes – SOCIUS/CSG, ISEG, Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

Consultar publicação original

 

 

 

 

 

O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista | Silvia Federici

Enquanto os homens enfrentavam a linha de frente nos campos de batalha durante a Segunda Guerra Mundial, as mulheres assumiram os postos de trabalhadoras e provedoras do sustento familiar. A autoconfiança adquirida através deste processo, junto a um ressentimento ocasionado pelas desagregações familiares decorrentes da alta mortalidade do conflito, incentivou a busca por trabalhos alternativos ao do lar, provocando um distanciamento do trabalho doméstico. Este novo aspecto social refletiu nos trabalhos feministas na década de 1970, cuja ausência do debate sobre a organização da casa se fez notável. [5]

As ideias expressas acima estão contidas na introdução da obra O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (2018), de Silvia Federici, filósofa, escritora e ativista por um feminismo anticapitalista. Nascida na Itália e radicada nos Estados Unidos, escreve principalmente sobre o trabalho reprodutivo no capitalismo sob uma perspectiva de reconhecimento dele como pilar de sustentação do sistema, junto a outras formas de trabalho não remunerado, como a servidão e a escravidão. Seu livro mais famoso é Calibã e a Bruxa (2017). Como uma das fundadoras do movimento Wages for Housework, em O Ponto Zero da Revolução…, a autora pretende realizar um resgate dos debates a respeito do trabalho doméstico e de sua importância no entendimento e no combate ao sistema capitalista e colonialista, questionando a natureza da imposição do trabalho doméstico às mulheres bem como suas implicações de subordinação e exploração às vidas sociais delas.

Na primeira parte do livro, o argumento central de Federici em relação à exploração das mulheres e do trabalho doméstico se dá em razão da ação de um Estado que acumula capital por meio da associação dessa atividade à natureza feminina. Através do pressuposto de que o trabalho doméstico é intrínseco à natureza da mulher, a lógica capitalista a coloca como uma base na organização do trabalho dentro da instituição familiar. Segundo Mariarosa Dalla Costa e Selma James, autoras que exerceram grande influência na constituição e no embasamento das ideias de Federici, a nuclearização da família constitui uma fábrica social, na qual a mulher como mão-de-obra não remunerada é fundamental para a produção da força de trabalho, através de funções produtivas e reprodutivas, que nesse ponto encontram-se indissociáveis. As autoras também argumentam sobre a necessidade de seguir um caminho cada vez mais subversivo à lógica do sistema, defendendo a autonomia dos próprios corpos, que foi confiscada pelo capital. Utilizando a biologia feminina a seu favor, além de ele transformar a relação das mulheres com seus maridos e crianças, converte suas criações em trabalho produtivo com finalidade de acumulação por parte do sistema.

Desse modo, nota-se que tanto Federici quanto Dalla Costa e James defendem a remuneração feita pelo Estado como uma medida essencial para que seja possível negar a naturalização do trabalho doméstico como feminino, minando então a lógica capitalista, dando autonomia às mulheres para recusá-lo e abrindo caminhos para uma superação do sistema.

Esta luta pelo salário pago pelo Estado, no entanto, foi tida como menor pelo feminismo, que se voltou para o direito de trabalhar fora, por exemplo. As liberais viam isso como a chance de obter uma carreira e as socialistas, de se incorporarem à luta de classes. A autora destaca, porém, que a luta deveria ser pela independência econômica, não pelo trabalho em si. As mulheres já trabalhavam em casa, necessitando, assim, de mais tempo, não de mais trabalho. Além disso, essa postura pode ter contribuído para um afastamento das donas de casa de movimentos feministas. [6]

Desse  modo, o problema do trabalho doméstico – compartilhado por todas as mulheres – não foi resolvido: poucas conseguiram realmente dividir as tarefas com os maridos, passando a exercer jornada dupla e ficando mais cansadas.

