Poderes, trajetórias e administração no Império português (séculos XVI-XVIII) / Revista Maracanan / 2020

O presente dossiê tem como objetivo promover a produção científica e o debate sobre as relações de poder, as trajetórias e os conflitos entre os diversos representantes, oficiais e agentes régios no Império português entre os séculos XVI e XVIII. Relações essas que vão se dar a partir das dinâmicas presentes no âmbito das representações políticas, econômicas e socioculturais das instituições administrativas na América portuguesa.

Os estudos historiográficos acerca do estabelecimento de instituições (administrativas, religiosas, militares, etc.) e as relações de poder constituídas nas mais diversas escalas ganharam, nas últimas décadas, novos olhares a partir do constante diálogo com pesquisas desenvolvidas por historiadores estrangeiros, a incorporação de novas fontes documentais, aportes teórico-metodológicos e a constituição de bases de dados por grupos de pesquisas nas universidades brasileiras.[1] Desta maneira, este dossiê pretende aprofundar o debate sobre os poderes e as instituições constituídas na América portuguesa, enfocando: as redes de alianças políticas e econômicas, os espaços de poder, a fixação de instâncias administrativas, jurídicas e religiosas, regulação legislativa e a dinâmica local, comunicação e correspondência no império português, poder local e hierarquia administrativa, agentes coloniais / metropolitanos e suas trajetórias, poder e distinção social, disputas de jurisdição, fiscalidade e justiça. Estas temáticas estão presentes nas pesquisas que compõem este dossiê e nos permitem a compreensão dos múltiplos poderes constituídos a partir das diversas experiências particulares e coletivas vivenciadas no espaço colonial.

Neste sentido, o primeiro artigo do dossiê de autoria de Hugo André Flores Fernandes Araújo, “Casa, serviço e memória: origens sociais, carreira e estratégias de acrescentamento social dos governadores-gerais do Estado do Brasil (Século XVII)” propõe uma reflexão sobre as trajetórias sociais de sujeitos históricos que serviram a Coroa portuguesa em diversos territórios, problematizando o perfil característico deste grupo por meio das fontes e do diálogo com a historiografia.

As trajetórias sociais e administrativas também compõem o eixo de reflexão proposto por Tânia Maria Pinto de Santana para analisar a administração do Hospital de São João de Deus. A autora de “Império português, poderes locais e a administração do Hospital de São João de Deus da Vila de Cachoeira (Bahia, séc. XVIII)” investiga as práticas administrativas na referida instituição com vistas a perceber a importância deste espaço de poder para as elites locais.

Seguindo o eixo de análise acerca das trajetórias, o artigo intitulado “A trajetória de Pedro Barbosa Leal e as redes de conquistas no sertão da capitania da Bahia, 1690-1730” de Hélida Santos Conceição, evidência a trajetória do coronel e sertanista Pedro Barbosa Leal por meio do arrolamento de seus serviços prestados no processo de conquista dos sertões da Bahia. Ademais, a autora aponta o caso singular deste agente inserido nos espaços da nobreza e na atividade sertanista.

A constituição de um correio mensal entre São Luís e Belém por volta de 1730 é investigada por Romulo Valle Salvino em “Um correio pelo caminho de terra: as comunicações no estado do Maranhão e Grão-Pará nos princípios do século XVIII”. Para o autor, a instituição deste canal de comunicação pelo Governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Alexandre de Sousa Freire, desenvolveu-se como um pioneirismo. A análise deste caso particular é realizada a partir da historicidade do sistema de correios do período moderno.

O artigo, “A Restauração de A gola e os pedidos de mercês o século XVII”, de Ingrid Silva de Oliveira Leite finaliza a seção de artigos do dossiê. A autora busca analisar o processo de requisição de mercês a Coroa portuguesa no contexto da Restauração de Angola, objetivando compreender a prestação dos serviços no conflito frente aos holandeses, a solicitação das mercês, o mapeamento destes sujeitos e se os mesmos foram agraciados em suas demandas.

As entrevistas realizadas com o professor Dr. George Felix Cabral e com a professora Dra. Laurinda Abreu também compõem o presente dossiê. A primeira delas, realizada pelos organizadores desta edição com o professor de História da Universidade Federal de Pernambuco, procura debater as percepções da História e seus desafios na contemporaneidade. A segunda entrevista, realizada por Thiago Enes com a professora da Universidade de Évora, aborda a “A controversa trajetória de Diogo Inácio de Pina Manique, Intendente-Geral da Polícia da Corte e do ei o”, conforme título.

A seção Notas de Pesquisa é composta por três estudos. A publicação do excelente estudo de Wanderley de Oliveira Menezes sobre “Administrar a justiça d’El ei o ei o e no Ultramar: a trajetória do bacharel José Álvares Ferreira (1772-1810)” abre a seção dialogando com o eixo temático proposto neste dossiê acerca dos poderes, trajetórias e administração no Império português. Em seguida, os trabalhos de Sheila Hempkemeyer sobre “Cidades e corpos – Histórias e movimentos” e o de Amanda Peruchi, intitulado “Abelhas ou Zangões: as primeiras normas para o profissional da farmácia do Brasil o início do século XIX” finalizam as notas de pesquisa.

A seção artigos conta com alguns estudos de temáticas diversas e importantes para contribuir com essa publicação, a saber: “Visitando obras historiográficas do Império Lusitano na Oceania: Um recorte da história de Timor-Leste”, de Hélio José Santos Maia & Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira; “Os artífices do poder: mecanismos de ascensão social em Guarapiranga (MG), 1715-1820”, de Débora Cristina Alves; “No fio da navalha: a questão do tráfico internacio al de escravos o Conselho de Estado” de Ricardo Bruno da Silva Ferreira “Tráfico de escravos e escravidão na trajetória do Barão de Nova Friburgo – Século XIX”, de autoria de Rodrigo Marins Marretto “O que a cidade de Ipásia tem a nos dizer sobre pixação? Leituras possíveis de As Cidade Invisíveis, de Ítalo Calvino, e São Paulo / SP ”, de Bianca Siqueira Martins Domingos, Fabiana Felix do Amaral & Silva e Valéria Regina Zanetti; “Imagens em versos e acordes: a represe tação da cidade de Feira de Santana através do seu hino”, de autoria de Aldo José Morais Silva; “A cidade ‘perigosa’ e sua instituição ‘tranquilizadora’: o Recife no contexto da reforma prisional do Oitocentos”, de Aurélio de Moura Britto; e, “As cidades e suas contribuições para o do ativo do dote e paz”, de autoria de Letícia dos Santos Ferreira.

Por fim, a edição conta ainda com a resenha de Igor Lemos Moreira sobre o livro A formação da coleção latino-americana do MoMA: Arte, cultura e política (1931-1943), publicado em 2019 pela Paco Editorial. Boa leitura!

Nota

1. Cf.: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (orgs.). Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; SAMPAIO, A. C. J.; ALMEIDA, C. M. C.; FRAGOSO. J. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos: América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. F. (orgs.). Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; FRAGOSO, J.; SAMPAIO, A. C. J. (orgs.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012; VENÂNCIO, R. P.; GONÇALVES, A. L.; CHAVES, C. M. D. G. (orgs.). Portugal e Brasil os séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012; FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 3 vols.; dentre outros

Referências

FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F. (orgs.). Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 3 vols.

FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. F. (orgs.). Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FRAGOSO, J.; SAMPAIO, A. C. J. (orgs.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

SAMPAIO, A. C. J.; ALMEIDA, C. M. C.; FRAGOSO. J. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos: América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

VENÂNCIO, R.P.; GONÇALVES, A. L.; CHAVES, C. M. D. G. (orgs.). Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.

Rafael Ricarte da Silva – Professor Adjunto do curso de História da Universidade Federal do Piauí, Campus Senador Helvídio Nunes de Barros. Doutor e Mestre em História Social e licenciado em História pela Universidade Federal do Ceará; Especialista em Planejamento, Implementação e Gestão da Educação a Distância pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-4085-5401 http: / / lattes.cnpq.br / 1472762122361574

Reinaldo Forte Carvalho – Professor Adjunto do curso de História da Universidade de Pernambuco, Campus Petrolina. Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco; Mestre em História e Culturas pela Universidade Estadual do Ceará; Licenciado em História pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-7930-8670 http: / / lattes.cnpq.br / 4435223781591585


SILVA, Rafael Ricarte da; CARVALHO, Reinaldo Forte. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Entre a sala de aula, pesquisas e historiografias: trajetórias na construção dos profissionais de História | Das Amazônias | 2020

O caminho da Revista Discente DAS AMAZÔNIAS se iniciou em dezembro de 2018 por ideia e esforços de um grupo de cursistas da licenciatura e do bacharelado em História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre, sob a tutela dos coordenadores de curso e do chefe de Centro, visando estimular a publicação da produção acadêmica em nossa área. O empenho desses pioneiros, a quem externamos nossa gratidão, nos lançou ao anseio e compromisso de contribuir com nosso periódico para a melhoria na construção de experiências formativas dos historiadores e professores de história.

