Sujeitos em trânsito: viagens e viajantes na historiografia da educação / Revista de História e Historiografia da Educação / 2017

A problemática das viagens e dos viajantes tem sido mote de muitas pesquisas, resultando em teses, dissertações, eventos e publicações diversas sobre a temática, evidenciando a diversidade de olhares, caminhos e abordagens. Assim, todas as viagens são educativas? Como a temática vem sendo trabalhada pela historiografia da educação? Com quais fontes e caminhos metodológicos? Quem são os sujeitos que viajam?

A circulação das ideias, as “novidades” pedagógicas e o intercâmbio podem ser apontados como motivações para as muitas andanças realizadas por sujeitos preocupados com a educação lato sensu. Assim, o livro “Viagens Pedagógicas” (2007), organizado pelos professores Ana Chrystina Mignot e José Gonçalves Gondra reúne uma série de experiências de viagens de educadores e educadoras, num mosaico com diferentes nacionalidades, temporalidades e destinos que ajuda a visualizar os diferentes esforços e pesquisas preocupadas com a historicidade e importância das viagens para se compreender os processos educativos. O livro é composto por trabalhos que ajudam a dimensionar o interesse pela temática no âmbito da história da educação e a diversidade de fontes. No ano de 2015, o livro “Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas”, organizado por Alexandra Lima da Silva, Evelyn de Almeida Orlando e Maria José Dantas, procurou dar visibilidade aos diferentes significados das viagens realizadas por mulheres, com destaque para as viagens de educadoras.

Por sua vez, outra importante publicação na área sobre a temática é o dossiê “Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos”, que compõe a Revista Brasileira de História da Educação (2010). Os textos do dossiê foram apresentados no VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, realizado no ano de 2007. Destaco ainda, o livro “Exílios e viagens: ideários de liberdade e discursos educativos. Portugal e Espanha, séc. XVIII-XX”, organizado por Margarida Felgueiras e Antón Costa Rico.

Dentre a recente produção acadêmica no âmbito da história da educação, destaco a crescente produção de teses e dissertações que exploram a viagem em suas diferentes possibilidades de análise. O trabalho de Jussara Pimenta fez uso de cartas e crônicas publicadas em jornais como fonte de pesquisa para estudar a viagem de Cecília Meireles a Portugal em 1934 (PIMENTA, 2008). Diários e o relatório de viagem foram as fontes privilegiadas por Silmara Cardoso (2011), para analisar o ideário educacional brasileiro do intelectual Anísio Teixeira. A tese de Inára Garcia Pinto (2011) também parte de um relatório para compreender os significados da viagem do professor primário Luiz Augusto dos Reis que, em 1891, a Portugal, Espanha, França e Bélgica. A tese de Alexandra Lima da Silva analisou a viagem de Rocha Pombo aos estados do norte do Brasil como uma estratégia de legitimação do autor no campo intelectual (SILVA, 2012). Já a tese de Sara Raphaela Amorim explorou a viagem como missão em Nestor dos Santos Lima (AMORIM, 2017).

Este dossiê procura dar visibilidade a estudos sobre a temática viagens e viajantes na historiografia da educação, em pesquisadoras e pesquisadores situados em diferentes instituições brasileiras, como também, em países como México, Espanha e Portugal.

Elizabeth Silva explora as viagens de Nísia Floresta pelo Brasil afora, no texto intitulado “As viagens de Nísia Floresta pelo solo brasileiro durante o século XIX”. Por seu turno, Helder Henriques e Amélia de Jesus Marchão discutem a importância da circulação de ideias através das viagens pedagógicas ancorados no exemplo da Universidade de Coimbra, no artigo “Uma perspetiva sobre Alves dos Santos (1866-1924): apropriação e difusão de ideias pedagógicas em Portugal”. A professora Blanca Susava Veja Martínez explora os relatos de viagem de três professoras rurais mexicanas que transitaram dentro do nordeste do país para fundar escolas e levar a diante sua prática de ensino, no artigo “Relatos de viajes: maestras, escuelas y caminos rurales em el México del siglo XX”. Em “Uma viagem, um engenheiro, uma escola: reorganização da escola prática de aprendizes da Estrada de Ferro Central do Brasil (1905)”, Adriana Valentim Beaklini analisa a reorganização do curso profissional da Escola Prática de Aprendizes da Estrada de Ferro Central do Brasil, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a partir das impressões da viagem aos Estados Unidos, realizada pelo subdiretor da Seção Locomoção, o engenheiro José Joaquim da Silva Freire, em 1905

O artigo “Onde os laços se atam: sociabilidade e política nos relatórios das viagens pedagógicas do intelectual norte-rio-grandense Nestor dos Santos Lima (1913-1923)”, de Sara Raphaela Machado de Amorim, explora as viagens comissionadas de Netos Lima, que se lançou a conhecer o ensino nos centros de maior desenvolvimento educacional do Brasil, Argentina e Uruguai. Já as viagens de Anttonieta de Souza ao Egito, na década de 1950, foram o foco do artigo de Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti, intitulado “Música da terra dos faraós: aprendizagens de Anttonieta de Souza numa viagem ao Egito”. Por fim, as incursões e trabalhos pastorais de Frei Betto nos países do socialismo real especialmente Cuba, Nicarágua, União Soviética e as reflexões que ele faz entre convergências e divergências da teoria marxista e a religião cristã foram analisadas no artigo “Frei Betto em experiências de viagens: o cristão no socialismo real”, de Rhaissa Marques Botelho Lobo.

As viagens e os viajantes permitem diferentes abordagens e olhares. Nesses termos, o presente dossiê procura contribuir para o debate em torno deste importante e intrigante tema.

Referências

AMORIM, S. R. M. Viagem como missão: intercâmbio pedagógico do educador Nestor dos Santos Lima (1913-1923). Tese (Doutorado em Educação), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017.

CARDOSO, S. Viajar é ser autor de muitas histórias? Experiências de formação e narrativas educacionais de professores brasileiros em viagem aos Estados Unidos (1929-1935). São Paulo: Tese (Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo, 2015.

MIGNOT, A. C.; GONDRA, J. (org.). Viagens pedagógicas. São Paulo: Cortez, 2007.

PIMENTA, J. As duas margens do Atlântico: um projeto de integração entre dois povos na viagem de Cecília Meireles (1934). Tese (Doutorado em Educação), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2008.