A “solução” para tal problema apareceu com o neoliberalismo e a Nova Divisão Internacional do Trabalho (NDIT), marcada pela globalização, em que o principal envio do “Terceiro Mundo” para o “Primeiro” é o trabalho via migração. Assim, enquanto mulheres europeias trabalham fora, contratam imigrantes para fazer o trabalho doméstico. Essa resolução problemática, além de criar uma relação criada-madame, acentua a tendência da má remuneração para esse trabalho e tira a responsabilidade do homem de fazê-lo. Ademais, é um processo doloroso para as empregadas, que abandonam suas famílias para cuidarem de outras. Teresa Lisboa [7] trata do tema com mais detalhes, destacando problemas como o abuso sexual por parte de patrões e a dificuldade de ter acesso a serviços públicos em virtude da imigração ilegal. Federici destaca que a política da NDIT visa a transferir a reprodução da mão de obra do Norte para as mulheres do Sul Global. Isso acontece nos processos de barrigas de aluguel, por exemplo, que permitem que mulheres do Norte tenham filhos sem interromper suas carreiras nem arriscar a saúde, além de beneficiar financeiramente os governos. A autora conclui que a NDIT não é emancipatória, pois explora as mulheres ainda mais e reabilita a imagem de reprodutora e objeto sexual, de modo que as políticas feministas precisam ser anticapitalistas e subverter essa nova divisão.

Na sequência, Federici aprofunda suas análises acerca do processo de estruturação do neoliberalismo [8] e de seu papel como desarticulador de direitos e serviços essenciais às mulheres: essa corrente se estabeleceu na década de 1970 como fruto das crises econômicas ocorridas no período, bem como da percepção de ameaça representada por movimentos sociais antissistêmicos (negro, anticolonial e feminista), que se opunham ao enriquecimento estatal através da remuneração nula ou irrisória às atividades (re)produtivas que exerciam. A resposta dos Estados se deu, contudo, em direção à acentuação da responsabilização dos indivíduos por suas necessidades de subsistência, bem como, no Sul Global, à intensificação de políticas arbitrárias de austeridade. Ou seja, serviços essenciais de saúde, educação e previdência deixaram de receber investimentos públicos, acarretando escalada da sobrecarga de serviços de cuidado já atrelados aos corpos femininos. Em relação a tais problemáticas, a autora suscita discussões teórico-conceituais e enfatiza o teor revolucionário da expressão “trabalho reprodutivo”, questionando os paradigmas marxistas tradicionais. Esses são criticados por Federici na medida que não só deixavam de considerar as tarefas de cuidado como parte do processo de produção das forças de trabalho, supostamente restrito ao consumo de mercadorias, como também centralizavam na figura do proletário europeu urbano o protagonismo da produção material e, consequentemente, das lutas anticapitalistas.

Complementando suas críticas às realidades neoliberais instituídas a partir dos anos 1970, a autora chama atenção para a posição assumida nesse período pela ONU. Em adição aos desmantelamentos de sistemas sociais e às espoliações de recursos naturais realizados, a instituição passou a exercer postura de controle indireto da radicalidade feminista por meio da cooptação de suas pautas e lideranças. A criação de espaços institucionais para debates de gênero, com o desenvolvimento de programas impulsionadores da agenda do Banco Mundial e a secundarização das lideranças de países não hegemônicos frente às “feministas profissionais” dos EUA, propiciou alinhamento de parte do movimento com causas neoliberais e decorrente afastamento da organicidade popular registrada inicialmente nas reivindicações feministas. Tal fenômeno é destrinchado por Veronica Schild, que argumenta que a fenda de serviços básicos deixada pelos Estados foi preenchida, no contexto latino-americano, por ONGs patrocinadas pela ONU. Essas, ao invés de dialogarem com organizações locais já existentes, priorizaram gestões de feministas acadêmicas e políticas, vinculadas a instituições estrangeiras, invalidando, com isso, possibilidades de ativismos regionais e autenticamente revolucionários.

Na terceira parte da obra, Federici apresenta uma das questões mais importantes às pautas de gênero e ao mundo do trabalho: o acesso à terra, eixo relevante para se pensar a construção de uma sociedade mais solidária e comunitária. A autora inicia sua abordagem sobre essa temática analisando historicamente as investidas dos setores capitalistas no sentido de retirar da população, especialmente feminina, o acesso à terra e, consequentemente, a sua subsistência. A partir desse momento, as comunidades locais empobreceram e tornaram-se dependentes de recursos pertencentes ao grande capital, os quais não são acessíveis a todos em uma sociedade desigual como a que é encontrada em diferentes níveis no planeta. Dessa forma, a partir de um posicionamento que identifica historicamente as mulheres como as agentes de vanguarda na luta pela manutenção das terras comunais e contra o capital, Federici infere que uma das mais eficazes formas de construção de uma sociedade mais equilibrada e que incentive a solidariedade e não a competitividade é a luta por terras comunais e práticas de subsistência.