Nesse sentido a ideia era propiciar aos trabalhos produzidos no decorrer da formação dos acadêmicos maior visibilidade em âmbito interno e externo a nossa Instituição. Para tanto, se adotou o modelo semestral, de livre acesso, com recebimento em fluxo contínuo de artigos e resenhas. De lá para cá já foram três números, tendo sido o primeiro multitemático e os dois últimos destinados a falar sobre o autoritarismo no Brasil. Leia Mais

Feminismos latinoamericanos: trayectorias, junturas, tensiones, aperturas/Estudios de Filosofía Práctica e Historia de las Ideas/2020

La posición que las mujeres ocupamos en el orden social, o mejor dicho, a la que hemos sido confinadas desde tiempos inmemoriales por el orden patriarcal, establece límites a lo que podemos conocer y a lo que constituye el conocimiento legítimo. La hegemonía masculina impone una visión del mundo que pese a su pretensión de universalidad y neutralidad, no puede ser otra cosa que un relato parcial que busca naturalizar esa posición de dominio. Leia Mais

Mulheres: biografias e trajetórias / Aedos / 2019

A história das mulheres surge como campo historiográfico nos anos 1960 na França, denunciando a ausência tanto de personagens e temas femininos na história, bem como na sua escrita. Esse surgimento está diretamente relacionado com os movimentos feministas das décadas de 1960-70 (GONÇALVES, 2006), a chamada “segunda onda do feminismo”, e também com a “história vista de baixo”, em que personagens considerados subalternos e invisíveis passaram a ser objeto de estudos das pesquisas historiográficas. Para Margareth Rago, a valorização da presença da mulher na história também pode ser creditada ao ingresso feminino nas universidades, a partir dos anos 1970, levando com elas um conjunto de temas e problematizações próprios do universo feminino (RAGO, 1998, p. 90).

No entanto, como nos mostra Bonnie Smith (2006), mulheres já escreviam história bem antes, ainda nos séculos XVIII e XIX. Devido ao sexismo reinante, eram consideradas amadoras e suas obras não recebiam a mesma valorização e repercussão dos historiadores homens.

Não só a escrita da história, mas também a das biografias incorreu no mesmo apagamento das mulheres, durante muito tempo. Os autores canônicos da historiografia e da biografia são todos homens, dedicados a pesquisar sobre homens ilustres, aqueles considerados, por muito tempo, como os verdadeiros agentes da história.

A retomada da biografia, nos anos 1980, trouxe uma série de renovações importantes, entre elas a expansão dos sujeitos e sujeitas dignos de terem sua vida registrada (LEVILLAN, 2003; SCHMIDT, 2012). Houve também a expansão dos métodos e fontes, como a história oral, especialmente importante para os estudos biográficos. Além disso, temos que levar em conta os mais recentes desenvolvimentos na história das questões étnicas (história dos negros e negras, história da herança africana, história indígena, migrações, etc.) e das questões de gênero.

Todas essas tendências historiográficas contemporâneas trouxeram importante alargamento de fronteiras para a disciplina, e de alguma forma, os artigos que compõem esta edição transitam por essas perspectivas renovadas. Quando propusemos este dossiê, pensamos em trazer à tona pesquisas que tivessem como foco trajetórias de mulheres, e é muito gratificante perceber que nossa intenção foi transformada em realidade, por meio dos artigos que o compõem. São quinze textos, o que mostra a pujança de trabalhos que vêm sendo empreendidos sobre a temática. Maior ainda é nossa satisfação ao constatar a diversidade temática e a qualidade dessas pesquisas.

Os artigos trazem um amplo conjunto de temas e questões teóricas. Trabalham com história oral, história intelectual, história de diferentes períodos, desde idade média até a história do tempo presente. Tratam de trajetórias de mulheres que tiveram atuações muito ricas e variadas: escritoras, professoras, historiadora, cineasta, religiosas, carnavalescas, militantes que transitaram pelo feminismo, feminismo negro, militância indígena. A grande maioria delas não são (re) conhecidas pelo grande público, sequer do restrito público acadêmico, ou da comunidade das / dos historiadoras / os, não são personagens “representativos”, mas talvez, por isso mesmo, interessantíssimas. Vamos falar brevemente de cada um dos textos.

O texto de abertura do dossiê, No rastro da história das mulheres, de Marília Garcia Boldorini e Roberta Barros Meira, faz um balanço histórico, historiográfico e teórico da escrita biográfica enquanto gênero literário, apontando para a proeminência de protagonistas e autores masculinos, mesmo em pleno século XXI. Com isso, reflete sobre o espaço dado às mulheres e suas condições e aponta para a necessidade de ampliação da representatividade feminina, batalha que pode ser assumida por historiadorxs empenhadxs nessa prática de escrita. Apontando, ainda, para as questões identitárias relacionadas à biografia, incluindo a possibilidade de evidenciar “memórias clandestinas”, nos termos de Michel Pollak, o artigo aposta na escrita biográfica como lócus privilegiados para a compreensão das relações de gênero.

Na sequência, temos artigos que tratam das trajetórias de mulheres intelectuais, brasileiras e estrangeiras. O primeiro deles é A representação da mulher letrada no Brasil oitocentista: a biografia de Beatriz Brandão pelo intelectual Joaquim Norberto, em que Laura Oliveira Motta apresenta uma análise das representações do feminino no espaço letrado do Brasil do oitocentos, através do perfil biográfico da poetisa Beatriz Francisca de Assis Brandão, escrito pelo historiador da literatura Joaquim Norberto de Souza e Silva. No artigo, duas trajetórias intelectuais se cruzam para mostrar as possibilidades e os limites da participação da mulher em instituições intelectuais, destacando o papel do biógrafo no reconhecimento de contribuições femininas para a formação literária nacional, ainda que apelando para o reforço de padrões morais tradicionais.

Em Leituras em voz alta, leituras em silêncio: a produção intelectual de Elena Garro e os estudos de gênero, Mariana Adami nos brinda com uma reflexão acurada sobre a trajetória intelectual da mexicana Elena Garro. Adami procura enfatizar as diversas leituras de suas obras feitas por outros intelectuais e suas apropriações ao longo do tempo, além de evocar a importante discussão sobre uma literatura dita “feminina” e sua ingerência nos estudos históricos. O artigo é um convite para se pensar os silenciamentos impostos a produção literária de algumas mulheres.

Em Zilda Diniz Fontes (1920-1984): uma educadora para além dos muros da escola, Alline Rodrigues Bento procura traçar a trajetória de uma professora e escritora, Zilda Diniz Fontes, muito atuante em uma cidade do interior de Goiás, na segunda metade do século XX. Partindo assim de estudos biográficos a autora procura traçar a trajetória intelectual da personagem bem como relata partes de sua vida privada, ambas interconectadas como se pode perceber na leitura do artigo. Novelista, poetisa, dramaturga, mãe, esposa e professora, sua trajetória de vida merece ser (re)conhecida. Uma mulher que ousou percorrer espaços que, na época, eram (quase) exclusivos para os homens.

Karen Cristina Garbo no seu artigo intitulado Andradina de Oliveira e as ausências de uma crítica literária feminina gaúcha procura fazer o resgate da figura, que no século XIX, teve uma carreira reconhecida como escritora e jornalista. Nesse sentido Garbo destaca, no seu texto, tanto a atuação de Andradina à frente do jornal o Escrínio (1898-1910) quanto como escritora de romances, entre eles destacando O Perdão publicado em 1910. Tal como aponta Karen Garbo a autora analisada tratava de temas tabus na época, tais como o divórcio e adultério, os quais, segundo ela, podem ter sido as molas propulsoras para sua obra ter sido relegada ao esquecimento ao longo dos anos e ter contribuído para um (quase) apagamento da escritora gaúcha.

Uma trajetória feminina em construção, e (auto)reflexão narrativa, é o objeto de Lúcio Geller Júnior, no artigo Anna Savitskaia: ou, como narrar uma vida na União Soviética (1964- 1988). Sua pesquisa em História Oral busca compreender a experiência soviética da tradutora e professora emigrada Anna Savitskaia, radicada em Porto Alegre. Das memórias familiares ao discurso histórico russo produzido na / sobre a Guerra Fria, passando por reminiscências mais pessoais (seus deslocamentos, os estudos, a profissão, o casamento etc.), a depoente elabora sua identidade, contrapondo suas vivências cotidianas no socialismo e no capitalismo, na Europa oriental e no Ocidente periférico, tensionando o relato do pesquisador, num jogo de espelhos que obriga a tematização dos lugares de fala de ambos. Com habilidade, o autor descortina um mundo histórico perdido e um universo de significados em aberto.