PINTO, I. Um professor em dois mundos: a viagem do professor Luiz Augusto dos Reis à Europa (1891). Tese (Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo, 2011.

SILVA, A. L.; ORLANDO, E. A.; DANTAS, M. J. (org.). Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015.

Alexandra Lima da Silva – Professora Doutora. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Organizadora do dossiê temático.


SILVA, Alexandra Lima da. Apresentação. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 1, n. 2, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Viagens e narrativas (auto)biográficas | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2017

Quem nunca se imaginou atravessando terras, céus e mares em busca do desconhecido, do inusitado, do novo? Uma propaganda e até mesmo uma revista que se vê de relance em uma banca de jornais despertam o desejo de partir, sumir, mudar, experimentar. Apesar de sempre ter existido a curiosidade pelo estranho e o exótico, o educador Francisco Venâncio Filho (1941)1, considerava que, o gosto pela viagem era moderno na medida em que se tornara possível viajar pelo livro, pela revista ilustrada ou pelo cinema. No seu entendimento, elas podiam ser de diferentes gêneros e espécies: de negócio, de saúde, de luxo, de recreio e de cultura, exigindo sempre um cuidado especial. Assinalava, ainda, existir, uma “encantadora psicologia da viagem” (idem, p. 119), como sugeria Paul Morand, em Le voyages (notes e maximes), o que envolvia um projeto com previsão de custos e itinerários, o que seria precedido da reunião de mapas, guias, prospectos e conhecimento de uma literatura especializada, capazes de fornecer informações preciosas e precisas. No delineamento de uma certa pedagogia da viagem, Venâncio Filho, sinaliza para a importância de estudo e planejamento, como a necessidade de viajar com pouca bagagem, comprar o menos possível e conhecer pelo menos cem palavras do país visitado para ter acesso a números, moedas, passagens e alimentação. Alertava ainda: “A preparação cultural da viagem torna-se condição para que se aproveite o mais possível” (idem, p. 123). Leia Mais

Viagens, Viajantes e deslocamentos / Projeto História / 2011

Enfim chegamos à estação Saint Paul

Imagino que estou na estação de Nice

Ou desembarcando em Londres Charing Cross

Encontro todos os meus amigos

Bom dia Eis-me aqui.

Blaise Cendrars

Blaise Cendrars, poeta nascido na Suíça, esteve muitas vezes no Brasil: em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais. Em cada visita, registrou suas impressões em poemas, em cartas, em livros, em seu diário etc. Foi um viajante e um homem de seu tempo; circulou por diferentes lugares do mundo e o Brasil esteve em seus roteiros, espaço este marcado por um tempo, espaço– tempo lembrado e perpetuado por seus registros, disseminados talvez por seus leitores, interlocutores permeados por um imaginário, recheado de expectativas que preenchiam uma representação europeia sobre o outro e que, por fim, foi recuperado por historiadores numa leitura que precisou ponderar sobre o texto (formas de registro, conteúdo, contexto: espaço–tempo) e seus sentidos. O tema das Viagens, Viajantes e Deslocamentos, proposto para o número 42 da Projeto História, aborda o olhar e o registro sobre um outro espaço, um outro tempo e outros sujeitos históricos, o que nos encaminha para uma teia de questões que lidam com visões de mundo, representações que se constituem em registros que passam por metodologias e teorias, documentos e suas abordagens, configurando uma rica discussão historiográfica. Diferentes questões se entrecruzam nesta abordagem.

Nossa epígrafe retoma um célebre viajante ou “uma criatura desenraizada” nas palavras de Sevcenko[1] o que explica a citação, ao anunciar identificação e não estranhamento; Cendrars expressa, em alguns de seus poemas, sua paixão pela cidade de São Paulo, recuperada e discutida por Sevcenko na reconstituição da São Paulo urbana nascente no contexto do século XX. A paixão de Cendrars, aqui citada, denota uma relação viajante–viagem que se inicia com o estatuto do próprio viajante, constituído no intuito da viagem, seguido de seus registros e impressões. Os viajantes tiveram motivações distintas para suas viagens, demarcadas por interesses comerciais, culturais ou científicos; motivações estas que marcaram uma postura. Como discute Amilcar Torrão Filho [2], todo viajante precisa de um método e de uma teoria. Estes definem a mediação entre o olhar, ou seja, o sensório e o lugar, estabelecendo um campo organizado, uma cartografia do olhar na tentativa de sentir e perceber o outro. Esta cartografia orienta o olhar e pode aproximar o viajante de seus leitores, como enunciado por Said ao discutir sobre a construção da noção de “orientalismo”, na qual lemos: “o principal para o visitante europeu era uma certa representação europeia – compartilhada pelo jornalista e por seus leitores franceses – a respeito do Oriente e de seu destino atual”.[3] Antes mesmo de dizer sobre o outro, o viajante expõe os seus próprios esquemas mentais através de seu método, explicitando referências culturais. A literatura de viagem suscita, então, em primeira instância, a retomada da perspectiva do viajante. Em Cendras, o seu olhar buscava impressões imediatas, o registro do outro no ato da observação, quase numa ânsia de não perder a referência deste outro:

Era a estética que ele estabelecera no seu último livro, Kodak, segundo o qual o poeta deveria repercutir o choque instantâneo da realidade exterior em seus órgãos sensoriais, sem dar tempo para que a consciência ou a imaginação diluíssem aquele instante fragmentário na representação simbólica ou no substrato da tradição cultural.[4]

O registro traduz um método em Cendrars; apesar da afirmação de que o registro deveria preceder a interpretação, vemos o método expresso na cartografia do olhar de um modernista, um defensor dos fragmentos, das rupturas, na desmontagem das linguagens. O poeta procura explicações, origens e sentidos, tais quais outros modernistas como Picasso em sua leitura das máscaras africanas ou Gauguin, com a busca do primitivismo, denotando assim perspectivas culturais delimitadas por seu tempo–espaço, concernentes a uma visão de mundo e expressa em seu método de observação. Ao mesmo tempo, Cendrars demonstra seu projeto pedagógico, imbuído do caráter civilizatório europeu, ao receber artistas brasileiros em seu país, tecendo contatos, apresentando espaços, enfim, oferecendo o ambiente modernista europeu como referência cultural para a produção artística brasileira. O projeto transparece, se faz ver. Neste caso, Miceli [5] nos mostra como os modernistas brasileiros, viajantes na Europa e aprendizes dos europeus, reproduziram talvez a perspectiva do Grand Tour e viajaram para se alimentar, absorvendo a visão modernista pautada também por um olhar, o olhar da nação em construção, do viajante que busca sua própria identificação. Neste percurso, se mostraram mais tradicionais que os seus mestres, rompendo menos com a linguagem figurada, numa composição de valorização da Nação. Neste caso, o universo destes viajantes é o universo da Nação nascente, em construção, referenciada pelo modelo europeu civilizatório.

