Tráfico de saberes. Agencia feminina, hechicería e Inquisición en Cartagena de Indias (1610-1614) | Ana María Díaz Burgos

Ana Maria Diaz Burgos Cartagena de Indias
Ana María Díaz Burgos | Imagem: Oberlin College & Conservatory

Uno de los propósitos centrales de este libro es explorar las formas cotidianas en que circulaban los saberes y prácticas heterodoxas a comienzos del siglo xvii en un puerto comercial como el de Cartagena de Indias. A partir del análisis detallado de uno de los pocos procesos inquisitoriales cartageneros que se encuentran completos y de las relaciones de causas asociadas a este, la autora busca resaltar las redes sociales y procesos de agenciamiento de mujeres criollas de élite encausadas por este tribunal. Dentro de la gran variedad de perspectivas que se puede encontrar en la amplia historiografía inquisitorial, esta investigación enfoca su mirada desde la microhistoria, los estudios culturales y literarios. Sus aportes podrían ser reseñados en consonancia con otras investigaciones recientes publicadas de forma casi paralela en la misma colección editorial, y que invitan a ver la Inquisición desde “abajo”, desde las testificaciones, desde la “gente corriente”.1 Leia Mais

Inquisição, 200 anos depois de seu fim: o que era, o que ficou e o quanto somos fruto dela? | Escritas do Tempo | 2021

Desdobramento das revoluções liberais que, a partir do movimento iniciado no Porto, em 1820, implementava uma monarquia constitucional em Portugal, em 31 de março de 1821, as Cortes Gerais do Reino aprovaram por unanimidade de votos o decreto que extinguia o Tribunal do Santo Ofício em Portugal, pondo fim a quase três séculos – e dezenas de milhares de denúncias, confissões, investigações, processos, réus e vítimas depois – de atuação da Inquisição portuguesa.

Passados duzentos anos, ainda é possível perceber as permanências dos tempos de Inquisição no mundo português, bem como encontrar, desgraçadamente, sintomas, reflexos e aproximações entre os rigores promovidos em nome da Misericórdia e Justiça, tema do tribunal, e o inacreditável mundo de negacionismos e intolerâncias em que nos vemos mergulhados, um pouco por todo o lado, um muito sobre a nossa parte… Leia Mais

Al sur de las hogueras. Inquisición y sociedad en Córdoba del Tucumán durante los siglos XVI y XVII | F. Sartori

El Santo Oficio de la Inquisición, con todo su halo de oscurantismo, es, probablemente, una de las expresiones de poder medieval y moderno más célebre en el imaginario social, condición alcanzada a través de oprobiosas memorias de persecuciones, torturas y hogueras. La historia académica tiene, sin embargo, mucho más que decir sobre el Santo Tribunal y el libro de Federico Sartori (2020) es una clara muestra de ello. Tomando como caso de estudio una de las fundaciones meridionales del imperio español en América, Córdoba del Tucumán, su libro abre la perspectiva desde la Inquisición a la sociedad de la época, contemplada entre el último cuarto del siglo XVI y el final de la centuria siguiente.

Dividido en cinco apartados que se desgranan, a su vez, en diferentes capítulos, la obra inicia dando cuenta del tratamiento historiográfico, teórico y metodológico del tema en clave de la propia experiencia del autor. Consecuentemente, el lector se introduce en la búsqueda documental de huellas fragmentadas y recompuestas gracias a un vasto trabajo en archivos seculares y eclesiásticos de Argentina, Perú, Chile, Bolivia y España. Leia Mais

Viver nos tempos da Inquisição | Anita Waingort Novinsky

No dia 8 de dezembro de 2018, a historiadora emérita da Universidade de São Paulo (USP), Anita Waingort Novinsky publicou o seu mais recente livro Viver nos tempos da Inquisição, Ed. Perspectiva, 376 págs., na Livraria da Vila – São Paulo. A obra é uma compilação de textos ao longo de quatro décadas de pesquisa acadêmica, apresentados em eventos, congressos nacionais e internacionais, anais e publicações no Brasil e no Exterior, alguns inéditos, outros de difícil acesso ao público brasileiro.1 Considerada uma das pioneiras sobre o tema da Inquisição e cristãos-novos do Brasil Colônia, a autora faz reflexões acerca da historiografia inquisitorial, antissemitismo, cristãos-novos (judeus) do Brasil colonial, sebastianismo, Pe. Vieira e messianismo judaico, entre tantos outros temas relevantes para a História do Brasil e do fenômeno marrano.2 Novinsky inicia o seu trabalho nos capítulos 1 e 2 com a “Crítica à historiografia inquisitorial” e relata a dificuldade que os primeiros historiadores tiveram para trabalhar com o tema. Parte significativa do arquivo da Inquisição permaneceu secreta até 1970. Os autores que exaustivamente pesquisaram os arquivos inquisitoriais “no século XIX foram Alexandre Herculano, João Lúcio de Azevedo e Joaquim Mendes dos Remédios, deixando-nos obras fundamentais sobre os cristãos-novos e a Inquisição.”3 Após a abertura desses arquivos, disponível ao público no Arquivo Nacional Torre Tombo (ANTT) e Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), defende Novinsky que a História do Brasil deverá ser “reavaliada e reinterpretada.” 4 Leia Mais

A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681) | Yllan Mattos

[…] Passar um homem infortúnios Ruínas, perdas, naufrágios, por acaso, ou por desastre no mundo é ordinário. Mas não há maior desgraça, nem mais lastimoso caso, do que um triste nascer, por herança, desgraçado. Que um morgado de misérias, É mui triste morgado, ainda mal, ainda negro, que por seu mal vêm tantos! Como estou de posse dele, de dor e de pena estalo. E o coração me faz dentro do peito pedaços […].1

O Tribunal da Santa Inquisição em Portugal foi criado em 1536, com o intuito de zelar pela pureza da fé católica dando início a um processo de perseguição àqueles que de alguma forma cometeram, pronunciaram ou defenderam heresias, na qual os cristãos-novos seriam suas principais vítimas. Em um segundo momento, os sodomitas, bígamos, blasfemos, luteranos e feiticeiros (em menor número), se tornaram alvos constantes por parte do Tribunal. Leia Mais

O momento da Inquisição – SIQUEIRA (S-RH)

SIQUEIRA, Sonia. O momento da Inquisição. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013, 706 p. Resenha de: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Significar o medo? Sobre as múltiplas inquisições, em todos os seus momentos. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [30] jan./jun. 2014.

Se o foco do historiador é a preocupação com o passado, e o distanciamento deste permite uma observação, espera-se, mais coerente dos fatos, a própria História, por seu lado, dá mostra de suas transformações, ciência viva que é, quando, já distantes, olhamos para o modo como as análises eram feitas no início.

Percebe-se, assim, não apenas maior minúcia nas interpretações, mas também uma percepção refinada da evolução do devir histórico ao longo das gerações.

É neste sentido, dentre tantos outros possíveis e desejáveis, como o cuidado da pesquisa que lhe foi causa, que devemos louvar o lançamento, passadas mais de quatro décadas depois de sua concepção inicial, do livro recentemente trazido à tona pela pesquisadora Sonia Aparecida Siqueira, ela própria, como bem sabemos, incansável nas análises, que soaram como desdobramentos e continuidades deste trabalho que ora se apresenta, sobre o Tribunal do Medo. Autora conceituada de obras já clássicas acerca do Tribunal da Inquisição no mundo português, é interessante perceber como suas inquietações sobre o tema foram construídas ao longo de suas décadas de dedicação ao assunto e os caminhos que tomaram em escritos posteriores.

Trata-se, a obra em questão – O Momento da Inquisição (João Pessoa: Editora Universitária, 2013) – da publicação da tese de doutoramento da autora, defendida na Universidade de São Paulo em 1968. Iniciativa bem-vinda dos Grupos de Pesquisa Officium (PPGH-UFPB) e Videlicet (PPGCR-UFPB) – que já haviam brindado os interessados no tema da Misericórida & Justiça, em 2011, com a reedição das Confissões da Bahia, também sob a coordenação da mesma autora, publicada originalmente em 1963, contendo o conjunto documental dos depoimentos dados à mesa do visitador do Santo Ofício durante a segunda estada no Brasil, iniciada em 16182.

O Momento da Inquisição, é preciso frizar, tem inegável pioneirismo. Numa época em que o doutorado era ainda destinado a poucos pesquisadores, foi dos primeiros trabalhos, senão o inaugural, defendido nos programas de pós-graduação do país, a tratar do tema da implementação e funcionamento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição bem como a apontar indícios e especificidades de sua atuação na América portuguesa.