Ademais, é importante mencionar que essa é uma pauta defendida tanto por diversos intelectuais e lideranças sociais [9] quanto por comunidades que, mesmo que alheias às discussões acadêmicas, entendem a importância da manutenção desses sistemas e da luta por mais áreas agricultáveis. O antropólogo Arturo Escobar, em sua obra La invención del Tercer Mundo: construcción y desconstrucción del desarrollo, analisa essa mesma problemática destacando a forma como as organizações internacionais e países desenvolvidos mantêm suas políticas neocoloniais por meio da expulsão de populações originárias de suas terras e do estabelecimento de relações de dependência dos mercados interno e externo, o que as aliena dos meios produtivos para sua subsistência. Dessa forma, ambos os autores, além de externarem suas críticas a essas práticas violentas, também ressaltam exemplos bem sucedidos de resistência e luta, apontando caminhos a seguir para garantir um melhor futuro, enfatizando, assim, os caminhos comunitários e solidários, não individualizados.

Tomando como base os principais pontos levantados neste texto, ponderamos que O Ponto Zero da Revolução… se revela uma obra extremamente relevante para os dias atuais, especialmente no Brasil, em que vemos um movimento amplo e articulado de desmonte das políticas públicas, direitos trabalhistas e implemento das faces mais radicais e violentas do neoliberalismo. Dessa forma, o livro nos fornece importantes discussões e exemplos concretos de populações que, enfrentando questões tão críticas quanto, rebelaram-se e lutaram por um futuro menos desigual e pela construção de uma sociedade que desnaturalizasse a competição, o lucro e a violência. Consideramos fundamental notar o papel renovador e transgressor que a obra exerce dentro de seu contexto de publicação ao se levar em conta, para além do cenário nacional, os horizontes de produção teórica feminista. Nas últimas décadas, por conta da difusão de discursos eminentemente reificadores do neoliberalismo do Norte — seja através de meios virtuais, seja pelo fortalecimento de uma cultura de “feminismo de advocacy” —, ainda que esse movimento social tenha alcançado maior aceitação entre diferentes parcelas populacionais, vem atravessando processo de banalização de suas pautas. Nesse sentido, as recuperações históricas levantadas por Federici, junto a suas elaborações acerca das problemáticas dos sistemas “piramidais” instaurados sob slogan de suposta “cooperação internacional” pela globalização e à sua marcante tese de necessidade de questionamento das estruturas de reprodução social normalizadas sob o capitalismo, permitem que os públicos leitores do Sul Global, como conjunto de indivíduos que partilha das heranças racistas, coloniais e patriarcais instituídas externamente, continuem e ampliem a articulação de mobilizações feministas capazes de subverter estacas político econômicas exploratórias. A busca por concretização das emancipações de grupos historicamente subjugados, com destaque para a efetiva liberação das mulheres, é nitidamente instigada por Federici, em um movimento que contribui para o fortalecimento das resistências feministas latino-americanas antissistêmicas. No passado e ainda hoje, essas têm estado voltadas à conquista de direitos reprodutivos, à redução da violência de gênero e à retomada dos “comuns” por amplas parcelas populares.

Notas

5. É importante ressaltar que, como será possível observar ao longo da obra, esta condição específica de abandono do lar rumo à independência financeira, à inserção e à relativa equiparação ao homem branco no mercado de trabalho refere-se à realidade de mulheres brancas de classe média. A vida das mulheres não-brancas, como destaca bell hooks, estrutura-se de uma forma totalmente diferenciada. Estas já ocupam o mercado de trabalho de maneira subalterna como empregadas, babás, secretárias, prostitutas. Ao criticar A mística feminina, hooks afirma: “Problemas e dilemas específicos de donas de casa brancas da classe privilegiada eram preocupações reais, merecedores de atenção e transformação, mas não eram preocupações políticas urgentes da maioria das mulheres, mais preocupadas com a sobrevivência econômica, a discriminação étnica e racial etc. Quando Friedan escreveu A mística feminina, mais de um terço de todas as mulheres estava na força de trabalho. Embora muitas desejassem ser donas de casa, apenas as que tinham tempo livre e dinheiro realmente podiam moldar suas identidades segundo o modelo da mística feminina” (Cf. hooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, p. 193-210, 2015).