Destarte, os viajantes não são agentes neutros, carregam diferentes projetos em suas bagagens e orientam seus olhares com especificidades. Em muitos casos, o viajante, como indivíduo de passagem, toma o especial como regra. Quando Peter Burke, em Cultura Popular na Idade Moderna, discute sobre as festas, chama atenção de que eram momentos especiais, em que as pessoas buscavam sair da rotina (comiam e bebiam mais, usavam roupas e utensílios especiais). “Dentro das casas, muitas vezes os jarros, copos e pratos mais ricamente decorados só eram usados em ocasiões festivas, e assim as peças remanescentes podem enganar o historiador, se não for cuidadoso, quanto à qualidade da vida cotidiana no passado”.[6] A utilização das descrições de viajantes para reconstituir esse cotidiano pode apresentar algumas armadilhas. Mas esses problemas e armadilhas não são dos viajantes e de seus relatos, são problemas para os historiadores que precisam considerar que todo relato de viagem é um documento permeado de intencionalidades e especificidade próprias de seu tempo–espaço. São as bagagens do viajante e por isto o projeto de viagem se historiciza. No caso de Cendrars, no contexto do início do século XX, num país republicano e recente que se coloca o problema da identidade nacional, o caráter pedagógico é o da busca da especificidade desta Nação, o que lhe é próprio e inusitado. Teoria e método, assim, indicam o caráter do projeto do viajante e a viagem, historicizada, permite reconstituir a própria historicidade das diferentes viagens. Podemos perceber pela definição tempo–espaço a mudança de lugares, de roteiros, de intenções, bem como então, de registros e percepções.

Nesse sentido, seria interessante apresentar a obra de Theodor Bry, Americae Tertia Pars, terceiro volume das Grandes Viagens, do século XVI – que descreve nativos, rituais, aspectos culturais, sem jamais ter visitado a região. Ele fundamenta sua obra a partir de relatos de viajantes, em especial Hans Standen e Jean de Léry.

As imagens de rituais antropofágicos, tão pitorescos e interessantes ao Velho Mundo, estão amparadas na sua própria ideia de antropofagia, dos rituais de bruxaria. Laura de Mello e Souza7, Inferno Atlântico, mostra isso em Léry: “[…] na passagem em que Léry associa o ritual tupi do litoral brasileiro ao sabá europeu das bruxas -, a relação entre os ritos ameríndios e a demonologia é inequívoca”.[8] Bry representa os tupinambás utilizando caldeirões, algo pouco provável, assim como a presença constante de mulheres nesses “festins diabólicos”. São referências aos rituais europeus, assim sua forma de “ver” e “relatar” acaba sendo influenciada pelo seu acreditar, por aquilo que supõe ser.

Ainda dentro desse mesmo processo histórico – expansão marítima e colonização – cabe destacar outras obras. Na obra de Sérgio Buarque de Holanda,[9] Visão do Paraíso, temos inúmeros relatos de viajantes. Existia na Europa a crença na terra, distante, onde os homens não adoeciam. A crença na existência de paraísos perdidos entre mares impiedosos justificava a busca do Éden durante as navegações. Viagens reais e ficcionais – como as de Sir John Mandeville – fomentaram o mito, que acabou sendo reforçado pelas descrições de viagens e viajantes reais, como a descrição de Américo Vespúcio, em 1502: “Terra amena, de arvores infinitas e muito grandes, que não perdem folha, aromáticas, carregadas de saborosos frutos, e salutíferos para o corpo […]”.

Na carta de Caminha, a descrição também é semelhante:

“[…] a terra em si é de muito bons ares […]. Águas são muitas: infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar dar-se-á nela, tudo, por bem das águas que tem.” Essa visão está fundamentada naquilo que o viajante procurava encontrar: o “Paraíso”: “Tinha também o Senhor Deus feito nascer da terra todas as castas de árvores agradáveis à vista, e cujo fruto era gostoso ao paladar: e a árvore da vida no meio do paraíso […]”.[10]

Não podemos deixar de destacar, também, a obra Viajantes do Maravilhoso, de G. Giucci, que busca na Odisseia inspiração para discutir a viagem de Cristóvão Colombo em direção ao desconhecido. Aqui temos uma visão diferente do “outro”. Os viajantes – Ulisses ou os modernos, nesse caso representado por Colombo – tem como correto, certo e justo o seu espelho, assim o ciclope Polifemo, como os ameríndios, são bestializados a priori. “Várias vezes o viajante curioso manifesta seu interesse em verificar se os colossos se atêm às regras de hospitalidade. Mas o gigante dissipa toda fantasia bucólica ao confrontar-se violentamente com os estrangeiros”.[11] Isso também ocorreu com os ameríndios, para uns habitantes do paraíso, para outros seres demoníacos.

Em seu diário, Antonio Pigafetta – escritor italiano que acompanhou Fernão de Magalhães na primeira viagem de circunavegação – tem uma visão oposta à de Caminha sobre os nativos. Ele apresenta a “libertinagem das moças – algumas vezes, para conseguir uma faca de cozinha ou outro instrumento de corte, nos ofereciam como escravas uma ou duas de suas filhas” e também o traço definitivo para comprovar a “bestialidade”, a antropofagia, “comem muitas vezes carne humana, porém, somente de seus inimigos.”[12]

Essas descrições, mais do que apresentar povos e terras, são excelentes fontes para entendermos o pensamento do homem europeu dos séculos XV e XVI. No contexto do Grand Tour o destino era a própria Europa, prioritariamente a Itália; neste momento, os lugares e roteiros demonstram a busca do lazer alimentado de cultura e conhecimento, numa perspectiva clara do que se entendia por conhecimento e cultura. Aqui, a narrativa de viagem é essencialmente descritiva e o viajante é um aprendiz e uma referência; o lugar é o urbano, construído. Aqui podemos vislumbrar os motivos das viagens, os destinos escolhidos, os registros, tanto em seu conteúdo, quanto em sua forma, reconstituindo um imaginário europeu próprio do século XVIII. Estas narrativas elucidam uma perspectiva civilizatória europeia, no alimento da própria civilidade:

O culto ao antigo que acompanhou o Grand Tour à Itália também não se esgotava na viagem, tendo desdobramentos posteriores à chegada dos viajantes a seus países, especialmente na Inglaterra, onde eles eram em maior número e mais ativos. Um desses desdobramentos foi a fundação de sociedades reunindo pessoas com interesse em antigüidades. A Society of Dilettanti, fundada em 1734 por um grupo de gentlemen que havia viajado em um tour à Itália, tinha como preocupação central promover a investigação e a publicação dos resquícios das grandes civilizações do passado. [13]

Afinado neste diapasão, o texto de Mikael Dumont, O Atlântico dos Emigrantes Franceses (séculos XVII e XVIII): Experiências Humanas da Travessia, explicitam a travessia oceânica pelos franceses e a modificação estrutural que a sociedade era forçada a atravessar: o poder deixa de se entificar na monarquia e passa a se entificar no capitão. As vicissitudes da travessia eram tão graves que faziam os emigrantes desejarem a terra a todo custo.

O Brasil também participará dos roteiros de viagens no contexto do final do século XIX e início do XX. Há, aqui, um ponto de inflexão que norteará estas viagens, presente numa postura cientificista nascente. Estes viajantes assumem a perspectiva cientificista e buscam não mais o alimento cultural, mas o experimento, a observação, saindo do reconhecido e caminhando para o exótico; ocorre uma mudança do interesse do mundo urbano para o ambiente natural e o registro do outro assume um caráter mais pedagógico, coadunandose com um contexto de Nação nascente.

A historicidade das viagens expressa as marcas da relação tempo–espaço, mas independentemente do momento, as viagens e seus viajantes propõem uma discussão de alteridade. Vemos aqui a busca do outro, o que significa muitas vezes a busca de si próprio, a construção do eu–nós na oposição do outro–eles. Said, em sua discussão sobre a construção do orientalismo pelo ocidente, demonstra esta tessitura:

Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse oriente é meramente imaginativo. O oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. [14]

Esta alteridade é constituída na demarcação das fronteiras, territoriais, econômicas, políticas e culturais, visível em seus símbolos, inserida em sistemas classificatórios perceptíveis na observação dos elementos que compõe o todo da viagem: seu planejamento, roteiro, registro e retorno, como observado nos diferentes registros sobre as viagens do Atlântico acima comentadas. A construção do outro e a demarcação do eu–nós passa pela própria narração da viagem, o que remete à importância do registro, do texto. Alguns aspectos perpassam o mesmo. O primeiro é o da consideração dos relatos de viagem na relação que estabelecem com os seus autores, os viajantes.

O artigo de Laís Guaraldo proposto neste volume, Delacroix no Marrocos e a Inversão do Exótico, faz esse trabalho de situar o viajante e seus relatos, quando mostra os registros do pintor – letras e imagens – na viagem ao Marrocos (Missão Diplomática, 1832) e as mudanças em suas concepções do “exótico”. A busca pelo pitoresco é comum e constante, no entanto, o conceito de pitoresco pode se alterar.

O segundo aspecto resvala na posterior apropriação das narrativas de viagem como texto historiográfico. Quando observamos as obras de Debret, sobre o Rio de Janeiro, em especial sobre os negros, temos um retrato desse cotidiano, registrado pelo viajante e analisado pelo historiador.

A obra Marchand de Tabac, de 1835, mostra uma cena muito interessante: alguns negros, acorrentados pelo pescoço, defronte a uma loja de tabaco, um desses negros está dentro da loja, supostamente comprando tabaco. Esse relato apresenta elementos fundamentais para compreendermos melhor o cotidiano dos escravos nos centros urbanos. Nesse caso, percebemos certa “mobilidade” desses indivíduos. Mesma “mobilidade” foi percebida por Sidney Chalhoub,[15] no livro Visões da Liberdade. Quando ele mostra possibilidades de intervenção do escravo em suas vidas, o quadro de Debret é um excelente argumento.

Aliás, essa obra nos apresenta outro grupo de viajantes e suas histórias: os escravos envolvidos no tráfico interprovincial. A partir de 1850, duzentos mil escravos foram transferidos para o sudeste brasileiro, através de vários atravessadores (com a utilização de procurações, substabelecimentos, para evitar os impostos e escrituras de compra e venda). Os escravos transferidos, na maioria dos casos, nasceram no Brasil e possuíam uma família. A vinda para o sudeste configurava-se como a primeira experiência traumática da escravidão. Buscando recompor algumas histórias, Chalhoub tenta entender essas viagens e descrever situações, como a do escravo Bráulio, que tenta fugir da escravidão no sudeste para voltar ao antigo cativeiro. Esse aparente paradoxo só pode ser entendido a partir da compreensão desse sujeito histórico.

Cabe destacar que os estudos sobre tráfico negreiro e escravidão dos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1980, ampliaram essa discussão, introduzindo o indivíduo na história, tornando-o sujeito histórico de fato e de direito. Dessa forma, o negro poderia passar da condição de “mercadoria” à condição de viajante – contrariado, é bem verdade – mas também ele capaz de nos trazer relatos do que viu e do que viveu. A obra de Marcus Rediker [16] se junta a outras que mostram essas histórias. Quando ele nos apresenta depoimentos – de tripulantes, de observadores diversos, dos escravos – dá feições aos números. Algumas histórias são simples quase banais, mas mostram o horror da escravidão, do cativeiro, do “tumbeiro”. A captura e escravidão inicial no interior africano era o primeiro ato da tragédia, muitos morreram nesses choques e sequer estão computados nos números assustadores de perdas humanas. O segundo ato era a viagem em um navio negreiro.

Jaime Rodrigues, em sua obra De Costa a Costa, nos apresenta alguns relatos de viajantes acerca dessas embarcações, descritas como infectas, repletas de pessoas “o teto era tão baixo e o lugar tão apertado que eles ficavam sentados entre as pernas uns dos outros, formando fileiras tão compactas que lhes era totalmente impossível deitar ou mudar de posição, noite e dia”.[17] É importante destacar que essa embarcação era tida como uma das melhores do período (século XVIII). Recompor esse cenário só é possível mediante os relatos desses viajantes, desses indivíduos diretamente relacionados ao processo histórico.