À época em que a pesquisa foi desenvolvida, estudar o Santo Ofício não era tarefa das mais fáceis: não apenas porque o tema era ainda pouco visitado e conhecido no país, mas ainda por serem poucos aqueles que reuniam condições para fazer pesquisa no exterior: toda a documentação referente ao tribunal encontra se depositada no Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, e os deslocamentos envolviam, então, burocracias, tempo e gastos bem mais dispendiosos do que hoje em dia, quando os interessados em pesquisar o assunto podem ter acesso, via internet, a milhares de páginas processuais e códices documentais digitalizados, facilitando a tarefa, democratizando o contato com estas fontes de maneira inimaginável até bem pouco tempo atrás, poupando tempo, dinheiro e deslocamentos. A tecnologia do futuro, voilà, ajudando a desnudar tempos idos…

Mas, justiça seja feita, não foi pioneira só: a década de 1960 marca o aparecimento de pesquisadores e a publicação de obras que virariam referência para as futuras gerações: é caso, por exemplo, de Arnold Wiznitzer, com Os Judeus no Brasil Colonial3; de Elias Lipiner, em Os judaizantes nas capitanias de cima4; de José da Costa Pôrto, e seu Nos tempos do visitador5; de Eduardo França, que assinaria a primeira edição das confissões da Segunda Visitação do Santo Ofício ao Brasil com Sonia Siqueira6…

Passados quase cinquenta anos da defesa da tese – e justamente no momento em que se comemoram os primeiros cinquenta anos das publicações recentes sobre o Tribunal do Santo Ofício e tudo que o cerca, dando início ao que hoje se apresenta como um dos mais produtivos ramos da historiografia brasileira sobre o mundo moderno – a publicação em livro da tese de Sonia Siqueira permite o acesso a um dos textos fundadores desta moderna historiografia aos pesquisadores – cada vez em maior número – do Tribunal do Santo Ofício, sua estrutura, personagens, ideologias e vítimas. Permite mais: datado, como qualquer texto, que fique claro, torna-se, ele próprio, além de análise científica sobre o assunto, também fonte documental e de pesquisa para compreender os avanços, desdobramentos e continuidades nas pesquisas sobre a temática no último meio século, acenando ainda para o que está por vir.

O livro, em si, propõe situar a Inquisição em seu tempo e lugar, compreendendo a lógica em que se insere o Santo Ofício na Modernidade. Desta forma, não se trata, apenas, do momento da Inquisição, mas do momento que permitiu e/ ou desejou a Inquisição, do contexto de sua época e da influência que sofreu desta e nesta imprimiu, da cultura que o permitiu existir e sobreviver por quase trezentos anos no mundo português, de 1536 a 1821. Enfim, é ver o Santo Ofício como parte integrante de um modelo maior, que não se limita a ele nem se justifica isoladamente: o que se alimenta e é alimentado por ele; o momento da Inquisição é o momento em que ela fez parte de um projeto social que tinha nas ideologias e práticas inquisitoriais um de seus modelos de controle e afirmação, um espelho do que queria impor. Como destaca a autora, O momento, no presente trabalho tem a configuração da hoa e da vez de seus primórdios quando esmoreciam os valores do Humanismo Renascentista: transmudando-se para o Humanismo Cristão no aflorar da cultura barroca.7 Dividido em três partes – O processo do estabelecimento do Santo Ofício; Estruturas do Santo Ofício; Os procedimentos do Santo Ofício – e com mais de setecentas páginas, mostra ter fôlego para desenvolver as questões que apresenta, dialogando com a historiografia produzida até então, e apresentando farta pesquisa de fontes, citadas a todo momento para evidenciar o discurso da autora. Desta forma, discorre sobre uma gama de interpretações acerca das condições históricosociais para a implementação do Tribunal da Inquisição e sua inserção no cotidiano do luso mundo, sua estrutura de funcionamento (regimentos, bulas, órgão, cargos e funções), as hierarquias e serviços, as dotações financeiras e sustento da máquina inquisitorial, os procedimentos administrativos, as expectativas de perseguição, definições de crimes e heresias que alimentavam a estratégia persecutória, confissões, denúncias, processos, interrogatórios, prisões, confiscos, sentenças, autos-de-fé, custas, visitações. Numa frase, o mundo da Inquisição, em tudo que fazia parte da azeitada engrenagem de seu funcionamento.

Vale destacar que a autora optou por não atualizar a bibliografia ou suas considerações e análises com a vasta produção sobre a temática inquisitorial que se produziu nas últimas décadas, mantendo fidelidade ao texto: se por um lado, isto impede o texto de dialogar com conclusões ou pontos de vista mais recentes, deixando claras as imprecisões que Sonia Siqueira não conseguiu ou não se preocupou em resolver à época, ajuda o historiador do tema a compreender a “fortuna crítica” das análises com a chegada de novas gerações de pesquisadores e das descobertas e revisões historiográficas. O que se destaca, como pano de fundo da obra, desta forma, é o pioneirismo, o esforço inicial de uma pesquisa, as primeiras impressões sobre questões que, mais tarde, foram desenvolvidas por outros autores. Mas, longe de ser anacrônico, é uma espécie de “história do futuro”, na perspicácia da autora em chamar a atenção para assuntos até então desprezados e que, com o tempo, ganham status de centralidade em pesquisas sobre o tribunal. Por fim, o que o livro indica, num conselho sábio para qualquer pesquisa historiográfica, é que é preciso entender o Santo Ofício e sua atuação em seu contexto, seu tempo, seu momento… “Cada época tem a Inquisição que merece e a merece na medida em que consente em sua existência”8, conclui a autora na frase com que encerra seu texto. Também a História, fruto de sua época e do que esta quer ver ou esquecer. Atentos, então, para não que as análises históricas compreendam o seu “momento”, apregoando juízos de valor ao que anseia por entendimento. Afinal, julgaar não é nossa peleja. Para não corrermos o risco de sermos, nós, inadvertidamente, historiadores de uma verdade inquestionável, e em desdobramento, inquisidores da Inquisição – ou de Clio.

Notas

2 SIQUEIRA, Sonia. Confissões da Bahia – 1618-1620. 2ª ed. João Pessoa: Ideia Editora, 2011.

3 WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1966.

4 LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima: estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Brasiliense, 1969.

5 PÔRTO, José da Costa. Nos tempos do visitador; subsídio ao estudo da vida colonial pernambucana, nos fins do século XVI. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1968.

6 “SEGUNDA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia – 1618-1620”. Introdução de Eduardo d’Oliveira França e Sonia Siqueira. Anais do Museu Paulista, Tomo XVII, São Paulo, 1963.

7 SIQUEIRA, Sonia. O momento da Inquisição. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013, p. 18.

8 SIQUEIRA, O momento da Inquisição, p. 683.

Angelo Adriano Faria de Assis  Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa. Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: <[email protected]>.

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Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição – NOGUEIRA; ZERNER (RBH)

NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo; ZERNER, Monique (Org.). Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2009. 304p. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.62, dez. 2011.

Após mais de 30 anos de estudos sobre o aparecimento de seitas de ‘adoradores do Diabo’, que constituíram o tormento e a preocupação da Igreja ao longo do período medieval e que foram metodicamente mapeadas e perseguidas com rigor cada vez maior até culminarem na caça às bruxas da Europa moderna, uma questão foi se tornando cada vez mais clara: na construção dessas seitas existia uma combinação trágica, porém eficaz do ponto de vista repressivo, o amálgama da alteridade com uma enorme carga de erudição.

Daí, então, tornava-se cada vez mais óbvio para nós que, igualmente, não haveria um estranhamento, uma ‘estrangeirice’ nas seitas heréticas. Não eram crenças que migraram e se instalaram no seio da boa coletividade cristã, tampouco ‘sobrevivências de um paganismo’ há muito perdido e do qual restavam símbolos fragmentados e desenraizados ou vestígios de uma gestualidade claramente cristianizada. Tratava-se, sim, do produto dos intentos de uma ortodoxia de impor a outros a existência de outras interpretações do que era viver (espiritual e materialmente) a religião cristã.

O cristianismo nasce como uma religião que se propõe universal em um mundo de particularismos, em especial, particularismos religiosos. Para levar a Boa Nova a todos os homens, o cristianismo precisava se impor a partir do Outro.