Em Beatriz Nascimento e a invisibilidade negra na historiografia brasileira: mecanismos de anulação e silenciamento das práticas acadêmicas e intelectuais, Maria Lígia de Godoy Pinn tem como objetivo apresentar a trajetória intelectual e acadêmica da historiadora Maria Beatriz Nascimento, a partir do processo de invisibilização pelo qual passou no ambiente acadêmico, sobretudo no campo da disciplina História. Pinn insere esse apagamento no processo maior em que a intelectualidade e os espaços acadêmicos são negados às mulheres negras, em que as estruturas sociais discriminatórias definem e perpetuam o lugar das mulheres negras em posições sociais subalternas. A partir da trajetória de Nascimento, o artigo produz uma crítica importante ao eurocentrismo da história como disciplina, levando ao epistemicídio sistêmico de populações negras e indígenas, em especial as mulheres dessas etnias não-brancas.

O texto de Manoela Salvador Frederico, Para que não seja esquecida: o acervo pessoal de Eloísa Felizardo Prestes e suas memórias, a partir dos referenciais da história do tempo presente, enfoca o acervo da irmã de Luis Carlos Prestes, bem como sua militância feminista. Os documentos em seu arquivo privado apontam para um grande interesse em salvaguardar registros de sua época, principalmente sobre as questões femininas, suas lutas e a construção do que a autora chama de cultura política feminina. Ao guardar seus papéis, Eloisa construíase como militante. Seu arquivo revela as experiências vivenciadas, seu campo de atuação política e interesses, e, sendo estudado, contribui para tirar do esquecimento a rica atuação dessa feminista.

Alina dos Santos Nunes, no artigo Arte longa, vida breve: Rita Moreira, feminismo em cena trata da trajetória da cineasta, lésbica e feminista Rita Moreira, usando como fonte uma entrevista realizada com a personagem em 2019. A produção de vídeos feministas de Rita nos anos 1970 é analisada por Nunes como um espaço de articulação política. O meio audiovisual também foi importante no sentido de despertar a consciência política de vários sujeitos e sujeitas, em meio à segunda onda do feminismo. Articulando história oral e história das mulheres, o artigo contribui para trazer à tona uma história a ser escrita, ainda pouco visível, a da produção audiovisual feminina, construída na intersecção das lutas e dos conflitos vivenciados nos movimentos feministas e lésbicos.

Dois textos trabalham a temática feminina e a religiosidade. No artigo de Caio César Rodrigues, Agência e diligência discursiva na trajetória de Catarina de Siena (1347-1380), conhecemos a trajetória da penitente Catarina de Siena, que, no século XIV, construiu uma rede de apoio entre religiosos leigos da Toscana e acabou, inclusive, projetando-se como conselheira do papado. A curta biografia da personagem é investigada à luz do contexto religioso e intelectual do final do medievo, bem como em cotejo com a bibliografia especializada nas relações de gênero e na condição feminina na sociedade européia do período. Recorrendo, como fontes, às hagiografias tradicionais, o autor também apresenta uma releitura da construção discursiva da personagem, entendendo essas narrativas em função do modelo medieval de santidade feminina.

O segundo texto é Arquitetura de uma trajetória: o Templo de Minervina Carolina Corrêa, escrito a seis mãos, por Simone Rassmussen Neutzling, Gabriela Brum Rosselli e Guilherme Pinto de Almeida, apresenta a trajetória de uma mulher, Minervina Carolina Corrêa, e sua luta para edificar uma igreja católica, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, no início do século XX. Uma mulher, que sofreu, na pele, a discriminação da sociedade da época. Simone, Gabriela e Guilherme assim nos trazem uma perspectiva diferente ao darem foco, na sua explanação, para um patrimônio importante da cidade de Jaguarão e, através dele, resgatar a trajetória de Minervina.

Três artigos tratam das trajetórias de três mulheres em contextos distintos: o trabalho no mundo rural, mulheres negras no carnaval baiano e a luta indígena kaingang. O artigo Trajetória de três mulheres rurais: o trabalho como fio condutor das narrativas de vida escrito por Márcia de Fátima de Moraes já deixa claro, no próprio título do seu texto, a sua intenção, ou seja, mostrar como mulheres de uma localidade rural do Rio Grande do Sul relatam suas trajetórias. Através de um estudo de três casos específicos, Márcia de Moraes procura compreender como, no relato dessas mulheres, as memórias relacionadas ao trabalho encontram-se articuladas às questões de gênero e às de identidade feminina, através de uma perspectiva nem sempre percorrida, o viés geracional e de localidade. Um texto instigante por sua atualidade, marcada pelos indicadores de gênero na organização do trabalho rural.

Alberto Bomfim da Silva e Edson Farias, em A construção da autonomia feminina negra nas ousadias da carnavalização, analisam o papel social ocupado pelas mulheres negras no carnaval de Vitória da Conquista (BA) da segunda metade do século XX. As trajetórias de três dessas mulheres – Beta, Arcanja e Dió – ofereceram uma amostra singular desse grupo social, normalmente invisibilizado na história e pela História, mas que tiveram um relevante protagonismo. Os autores se valem das metodologias da história oral em entrevistas e da análise de fotografias relacionadas ao carnaval na cidade pesquisada. A participação feminina no carnaval carrega consigo elementos das religiosidades de matriz africana. Isso é visto pelos autores como constituinte de um quadro social de memória que ancorava componentes de uma identidade para a mulher negra contribuindo, em parte, para a construção de sua autonomia.

As mulheres indígenas são o tema do artigo de Andrea Bazzi, Mulheres Kaingang na frente de batalha: três gerações de lideranças femininas na Terra Indígena Toldo Chimbangue. Da mesma forma que a mulher negra, Bazzi argumenta que ser mulher indígena é diferente de ser mulher não indígena / branca / ocidental, no que se refere a seu apagamento e discriminação. Ou seja, é necessário considerar o lugar de marginalidade histórica em que se encontram as mulheres indígenas para entender que as relações de poder a partir do gênero não podem estar desassociadas de um recorte de classe e de etnia. O texto trata da trajetória de três mulheres kaingang, de gerações diferentes, que ocuparam / ocupam espaços de liderança dentro da comunidade Kaingang Toldo Chimbangue, em momentos políticos e históricos distintos, trazendo à tona agências que compartilham os mesmos princípios e respeito à ancestralidade, à memória e história do povo Kaingang.

O dossiê se encerra com o artigo Biografia de mulheres e Ensino de História – possibilidades metodológicas para a aprendizagem da Ditadura Civil-Militar brasileira. Seu autor, Fernando de Lima Nunes, sintetiza os resultados de seu mestrado em ensino de história, analisando o uso, em sala de aula, de biografias de mulheres mortas e desaparecidas na Ditadura Civil-Militar Brasileira. A partir de documentos e relatos, o professor-pesquisador instigou alunos de 9º ano do Ensino Fundamental e de 3º ano de Ensino Médio a comporem narrativas sobre as vidas das militantes Alceri Maria Gomes da Silva, Ísis Dias de Oliveira e Luiza Augusta Garlippe. O objetivo pedagógico das sequências didáticas era construir “empatia histórica”, segundo conceituação de Peter Lee, fazendo com que os estudantes encontrassem os diferentes pontos de vista dos agentes sociais, especialmente das mulheres desaparecidas e de suas famílias.

Nessa breve apresentação, fica evidente a diversidade e riqueza dos artigos que compõem o dossiê. Esses textos são representativos de como o tema é importante e, mais ainda, da pujança das pesquisas acadêmicas de história. Isso é motivo de grande felicidade para nós como professorxs de história e organizadorxs do dossiê.

Por outro lado, infelizmente, estamos vivendo tempos de negacionismo histórico, de desvalorização do conhecimento científico e, o pior, de cortes de bolsas para a área de ciências humanas, entendidas por quem está no poder como “não prioritária”. Como historiadorxs que não devem se furtar às questões de seu tempo – lembremos nesse sentido, sempre, de Marc Bloch! – não podemos deixar de registrar o nosso repúdio a tal (necro) política em vigor. A história das mulheres está atrelada à militância por um mundo mais justo e igualitário para todas e todos, dessa forma, este dossiê não poderia deixar de se posicionar. Que essas pesquisas inovadoras sobre mulheres tão ímpares nos inspirem nos tempos tenebrosos por que passamos. Este dossiê é uma peça na luta contra o esquecimento de suas trajetórias e também a prova de que a história e as ciências humanas devem ser prioridade, pois falam de, sobre e para nós, de nossas lutas e ações, que é o que dá sentido ao nosso mundo, às nossas identidades (quem somos), às nossas vidas.

Boa leitura! Março de 2020 – Em meio à pandemia de Covid-19

As organizadoras e o organizador.

Referências

GONÇALVES, Andréa Lisly. História e Gênero. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2006.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. IN: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 89-98, 1998.

SCHMIDT, Benito. História e biografia. IN: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

SMITH, Bonnie. Gênero & História: homens, mulheres e a prática histórica. São Paulo: Edusc, 2006.