Nesse sentido, cabe destacar o artigo de Amilcar Torrão Filho, que apresenta uma discussão sobre as formas como a literatura de viagem foi utilizada pela historiografia brasileira. Em seu artigo Bibliotheca Mundi: Livros de Viagem e Historiografia Brasileira Como Espelhos da Nação quando mostra a obra de Von Martius – Como se deve escrever a história do Brasil – de 1845, percebemos o espanto e estranhamento desse autor – e tantos outros – com a mistura racial existente no Brasil. Martius buscava, como se fosse possível, uma visão imparcial, “do de fora” para emitir suas opiniões. Mas como cita Amílcar Torrão, “formas de ver são formas de pensar”.

Na obra de Fréderic Mauro, O Brasil no tempo de Dom Pedro II, [18] temos um exemplo dessa situação. O autor, através de relatos de viajantes, tenta recompor o Rio de Janeiro do século XIX. Os visitantes, antes de aportarem, deliciam-se com a visão paradisíaca da cidade. No entanto, o que mais apontavam nas suas descrições era a insalubridade. Um porto antigo, com escadas podres, detritos jogados na baía, transformada, assim, em uma grande fossa. As ruas eram utilizadas como sanitários pelos negros e deposito de lixo por todos. Temos nesse caso, uma visão de “atraso” calcada na ideia de “progresso” que estava ocorrendo na Europa. O final do século XVIII e, sobretudo o XIX, foram tempos de “limpar”, de “purificar”, como bem mostra Corbain.

Apesar de influenciados pela “forma de pensar”, estes são relatos fundamentais para tentarmos montar o mosaico do século XIX. O historiador tem a função de inserir as peças corretas e, mais, não poderia descartar aquelas destoantes, pois elas podem fornecer subsídios para a compreensão do pensamento estrangeiro sobre o Brasil e o que subsidiou essa visão.

Por fim, destacamos um último viés deste emaranhado de questões possíveis ao se ponderar sobre viagens e viajantes: a perspectiva do viajante que se estabelece nas novas paradas. Este passa por diferentes processos de olhares, significações e re-significações e a experiência, de viagem, se transforma agora em diáspora, como se vê no artigo de Jeffrey Lesser e Raanan Rein, Laços Finais. Novas Abordagens sobre diáspora na América Latina do Século XX: Os Judeus como Lentes.

No artigo de Maria Izilda Santos de Matos, intitulado A Diáspora Portuguesa: mulheres imigrantes portuguesas, é possível observar a análise de perseguições e expulsões ocorridas entre as décadas de 1920 e 1940. Com relação a esse artigo, é interessante pensar a relação do estado, do nacional, com esses viajantes, com esses estrangeiros. Temos, ao longo da nossa história, um constante “atrair” – imigrantismo no século XIX – e “afastar” – medidas restritivas da década de 1930.

Isso também ocorreu com o negro. Como aceitá-lo, posto que necessário, sem incluir ao povo brasileiro. Importante destacar que a questão negra, a questão das raças, do povo brasileiro, perpassa alguns artigos dessa revista. Nesse sentido, podemos destacar o texto O Brasil de Silvio Romero: uma leitura da população brasileira no final do século XIX, de Alberto Luiz Schneider, que mostra como Romero vislumbrava a questão racial no Brasil, seu equilíbrio entre a defesa da modernização e a defesa do nacional e da própria miscigenação racial.

Outros artigos, não menos importantes, compõem este dossiê, como A Memória da Catástrofe como unificadora do acontecimento e da experiência, de Fabiana Fredrigo e Laura de Oliveira, que é, não obstante, um depoimento sobre testemunhos do holocausto. Caminhos físicos, imaginários e simbólicos, de Adriana Vidotte e Adailson José Rui, relaciona o culto a São Tiago e as peregrinações a Compostela. O artigo de Ricarda Musser, Mulas, bondes y ferrocarril, analisa viajantes e viagens no Império brasileiro. O texto de Carlo Maurizio Romani, Um Eldorado fora de época, discute as expedições à região do Amapá no final do século XIX. Os artigos Luanda, Precisão do Olhar e Canibalismo: Georg MarcGrave e a História do Altântico Sul, de Ineke Phaf-Rheinberger e Intrahistoria de la Revolución Mexicana, de Carolina Depetris, também compõem de modo substancial este dossiê sobre Viagens, Viajantes e Deslocamentos.

Notas

1. SEVCENKO, Nicolau. Pindorama Revisitada. São Paulo: Peirópolis, 2000.

2. TORRÃO FILHO, Amilcar. A Arquitetura da Alteridade. São Paulo: Hucitec, 2010. Viagens, Viajantes e Deslocamentos. 17

3. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: companhia das Letras, 2007.

4. SEVCENKO, op. cit. 2000, p. 88.

5. MICELI, Sérgio. Nacional Estrangeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

6. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 244.

7. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

8. LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Ed. Itatiaia. EDUSP, 1980, p.42.

9. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Edusp, 1969.

10. Gênesis 2, 2-9.

11. Cf. a obra de Giucci. Cf. CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato no imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Cia das Letras. E Cf. também PRIORI, Mary Del. Esquecidos por Deus. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

12. PIGAFETTA, A. A primeira viagem ao redor do mundo. trad. Jurandir S. dos Santos. Porto Alegre: LPM, 1985, p. 58 e 59.

13. SALGUEIRO, Valéria. ‘Grand Tour: uma contribuição à história do viajar por prazer e por amor à cultura’ in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, p. 301.

14. SAID, op. cit. 2007, p. 28.

15. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

16. REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

17. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 133.

18. MAURO, Frèdèric. O Brasil no tempo de D. Pedro II. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

Carla Reis Longhi

Luiz Antonio Dias


LONGHI, Carla Reis; DIAS, Luiz Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 42, 2011. Acessar publicação original [DR[

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Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos / Revista Brasileira de História da Educação / 2010

Neste número 22 da Revista Brasileira de História da Educação (RBHE), a Comissão Editorial vem saudar a nova Diretoria da Sociedade Brasileira de História da Educação, nas pessoas dos Professores Doutores Wenceslau Gonçalves Neto e José Gonçalves Gondra. Eleita por sufrágio dos associados, essa Diretoria tomou posse na Assembleia Geral da entidade, que teve lugar durante o IX Congresso Iberoamericano de História da Educação Latino-americana, realizado em novembro de 2009 na capital do Rio de Janeiro. Desejamos todo o sucesso aos colegas que assumiram os diversos cargos e responsabilidades concernentes à gestão da entidade que há uma década legitimamente representa a comunidade brasileira de historiadores da educação. Saudamos, igualmente, a Diretoria que encerrou o mandato sob merecidos aplausos, nas pessoas da Professora Doutora Cláudia Alves e do Professor Doutor Wenceslau Gonçalves Neto, cujo apoio generoso e incondicional à RBHE permitiu à Revista a manutenção de sua excelente qualidade e representatividade.