Assim é construída a ecclesia, antes de tudo se apartando do judaísmo, o primeiro e mais incômodo ‘outro’, pela proximidade e pela responsabilidade de haver gestado a nova religiosidade.

Eliminados os ‘assassinos de Cristo’, os discordantes e opositores – em suma, os heterodoxos – são calados ou perseguidos, objetos de uma retomada erudita que mergulha na Antiguidade Clássica para buscar identidades, estabelecer ligações para garantir a credibilidade e legitimar a repressão.

Dessa maneira a ‘reação folclórica’, a sobrevivência pagã, criadora da heresia, muda de significado. O paganismo ganha o direito de existir por intermédio da ação de uma ortodoxia em busca de uma tradição que lhe permita estabelecer paralelismos e impor rótulos aos seus opositores.

Assim, é com grata surpresa que vemos aparecer no mercado editorial brasileiro o livro Inventar a heresia?, organizado por Monique Zerner.

Obra plural, mas com uma coesão interna bastante singular: a análise de tratados que constroem a heresia e ‘identificam’ o herege. Produto de investigações produzidas e discutidas em seminários, retoma, a nosso ver com grande acerto, os textos escritos antes da constituição dos Tribunais da Inquisição. Postura acertada, pois se o objetivo era confrontar os documentos com a ‘realidade’ das heresias, o período de ação inquisitorial traz enormes problemas, uma vez que a perseguição acaba consagrando a heresia ipso facto, tornando-a uma realidade irreversível, cuja punição traz aos olhos da comunidade a sua materialização objetiva e inquestionável. Realidade viciada que levou muitos historiadores a acreditarem na realidade das heresias, ou mesmo imaginá-la como outra religião, como no caso do Catarismo.

Inventar a heresia? percorre uma larga trajetória temporal, começando por santo Agostinho e o seu procedimento na polêmica contra o maniqueísmo que o havia desencantado, e se estende até um caso de não-heresia na Gasconha dos inícios do século XII.

E por que um intervalo de tempo tão alargado? A resposta está na perspectiva dos autores. Sabemos que no princípio do cristianismo a tônica é a persuasão. No entanto, no Contra Faustum Agostinho já prefigura a atitude que virá depois: se não persuadidos, os adversários serão por fim condenados.

De maniqueístas e exegetas gregos da Bíblia, a obra saltará para o século XI, o período de emergência das heresias, momento que Jacques Le Goff leu equivocadamente como um ressurgimento folclórico, o que justificava o aparecimento dos movimentos heréticos.

A obra que examinamos inverte a questão, buscando a ‘confecção’ dos hereges no interior dos embates de uma Igreja que tenta impor a sua hegemonia reformista. A heresia é esgrimida por Gerardo, no sínodo de Arras, como resposta à sua tentativa de manter sob controle um domínio que escapa por entre as suas mãos, pois remete a um sistema carolíngio antiquado, que não dá conta da nova ordem social.

Contudo, ainda com Pedro, o Venerável, e seu Contra Petrobrusianos, persiste a argumentação. No entanto é singular que esse abade de Cluny invista contra os hereges, contra os judeus e contra os sarracenos. O século XI, e fundamentalmente Cluny, preparam as armas para defender a Igreja. A argumentação ‘defensiva’ de nosso abade não resiste a uma política de hegemonia da religiosidade. Ao final do século XI, está aberto o caminho para a ausência de diálogo com a heresia, substituído pelo procedimento judiciário de fazer aqueles que a Igreja condena, confessarem a verdade.

E a ofensiva se intensifica. O front cada vez mais ampliado, o inimigo cada vez mais irredutível. A heresia com a incorporação do Direito Romano ao Direito canônico, tornada crime de lesa-majestade no século XIII, acaba necessariamente no apelo às armas contras os hereges, cujo exemplo emblemático foi a Cruzada Albigense.

“Mas quem são os hereges?”, pergunta-se Michel Lauwers, buscando os hereges nas tensões sociais (as contestações aos privilégios e às determinações eclesiásticas) e analisa como exemplo o tema “Os sufrágios dos vivos beneficiam os mortos?”, demonstrando como os polemistas passaram da recusa das práticas impostas pela instituição à doutrina, fazendo dela um instrumento de julgamento da recusa: a heresia.

“Albigenses: observações sobre uma denominação”, cujo título despretensioso oculta o seu verdadeiro teor, é de longe o ponto alto da coletânea. Nele Jean-Louis Biget identifica a origem e analisa a história do nome ‘albigenses’, protagonistas de uma história que começa em 1209, mas que bruscamente foram ‘esquecidos’ após 1960, sendo substituídos pelos ‘cátaros’. Para isso retoma o papel da ordem de Cister como construtora da heresia. Empenhada em consolidar a reforma da Igreja, traduz os conflitos internos e regionais que comprometem a tão almejada unidade, como as expressões de divergências doutrinárias. Ou seja: a invenção de um nome para batizar os desvios da verdadeira unidade até designar todos os dissidentes religiosos do Midi.

Como lembra Dominique Iogna-Prat, a escassez de análises de discursos anti-heréticos é marcante até nossos dias. Os trabalhos sobre heresia analisam os documentos como fontes que expressam a realidade herética e não como um discurso construído com base na ótica constitucional.

Assim, este livro nos ensina um princípio fundamental. Frente aos documentos que tratam da heresia deve-se, em primeiro lugar, duvidar da realidade dos fatos descritos pelos textos produzidos pelo meio eclesiástico ou por autores a ele vinculados. R. I. Moore em seu posfácio vai além: “nem mesmo de um movimento não enquadrado e relativamente inocente de entusiasmo pela vita apostolica entre rustici“. A acusação de heresia tornou-se a principal ferramenta de construção da unidade, revestindo de uma ‘aura sagrada’ a tarefa bem menos momentosa aos olhos da comunidade cristã de eliminar desvios e manter o rebanho cristão dentro da ortodoxia proclamada como religiosa, mas cuja real ameaça não está no plano do sagrado, mas nas divergências políticas e sociais que ameaçam a instituição eclesiástica.

Apenas um senão que não compromete fundamentalmente a qualidade da obra. A tradução dos capítulos, ainda que feita de maneira correta, ressente-se do fato de ter sido executada por diversos colaboradores, o que leva o texto a variar seu estilo, ora mais fluido ora mais ‘trancado’. Mas repetimos: isso afeta a estética, não o conteúdo dos capítulos.

Não poderíamos terminar sem tratar de um pequeno, mas não menos importante capítulo (altamente esclarecedor do caráter rigoroso dessa coletânea) que estabelece ao final da obra um precioso contraponto: “Um caso de não-heresia na Gasconha do ano de 1208”. Frente a uma ‘revolução’ dos leigos dependentes de Saint Sever, na Gasconha, o legado papal reinverte os papéis, ignora práticas e faz dos episódios uma leitura não-herética – extremamente necessária em razão da crise que se estabeleceu entre Inocêncio III e João I da Inglaterra, o qual detinha os domínios das terras insurgentes. Estamos diante de uma boa demonstração da exceção que confirma e elucida a regra!

Enfim, o livro reúne artigos instigantes, que abrem as portas à dúvida e ao questionamento da construção da heresia. O que nos leva a terminar esta resenha assumindo como nossas as palavras do autor Benoît Cursente, que resume a perspectiva de todos os demais: “E nessa circunstância, para que a heresia não existisse, era necessário e suficiente não nomeá-la”.

Carlos Roberto Figueiredo Nogueira – Professor Titular, Universidade de São Paulo. Av. Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil, E-mail: [email protected].

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Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759) – PAIVA (LH)

PAIVA, José Pedro. Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. Resenha de: XAVIER, Ângela Barreto. Ler História, n.61, p.189-194, 2011.

1 O título deste livro propõe uma tese que é, por assim dizer, contraintuitiva: a de que se verificou um enlace – uma aliança? – entre os bispos e a inquisição no processo de controlo da ortodoxia (e, em concreto, de repressão da heresia) e de disciplinamento social que se pode identificar no Portugal da época moderna. Para quem defende a natureza jurisdicional da monarquia portuguesa, na qual cada «corpo» da respublica era demasiado ciente das suas prerrogativas, a ideia de um enlace entre inquisição e bispos não é, de facto, evidente. Partindo do conceito de campo forjado por Pierre Bourdieu, é o próprio José Pedro Paiva a lembrar, aliás, nas páginas introdutórias do livro, e cito, que a Igreja era «uma instituição heterogénea, um corpo pluricelular, formada por diversos grupos e uma multidão de indivíduos. Estes possuíam uma cultura heteróclita, uma formação moral e princípios religiosos com alguma margem de diferenciação» (p. 8). E é o próprio autor a afirmar que o surgimento da Inquisição em Portugal, em 1536, tinha originado uma situação inédita, obrigando a uma reorganização dos equilíbrios de poder no campo religioso.