6. Esse afastamento das donas de casa em relação ao feminismo, por sua vez, é um fenômeno predominantemente estadunidense e europeu. Nos anos 1970, muitos países latino-americanos, por exemplo, estavam sob brutais ditaduras militares. Verónica Schild, doutora em Ciência Política com pesquisas sobre mobilizações feministas e impactos do neoliberalismo no Chile, destaca que, nesses lugares, o feminismo adquiriu outros contornos: organizadas em diferentes grupos de mulheres, mobilizaram-se contra os regimes autoritários desde militantes de esquerda a ativistas católicas. Além de haver um engajamento com o feminismo “tradicional” devido à conjuntura política, há outra diferença fundamental: “Em contraste com a ‘dona de casa’ típica do pós-guerra nos países da OCDE, a maioria das latino-americanas trabalhava – na terra ou como empregadas domésticas –, enquanto as mulheres da elite eram liberadas do trabalho doméstico por suas criadas.” (2017: 101).

7. Teresa Kleba Lisboa é doutora em Sociologia e pesquisadora das áreas de violência de gênero, de participação das mulheres no mundo social do trabalho e de equidade de gênero nas políticas públicas.

8. No que se refere ao envolvimento teórico da autora com a temática do neoliberalismo, mostra-se interessante contextualizar suas produções em relação a demais obras que perpassam o tema: os capítulos de O Ponto Zero da Revolução que abordam aspectos do sistema neoliberal foram escritos entre os anos 1990 e 2000. Nesse período, e principalmente nos anos subsequentes a ele, registrou-se extensa produção acadêmica dedicada a analisar processos constitutivos do neoliberalismo e as consequências dele para o funcionamento de diferentes sociedades. Inserem-se aí obras de pensadoras estadunidenses como Nancy Fraser e Wendy Brown. Ambas apresentam pontos de confluência com as ideias de Federici, caracterizando esse sistema como extenso, não restrito a uma esfera econômica, mas sim permeador das diversas bases do cotidiano social, acarretando desmantelamento de serviços essenciais à coletividade, precarização do mundo do trabalho e a instituição de um modelo mental coletivo de “empresariamento de si mesmo” (ou “razão neoliberal”, nos termos da segunda autora). Fraser (2019) defende a superação da crise generalizada vivenciada hoje por meio de uma transformação sistêmica completa a ser encabeçada por mobilizações populares, nas quais estaria incluso um “feminismo para os 99%”, anticorporativo. Já Brown (2015), em contraponto às constatações de Federici acerca da necessidade de transformação absoluta do modo de vida capitalista e de sistemas políticos que não asseguram protagonismo às coletividades e acesso a recursos “comuns”, apresenta considerações mais reformistas, afirmando que as democracias liberais, apesar de burguesas, deveriam ser conservadas por servirem como propulsoras iniciais de anseios mais amplos por liberdade e direitos. Para saber mais, verificar: FRASER, Nancy. The old is dying and the new cannot be born: From progressive neoliberalism to Trump and beyond. New York: Verso Books, 2019; e BROWN, Wendy. Undoing the demos: Neoliberalism’s stealth revolution. New York: Mit Press, 2015.

9. É possível estabelecer relações entre essas reflexões da autora e as práticas de feminismo comunitário encontradas em países latino-americanos: o pensamento do feminismo comunitário é bastante amplo e tem diversas ramificações, como o empregado pelas mulheres trabalhadoras na Bolívia. Na comunidade Mujeres Creando, o feminismo comunitário começa epistemologicamente empregando a descolonização do próprio feminismo, partindo do pressuposto que esse carrega consigo diversas formas de opressão, principalmente originários do sistema capitalista de produção. Para além desse esforço, as próprias categorias de gênero e patriarcado são repensadas. Tal discussão relaciona-se ao conceito de comuns de Frederici, na medida em que, para se atingir as expectativas postas sob a construção de uma sociedade comunitária, devem-se rever os conceitos estruturantes que a sustentam. Para saber mais, verificar: PAREDES, Julieta. El feminismo comunitario: la creación de un pensamiento propio. Corpus, vol. 7, n. 1, 2017.

Referências

DALLA COSTA, Mariarosa; JAMES, Selma. The Power of Women and the Subversion of the Community. Bristol: Falling Wall Press, 1975.

ESCOBAR, Arturo. La invención del Tercer Mundo: construcción y desconstrucción del desarrollo. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana, 2007.

LISBOA, Teresa Kleba. Fluxos migratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 805-821, set./dez. 2007.

SCHILD, Verónica. Feminismo e neoliberalismo na América Latina. Nueva sociedad, Buenos Aires, Edição Especial, p. 98-113, jun. 2017

Eduardo Gern Scoz – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Pesquisa Individual sob a orientação da Profª Drª Ana Paula Vosne Martins.

Letícia Barreto Assad Bruel – Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Priscila Piazentini Vieira.

Rafaela Zimkovicz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR.