A própria Comissão Editorial, por sua vez, foi recomposta, em obediência ao revezamento previsto no Estatuto. A referida Assembleia Geral endossou as indicações de duas novas colegas para a sua composição, a Professora Doutora Heloísa Helena Pimenta Rocha (Unicamp) e a Professora Doutora Flávia Obino Corrêa Werle (Unisinos), a quem, publicamente, damos as boas-vindas neste Editorial. Expressamos, além disso, o nosso agradecimento e a devida reverência ao competente trabalho realizado nesta comissão pelos colegas Dislane Zerbinatti Moraes e Carlos Eduardo Vieira, a quem as professoras vieram substituir. A RBHE conta também, a partir deste número, com novos Conselhos Editoriais, compostos por renomados historiadores da educação, que representam programas e instituições de ensino e pesquisa de todo o país, bem como dos países com os quais nossa comunidade mantém relações mais próximas. A todos os membros dos conselhos agradecemos pelo aceite e expressamos a honra de poder contar com suas preciosas colaborações.

Neste número, que abre o conjunto de três edições para as quais obtivemos os recursos do Edital MCT / CNPq-MEC / Capes nº 16 / 2009 – Editoração e Publicação de Periódicos Científicos Brasileiros, a RBHE traz o Dossiê “Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos”, organizado por José Gonçalves Gondra, cujos artigos versam sobre a interessante e, ao menos entre nós, pouco explorada temática das viagens de educadores. Como Gondra bem expressa na apresentação do dossiê, os artigos de Carla Simone Chamon e Luciano Mendes de Faria Filho, Ana Chrystina Venancio Mignot, Joaquim Pintassilgo e Alessandra Frota Martinez de Schueler trazem os momentos decisivos em que tais viajantes tornaram-se vetores da circulação de livros, ideias e modelos pedagógicos, compondo em seu conjunto um instigante panorama para novas pesquisas e debates.

Apresentamos, também, o artigo de Claude Carpentier, “Manuais e programas escolares franceses de história e geografia: identidades, globalização e construção europeia (1995-2002)”, em tradução de Dislane Zerbinatti Moraes, que, ancorado em substantiva documentação, trata do modo como os manuais e programas dessas disciplinas têm apresentado aos secundaristas franceses a problemática questão do duplo processo de globalização e de construção da identidade europeia. O artigo de Antonio Simplício Neto, “Ensino de história e cultura escolar: fontes e questões metodológicas”, articulando discussão teórica e pesquisa com documentação escolar, defende uma história das disciplinas que privilegie a análise das práticas escolares, a fim de superar interpretações que sobrelevam as problemáticas externas e que tendem a empobrecer o papel da escola e de seus agentes na produção dos saberes disciplinares. O artigo de Mônica Yumi Jinzenji, “As escolas públicas de primeiras letras de meninas: das normas às práticas”, trata da organização dessas escolas em Minas Gerais no século XIX, com especial atenção para as tensões entre controle e resistência que povoaram o cotidiano de professoras, alunas e suas famílias. Esta edição encerra-se com a entrevista do reconhecido historiador da educação espanhol, Antonio Viñao Frago, que, respondendo a Marcus Taborda, aborda tópicos de grande interesse para historiadores da cultura e da educação e para educadores, tais como a importância do espaço e do tempo na organização e cultura escolares, a realização histórica da utopia da escola para todos e o propalado anacronismo da instituição escolar na sociedade contemporânea.

Uma ótima leitura a todos!


Comissão editorial. Editorial. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.10, n.1, jan. / abr., 2010. Acessar publicação original [DR]

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Viagens e narrativas / História Social / 2003

No terceiro ato d’ A tempestade, Próspero vale-se de magia e conduz os náufragos até sua ilha, oferecendo-lhes farta mesa, servida por espíritos. “ – São fantoches com vida”, espanta-se Sebastião: “ – Agora creio / que haja unicórnios, que na Arábia serve / uma árvore de trono à Fênix, / que a reinar lá se encontra neste instante”. Antônio também opina, e confessa crer em “… tudo o mais que de hábito / tem sido posto em dúvida (…) / Os viajantes não mentem, muito embora / na pátria os tolos os acoimem disso”. Quem acalma os ânimos de Antônio é Gonzalo, sábio conselheiro:

“Ora senhor, não tenhas medo. Quando

nós éramos meninos, quem creria,

porventura, que houvessem montanheses

com barbela de touro na garganta,

a pender-lhe do peito, como um saco

balouçante de carne? Ou gente houvesse

com a cabeça no peito? Ora, tudo isso

nos é prontamente asseverado

pelos viajantes sobre os quais apostas

correm de um contra cinco”.[1]

Nem todos os viajantes, contudo, descrevem homens sem cabeça ou aves que renascem das cinzas, já que, do outro lado da ficção, espreita a sempre buscada verdade da história, ou – de modo menos enfático – uma quase tangível melhor versão, à qual se chegaria, a partir de procedimentos objetivos de criação, traçados por um tão ansiado quanto indemonstrável método historiográfico. Também sobre isto, muitas apostas correram e vão continuar a correr, opondo crentes e cépticos de vários matizes, os quais se acusam, mutuamente, de acreditar no que não viram ou imaginaram ver, ante a tensão sempre constante que opõe ausência e presença dos objetos históricos; o que foi e aquilo que sobrou nos vestígios documentais – em suma, a interpretação.