2 Apesar disso – e é sobre esta situação improvável que o livro incide – a história da relação entre os bispos e a inquisição, dois incontornáveis protagonistas do campo religioso, seria, até 1745, uma história feliz, mais feita «de laços do que de limites» (p. 188). Contrapondo-se aos que têm atribuído quase exclusivamente ao Santo Oficio a missão de velar pela defesa da ortodoxia católica no Portugal da época moderna, José Pedro Paiva apresenta, ao invés, uma paisagem na qual esta missão era executada por esses dois baluartes da fé que eram o episcopado e o Santo Ofício.

3 Mas antes de passar aos conteúdos do livro, creio que, para o melhor podermos apreciar, ele deve ser situado, em primeiro lugar, na produção historiográfica do próprio autor. Os primeiros dois livros de José Pedro Paiva – Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740) (Coimbra: Livraria Minerva, 1992), e Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas: 1600-1774 (Lisboa: Editorial Notícias, 1997) – incidiram, como é sabido, sobre temas sobre os quais pouco ou nada se escrevera em Portugal, mas que eram amplamente discutidos no contexto internacional. Dessa forma, José Pedro Paiva deu um contributo muito importante para o entendimento das práticas inquisitoriais a este nível, mas também, para um conhecimento mais aprofundado da sociedade portuguesa da época e, nomeadamente, a sua religiosidade. Com os capítulos de sua autoria publicados no 2º volume da História Religiosa de Portugal, os quais providenciam um excelente mapeamento de muitos aspetos da história institucional da Igreja da época moderna, nomeadamente na sua relação com o poder político, começa a configurar-se, com alguma visibilidade, aquilo que se poderia apelidar de projeto sistemático – para o qual os anteriores livros acabam por concorrer. Com a publicação, em 2006, de Os Bispos de Portugal e do Império – 1495-1777 (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra), de Os Baluartes da Fé, em 2011, bem como de um outro projeto bibliográfico já na forja, parece tornar-se claro que José Pedro Paiva se constitui como um dos mais importantes renovadores da história portuguesa da época moderna – nomeadamente da sua história religiosa –, recolocando o fenómeno religioso, as instituições e os agentes religiosos, numa história mais geral, e, em concreto, na história política, da qual foram muitas vezes expulsos.

4 Este output historiográfico torna cada vez mais visível, importa dizer, a impossibilidade de se fazer uma boa história política, social, cultural, da época moderna, sem atender ao papel estrutural que a dimensão religiosa nela teve. Note-se, ainda, que este revisionismo historiográfico que em Portugal tem contributos essenciais de outros autores – Francisco Bethencourt, José Adriano Freitas de Carvalho, Maria de Lurdes Correia Fernandes, Federico Palomo, e mais recentemente Giuseppe Marcocci –, dialoga diretamente com o que de melhor se faz, a este nível, internacionalmente.

5 Dito isto, passe-se, então, a uma descrição muito sucinta do livro que se desenvolve em cinco longos capítulos.

6 Os primeiros dois capítulos privilegiam a dimensão institucional do diálogo entre bispos e Inquisição e o modo com ambos colaboraram na repressão da heresia.

7 A fundação da Inquisição, as alterações que necessariamente comportou para o campo religioso, potenciadas pelas estratégias desenvolvidas (com frequente proteção do poder político, nomeadamente do cardeal D. Henrique, e do poder papal) no sentido de aumentar as suas competências sobre matérias de jurisdição da fé, colidindo com áreas tradicionalmente reservadas à esfera episcopal (nomeadamente em matéria de confissão, de repressão das heresias, e até mesmo de censura), constituem as temáticas abordadas no primeiro capítulo.

8 Apesar das áreas de inevitável colisão entre ambos, e apesar da complexidade do processo, o autor mostra que o ajuste do episcopado em relação à nova situação jurisdicional, ocorreu desde muito cedo – a começar pelos bispos diretamente envolvidos no processo de fundação da Inquisição, ou nos que foram inquisidores, e continuando na «estrutura estável disseminada por todo o reino, que o esquadrinhava até ao nível da mais pequena paróquia» que os bispos dispunham, cujos agentes – párocos, vigários, curas –, e dispositivos – as visitas pastorais – reuniam um caudal de informação que desembocava na Inquisição, sugerindo, inclusive, matérias nas quais esta podia e devia intervir. Em suma, esse ajuste de objetivos permitiu que entre bispos e Inquisição houvesse uma relação de «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), relação que é atestada por um conjunto de documentação que Paiva utiliza de forma convincente.

9 Os dois capítulos seguintes incidem sobre «o enervamento de matriz ideológica» que impregnava a boa relação entre as duas instituições – objeto do terceiro capítulo –, o qual melhor se entende no contexto dos processos de disciplinamento social que caracterizaram os «estados confessionais» da época moderna, analisados no quarto capítulo.

10 Esse enervamento de matriz ideológica tinha no mal-estar em relação aos cristãos-novos o principal pólo unificador, expresso em sermonários, tratadística e catecismos. A sintonia ideológica de que nos fala José Pedro Paiva, fazia tanto mais sentido quanto era estruturante a convicção de que os cristãos-novos eram um perigo para a coesão da respublica, constituindo-se, por isso mesmo, como um obstáculo ao próprio poder político. Daí a relevância da aliança entre a coroa e a igreja – da qual a relação entre bispos e inquisição se constituía como mais uma, e muito importante, declinação.

11 No capítulo seguinte, uma excelente introdução à operatividade do conceito de «disciplinamento social» para analisar os processos políticos e sociais que ocorreram na época moderna, e o papel que bispos e inquisição aí tiveram, Paiva mostra que, e cito, «bispos e inquisição vigiaram espaços diferenciados, concentraram a atuação sobre estratos de populações distintos, puniram crenças religiosas e comportamentos de diferente tipo (…)» – apesar de os bispos terem julgado mais gente e de, no geral, terem uma severidade punitiva bastante menor, marcados pelo seu ethos de pastores, revelado, aliás, na opção por «estratégias mais pedagógicas, educativas e doces» (p. 292), em contraponto com a «severa e pública repressão das heresias» que caracterizava o trabalho dos «vigias», i.e., dos inquisidores.

12 Estes quatro capítulos visam demonstrar a tese central do livro: de que a relação entre estas duas instituições foi feita, nestes dois séculos, mais de laços do que de limites. Contudo, e de modo a complexificar a paisagem, o autor dirige a sua objetiva, no capítulo final, para dois pontos distintos: para o lado, e para o interior.

13 Na primeira parte do capítulo final, compara as experiências antes descritas, com os casos espanhol e italiano, para reiterar a ideia – antes enunciada – que a experiência portuguesa, fazendo jus ao tradicional provérbio dos «brandos costumes», tinha sido muito mais pacífica do que as vizinhas. Isto é, o «corporativismo institucional» – se é legítimo falar assim – seria muito maior naqueles territórios do que em Portugal, onde, no final de contas, as próprias instituições de disciplinamento eram disciplinadas…

14 Na segunda parte deste capítulo mostra que esse disciplinamento de ambas instituições – e repare-se que no livro fala-se, quase sempre de bispos e de Inquisição, e raramente de bispos e inquisidores – não silenciava posições dissonantes. Como em qualquer bom e duradoiro enlace, também no casamento entre o Santo Oficio e os bispos «existiram desconfianças, receios, problemas e até discórdias» (p. 322), e grandes conflitos. Ou seja, a harmonia entre as duas instituições também se construiu tensionalmente, no século XVIII, com a querela que opôs Inácio de Santa Teresa à Inquisição, prolongada na questão do sigilismo, cavar-se-ia um fosso inultrapassável entre Inquisição e bispos, os quais deixariam de se submeter, doravante, à hegemonia entretanto alcançada pela Inquisição. Ao mesmo tempo que se anunciavam os novos ventos da secularização. Ou seja, o enlace que caracterizara dois séculos de relação e que, para muitos, explicava esse Portugal «limpo de scismas e erros» (p.427) perderia agora a vitalidade que o caracterizara, nele passando a medrar, nas palavras do autor, «mais limites do que laços» (p. 418). Intui-se, pela leitura do livro, que no fim desse casamento vislumbrava-se, também, o fim de um sistema, cujos primeiros golpes surgiriam, logo, com a chegada do Marquês de Pombal ao poder.