Elenita Malta Pereira – Doutora em História (UFRGS). Professora de História na UNICENTRO. E-mail: [email protected]

Jocelito Zalla – Doutor em História (UFRJ). Professor do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: [email protected]

Mônica Karawejczyk – Doutora em História (UFRGS). Pós-doutoranda (PNPD-CAPES) na PUCRS. Professora Colaboradora do PPGHistória PUCRS. E-mail: [email protected]


PEREIRA, Elenita Malta; ZALLA, Jocelito; KARAWEJCZYK, Mônica. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 25, Dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Atores e Trajetórias do Campo Indigenista nas Américas / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Actores y trayectorias del campo indigenista en las Américas*

Podría decirse que también el indigenismo está afectado por aquel célebre equívoco de Cristóbal Colón, que pretendió haber encontrado, singlando hacia el oeste, la inmensa India. Sin ese equívoco, que dio una ilusoria unidad a su “descubrimiento”, quizás éste se hubiese desdoblado en varios “descubrimientos”, y no hubiese un término común para todos los habitantes originarios de un continente que abarca casi toda la latitud de la tierra, desde el límite de Alaska (donde los Inuit, nunca incluidos dentro del término “indio”, constituyen la excepción) a la Tierra del Fuego. De hecho, el término “indio” tardó en fijarse en Brasil, donde los nativos fueron durante un tiempo llamados “negros da terra”, como si los portugueses hubiesen llegado a una segunda África. Pero el término “indio” (después amalgamado con “indígena”, en buena parte gracias a una falsa etimología) acabó por imponerse en todas partes, sugiriendo una unidad que ningún otro criterio justifica, entre historias, culturas, lenguas, modos de vida enormemente diversos. Y, también, una política indigenista que, a pesar de las grandes diferencias de país a país, se puede entender como una serie de variaciones sobre algunos temas comunes. En el indigenismo se solapan y mezclan diversas corrientes de pensamiento, varias generaciones de políticas públicas y contradictorios procesos de construcción de las naciones americanas. Una historia que abarca conceptos y actitudes sobre el “otro” o los “otros”, de los habitantes originarios de la tierra o previos a la colonización exterior, que son menester convertir en elemento de una nueva comunidad imaginada. También una historia que trata sobre la producción de saberes y organizaciones con desarrollos más o menos autónomos según las épocas y sus vínculos con otras áreas de las sociedades nacionales e internacionales.

El objetivo del dossier que aquí presentamos fue desde el principio explorar del modo más amplio posible todo ese panorama, evitando la concentración en los países y en los temas clásicos de la reflexión sobre el indigenismo – México, Perú y Brasil. Las limitaciones de espacio, y la disponibilidad o no de los autores, han recortado esa ampliación geográfica que pretendíamos, pero aun así han permitido una ampliación en los temas. En los artículos que aquí presentamos, podremos saber sobre las novedades del movimiento indígena en Canadá (Isabel Altamirano y Julián Castro-Rea), sobre los conflictos entre indios y colonos en el Chaco de la época colonial (Guilherme Galhegos Felippe) sobre las vicisitudes de la condición indígena en los códigos penales y jurisprudencia de los países andinos (Lior Ben David); sobre las políticas brasileñas dedicadas a los “indios aislados” (Barbara Arisi y Flipe Milanez) y sobre el auge de los museos indígenas en México (Manuel Burón). Los últimos artículos se vuelven hacia los dominios más clásicos del pensamiento indigenista, abordando la creación del indigenismo positivista (el del mariscal Rondon, tratado por Fernando da Silva Rodrigues), su política conmemorativa (Laura Giraudo), sus relaciones con revoluciones triunfantes (Max Piorsky) o fallidas (Emilio Gallardo Saborido).

La entrevista que cierra el volumen se sirve de los debates del Congreso INTERINDI 2015, celebrado en la EEHA-CSIC de Sevilla en noviembre de ese año, para enmarcar las principales líneas de investigación y discusión que desarrollan los textos aquí incluidos.

Esta presentación no pretende –sería difícil y redundante– resumir el contenido de los artículos, sino localizarlos dentro del amplísimo campo abordado y sugerir conexiones y puntos de debate.

El régimen multiculturalista construido en Canadá en las últimas décadas suele ser citado elogiosamente desde otros países americanos, como Brasil, donde una reivindicación mucho más modesta de los derechos originarios enfrenta resistencias mucho más violentas. A pesar de ello, como muestra el artículo de Altamirano y Rea, los pueblos indígenas de Canadá siguen deparándose con el mismo (falso) dilema que se impone a todas las poblaciones indígenas. Por un lado, el voluntarismo de la diversidad cultural y los derechos étnicos (incluso, en una alianza insegura con lo uno y lo otro, de la defensa del medio ambiente). Por el otro, un imperativo vago pero vigorosamente “natural” y “universal” de explotar exhaustivamente los recursos. La expansión de la industria extractiva, mineral o energética consigue constar siempre –qué decir de los periodos de crisis– en la lista de las necesidades, mientras que los derechos de la diversidad cultural permanecen como aspiraciones éticas que, según el momento, pueden llegar a parecer un lujo. El movimiento Idle no More revitalizó la lucha de los pueblos indígenas del Canadá contra el enésimo proyecto de “emancipación” liberal de los indios: su transformación en propietarios individuales, capaces de alienar su propiedad y de transferirla a la iniciativa capitalista –una política ya puesta en práctica por Bolivar en los inicios de la Independencia americana y por los Estados Unidos en los años treinta, y ensayada en los setenta por la dictadura militar brasileña. La firme y ruidosa campaña de los indígenas y sus aliados frustró el proyecto, y es interesante observar que la venganza vino en una forma característica de la contemporaneidad: una ley de transparencia sobre el uso de los recursos, apta para crear numerosas controversias en el campo de la política étnica.

El artículo de Guilherme Galhegos Felippe sobre los conflictos entre indígenas y colonos en la región chaqueña durante el siglo XVIII podría parecer fuera de foco en un dossier sobre indigenismo: tales conflictos son temas habituales en estudios de etnohistoria, mientras que el indigenismo suele rastrearse en políticas oficiales explícitas, leyes, misiones y otros instrumentos del orden. Podemos ver, sin embargo, que asaltos y saqueos –de un lado y otro– mantienen afinidad con los procesos de integración de los indígenas en un sistema económico de un modo tan efectivo como ese comercio que representa su alternativa “pacífica” (las comillas sirven para recordar que los medios coercitivos del “comercio” fueron a menudo considerables). Dígase lo mismo de la conversión religiosa: los misioneros, en la región chaqueña como en la mayor parte de América son conscientes de que su actividad mercantil (el suministro de bienes manufacturados a pueblos indígenas sin siderurgia) es parte indisociable de su actividad evangelizadora, y en la práctica la suplantan. De ahí esa fórmula –que el artículo recoge, y que raramente despierta la perplejidad necesaria– de civilizar a los indios “por la codicia”, o sea mediante uno de los pecados capitales que la religión de los buenos misioneros pretende combatir. La distancia temporal (y temática) entre este artículo y el resto del dossier es valiosa porque muestra la considerable continuidad entre las prácticas coloniales y religiosas y todo lo que mucho más tarde se ha presentado como nuevo indigenismo de cariz laico y nacional.

El artículo de Arisi y Milanez trata de un caso límite del indigenismo, que invierte una parte importante de la política indigenista tradicional, esforzándose en mantener el aislamiento de los raros grupos indígenas que en algunos rincones de la Amazonia continúan viviendo al margen de la sociedad nacional y global. Esa política, concebida en décadas recientes, y coincidiendo con la instauración de los regímenes multiculturales, invierte la política tradicional del órgano indigenista brasileño, que otrora buscaba activamente el contacto con los grupos “arredios” (aislados o no contactados). Marca del sector más idealista y dedicado del indigenismo, esa tendencia no es inmune a las críticas externas ni menos aún a sus paradojas internas. Evitar el contacto acaba suponiendo, en general, monopolizar el contacto (el Estado se asume así como una entidad aséptica, independiente de la sociedad que lo sustenta) y por otra parte se justifica en una imagen fuerte –que el artículo ilustra con esa anécdota de la isla perdida en el Océano Índico– de las comunidades indígenas como mónadas primigenias. So capa de proteger un aislamiento ideal, los indigenistas tienden a controlar o ahogar la autonomía de los “aislados” a la hora de establecer esas relaciones con los otros que, pese a las ilusiones primitivistas, nunca faltaron.