O problema é muito antigo, aparecendo, por exemplo, no conflito religioso-literário que opôs André Thevet e Jean de Léry, no século XVI, mas é na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (1614) que ele aparece com saborosa evidência, conforme se lê no início do capítulo CXIII do livro: “por me temer que particularizando eu todas essas coisas que vimos nesta cidade, a grandeza estranha delas possa fazer dúvida aos que as lerem, e também por não dar matéria a murmuradores e gente praguenta, que querem julgar das coisas conforme ao pouco que eles viram, e que seus curtos e rasteiros entendimentos alcançam, de lançarem juízos sobre as verdades que eu vi por meus olhos, deixarei de contar muitas coisas que quiçá dariam muito gosto a gente de espíritos altos, e de entendimentos largos e grandes (…). Mas por outra parte não porei também muita culpa a quem não me der muito crédito, ou duvidar do que eu digo, porque realmente afirmo que eu mesmo, que vi tudo por meus olhos, fico muitas vezes confuso quando imagino…” [2]. O autor da Peregrinação dava-se conta de que o relato constitui a principal ponte entre o testemunho direto e o leitor distante; entre a observação presencial e a ausência interpretativa; entre uma possível verdade do fato e sua narrativa.

Embora as idéias de Paul Veyne sobre a oposição verdadeiro / verossímil – “a história é uma narrativa de acontecimentos verdadeiros” [3] – possam iniciar uma discussão do problema, é interessante lembrar, nesta breve apresentação, a indagação que fez Paul Ricoeur, ao tratar da questão da verdade em história: “aquela história que ocorreu [e que preencheria, portanto, segundo Veyne, a única condição básica “para ter a dignidade da história”] e que interessa ao ofício do historiador, prestarse-á a um conhecimento na linha da verdade, de acordo com os postulados e regras do pensamento objetivo postos em função nas ciências?”[4´] Para Ricoeur, objetividade é entendida no sentido epistemológico estrito; “é objetivo aquilo que o pensamento metódico elaborou, pôs em ordem, compreendeu, e que por essa maneira pode fazer compreender”, [5] ou seja, em história, a objetividade só se realiza – tornando-a verdadeira, portanto – quando ela é capaz de explicar (ou convencer), o que não quer dizer que seus procedimentos métodicos sejam os mesmos da física ou da biologia, a começar pelo fato óbvio de que à objetividade do historiador deve corresponder sua própria subjetividade, ou seja, os valores e escolhas que determinam seus passos, em meio aos alicerces monumentais sobre os quais constrói o seu trabalho, aliando pesquisa e erudição, esforço e sensibilidade, confiança e descrença.

Quando o tema são os viajantes, essas questões, aqui apenas esboçadas, ganham cores mais interessantes, já que, desde Heródoto (“Desejoso de saber, interrogo”), o testemunho de quem viu e pôs-se a contar tem servido à explicação da história. Além disso, embora os viajantes contem o que viram, fazem-no sempre a partir de processos de escolha e seleção, e mesmo considerando a insistência dos historiadores em buscar a generalização, os relatos valem, principalmente, como representações da diferença, já que – à exceção dos narcisistas, sempre numerosos – as imagens que devemos buscar no espelho dessa forma específica de conhecimento é aquela que nos define pela contemplação do Outro. É por isso que os textos de viajantes – trabalhados com maestria neste número especial da Revista de História Social – também se prestam à necessária expatriação do historiador, que se desloca através deles para, no retorno, pôr em cena uma terceira e fundamental personagem: o leitor, a quem os relatos – graças à sua mediação – acabam oferecidos.

Esta última instância, a do leitor, é a que oferece menos riscos, já que os comprometimentos dos viajantes e historiadores – cada um, a seu modo, vendo, selecionando, organizando e dando a conhecer – são sempre avaliados em função de sua capacidade de demonstrar, objetivamente, a veracidade do discurso: enquanto Paul Veyne considera que só os fatos verdadeiros podem aspirar à dignidade da história, para Paul Ricoeur, cabe aos historiadores buscar a dignidade da objetividade, construindo, assim, suas próprias verdades.

Depois, resta a sedução dos percursos e das boas viagens que se abrem nas próximas páginas.

Notas

1. SHAKESPEARE, William. A tempestade, trad. Carlos A. Antunes, Biblioteca Clássica UnB, 1982

2. PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Fac-símile da edição de 1952, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 329.

3. VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Lisboa, Edições 70, 1983, p. 22.

4. RICOEUR, Paul. História e verdade, trad. F. A. Ribeiro, Rio de Janeiro, Forense, p. 9.

5. Idem, p. 23.

Paulo Miceli


MICELI, Paulo. Apresentação. História Social. Campinas, n.10, 2003. Acessar publicação original [DR]

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Viagens e Viajantes / Revista Brasileira de História / 2002

O dossiê Viagens e Viajantes está composto por cinco artigos. Desnecessário afirmar a relevância e o interesse do tema para a área de História. Todos os artigos se apóiam em relatos ou diários de viajantes que visitaram diversas partes do mundo, do Brasil à Austrália. A construção das diferenças e o sentimento de estranhamento compõem diálogos identitários reveladores e instigantes.

O cerne das análises dos autores, no entanto, difere. Regina Horta Duarte e Andréa Doré mostram o olhar estrangeiro que elabora uma visão “de fora” sobre o interior do Brasil no século XIX, no primeiro caso, e sobre a Índia no século XVI, no segundo. Valéria Salgueiro mostra como no século XVIII se inauguram os fluxos de viagens por prazer, que, segundo a autora, se constituem nas matrizes do turismo de lazer e de cultura no presente. Luis Lima Vailati busca a contribuição dos relatos de viajantes para entender os temas da infância e da morte no Brasil do século XIX. Alistair Thomson trabalha com as contribuições da História Oral para os estudos da migração, particularmente entre a Grã-Bretanha e a Austrália, indicando a importância dos relatos pessoais para se entender os problemas sociais das migrações na atualidade.

Os demais artigos deste número, ainda que bastante particulares em suas temáticas, apresentam muitos pontos de contato. O texto de Roney Cytrynowicz polemiza com a historiografia sobre o anti-semitismo no período do Estado Novo. Mostra como a comunidade judaica engendrou estratégias sofisticadas para enfrentar a lei e a ideologia daquele período. Helenice Rodrigues da Silva discute, pensando sobre o Brasil, o valor simbólico das comemorações nacionais e os processos de construção e de transmissão de uma memória social. Ainda na trilha das comemorações nacionais, Thaís de Lima e Fonseca toma a Inconfidência Mineira e a figura de Tiradentes para analisar as apropriações da imprensa, entre as décadas de 1930 e 1960, do mito do herói e de seu “sacrifício” insistentemente associado a supostos herdeiros.