15 Para além das inúmeras virtualidades que o livro encerra que se podem declinar das observações anteriores, e de outras que, por economia de espaço, não podem aqui ser desenvolvidas, algumas opções de caráter metodológico também devem ser salientadas. Desde logo, a sua amplitude geográfica e o jogo de escalas que permite, pois aí se contam, simultaneamente, uma história macro, uma narrativa maior – e não apenas portuguesa –, e várias histórias micro (e aí se pressente a lição de Ginzburg) que, de uma ou de outra forma, para ela concorrem. Por exemplo, ficamos a conhecer mais sobre a densidade e variabilidade das vidas no interior do reino, em vez de nos ficarmos por alusões ao que se passava nas grandes cidades, i.e., as cidades onde havia Inquisição. Esse pulsar da vida das gentes de Viseu até Évora, e daqui a Goa ou a Lisboa, é, a meu ver, muito enriquecedor. Ou seja, José Pedro Paiva consegue apresentar um elegante equilíbrio para as difíceis articulações entre o macro e o micro, entre estrutura e agency, entre análise e processo, o que, como é sabido, é extremamente difícil de alcançar.

16 Esta verificação convida a uma segunda observação: a dimensão sociológica (e a marca de Pierre Bourdieu é explícita) e antropológica de trabalhos anteriores do José Pedro Paiva, também aqui está bem presente. Não só na identificação de regularidades grupais (a Inquisição como bloco, os bispos), mas também no mapeamento das minudências da vida concreta, e ao modo como estas deram textura ao processo histórico, não se deixando domesticar completamente (não se deixam disciplinar?), pelo olhar, pelos modelos teóricos, pela escrita do historiador.

17 Ainda assim, a autora destas páginas não ficou totalmente convencida com o argumento desenvolvido por José Pedro Paiva. A meu ver, os Baluartes da Fé e da Disciplina permitem uma contraleitura. I.e., uma leitura igualmente densa da narrativa aí contada – assente na mesma documentação e nos muitos casos elencados pelo autor – pode suscitar mais dúvidas em relação à «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), que, segundo José Pedro Paiva, teria caracterizado a relação entre bispos e Inquisição nos séculos XVI e XVII, e para além das ambiguidades referidas pelo próprio. O exemplo de D. Gaspar de Leão, primeiro arcebispo de Goa, a quem coube estabelecer a Inquisição naqueles lugares é, a esse respeito, sintomático. A carta pastoral com que abre a tradução do tratado de Jerónimo de Santa Fé, publicado em Goa em 1565, expressa uma tendência, presente em vários outros prelados em optar pelas vias doces em vez de escolher as vias repressivas que a Inquisição corporizava na relação entre cristãos e judeus e/ou cristãos-novos. Mas outras situações, também exploradas por José Pedro Paiva, como as dificuldades dos anos iniciais, os conflitos de precedências no âmbito cerimonial, ou as discórdias mais substantivas às quais o autor dedica várias dezenas de páginas, podem também revelar que não foi com bons olhos que os bispos assistiram à implantação da Inquisição, e às suas tentativas desta – e dos seus inquisidores – em ser reconhecida como a principal instituição eclesiástica portuguesa. Mas estas minhas dúvidas são, também elas, ancoradas em posicionamentos historiográficos igualmente explícitos, os quais formatam, inevitavelmente, a interpretação deste livro incontornável para quem quiser compreender os processos políticos, institucionais, sociais e culturais do Portugal da época moderna, pelo que convido o leitor a, por si só, inquirir da natureza da relação entre estes dois baluartes da fé – bispos e inquisidores – e avaliar as suas características.

Ângela Barreto Xavier – ICS – Universidade de Lisboa

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Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição / Ronaldo Vainfas

A chamada microstoria – versão italiana onde nascera este movimento nos anos 1970-80 – já deitou suas raízes no Brasil, definitivamente. Seus defensores, em distintas partes do mundo acadêmico ocidental, nos principais centros científicos de produção em História e nas Ciências Sociais deixaram delineadas as linhas-mestras da arrojada perspectiva da mudança de escala nas análises sociais e da rejeição aos aportes macroanalíticos que se pretendiam unívocos e inflexíveis; enfim, mesmo que de forma variada, a micro-história e seus defensores “se esforçam para dar à experiência dos atores sociais (o ‘cotidiano’ dos historiadores alemães, o ‘vivido’ de seus homólogos italianos) uma significação e uma importância frente ao jogo das estruturas e à eficácia dos processos sociais maciços, anônimos, inconscientes” [2]; que, por muito tempo, pareciam ser os únicos a chamar a atenção dos pesquisadores.

É no âmago dessa discussão, no Brasil, que o trabalho de Ronaldo Vainfas – professor titular do departamento de História da Universidade Federal Fluminense – com o sugestivo título “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição” deve ser apreciado. Aliás, este autor já havia deixado claro, em momentos anteriores, a sua simpatia e abertura teórico-metodológica para o microssocial [3].

Traição desvenda a história de uma biografia nada comum, mas nem por isso inverossímil em um império lusófono de um território entrecortado por mares e oceanos e ainda em processo definitivo de integração sob o governo de um único rei pós- Restauração portuguesa (1580-1640). O protagonista desta história é Manoel de Moraes, mameluco nascido em São Paulo de Piratininga, filho de um outro mameluco “destro na arte da canoagem” e irmão de bandeirantes apresadores de índios. Teria pelo ambiente onde nascera o destino de seus parentes, se não fosse a outra faceta do mundo colonial brasílico a lhe arrebatar desde criança: a religiosidade católica. Com isso, fez votos solenes no Colégio da Bahia, tornando-se jesuíta professo de três votos, em 1623.

Por pouco não convivera com o mais ilustre filho do colégio jesuítico baiano, padre Antônio Vieira.

O livro, diga-se de passagem, sem introdução, é desenvolvido ao longo de quarenta capítulos com títulos bem sugestivos e que parece indicar de forma clara a intenção do autor em demonstrar a fluidez e a dinâmica das identidades: “Mameluco de São Paulo” (cap. 2); “Jesuíta na Bahia” (cap. 3); “Missionário em Pernambuco” (cap 4); “Capitão do gentio” (cap. 6); “Soberba do padre” (cap. 8); “A traição do jesuíta” (cap. 10); “O fantasma de Manoel” (cap. 13); “A vanglória do traidor” (cap. 14); “A serviço da WIC” (cap. 15); “Licenciado em Leiden” (cap. 16); “Paixões flamengas” (cap. 18); “Manoel calvinista” (cap. 19); “De volta a Pernambuco” (cap. 26); “Manoel brasileiro” (cap. 27); “Regresso ao catolicismo” (cap. 29); “Capelão da guerra divina” (cap. 30); “Manoel delator” (cap. 32); “Manoel pertinaz” (cap. 35); “Manoel valentão” (cap. 39); “Réquiem para Manoel” (cap. 40).

Mas, o que parecia ser o início de uma vida ascética trabalhando entre os índios como missionário e “língua” – ofício de tradutor que, sem dúvida, era uma das heranças de sua família mameluca – logo se mostrou apenas o princípio de uma vida conturbada; pois ela fora vivida dilacerada entre o desejo de acumular riquezas através de mercês régias e a ortodoxia de sua religião que simplesmente não deixava espaços para qualquer tipo de heresia.

Ainda jesuíta em Pernambuco, Manoel de Moraes foi um dos missionários da Companhia de Jesus que logo aceitara a convocação do governador, Matias de Albuquerque, para a defesa das capitanias do Norte contra o iminente ataque holandês.

Os cronistas da guerra o chamavam “capitão de emboscada”, liderando até mesmo as forças indígenas de Antônio Felipe Camarão – seu antigo neófito na aldeia de Meritibi – no Arraial do Bom Jesus, um dos baluartes da resistência após a derrocada do Recife, em 1630. Mas o padre guerreiro, “capitão do gentio” (cap. 6), nunca poderia ter sido um capitão oficial de guerra, pois era então jesuíta, deixando perplexos e enciumados pela sua ação os outros oficiais militares da restauração pernambucana, entre eles, o conhecido personagem dos pesquisadores da história cearense, Martim Soares Moreno, também ele comandante de forças potiguaras.