Vitória Gabriela da Silva Kohler –  Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR.


FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2018. Resenha de: SCOZ, Eduardo Gern; BRUEL, Letícia Barreto Assad; ZIMKOVICZ, Rafaela; KOHLER, Vitória Gabriela da Silva. Cadernos de Clio. Curitiba, v.9, n.1, p.133-143, 2018. Acessar publicação original [DR]

Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989) / Soraia C. Mello

Resta saber (…) se as mulheres são desvalorizadas socialmente porque encarregadas do trabalho doméstico ou se o trabalho doméstico é desprezível porque feito por mulheres.[2]

A citação acima, retirada da obra aqui resenhada, revela com maestria a discussão realizada por Soraia Carolina de Mello em seu livro Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). A autora é graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em História Cultural pela mesma instituição. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História também da UFSC e continua realizando discussões sobre o trabalho doméstico através de uma metodologia comparativa entre os países Brasil e Argentina, no período de 1970 a 1980. Suas fontes são periódicos feministas e a imprensa feminina e, dentro da área da História, tem como temas centrais as relações de gênero, feminismo e história das mulheres.

A obra aqui destacada é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida com méritos no ano de 2010, e tem como título Feminismos de Segunda Onda no Cone Sul problematizando o trabalho doméstico (1970-1989). O livro está dividido em duas partes: a primeira tem como foco a problematização do trabalho doméstico gratuito pelo movimento feminista de Segunda Onda; já a segunda parte do livro apresenta as discussões sobre o emprego doméstico. Vale destacar que esse trabalho insere-se em um conjunto de pesquisas realizadas por um grupo de pesquisadores e pesquisadoras que ultimamente tem como tema central de suas pesquisas a categoria gênero e os movimentos feministas e, por meio de um método comparativo, vem contribuindo para esse campo de estudos. [3]

O livro trazà tona uma discussão que parece ter sido esquecida pela historiografia ou que talvez não tenha mostrado importância suficiente para se tornar o foco de uma pesquisa. Igualmente, a chamada historiografia feminista parece ter deixado esse debate de lado, o que demonstra o pioneirismo exercido pela autora. Soraia Carolina Mello demonstra muito bem em seu trabalho o ofício do historiador, ou seja, a busca constante de vestígios humanos do passado para (re)construí-lo através de suas questões do presente.

A autora, no decorrer da apresentação do livro, faz um significativo estado da arte em torno do tema abordado e realiza uma discussão metodológica sobre as categorias que utiliza na pesquisa. Além disso, a autora compreende a existência de uma diferenciação do trabalho doméstico, realizado pela dona de casa, em relação ao trabalho efetuado pela empregada doméstica. Da mesma maneira, percebe a existência de um conservadorismo por parte das pessoas mais jovens quando se trata desse tipo de trabalho.

Inicialmente, a partir da análise de suas fontes, Mello apresenta como um discurso conservador presente na sociedade colocava a mulher como sendo a única pessoa que tinha obrigação para com os serviços do lar. Da mesma forma, a autora coloca em destaque que a maternidade dificultava ainda mais o trabalho doméstico visto que, em muitas vezes, o aumento da família incidia diretamente no aumento do trabalho no lar.

Outros pontos trabalhados nessa primeira parte referem-seà invisibilidade que o trabalho doméstico tinha no período, a falta de divisão do mesmo, os afazeres domésticos como algo interminável e que muitas das mulheres tinham que exercer uma dupla jornada trabalhando tanto dentro de casa quanto fora dela. Muitas dessas mulheres que tinham dupla jornada sofriam, também, com a falta de locais para deixar seus filhos enquanto trabalhavam, o que pode demonstrar um esquecimento das forças políticas para com as mães trabalhadoras. Ressalta-se ainda a discussão travada em torno do motivo para que o trabalho doméstico não fosse colocado na mesma categoria que outros trabalhos. Aqueles que defendiam essa exclusão não viam no trabalho doméstico uma atividade geradora de capital e, por isso, não aceitavam a comparação com o trabalho industrial ou o feito fora do lar. Como contraponto a esse ideal, a autora discorre acerca dos debates feministas que defendiam o trabalho doméstico como um gerador de capital para o país, mesmo que de forma indireta.