Carla S. Rodeghero faz uma análise comparativa das perspectivas católicas anti-comunistas no Brasil e nos Estados Unidos no período da Guerra Fria, mostrando as diferentes formas que elas assumem nos dois países. Mariana Martins Villaça também escolhe a comparação, enfocando as ligações entre o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos e o cineasta Glauber Rocha, analisando ainda, a repercussão de sua obra entre os cineastas cubanos nas décadas de 1960 e 1970. O artigo de Ricardo de Oliveira reflete sobre as conflituosas relações entre os conceitos de sertão e de nação na monumental obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, no centenário de sua publicação.

As resenhas algumas solicitadas pelo Conselho Editorial e outras enviadas pelos sócios também serão, sem dúvida, do maior interesse dos leitores.

Para finalizar, agradecemos ao apoio da FAPESP que contribuiu para a publicação deste número da RBH.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002. Acessar publicação original [DR]

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Mídias, leituras e viagens / Varia História / 2001

A revista do Programa, Varia Historia, redefiniu, a partir de 1999, os critérios para seu novo perfil, e iniciou sua reformulação editorial a partir do número 20, publicado no primeiro semestre daquele ano. Entre outros objetivos, pretendeu-se ampliar a participação de pesquisadores nacionais e internacionais refletindo o intercâmbio acadêmico que o Programa de Pós-graduação em História da UFMG vem solidificando. O número 25 apresenta mais uma inovação em seu projeto editorial: a organização de um dossiê temático. A opção pela confecção de dossiês se liga à estratégia de maior vinculação da revista às linhas de pesquisa que compõem o referido Programa, a saber: História e Culturas Políticas, História Social da Cultura, e Ciência e Cultura na História.

A Varia Historia vem se firmando como espaço privilegiado do debate histórico e a organização de Dossiês permitirá que as diferentes linhas explorem temas de pesquisa dentro do universo teórico de cada uma delas, envolvendo seus pesquisadores na preparação dos mesmos, em constante intercâmbio com os estudiosos de outras instituições. Os Dossiês também pretendem refletir os seminários e os debates promovidos pelas linhas no decorrer do ano acadêmico, envolvendo o corpo docente e discente e pesquisadores convidados.

O Dossiê Mídias, leituras e viagens foi uma iniciativa da linha de História Social da Cultura e reflete alguns dos temas que têm instigado os estudos no campo da cultura: a produção e a circulação dos livros, as práticas de leituras, os mecanismos de difusão e mídia, as teorias de recepção, tendo como pano de fundo o fenômeno e o movimento das viagens como espaços privilegiados para a produção de conhecimento. As viagens que nos interessam aqui são aquelas que significaram renovação do conhecimento, fruto da observação de todos aqueles, que “por meio das viagens, querem conhecer utilmente o mundo”.

O primeiro texto foi gentilmente cedido pelo Prof. Robert Darnton e discute os processos de formação e de difusão de notícias na França do Antigo Regime, tecendo instigantes questões a respeito da formação e do conceito de mídia para a época. Outra novidade que o autor apresenta é que a leitura do artigo não se esgota em si mesmo. O leitor é convidado a visitar a versão eletrônica do paper e acompanhar os caminhos e os instrumentos de investigação disponibilizados paralelamente on-line em janelas que podem ser acessadas enriquecendo a leitura e explorando as possibilidades que estes novos suportes apresentam à investigação histórica.

O texto do Prof. Miguel Benitez foi apresentado numa palestra promovida no referido programa no ano de 2001. Analisa a intersecção dos movimentos das viagens e da circulação de idéias heréticas, libertinas, muitas vezes na forma de livros ou textos proibidos, no espaço ibérico durante o período moderno.

Guiomar de Grammont no artigo “Catarse e teoria da leitura” explora as questões teóricas com que a história da literatura se debate hoje em torno das teorias da recepção, esta última reconstituída sempre como fragmento, como espaço imaginário que se caracteriza pela pluralidade e diversidade.

O tema da produção de conhecimento em relação aos fenômenos das viagens na esteira da constituição da identidade brasileira e da modernização da nação, no alvorecer do período republicano, foi o tema de estudo da Prof. Thais Velloso Cougo Pimentel. Num movimento inverso, são agora os brasileiros que se transformam em viajantes, buscando uma Europa mítica, berço de civilização, o exemplo a ser seguido, que permitirá a entrada do Brasil na modernidade.

A revista mantém sua prática de também receber contribuições espontâneas agregadas na seção Artigos. Mantendo-se como espaço referencial para os pesquisadores de diversas regiões e instituições que investigam a história de Minas Gerais, o presente número apresenta quatro artigos sobre a região entre os séculos XVIII e XIX.

Marco Antônio Silveira aborda a questão das práticas políticas utilizadas pelos diversos agentes na conformação do espaço minerador no início do século XVIII, quais sejam a conquista e a soberania. Ângelo Alves Carrara contribui para o entendimento do desenvolvimento urbano da sociedade mineira oitocentista em consonância com a pujança do setor agrário normalmente mais bem estudado. Dois artigos contribuem para desvendar o universo dos escravos que constituíram a maioria da população mineira no século XIX, tendo sido uma sociedade escravista voltada para a produção interna de produtos. Antônio Henrique Duarte Lacerda aborda o fluxo e as variáveis das alforrias concedidas em Juiz de Fora no declínio da sociedade escravocrata e Eliane Silva Guimarães analisa os crimes passionais ocorridos entre a comunidade escrava no mesmo município ao longo do século XIX.

A Varia Historia tem sido também, ao longo dos anos, espaço plural de debates sobre a história e tem recebido contribuições sobre as mais diversas temáticas. Johnni Langer e Sérgio Ferreira dos Santos apresentam um estudo sobre a criação da imagem oitocentista dos povos escandinavos, desnudando a constituições de mitos equivocados sobre a cultura e a sociedade dos povos nórdicos. Também explorando a questão da produção de mitos, Adriana Barreto de Sousa examina o processo de constituição da imagem do General Osório e do Duque de Caxias como heróis necessários à legitimação do regime republicano em seus diversos projetos, incorporando e justificando a participação dos militares na vida política brasileira.

Por fim, Jeffrey Needlle faz uma instigante resenha do livro de Kirsten Schultz, intitulado Tropical Versalles, enfatizando o aspecto inovador da abordagem que deixa de lado os lugares comuns que marcam as análises sobre a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, salientando a forma como a monarquia redefiniu e mudou a sociedade e como estas mudanças foram percebidas pelos próprios brasileiros.

Júnia Ferreira Furtado – Organizadora.


FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.17, n.25, jul., 2001. Acessar publicação original [DR]

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