Ronaldo Vainfas descortina, a meu ver, um dos aspectos da guerra pernambucana ainda pouco discutido na historiografia: as rivalidades entre os oficiais (cap. 7 e 8). Da relação entre o capitão jesuíta e o capitão por ofício, “não seria absurdo dizer, sobre Manoel e Martim, que um era o espelho do outro” (p. 52). Entretanto, Soares Moreno era por ofício o capitão do jesuíta comandante de índios, sendo que aquele “tornar-se-ia, na verdade, inimigo figadal de Manoel de Moraes. O pior de todos” (p. 53). Com a conquista da Paraíba, em 1634, Manoel de Moraes se entregara as forças holandesas, sendo acusado por traição pelos oficiais militares luso-portugueses; em sua defesa no Tribunal do Santo Ofício, as rivalidades ganharam uma nova ressonância, ao afirmar ele que Martim Soares Moreno o havia abandonado à própria sorte em uma das mais importantes batalhas na Paraíba: “Martim Soares não tolerava o jesuíta metido a capitão” (cap. 9, p. 67).

A conquista da Paraíba, como diz o autor, trouxera uma inflexão não apenas quanto à dominação holandesa no andamento dos recontros, mas também na vida de muitos, entre eles, o jesuíta comandante de índios. Manoel de Moraes de prisioneiro de guerra, logo passou a informante precioso, nomeando todas as aldeias de índios e suas respectivas lideranças, uma das mais relevantes informações naquele contexto de batalhas. Mas não apenas isso. Em Recife, chegou mesmo a lutar ao lado dos holandeses contra os filhos da terra, vestido como “flamengo” em “traje de gente militar”, portando um “vistoso uniforme escarlate dos soldados holandeses”. Na mudança dos trajes – o que não era pouca coisa naquele mundo instavelmente perigoso – a partir de então o ex-jesuíta havia mudado mesmo de identidade: “Garboso e cheio de si, Manoel não trazia mais a tonsura que sempre tinha usado, mesmo quando lutava contra os holandeses na defesa da capitania, senão cabelo comprido e barba crescida” (cap. 10, p. 75).

Ao renegar a tonsura sacerdotal – marca característica dos inacianos – e vestir os trajes do vencedor, Manoel de Moraes aumentou a fúria que já lhe era devida pelos militares e religiosos. Para os primeiros, ele era mais um traidor à sombra de Calabar, “patriarca dos traidores” (cap.11), para os últimos, todavia, um herege que merecia a fogueira expiatória. A bem da verdade, nem um nem outro o deixaria em paz por essa afronta pública naquele mundo brasílico.

Ainda em 1635, o provincial da Companhia de Jesus, padre Domingos Coelho toma as providências para a expulsão de Moraes que, à época, mesmo antes de passar ao lado dos holandeses, diziam alguns, “já andava de chamego com as índias”. Acusado de fornicação, apostasia, heresia, e ainda por cima, de traidor dos portugueses, em junho deste ano, Manoel de Moraes fora avisado de sua expulsão dos quadros da Companhia de Jesus. A essa altura, contudo, o destino lhe traçara uma nova vida e, porque não dizer, uma nova identidade: no mesmo mês de 1635, Manoel de Moraes estava na Holanda, vivendo como consultor da Companhia das Índias Ocidentais (WIC).

Nos oito anos em que vivera nos Países Baixos calvinistas, entre 1635 e 1643, o ex-jesuíta casou duas vezes, contraindo as segundas núpcias à moda de Calvino após enviuvar-se. Protegido do humanista Joannes de Laet – renomado intelectual e diretor da WIC – a quem auxiliava em seus escritos sobre o Brasil, conseguiu entrar na prestigiada Universidade de Leiden e obter o grau de Licenciado em Teologia (cap. 16).

Dentre as suas produções, a mais importante foi um “plano para o bom governo dos índios”, documento desconhecido, mas citado em uma carta dos Dezenove Senhores ao Conselho Político do Recife, em 1635. Nela se previa o reconhecimento das lideranças indígenas leais e o reforço do trabalho dos missionários calvinistas e, como atentou o autor, tratava-se de “um modelo de catequese calvinista com metodologia inaciana” (p.121).

O Manoel ex-jesuíta não esquecera, como nunca esqueceria ao longo da vida, sua vinculação católica. A repercussão dessa maneira holandesa de governar com os índios pode ser constatada na troca de correspondência entre Pedro Poti e Felipe Camarão, índios potiguaras que defendiam lados distintos na guerra, já bem conhecida dos pesquisadores do Brasil colonial (cap.7 – Imbróglio indígena).

Mas o lado brasileiro de Manoel de Moraes não o deixava sossegado, sua ânsia era voltar ao Brasil. Contraiu um empréstimo com a WIC e voltou a Pernambuco, em 1643, onde se tornou um explorador de pau-brasil. Juntou cabedal e logo se tornou senhor escravista, auxiliado por uma feitora: a negra Beatriz. Logo, a luxúria do exjesuíta, aliás, esse era seu único pecado como sustentará por algum tempo no Tribunal da Inquisição, novamente era aflorada e Beatriz passa a ser sua amante. Vainfas, mais uma vez, sintetiza em poucas linhas os meandros da vida de seu biografado: “Manoel tornou-se um senhor de escravos como tantos outros, tinha escrava em casa, sua mulher estava na Holanda, e de padre ele já não tinha nem o hábito” (p. 233).

Em Recife, o ex-jesuíta e então ex-calvinista passa a freqüentar as igrejas e capelas; afinal, seu passado era católico e mesmo sob a pecha de traidor lhe era movido um sentimento de se reconciliar com a Igreja, quem sabe defender-se no próprio Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, que nos idos de 1642 já o havia queimado em estátua pelos agravos públicos de 1635. Seja como for, “Manoel vivia com a consciência pesada. Identidade fragmentada”. (p. 245).

Para o leitor absorvido na intrigante vida dessa personagem, o ponto alto do livro Traição é, sem dúvida, a luta de Manoel de Moraes diante dos inquisidores. Sua intenção antecipada de se reconciliar com a Igreja e sua participação na “guerra da liberdade divina”, novamente empossado como capelão de tropa por ninguém menos que o general da restauração pernambucana, João Fernandes Vieira, não foi impeditivo para ele ser preso e remetido a Lisboa, a dar conta de sua vida ao Santo Ofício. (Cf. cap. 30 e 31).

A partir da documentação inquisitorial, Ronaldo Vainfas vai pouco a pouco desvendando os enredos construídos entre os acusadores e o réu. Para os inquisidores do Tribunal, traição e heresia eram lados da mesma moeda, por isso a relutância de Manoel de Moraes em esconder tanto quanto possível sua vida de traidor no ano de 1635.

Acusado de heresia pelo tempo em que vivera na Holanda, onde contraiu dois casamentos à moda calvinista, o réu insistirá que não conhecia nem mesmo a língua de seus anfitriões, e que casara apenas por luxúria, ou seja, pecado grave, mas que fugia da alçada da inquisição, preocupada com os crimes de fé: “Por causa da luxúria, era sua alma que arderia eternamente no inferno. Por causa da heresia, ele mesmo poderia arder na fogueira” (p. 287).

Entre 13 de abril e 23 de outubro de 1646, Manoel de Moraes preso nos cárceres de Lisboa, sustentará sua versão “catolicizante” de que, no Brasil e na Holanda, dera provas de sua identidade católica. Mas nada disso parecia reter um palmo sequer a convicção de seus acusadores. Sem confessar o que queriam ouvir os ministros do Tribunal, o ex-jesuíta foi mandado ao suplício na “sala do tormento” (cap.36), com o fim de ser içado pelos pulsos até o teto e de lá ser despencado ao chão numa polé.

Diante do instrumento de tortura, o bravo “capitão de emboscada” tremeu, e a imaginar o tempo de sua reclusão naquela atmosfera de ser queimado vivo, não viu outra alternativa e confessou.

Em Traição, o autor consegue realizar aquilo que se considera mais importante numa biografia ao estilo da micro-história: ajudar seus leitores a compreender um pouco melhor um mundo distanciado pelo tempo cronológico, mas trazido a tona percorrendo as pegadas de uma única vida jogada entre as estruturas e as conjunturas de um tempo historio pretérito4.

Aqui, peço licença ao leitor para usar uma das sutilezas argumentativas do escritor-historiador Ronaldo Vainfas que insiste em deixar para o próximo capítulo aquilo que procura demonstrar no anterior. No mais, os dois últimos capítulos de Traição nos apontam o destino dessa personagem excepcional. Contudo, na parte da cronologia, ao final do livro, há uma pista instigante e bem ao estilo do autor: “1651. Manoel de Moraes morre, provavelmente em Lisboa. Amém” (p. 342).