A segunda parte do livro tem como abordagem central o emprego doméstico. A autora discorre sobre como as leis trabalhistas praticamente não eram existentes no período estudado e apresenta a persistência de uma desvalorização do emprego doméstico pela sociedade. Para ela, um dos motivos para a não valorização do emprego doméstico é a forte ligação que se construiu entre essa forma de trabalho e as mulheres, através do qual estas foram historicamente relegadas a um espaço considerado de pouco valor: o espaço doméstico. As condições de trabalho também são problematizadas em seu texto, ou seja, a elevada carga horária de serviço; a questão de muitas empregadas serem de outras localidades e por isso não conhecerem ninguém na cidade em que trabalhavam; o fato de dormirem na casa de seus patrões que, entre outros, acaba por dificultar/reduzir o contato social com o mundo externo. Com isso, a autora levanta a hipótese de que, por não terem um convívio social fora do lar onde exercem a função, essas trabalhadoras não reconhecem a precariedade presente em seu emprego. Soraia Carolina de Mello continua sua análise apresentando as formas como se davam as relações de distanciamento entre patroas e empregas e as formas como funcionavam os jogos de identificação das mesmas.

Outro ponto que merece destaque é o olhar dado pela autora para as relações entre as feministas e suas empregadas domésticas e como elas justificam essa prática, uma vez que consideram o trabalho doméstico como uma opressão. Mello vai perceber a falta de uma problematização dessa relação até os dias atuais, citando o exemplo da participação em eventos no qual costuma ouvir que não se pode deixar essas mulheres desempregadas. Além disso, a autora vai entender esse posicionamento como uma contradição dentro dos feminismos, apresentando trabalhos que defendiam que o trabalho doméstico é um dos causadores da estabilidade na pobreza e que ele impossibilita uma evolução nos rendimentos das trabalhadoras.

A autora finaliza a segunda parte do livro discutindo sobre o motivo de, muitas vezes, o emprego doméstico não ser considerado uma “reprodução da força de trabalho para o capitalismo” [4], pois ele pode ser remunerado por outras formas que não o dinheiro. Igualmente, aborda sobre a hierarquização existente entre emprego e trabalho doméstico assinalando que, na verdade, esses dois afazeres se tratam da mesma atividade. Por fim, a autora argumenta que “a questão chave do problema de desvalorização do emprego doméstico [é] sua relação com o trabalho doméstico” [5], isto é, Mello vai apontar que por ser realizado dentro do espaço doméstico, este considerado menos valorizado, o exercício da função de empregada doméstica foi e continua sendo visto como um trabalho sem valor para o desenvolvimento do país, pois ele poderia ser feito pela dona de casa.

Em suas considerações finais, Mello, discorre brevemente acerca da discussão sobre o emprego e o trabalho doméstico no século XXI. A partir dessa análise, a autora demonstra que persiste ainda em nossa sociedade um problema na distribuição do serviço doméstico entre os sexos, isto é, as mulheres na maioria das vezes são as que fazem o serviço de casa, o que se configura como uma questão de hierarquização de gênero. Assim como o emprego doméstico é visto como algo prescindível.

O livro carrega grandes contribuições e principalmente inovações no que diz respeito aos estudos sobre o tema abordado, pois o trabalho doméstico esteve marginalizado nos estudos historiográficos. A forma como a pesquisadora dialogou com suas fontes, assim como suas análises, trazem à luz vozes de sujeitos que são colocados à margem da história oficial, mas que são primordiais para uma (re)construção de um passado determinado. Seu trabalho serve, também, para mostrar que se atualmente o trabalho doméstico ainda é um serviço para as mulheres e isso se deve a uma construção histórica e social, cabendo àqueles que pesquisam questões relativas às áreas de humanas desnaturalizarem essa ideia. Com isso, pode-se concluir que esta obra colabora não apenas para os estudos de gênero, mas também para aqueles que estudam as questões trabalhistas e, principalmente, para todo cidadão e cidadã que ainda acredita que o trabalho doméstico é sim: coisa de mulher.

Notas

2. FARIAS apudMELLO, Soraia Carolina. Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2011. p.155.

3. Para saber mais sobre essas pesquisas e suas discussões ver PEDRO, Joana Maria; VEIGA, Ana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. (Org.). Resistências, gênero e feminismos contra as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011.

4. MELLO, op.cit.,p. 151.
5. Ibid., p. 155.

 

Thiago do Vale Pereira Livramento – Mestrando em História da UFSC. Florianópolis –SC – Brasil. E-mail: [email protected].


MELLO, Soraia Carolina. Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2011. 197 p. Resenha de: LIVRAMENTO, Thiago do Vale Pereira. O trabalho doméstico em debate. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.17, p.286-289, 2014. Acessar publicação original. [IF].