Lior Ben David aborda el tema de la circunstancia indígena en los códigos penales de Perú y Bolivia. La condición de “indio” como atenuante en los juicios se remonta a los tiempos coloniales. Fue restaurada a comienzos del siglo XX por el pensamiento indigenista, después de un intervalo liberal que consagró una igualdad (bien sabemos cuán formal y cuán ilusoria) ante la ley. Desde entonces, la condición de “semicivilizado” o de “degradado por la servidumbre y el alcoholismo” (criterios que pueden presentarse juntos pero son de tenor muy diferente) ha servido como circunstancia atenuante en los procesos criminales. Como apunta el autor, ese discreto detalle jurídico contiene todo un discurso de gran alcance sobre lo que la Nación supone ser y supone que debe ser. Y al mismo tiempo que introduce una dicotomía entre indios andinos, a la vez semi-civilizados y degradados, y amazónicos, supuestamente exteriores a la historia nacional y menos considerados por los atenuantes, amalgama en una misma categoría a sujetos indígenas provenientes de historias muy diversas. La protección jurídica, por lo demás, tiene un doble filo –y un alto costo– en la medida en que proporciona su amparo a costa de un grave estigma.

El texto de Manuel Burón Díaz opone algunos matices a la narrativa heroica del multiculturalismo y de la antropología crítica en su controversia con el indigenismo oficial clásico. El auge reciente de los museos indígenas se ha presentado como un proceso de recuperación, por parte de las comunidades, de un patrimonio otrora confiscado por arqueólogos y antropólogos al servicio del estado nacional. La lectura de la vasta documentación de instituciones como el Instituto Nacional de Antropología e Historia (el INAH, una de las principales instituciones indigenistas oriundas de la revolución mexicana) recuerda lo que debería ser obvio: que el patrimonio no estaba dado allá en el campo. Fue construido en un proceso en el que las comunidades ya contaban con una idea de lo que constituía el tesoro de su pasado, que no coincidía exactamente con lo que después se ha definido como patrimonio, y que se reelaboró y amplió en una interacción triangular entre ellas, los agentes del gobierno federal y la codicia de traficantes y coleccionistas. En ese proceso, los sujetos y corporaciones locales no fueron parte excluida ni pasiva, y establecieron alianzas con los agentes del indigenismo; es difícil, como recuerda el artículo, imaginar qué habría sido de ese patrimonio sin tales alianzas.

Laura Giraudo elabora un retrato del indigenismo clásico del siglo XX a partir de un detalle aparentemente menor: la instauración de un Día del Indio, el 19 de abril, propuesto para todos los países americanos como una fecha en que los indígenas pudiesen celebrar cosas tan esenciales como “el espíritu de su raza”. El 19 de abril conmemora la fecha en que delegados indígenas participaron en el Congreso Indigenista Interamericano de 1940 en Pátzcuaro, México: la fecha marca así una transformación, al menos formal, del movimiento “indigenista” en movimiento también indígena. El calendario festivo, sea religioso o civil suele escoger fechas marcadas por la cosmología o por el martirologio, o por ambos –pensemos en el Primero de Mayo, que rememora a los héroes de la lucha obrera de Chicago, sin dejar por ello de aludir a la arcaica celebración de la primavera. El indigenismo, renunciando a simbolismos mayores, sacó la fecha de las actas de sus reuniones, y propuso una celebración –que tuvo un éxito desigual pero bastante amplio a todo lo largo y ancho de las Américas– en la que bajo el nombre del Indio celebraba también, o principalmente, a sí mismo como entidad burocrática y como ideología.

Fernando da Silva Rodrigues traza un panorama general del proyecto indigenista del Mariscal Cándido da Silva Rondon, principal arquitecto y ejecutor de la política indigenista de la República Brasileña. El retrato oficial de Rondon se ha fijado siempre en su doctrina humanitaria y pacifista, destinada a proteger a grupos indígenas amenazados de exterminio. Pero nunca ha sido un misterio que esa protección era para Rondon una pieza en un proyecto mucho mayor de construcción de la nación, en sus aspectos más concretos: establecimiento de vías de comunicación y transporte, y consolidación de las fronteras. La labor de protección y civilización de los indios tiene, en ese contexto, un sentido que va mucho más allá de un positivismo genérico, dominado por ideales de crecimiento y progreso, y recupera una política secularmente puesta en práctica desde los primeros tiempos de la colonia de reclutar a los indios –por medio de la “codicia”, según la larga tradición– como fuerza de trabajo nacional y muy especialmente como guardianes de sus zonas fronterizas.

El Mariscal Rondon, pese a sus orígenes familiares en parte indígenas –siempre recordados en las hagiografías– era un perfecto exponente de una república ideológicamente positivista y socialmente conservadora. Pero con mucha frecuencia el indigenismo oficial ha sido de izquierdas, lo que pocas veces se tiene en cuenta – quizás porque confrontadas con la temática indígena los idearios de izquierdas acababan por asumir u marcado aire de familia con idearios opuestos. El indigenismo de Salomón Nahmad, un antropólogo poco conocido en Brasil del que trata el artículo de Max Piorsky, pertenece a esa estirpe de activistas instaurada por la Revolución Mexicana. El estado revolucionario tenía un compromiso: hacerse presente en la vida de una población indígena “aislada” en un sentido muy opuesto al de los “aislados” amazónicos: aislados del estado, ya que no de una sociedad regional rapaz y abusiva que lo expolia. En la descripción que Nahmad hace de los Mixes podemos identificar la completa inversión de lo que décadas más tarde ha sido el relato multiculturalista: la diferencia se subsume en la desigualdad, la diversidad cultural es un vago telón de fondo atrás de la miseria física y la vulnerabilidad extrema de pueblos olvidados por la nación. Escoger entre desigualdad y diferencia es peligroso. El peruano Víctor Zavala, cuya obra analiza Emilio GallardoSaborido, representa un tipo de indigenismo en las antípodas del liberalismo multicultural. Su teatro pone en escena al campesino andino, enfrentado a gamonales, jueces y políticos, y al sistema económico general al que todos ellos contribuyen. Zavala lleva a los Andes el teatro político de Bertolt Brecht, y el elemento étnico le sirve a la vez como signo de identidad –el indigenato es el proletariado– y como recurso dramático, de paradójico distanciamiento. Sin conocer la lengua quechua, hace hablar a sus héroes un español alterado bajo el que se perciben las estructuras de la lengua indígena,mientras sus adversarios se expresan en general en un castellano pomposo y relamido. Pero estamos aquí en uno de los casos límites del indigenismo. Por mucho que Zavala haya bebido también en la tradición de la literatura indigenista andina, él se decanta por caracterizar a sus héroes como “campesinos”, no como “indios” ni “indígenas”. El punto, subrayado por Gallardo Saborido, como marca de su rechazo de un exotismo discriminatorio, tiene una relevancia que va más allá. Zavala se encuentra (al menos hasta este año de 2016, término de su condena) preso por sus relaciones con el Partido Comunista del Perú – Sendero Luminoso, grupo que asumió, junto a una interpretación socialista del imperio incaico, algo del viejo antagonismo de ese imperio con los indios fuera de sus fronteras, especialmente los antis de la alta Amazonia– “salvajes” ajenos, entre otras cosas, al sistema productivo nacional. En ese concepto del indio como trabajador –y en la preferencia del término “campesino” para denotarlo– se sintetiza un núcleo del indigenismo de izquierdas, que diverge de la política liberal y del tipo de indigenismo que ella practíca, pero comparte con ella una noción básica sobre el lugar que el trabajo y la producción tienen en la definición del ser humano.

La entrevista que cierra el dossier ocupa, de algún modo, un espacio de síntesis entre los diversos textos: el entrevistador propuso a cuatro reconocidos especialistas en política indigenista, antropología e historia de México, Colombia, la Amazonia y los Países Andinos (Guillermo de la Peña, Joanne Rappaport, Núria Sala i Vila y Víctor Bretón Solo de Zaldívar) una serie de preguntas que representan los puntos de interrogación aparecidos durante el Congreso INTERINDI 2015, sobre las políticas indígenas e indigenistas y de la propia labor de los especialistas en ese campo. Uno de ellos alude a esa palabra, “indio”, con la que empezábamos esta presentación. Insulto en unos países, bandera en otros, pero siempre presente como categoría manifiesta u oculta bajo algún tipo de eufemismo, el término, como manifiesta Nuria Sala i Vila, esconde mucho más de lo que revela: la historiografía necesita en todo momento tomarlo como antagonista para subrayar actores más matizados o para aclarar los procesos que llevan a identidades genéricas. El rótulo “indio” puede ser el lema de movimientos panindígenas o ser substituido por términos sacados de un cuadro etnonímico local; puede reivindicarse contra las ideologías del mestizaje que gozan de un status oficial en muchos países del área, o abandonarse en un cuadro en que categorías híbridas y la historia a ellas aneja se recupera como parte de un movimiento de subalternos. Como expresa el concepto de “papelrealidad” usado por Rappaport, todos esos movimientos ocurren en un contexto en que la coagulación burocrática de las identidades, crucial en los siglos coloniales, tiene una importancia creciente: en los últimos años, ha fomentado por doquier la etnificación y la fragmentación identitaria, adecuada al modo en que los recursos y los derechos se ven asegurados. La categoría “indígena” por lo demás, como aparece claramente en la entrevista a Guillermo de la Peña (que inició su carrera de investigador entre gitanos españoles) se ve perseguida de cerca por la categoría “indigente”: en la mayor parte de la América indígena, estudiosos / activistas se alternan de modo no poco esquizoide entre la “clase” y la “etnia”, y paradójicamente es en la acción indigenista donde definiciones más esencialistas (y culturalistas) triunfan, mientras la producción académica se mantiene mucho más escéptica al valor de esos conceptos tradicionales de la antropología. La relación entre el régimen multicultural y el neoliberalismo es a todas luces evidente: son movimientos coetáneos, y la explosión de las ONG es perfectamente coherente con el imperativo neoliberal de disminución del Estado y la tercerización –en este caso, la creación de todo un “tercer sector”. Por ello mismo, es del campo multicultural de donde surgen, quizás, las críticas más afiladas contra la cosmología del capitalismo contemporáneo –en nombre, por ejemplo, de esa tradición de reciente invención del “bien vivir”– sin que el tipo de política en él propuesto sea, sin embargo, un adversario efectivo de ese régimen. Tal vez, como señala Víctor Bretón, ese multiculturalismo haya resultado, mediante la “esencialización de sus discursos y / o cooptación de parte de sus dirigencias [¿indígenas?]– en su paulatino encuadramiento dentro del campo de juego del proyectismo”.