Notas

1. Cf. “Apresentação”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 10. Vide também o capítulo primeiro.

2. Vale a pena uma leitura demorada da discussão elaborada entre Ronaldo Vainfas e Ciro Cardoso, paradoxalmente, num mesmo livro que organizam juntos. Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Especialmente a introdução e a conclusão, na mesma obra. Ainda do autor, vide: VAINFAS, Ronaldo & SANTOS, Georgina S. & NEVES, Guilherme P. Retratos do império – trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006.

3. Cf. LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Op. Cit., pp. 225-249.

Ligio José de Oliveira Maia


VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384p. Resenha de: Embornal, Fortaleza, v.1, n.2, p.1-6, 2010. Acessar publicação original. [IF].

Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição – VAINFAS (Tempo)

VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384 p. Resenha de: SANTOS, Maria Cristina dos. Lições da Traição: a redução da escala na análise histórica. Tempo v.14 no.27 Niterói  2009.

Desde a década de 1980, a quantidade de traduções e publicações acerca das discussões sobre os novos paradigmas teóricos e metodológicos da pesquisa histórica supera em muito os títulos resultantes de pesquisas que ousaram aplicar os novos paradigmas em discussão, indicação clara de que, na produção do conhecimento histórico no Brasil, muito se discute sobre como fazer, mas pouco se arrisca ao realizar uma pesquisa documenta. Esta particularidade pode ser observada no boom editorial que ocorreu nas publicações sobre a História das Mentalidades, História Cultural, de Gênero, da Vida Privada, entre outras.

Algo semelhante ocorria, até então, com a metodologia da redução da escala de análise histórica. Entre as inúmeras discussões realizadas, alguns autores tentaram vincular à metodologia da microanálise os restritos resultados de suas pesquisas locais e/ou regionais. Nada mais distante. Essas tentativas cômodas, oriundas de leituras superficiais, foram usadas para justificar pesquisas, ou melhor, recopilação de documentos, sem alcance analítico para ultrapassarem os limites locais onde foram realizadas. O impulso metodológico da microhistória não é small is beautifull; não é a pequenez do gesto, mas a análise, a escala de observação.1 Conforme Medick, é importante destacar a perspectiva de conhecimento microanalítica como um, mas de forma alguma o único, método específico de investigação. Mas só ele permite – partindo das ações, experiências e condições de vida de pessoas individuais – localizar, de uma maneira nova, seu envolvimento em redes sociais, culturais e econômicas, incluindo seus efeitos e limites nos contextos globais.2

Não foi por mera coincidência que Vainfas iniciou seu ensaio sobre Os Protagonistas Anônimos da História, apresentando de forma crítica a micro-história em meio a uma “teia de equívocos”, evidenciando, assim, o que ela “não é”.3

Entre os inúmeros debates realizados no âmbito acadêmico, Sandra Pesavento não titubeou ao afirmar: “realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método, mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste recorte de escala”.4 A peremptória afirmação beira o desafio: dizer mais sobre um recorte do real. Isso pressupõe que realizar uma pesquisa documental, conforme os paradigmas conceituais e metodológicos da micro-história, não é tarefa fácil, tampouco para principiantes. Tal constatação fica demonstrada na forma, no conteúdo e nos enlaces descortinados por Vainfas na Traição.

A construção da narrativa seduz o leitor, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Sobre a forma, cabe salientar que Vainfas subverte o formato da narrativa histórica clássica, ao começar pela descrição do ambiente das cenas finais da trama urdida por Manoel de Moraes, tal como num romance policial. A realização de uma exaustiva pesquisa histórica não é, nesse caso, justificativa para apresentar os resultados em textos longos, aborrecidos e recheados de um vocabulário hermético. As aventuras e desventuras desse protagonista, até então quase anônimo, são apresentadas numa sequência de quarenta capítulos, em sua maioria, curtos e construídos literariamente de maneira a prender o leitor e desconcertar o historiador, sobretudo aquele mais tradicional. Mas, o que parece inusitado na forma avança ainda mais no conteúdo.

Vainfas reconstituiu a história de Manoel de Moraes em uma narrativa envolvente que não abandona em nenhum momento o necessário rigor acadêmico. O prazer da leitura de um texto literariamente sedutor traz consigo vários questionamentos teóricos e metodológicos sobre a historiografia do período colonial.

Manoel de Moraes nasceu em São Paulo, tornou-se jesuíta e atuou como missionário em Pernambuco. Participou de forma ativa, junto com Felipe Camarão, das guerras entre Portugal e Holanda, na primeira metade do século XVII. No posto de Capitão do Gentio, Manoel atuou, com armas em punho e em uso, na frente de batalha. “O lado paulista de Manoel de Moraes veio à tona com força máxima nos combates contra o holandês […] na verdade, lutava e matava com garra, agindo como autêntico paulista nos matos, esquecido dos mandamentos de Deus e de suas obrigações como sacerdote”(p. 43-45). Mas, ao perceber a iminente derrota, Manoel cruza o campo de batalha e se oferece aos holandeses. O limite entre a rendição e a traição no final da guerra da Paraíba é quase invisível – o que, segundo Vainfas, dá quase no mesmo. Manoel de Moraes passou para o lado dos holandeses e levou consigo todos os índios que comandava. “No mínimo salvou a própria vida e logo vislumbrou novos horizontes”(p.65).

A partir daí, o leitor, seja alheio ao assunto ou um especialista, será levado a caminhos inimagináveis, traçados tanto pela trajetória oblíqua do personagem, como pela habilidade de Vainfas como narrador. Manoel de Moraes passa, então, a protagonizar uma sequência de traições – que estão para muito além de gregos, troianos e pernambucanos.

Depois de trair os princípios contrarreformistas do Concílio de Trento, onde havia começado sua formação religiosa, mudou-se do Brasil para a Holanda. Foi aí que se casou por duas vezes, dentro dos rituais calvinistas. O primeiro casamento foi por conveniência política e econômica; já o segundo, nosso Manoel acabou por ceder “às fraquezas da carne e aos excessos contra o sex[t]o mandamento”(p.126-154). Foi também na Holanda que ele se escondeu do primeiro processo da Inquisição portuguesa, quando foi julgado e condenado à fogueira. Na ausência do réu, uma estátua deste foi queimada em praça pública (p.180), conforme as determinações do Santo Ofício. Tornou-se um informante privilegiado dos holandeses contra os portugueses, inclusive na questão da forma de como atuar junto aos indígenas no Brasil. Entre as várias obras que produziu, elaborou um “Plano para o Bom Governo dos Índios”, utilizando o modelo jesuítico, porém sem jesuítas (p.121). Trocou uma Companhia (de Jesus) por outra (a das Índias Ocidentais), como um padre troca de batina.

missa de Manoel, no entanto, não está nem na metade. Surpreendentemente, ele faz o caminho de volta. Atormentado pelos dramas de consciência, talvez resquícios de sua formação jesuítica, empreende uma viagem de retorno ao Brasil e ao catolicismo, porém não à vida sacerdotal strictu sensu. Nesta circunstância é que Manoel de Moraes se converte num traidor perfeito.

Traiu os jesuítas, traiu os portugueses na guerra de resistência; voltou a traí-los, prometendo servir a D. João IV em troca de mercês e perdões, enquanto arrancava dos holandeses o contrato do paubrasil; traía, ao mesmo tempo, a WIC [West International Company], oferecendo-se aos embaixadores portugueses para combater os holandeses no Brasil; traiu Adriana Smetz, não nos esqueçamos dela [e de sua beleza estonteante], ao abandoná-la com três crianças em Leiden. Não haveria de ser como brasileiro que Manoel honraria algum contrato (p.230).

De volta a Pernambuco, com um empréstimo da WIC, Manoel torna-se senhor escravista, negociante de pau-brasil, e passa a viver provavelmente amancebado à “negra Beatriz”, que desempenhava nada menos do que a função de feitora [!] (p.232). Durante seus últimos anos no Brasil, consegue algumas outras façanhas, tais como: enriquecer como negociante, passar o calote na Companhia das Índias e ainda conceber “a peculiar e absurda perspectiva de vir a ser uma espécie de predicante católico. Católico na fé, com direito a pregar e oficiar missas, mas sem o voto de obediência (exceto a militar), muito menos os de pobreza e de castidade. Uma espécie de mescla entre o predicante calvinista e o padre católico”(p.259). Tanto fez que, por fim, foi preso e levado ao Tribunal do Santo Ofício da metrópole lusitana.