Los movimientos indígenas, sus dirigencias, sus intelectuales, son otro tema de flagrante interés, escasamente tratado por la propia tendencia a imaginar el mundo indígena como un agregado de comunidades igualitarias y primigenias. Pero su papel, siempre difícil, de mediadores destinados a salvar la “brecha cultural” sustituyendo la acción de los tristemente célebres mediadores del colonialismo, es quizás el punto crítico de cualquier historia indígena reciente. El acervo conceptual y retórico que manejan y sintetizan –híbrido de tradiciones locales, ideologías políticas refugiadas en el indigenismo, credos religiosos recibidos de la misión, conceptos académicos que muchas veces resurgen en su discurso precisamente cuando los universitarios los abandonan, como en el caso notable y reciente de la “cultura”– proporciona a los especialistas un tema inagotable de investigación, y más aún de reflexión.

Entre esas posibles líneas de investigación y discusión podemos destacar algunas cuestiones que saltan de unos artículos a otros en este dossier. Una primera es la siempre recurrente y tantas veces nominalista polémica sobre los nombres y los atributos que definen a las identidades colectivas. Ya fuera por las confusiones con la geografía (incógnita para descubridores y algo menos para nativos) o por las tradiciones intelectuales que polarizan las relaciones humanas entre los nosotros y los otros, la sociohistoria de los nombres y de las realidades sociales a las que pretenden representar ha sido y es en toda América plural y dinámica, histórica en tanto condiciones y resultados de la vida de las personas que usan esos nombres y crean esas realidades. Los términos indio o indígena, originario o ancestral… compactan y asemejan realidades sociales casi inasibles. Los debates sobre lo dignificador o estigmatizador de unos u otros términos son importantes y requieren especial atención de los investigadores, no tanto para resolver dichos debates como para mostrar la historia de los mismos y sus vínculos con las administraciones de todo tipo, jurídicas como las analizadas en el artículos de Ben David o rituales como las del artículo de Giraudo: los nombres son buenas pistas para estudiar las relaciones humanas, pero sólo si no olvidamos que lo que nombran son los usos de esas relaciones y no supuestas identidades pre-nominales. En este sentido, nos queda mucho que discutir, con análisis históricos fundados, sobre los reduccionismos que conlleva la dicotomía nosotros-otros (usualmente en este orden, el nosotros por delante).

Una segunda cuestión es la relación entre el desarrollo de los saberes “expertos” (científicos, académicos, burocráticos, religiosos…) que integran el campo indigenista y las organizaciones con las que se desarrollan (muchas veces como elementos fundadores e indisociables de esas organizaciones). El Mariscal Rondon, el antropólogo Nahmad o el dramaturgo Zavala son ejemplos de saberes normativa y organizacionalmente contradictorios, en las que las obligaciones con los indígenas de referencia y con el proyecto o la organización de pertenencia se desarrollan en modos próximos a la psicosis, entre la exaltación del misionero y la previsibilidad del plan burocrático. También los líderes indígenas que desarrollan organizaciones para movilizaciones sociales muy ajustadas a la coyuntura política y que luego devienen entidades organizacionales en sí mismas viven este desarrollo conflictivo entre los saberes expertos y las comunidades para las que trabajan. La historiografía y los estudios sociológicos y antropológicos recientes están poniendo cierta atención en estos problemas, incluso están creciendo los estudios sobre el lado menos explorado de la relación, el del protagonismo que las organizaciones juegan en el campo indigenista. Han aparecido estudios sobre algunas instituciones indigenistas relevantes, a nivel nacional como internacional, así como sobre organizaciones no estatales. Pero aún queda mucho que indagar y discutir para poder mostrar mínimamente el papel jugado por las organizaciones modernas, en el sentido que le da el sociólogo Charle Perrow, en el desarrollo del campo indigenista como parte de la sociohistoria más amplia de las sociedades contemporáneas. Las más de las veces los estudios sobre el indigenismo son autorreferenciales, como si se tratara de una realidad especial, de un mundo escindido del resto, con el que sólo tiene relación en el papel de subproducto, de víctima, de instrumento funcional al servicio de una integración sistémica superior o como ejemplo de heroísmo, resistencia y alternativa igualmente sistémica para propios y ajenos. Para estudiar los indigenismos como parte y muestra de las historias colectivas en que se han desarrollado necesitamos un mejor análisis de la trama organizacional en la que y con la que indigenistas, indígenas y profanos han construido sus saberes y sus relaciones.

El tercer y último asunto que destacaremos en esta presentación tiene que ver con un viejo reproche o crítica al indigenismo, el de ser ajeno al protagonismo de los propios indígenas. No faltan discursos, proyectos, rituales, organizaciones, saberes, políticas y políticos donde encontrar magníficos ejemplos que sustentan estas críticas y reproches, desde el Manuel Gamio del Día del Indio hasta la preservación del aislamiento de esas comunidades no contactadas o apenas influidas por la colonización exterior (en este sentido podríamos decir que se trata de comunidades pre-indígenas al estar en una situación previa a la colonización). Para repensar y discutir la relación entre el indigenismo y los indígenas necesitamos conocimientos y marcos conceptuales que escapen de las dicotomías y los denominadores comunes tan habituales en el lenguaje de los nosotros y los otros, de los colonizadores y los colonizados, de los indigenistas y los indígenas. Y no es que estas dicotomías y reducciones no hayan sido reales y tenido un peso importante en la historia que aquí queremos debatir, sino que aceptar ese lenguaje nos obliga a sumir sus conclusiones antes de haber realizado la mínima observación, descripción y análisis de los procesos sociales a los que decimos referirnos. Incluso nos lleva a aceptar como obvias realidades humanas para que, sencillamente, apenas tenemos elementos que observar y describir, y que sólo devienen indígenas con la colonización exterior (exterior a lo que hoy conocemos como América, conocimiento nada obvio por otra parte) y varios siglos de regímenes sociales compuestos, en los que las representaciones actuales apenas tuvieron cabida si es que la tuvieron, por ejemplo todo el reiterado análisis de dominación de “castas” y “razas”. En este escenario, es interesante como los museos se han convertido en lugares de disputas entro lo autóctono y lo ajeno y, más importante, de alianzas que desestabilizan esas disputas y al propio museo mismo. Los indígenas siempre han estado en el indigenismo, justo como eso, como indígenas, cuya preservación e integración fue siempre su objetivo marco; cabría preguntarse sobre el papel no de los indígenas en el indigenismo o la inversa, la influencia del indigenismo en la conformación de la historia indígena, sino preguntarse por las tramas humanas que construyeron y se movieron entre esas y otras posiciones sociales alternativas, como las de ciudadanía, las de clase, las de pueblo, etc., así como por las muchas transformaciones empíricas (menos ajustadas a esas posiciones normativas) con las que batallan y concilian las personas en sus vidas colectivas.

El dossier que aquí se ofrece es otro resultado, esperamos que no redundante y sí provocador, de nuestros esfuerzos académicos por contribuir al desarrollo del conocimiento y de las respectivas carreras profesionales. No somos ajenos a las líneas de fractura y debate que antes hemos señalado. Todo lo contrario. También el lector de estos artículos se hará cargo de las mismas.

Nota

* Este dossier es parte de los resultados del proyecto de investigación: “Los reversos del indigenismo: socio-historia de las categorías étnico-raciales y sus usos en las sociedades latinoamericanas” (RE-INTERINDI), Ref. HAR2013-41596-P, Ministerio de Economía y Competitividad, Secretaría de Estado de Investigación, Desarrollo e Innovación (Proyectos de I+D, Programa Estatal de Fomento de la Investigación Científica y Técnica de Excelencia, Subprograma de Generación del Conocimiento).