Em Lisboa, encarcerado na Casa Negra do Rocio, Manoel de Moraes começa uma terceira e derradeira etapa de suas estratégias. Será durante seu segundo julgamento que as habilidades retóricas e as artimanhas mais audaciosas desse memorável personagem terão mais espaço.

Atitudes, propósitos e convicções, aparentemente contraditórias, são constantes na tortuosa vida de Manoel de Moraes. Pelo texto de Vainfas, tais contradições convertemse em luzes sobre um passado cristalizado pela historiografia tradicional, como blocos homogêneos, quase sempre antagônicos. De um lado está o Ocidente católico e civilizador; de outro, os nativos a serem cristianizados e cooptados pelas forças colonizadoras. Nesta historiografia de antagonismos, não há espaço para fraturas, para desvios de comportamento ou para qualquer exceção.

Não foi pouco o esforço teórico e metodológico que a academia empreendeu, em particular, na última década para demonstrar as diversidades internas de supostos conjuntos sócio-religiosos-econômicos e culturais dos nativos, com os quais um Ocidente se enfrentou. Vainfas apresenta muito além da vida de altos e baixos de Manoel de Moraes e ressalta a importância de uma pesquisa séria como base de uma análise histórica consistente. Por meio das traições de Manoel de Moraes, Vainfas constrói uma audaciosa trilha até então minoritária na academia. Ao longo do texto, são apontados inúmeros elementos para relativizar a suposta constância do Ocidente nas Américas. Em particular, a pretensa homogeneidade de uma instituição como a Companhia de Jesus, criada com o intuito de atuar como elemento de coesão do mundo católico ameaçado pelas fraturas provocadas pelos diversos movimentos reformistas, tais como o Luteranismo, Anglicanismo e Calvinismo.

Ao leitor leigo, as peripécias de Manoel como Capitão dos Gentios, Fantasma, Calvinista, Delator, Pertinaz Valentão, ou entre Paixões Flamengas, despertará curiosidades e dúvidas no conhecimento sobre a América Portuguesa, o Brasil Holandês e as disputas europeias do século XVII, disseminadas no senso comum. Ao leitor acadêmico, a trajetória deste personagem, aliada ao refinamento teórico-metodológico de Vainfas, evidencia por que e como a rigorosa pesquisa documental ainda se mantém como o grande diferencial entre o pensar, fazer e escrever História e o escrever sobre História.

Todas as afirmações estão documentalmente comprovadas e a cronologia incluída no final da obra contextualiza os eventos narrados. Se para alguns leitores tais informações podem servir como bússola das intrigas na qual Manoel esteve inserido, para outros servirá também para evidenciar que o período moderno, tanto na Europa Ocidental quanto em suas ramificações coloniais, não pode ser explicado somente como a transição do feudalismo ao capitalismo, ou como a época de ouro do pensamento mesti ço. Manoel de Moraes é tudo isso e muito mais.

Ao longo do texto, no século XVII, Espanha, Portugal, Holanda e Brasil aparecem formando complexas redes de poder e de conflito que possibilitaram circunstâncias nas quais as lealdades eram naturalmente volúveis. Manoel de Moraes, com suas aventuras e dramas pessoais, é utilizado para expor os conflitos religiosos, os ambientes em que viviam os personagens e os processos de mediação cultural que desenham uma conjuntura colonial muito mais complexa do que aquelas estabelecidas pelas macroanálises.

No ofício da pesquisa, o historiador deve questionar suas fontes e estabelecer conexões, por meio do cruzamento de informações. Se o momento vivido por Manoel de Moraes assim o exige, Vainfas não se abstém de ampliar a escala de análise, demonstrando, assim, como esse exercício é fundamental na pesquisa histórica.

Em contrapartida, o Santo Ofício desconhecia completamente o que se pode alcançar noutras fontes, a exemplo das preciosas informações que Manoel dera aos holandeses logo depois de se render na Paraíba, as quais, sem dúvida, adensavam suas culpas. Se soubessem disso, ou do que Manoel tinha contado ao irlandês O’Brien em Amsterdã, em junho de 1635 (!), os inquisidores talvez estreitassem a relação entre traição e heresia, percebendo essa última já nas ações do ex-padre desde fins de 1634. Não deixa de haver, portanto, alguma semelhança entre o mameluco paulista e o irlandês aventureiro, seja na audácia das atitudes, seja no ânimo irrefreável de romper fronteiras, seja ainda na fluidez das lealdades e compromissos (p.186).

Nesta ocasião, entre outras, Vainfas evidencia as particularidades da aplicação metodológica na pesquisa, pois

é próprio do método da microhistória estabelecer esta rede de relações […] na medida em que estas relações pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria um método que jogaria com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto com o contexto5 .

Portanto, seja qual for o intuito do leitor ao se aproximar da mais recente obra de Vainfas, encontrará muito mais que os caminhos da construção/compreensão das intrigas do passado, tal como já advertiu Paul Veyne, no clássico texto Como Escrever História.6 Com toda a certeza, entenderá que o mérito de o verdadeiro métier do historiador pode ser tão, ou mais, encantador que o do curioso que se apropria de temas históricos com o intuito de popularizar a História. As constantes traições cometidas por Manoel de Moraes foram utilizadas também para mostrar como a produção do conhecimento histórico tem avançado na forma e no conteúdo. É bem verdade que nosso Manoel não chegou a questionar as origens do Universo como Menocchio.7 Entre este último e Manoel de Moraes há mais de um século e um oceano que os separa. Mas, os resultados apresentados por Vainfas são exemplares para demonstrar como fazer a redução da escala de análise, constituindo-se assim, numa referência historiográfica made in Brazil. Como oposição complementar, Vainfas manteve-se fiel a sua vinculação acadêmica e transformou uma rigorosa pesquisa documental num texto sedutor. A Traição traz várias lições; basta tentar aprendê-las.

1 Brad S. Gregory, “Is small beautiful? Microhistory and the history of everday life”, History and Theory Studies, Middletown, Wesleyen University, vol. 38, nº 1, p. 100 -110, 2002.         [ Links ] 2 Hans Medick, “Quo Vadis Antropologia Histórica? A pesquisa histórica entre a ciência histórica da Cultura e a Micro-História”, Aula Inaugural na Faculdade de Filosofia de Erfurt, 03 jul. 2000. Tradução René Gertz, Métis: história & cultura, Caxias do Sul, EDUCS, vol. 2, nº 3, p. 199-216, 2003, p. 209.         [ Links ] 3 Ronaldo Vainfas, Micro-história: Os Protagonistas Anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 07-51.         [ Links ] 4 Sandra Jatahy Pesavento, “O corpo e a alma do mundo. A micro-história e a construção do passado”, História Unisinos. Dossiê: Teoria e metodologia da História, São Leopoldo (RS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, vol. 8, nº 10, 179-189, 2004. p. 180.         [ Links ] 5 S. J. Pesavento, op. cit. 2004, p.183.
6 P. Veyne, Comment on écrit l’histórie, Paris, Editions du Seuil, 1971.         [ Links ] Tradução portuguesa: Como escrever História, Lisboa, Edições Anos 70, 1987, p. 107-136.         [ Links ] 7 Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pel a Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Edição original: 1976.         [ Links ]

Maria Cristina dos Santos – Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

Ensaios sobre a intolerância; inquisição, marranismo e anti-semitismo – GORENSTEIN; TUCCI CARNEIRO (RIHGB)

GORENSTEIN, Lina; TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza (orgs.). Ensaios sobre a intolerância; inquisição, marranismo e anti-semitismo. São Paulo: Humanitas; FFLCH/USP, 2002. Resenha de: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.164, n.418, p.209-217, jan./mar., 2003.

Angelo Adriano Faria de Assis – Doutorando. Universidade Federal Fluminense.

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Inquisição: prisioneiros do Brasil (séculos XVI0XIX) – NOVINSKY (RIGHB)

NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002. Resenha de: GORENSTEIN, Lina. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.163, n.415, p.209-211, abr./jun., 2002.

Lina Gorenstein – Doutora em História Social da USP.

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A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII – FERNANDES (RIHGB)

FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2000. Resenha de: CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.163, n.414, p.241-244, jan./mar., 2002.

Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha – Sócia emérita do IHGB.

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