Oscar Calavia Sáez – Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, Professor no Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Pesquisador do CNPq. Atualmente desenvolve pesquisas sobre os intelectuais indígenas no Brasil. Autor, entre outros, de O nome e o tempo dos Yaminawa. Etnologia e história dos Yaminawa do Alto Acre (Editora da Universidade do Estado de São Paulo, 2006), Las formas locales de la vida religiosa. Antropología e historia de los santuarios de La Rioja (Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2002) e Fantasmas falados Editora da UNICAMP, 1996).E-mail: [email protected]

Juan Martín Sánchez – Profesor del Departamento de Sociología de la Universidad de Sevilla, España. Doctor en Sociología y Ciencias Políticas por la Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), Madrid. Autor, entre otros, de La revolución peruana: ideología y práctica política de un gobierno militar, 1968-1975 (CSIC, 2002) y editor, con Laura Giraudo, de La ambivalente historia del indigenismo. Campo interamericano y trayectorias nacionales 1940-1970. Áreas de investigación: sociedad y política en América Latina del siglo XX, con especial atención a Perú, socio-historia del indigenismo, representación política, discurso y ritual político. Participa en la red internacional de investigadores RED-INTERINDI (http: / / www.interindi.net ). E-mail: [email protected]


SÁEZ, Oscar Calavia; SÁNCHEZ, Juan Martín. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 1, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Sobre Coisas e Trajetórias / Revista Mosaico / 2017

O dossiê Sobre Coisas e Trajetórias tem como ambição trazer ao centro da cena aquilo que tomamos como as miudezas de nossa vida: o mundo dos objetos, enquanto constituintes dos tramados do nosso cotidiano e, portanto, assumidos aqui como coisas de importância, mesmo na possível e, a rigor, falsa banalidade de seus usos. Resultado da história humana em suas diferentes ordens de relações, das amigáveis às conflituosas, os objetos são expressivos, mas, para além disso, ao ganharem corpo e comporem o mundo da vida ajudam a acionar sentidos e modos de conduta. Uma dialética se faz operar na relação com essas coisas, enquanto modos de objetivação, pelos agentes que lhe conferem vida e significados cambiáveis. Tais figuras-síntese funcionam como uma espécie de atalho que permite que uma história se presentifique e contribua, como elo de continuidade, a que ela se perpetue. No entanto, seria simplista tomar os objetos enquanto este elemento de memória apenas pelo seu potencial de rastro e arquivo. A partir do manejo das coisas no mundo prático, atualizamos, mudamos, acrescentamos significados aos objetos, fazendo com que seu potencial de síntese se estabeleça não apenas no momento de sua produção (da produção do objeto), mas ao longo da dinâmica de seus usos, a despeito da possível fixidez de sua forma. Assim, à figura, somos obrigados a correlacionar a figuração dos significados dos objetos, enquanto estrutura que remete ao processo incessante de articulação de significados (no plural) que são conformados na prática, isto é, na própria relação com as coisas, não carecendo, portanto, de um momento reflexivo de atribuição de significados a elas. A dialética se dá, portanto, no processo hermenêutico de significação das coisas através e a partir de seu manejo em diferentes contextos, e não apenas quando tomamos as coisas como objeto para racionalizações. É, pois, na produção, no uso e nas trocas que os objetos ganham vida, e isso diz respeito às diferentes épocas e lugares.

A consolidação do capitalismo e sua expansão planetária fez com que os objetos se tornassem alvo de preconceito enquanto coisas “boas para pensar”, sendo relegados quase exclusivamente à condição de mercadorias fetichizadas, produtos sem alma da desalmada produção capitalista e que ainda seriam alçados à condição de gatilhos à alienação. Ora, mesmo tal temática nos evoca a importância de problematizar as coisas, em seu caráter de mercadoria, no lugar que assumem enquanto objeto de desejo, expressão de estilos de vida, depositários da felicidade humana, moeda nas negociações de significados, fetiche. O conjunto de artigos que compõe este dossiê expõem inelutavelmente a centralidade do debate das coisas como mercadorias, mas, ao mesmo tempo, articulam esta dimensão a uma série de outras que remetem aos complexos processos sócio- históricos de atribuição de significados a elas, isto é, às coisas enquanto produtos simbólicos. Ciência, magia / religião, higiene, beleza, modos de comercialização e publicização das coisas, modernização são acionados a fim de evidenciar a importância sócio-histórica das coisas e, para tanto, diferentes objetos são tomados: desde remédio, cerveja, absorvente feminino, roupa (na forma da moda e da indumentária religiosa) ao próprio corpo tornado objeto. O mote por excelência é posto na circulação das coisas e de seus significados, enfim, na trajetória dos objetos em sua articulação com as trajetórias humanas ao longo da história.

O artigo “O que não tem remédio midiatizado está: beleza e poder na publicidade de medicamentos do início do século XX” traz interessante discussão a respeito da publicidade de medicamentos, pensada para além de mera estratégia de divulgação de certa ordem de produtos. O autor, Moacir Carvalho, busca compreender o modo como tais peças publicitárias fazem dialogar o científico e o mágico-religioso no contexto brasileiro de início do XX, na medida em que o profissional médico necessitava angariar espaço ocupado ainda no período pelos diferentes profissionais populares de cura, a exemplo de curandeiros, que detinham o reconhecimento enquanto prática de cura legítima. Assim, ciência e magia se interpenetram, é o argumento do autor, na constituição de um mercado consumidor de medicamentos que teriam caráter quase mágico pelo alívio dos sofrimentos que conseguiam proporcionar. É por esta seara que o autor envereda ao fazer avançar a leitura na percepção de que se trata de um novo modo de vida em construção, ligado ao moderno, ao técnico e ao civilizado, e a que se liga o consumo do produto em questão, cuja função, pois, ultrapassa a possibilidade de cura. Consumir medicamentos em lugar de ervas serviria como indicador de um novo modo de vida, o civilizado, que se deseja construir, como projeto político nacional, em contraposição ao chamado mundo atrasado do campo e das curas rituais. No entanto, ao fazer isso, criam-se, via publicidade, novas ritualizações que fazem do medicamento um elemento simbólico a ser narrativamente articulado nas peças publicitárias através dos textos e das imagens. A base do argumento sustentado pelo autor converge para a polêmica afirmação da agência dos objetos, no caso do medicamento, a um só turno resultado de sínteses complexas e conformador de condutas.

Thiago Rodrigues, no artigo “Identidades Sociais em Dias de Modess”, por sua vez, também busca compreender a relação entre um bem de consumo e modernização do Brasil a partir da análise de material publicitário. Para tanto, toma como ponto de partida o ingresso dos absorventes higiênicos no mercado brasileiro e o desenvolvimento de seu uso a partir das transformações nacionais, na direção de uma desejada modernização, e das mudanças no modo de vida feminino. Assim, articulam-se três planos de interpretação acionados simultaneamente e sintetizados nas mensagens publicitárias de Modess na revista carioca Querida, dirigida ao público feminino de classe média, e tomadas pelo autor como eixo de sua problematização. Assim, à imagem de Modess referem-se a imagem desejada de nação e sua inserção no mercado capitalista das coisas modernas, bem como a autoimagem dessas mulheres, potenciais consumidoras, cujo modo de vida estava se transformando e ganhava expressão em comportamentos, anseios e aparências.

O artigo “Trajetória e sentidos da cerveja: das origens europeias à formação do Brasil moderno” traz à baila a questão de como uma bebida ancorada em forte tradição na Europa se torna símbolo nacional no Brasil. O autor, Matheus Lavinscky, segue o percurso histórico do produto para, a partir de seu processo de comercialização e consumo, compreender o modo de inserção da bebida no Brasil e sua rápida associação a uma concepção de moderno e modernas práticas de lazer vinculadas em especial ao segmento popular. Assim, assume como tese e conclusão que a cerveja não institui novos comportamentos e sim, em termos weberianos, se afina àquilo que são as aberturas do presente, potencializando-as e sendo potencializada por elas, mesmo no modo como o consumo de cerveja sobrepuja a posição da cachaça como referência de gosto, algo compreensível apenas à luz da interpretação das relações estabelecidas entre diferentes povos na concorrência pela conformação de um mercado consumidor de cerveja, por um lado, mas igualmente pelo percurso vivido pelo Brasil neste concerto internacional.

Tomando o contexto de século XIX, “Caminhos do objeto: a afirmação do leilão e os primeiros capítulos de uma história do comércio no Brasil oitocentista” busca problematizar e descrever o desenvolvimento de um dos modos de circulação / comercialização de mercadorias no Brasil do período: o leilão. Não apenas isso, a autora Carolina Fernandes aponta que os leilões se apresentaram como mecanismo recorrente à efetivação da circulação das mercadorias no Brasil, em especial aquelas advindas de importação, o que levou a que determinados modelos de organização e exercício da atividade ganhassem relevo por estas terras. Assim, não havia um único modelo, mas o que imperou no Brasil se apresenta como expressão e consequência das relações especialmente estabelecidas com a Inglaterra no quesito trocas comerciais. E, neste sentido, diferentes objetos eram leiloados, desde utensílios e alimentos até escravos, entendidos como objetos. A disposição das “coisas”, do leiloeiro e dos potenciais compradores foram analisados pela autora a partir de diferentes ordens de gravuras feitas sobre o Brasil e outros países, como Espanha. Assim, Carolina Fernandes apresenta um interessante quadro da atividade de leilões no Brasil oitocentista em seus produtos comercializados, gravuras, anúncios, bem como no modo (predominante inglês) de exercício da atividade.

Por sua vez, ”Beleza Pura: uma abordagem histórica e socioantropológica das representações do corpo e beleza no Brasil” parte da concepção de que o corpo foi tornado objeto e capital no percurso das interações, o que potencializou não apenas o trabalho (controle) sobre o corpo enquanto decorrência do processo civilizador ocidental, como a mercantilização de produtos e serviços ligados a esse controle / trabalho em contexto capitalista. Assim se justificaria a valorização da aparência física como um gosto sócio-historicamente construído, mas naturalizado, a fazer com que esses consumidores entendam tal trabalho como necessidade e prazer. Os autores Silvio Benevides e Vanessa Rodrigues, contudo, enfatizam as dinâmicas de poder envolvidas em tal processo, e não apenas suas variações históricas na definição do belo / feio e do corpo. Isto é feito ao pensar e discutir o corpo negro e a perspectiva decolonial, uma vez que, se retoma processos históricos, o faz à luz da tentativa de responder a uma questão do hoje que envolve jovens de maioria negra.

Já o texto “Vestir-se à Boa Morte: apontamentos sobre o vestuário em irmandades negras religiosas na região recôncava da Bahia” traz aquilo que cobre o corpo como mote de discussão. Trata-se da indumentária religiosa usada pela Irmandade da Boa Morte em Cachoeira e São Gonçalo dos Campos, ambas cidades da Bahia. Wilson Penteado Júnior e Vanhise Ribeiro tomam a indumentária enquanto expressão de significados, no caso sagrados e históricos, associados aos modos de vida de suas usuárias e às próprias transformações no contexto religioso-social. Isto é, apesar de se tratar de indumentária entendida como tradicional, a roupa da irmandade da Boa Morte permanece na medida em atualiza seus significados, quando não seus modos de cuidado, seus apetrechos e mesmo seus usos. O seu forte cariz expressivo ganha plena evidência na assunção de se tratar da roupa de Nossa Senhora, o que de acordo com os autores pode ter sido aspecto acionado apenas recentemente na defesa da indumentária contra ataques externos, bem como em sua relação com as Negras de Partido Alto. Mais do que isso, a dificuldade do cuidado, que poderia ser entendido como momento de sacrifício, em forte associação com o sofrimento de Cristo, de sua mãe Maria e dos negros escravizados trazidos ao Brasil, transmuta-se na emoção da redenção do sofrimento no uso de roupa de pompa em momento solene numa inversão simbólica que faz do escravo senhor. No caso, que faz da escrava uma senhora que bravamente resiste às inúmeras adversidades.

Por fim, em “As mãos que fazem o trançado – identidade e memória na produção de moda em Salvador-BA na virada para os anos 2000” Salete Nery toma não a roupa religiosa, e sim aquelas produções vinculadas à dinâmica capitalista de conformação dos objetos ligados à composição da aparência pessoal: a moda. O objetivo é, na contramão da concepção da singularidade do fazer criativo, buscar compreender como o tema da identidade (baiana) foi se tornando e foi tornado elemento de articulação de diferentes produções de moda na Bahia na passagem para o XXI como resultado da atuação de diversos agentes em contexto que, inclusive internacionalmente, parecia favorável à valorização das expressões locais-tradicionais-afro, mesmo em suas reelaborações contemporâneas na forma de produtos voltados ao mercado.

Assim, os diversos textos que conformam o dossiê apresentam diferentes facetas a partir das quais o mundo das coisas / as coisas no mundo podem ser tomadas como objeto de rica problematização.

Maria Salete Nery – UFRB

Organizadora do dossiê Sobre Coisas e Trajetórias


NERY, Maria Salete. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.10, n.1, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Biografias, Memórias e Trajetórias / História (Unesp) / 2014

O presente fascículo da revista História (São Paulo) é iniciado pelo dossiê Biografias, Memórias e Trajetórias, organizado pelo professor Wilton Carlos Lima da Silva, do Departamento de História da Unesp / Assis. Esse dossiê é composto por autores do Brasil e de Portugal interessados no estudo dos condicionamentos políticos e culturais que incidem na construção dos relatos biográficos, na busca por fontes inovadoras para a pesquisa biográfica, assim como na reflexão do ofício do historiador dedicado à biografia.

Iara Lis Schiavinatto analisa o papel desempenhado pela imagem na consagração pública dos governantes luso-brasileiros, especialmente os participantes das Cortes Constituintes de 1820, a partir do exame de coleções de retratos confeccionados para fixar a memória oficial. A pintura também é tema do texto de Cristina Meneghello, a qual se debruça sobre a obra do pintor paranaense Eugenio de Proença Sigaud, com o propósito de reavaliar o legado de Sigaud pela confrontação da tradicional crítica artística com novos elementos aportados pela pesquisa histórica. A questão do exílio português é o centro dos dois textos seguintes. Heloísa Paulo discute as dificuldades e armadilhas metodológicas envolvidas na pesquisa biográfica dos exilados portugueses durante o Salazarismo e aponta para a necessidade de superar os relatos lineares e as memórias estabelecidas. Em seguida, Luiz Nuno Rodrigues analisa o exílio do general Antonio de Spinola, primeiro presidente da República de Portugal após a Revolução dos Cravos, que se refugiou no Brasil depois de se demitir do cargo e tentar voltar ao poder por meio de um frustrado golpe de Estado. Portugal ainda comparece em outro texto, de Elsa Lechner, dedicado a relatar a pesquisa biográfica de imigrantes que vivem atualmente nesse país e a refletir sobre as potencialidades e limites deste tipo de investigação. Quanto à Argentina, país prolífico na construção de mitos históricos, tem dois destes, dos mais proeminentes – Eva Perón e Ernesto Che Guevara – , examinados por Cecília López Badano, a qual procura compreender como a ficcionalização das suas biografias reconfigurou a percepção social, transformando-os em heróis martirizados. O dossiê é finalizado pela estimulante reflexão de Benito Bisso Schmidt a respeito das implicações éticas do trabalho do historiador biógrafo.

A seção de artigos livres traz duas contribuições relativas à história da administração da monarquia portuguesa. Armando Norte examina a formação do estamento burocrático nos séculos iniciais do Reino de Portugal, ao passo que Francismar Lopes de Carvalho se detém nas tensas relações dos funcionários e colonos da capitania de Mato Grosso com a Coroa portuguesa. Os setores populares são tematizados sob duas diferentes perspectivas. Beatriz Ana Loner estuda como a primeira extração da Loteria do Ipiranga, em 1880, incidiu sobre a vida de um conjunto de escravos e trabalhadores livres rio-grandenses. Por sua vez, Luis Reznik e Rui Aniceto Fernandes examinam as instituições que recebiam os imigrantes nas Américas, dedicando especial atenção ao Rio de Janeiro, em fins do século XIX. O Chile merece a atenção de dois autores. Manuel Loyola focaliza a chamada Buena Prensa, uma iniciativa do Vaticano para modernizar a imprensa católica no mundo, e analisa os seus desdobramentos na sociedade chilena. Por sua vez, Carlos Dominguez Ávila propõem uma original interpretação da repercussão internacional do golpe contra o governo de Salvador Allende, com base na documentação diplomática do Ministério de Relações Exteriores do Brasil. A seção é encerrada pelo artigo de Carimo Mohomed, dedicado a explorar o complexo papel desempenhado pelas correntes islâmicas na formação do estado paquistanês.

Este número é completado por uma resenha de livro a respeito da Espanha visigótica e por uma tradução de artigo do historiador espanhol Jaume Aurell, o qual dialoga com a temática do dossiê, em sua reflexão, a respeito das autobiografias elaboradas pelos historiadores.

Agradecemos pelo apoio do CNPq, da Pró-Reitoria de Pesquisa e dos Programas de Pós-Graduação em História da UNESP, que viabilizaram a tradução dos artigos e as diversas fases da editoração deste número.

José Luis Bendicho Beired

Jean Marcel Carvalho França

Editores


BEIRED, José Luis Bendicho; FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.33, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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