The quest for the shaman: shape-shifters, sorcerers and spirithealers of Ancient Europe | Miranda Aldhouse-Green

O fenômeno do xamanismo vem atraindo intensamente a atenção de acadêmicos há cerca de duas décadas, além de ser praticado por muitos adeptos em grandes cidades do mundo e até mesmo no Brasil. Neste contexto, a recente publicação dos arqueólogos Miranda e Stephen Aldhouse-Green, The quest for the shaman, é emblemática por realizar uma sistematização do tema, além de apontar várias outras perspectivas para os estudos das práticas mágico-religiosas. Este livro se insere em uma nova perspectiva dos estudos arqueológicos, não tendo apenas uma preocupação com os objetos materiais em si mesmo, mas também preocupados com sua inserção em uma ampla rede de significados sócio-culturais: “O estudo da cultura material, de todo o imenso artesanal de artefatos que fazem parte do cotidiano do ser humano depende, em muitos casos, da interação da arqueologia com outras áreas” (Funari 2003: 85).1 Miranda Jane Green é uma das mais conceituadas celtólogas e especialistas em Idade do Ferro européia, enquanto Stephen Aldhouse-Green é pesquisador de pré-história do Velho Mundo. Além de considerações teóricas advindas do estudo de sítios arqueológicos, mitologia, literatura e história comparada, os autores também investigaram o fenômeno do xamanismo in loco, entre os Mapuche no Chile, utilizando metodologia antropológica.

A introdução (Shamanism, p. 9-18), elabora uma discussão conceitual e bibliográfica sobre o tema. Os autores propõem novas perspectivas de abordagem pelo viés da cultura material e psicológica, preocupando-se mais em tratar o xamanismo como uma visão de mundo do que como um sistema religioso no sentido tradicional. A discussão de que esta prática teria sido uma construção discursiva de acadêmicos foi abandonada,2 em detrimento da concepção de que é um fenômeno relacionado com a feitiçaria, o ritual e o curandeirismo. Também a visão tradicional de que o conceito do transe ou estado alterado de consciência é fundamental para circunscrevermos os cultos xamânicos3 permanece no livro, mas atrelado a recentes estudos de neuropsicologia, simbolismo e performance social. Este último aspecto é tratado com mais detalhes: o “teatro” do xamã é essencial para a construção de sua figura pública, criando condições materiais para a eficácia simbólica de um contato espiritual. Desta maneira, os objetos arqueológicos encontrados no sítio são delineados também dentro desta perspectiva sócio-cultural, procurando reconstruir o fenômeno europeu com analogias vindas da América, Ásia, Austrália e Sibéria.

O segundo capítulo (Beyond the stone Gates, p. 19-64), explora as possibilidades do registro xamânico durante o Paleolítico, contrastando os registros fósseis e materiais com as teorias de William Davies e David Lewis-Williams. Aqui as supostas origens dos cultos estão atreladas diretamente com o nascimento da arte, da consciência de uma cosmologia, enfim, da criação da própria religiosidade humana – uma conseqüência, segundo os autores, da fixação e intervenção de imagens cerebrais. E a capacidade de entrar em transe seria limitada a um pequeno número de pessoas, que passam a controlar a religião ao mesmo tempo em que a sociedade torna-se estratificada. Assim, percebemos uma profícua união teórica entre o pensamento biológico-psicológico com as considerações da arqueologia e da sociologia. A última parte deste capítulo, realiza um interessante debate sobre o fenômeno da therantropia – o último estágio do estado alterado de consciência, segundo a teoria de William Davies, que produziria visões de monstros e criaturas antropomórficas, especialmente relacionada com as narrativas mitológicas e literárias do lobo e do lobisomem.

O capítulo seguinte (Swan’s wings and chamber tombs, p. 65-88), discute o xamanismo durante os períodos Mesolítico e Neolítico, especialmente entre os vestígios megalíticos da Irlanda. Neste momento os autores fazem uso especialmente das pesquisas de Jeremy Dronfield, segundo o qual a arte megalítica (constituída de motivos geométricos, dando destaque para a figura do espiral) teria sido criada para realizar experiências religiosas nas tumbas. Estudando a distribuição, tipologia e identidade dos motivos artísticos, Dronfield criou a hipótese da “experiência do túnel”, associando os estados alterados de consciência e visões da morte com as passagens nas câmaras megalíticas. Apesar de Miranda e Stephen Aldhouse-Green considerarem esta idéia complexa e polêmica (a união entre arte e práticas mortuárias), referenciam a mesma como hipótese em sua sistematização.

O quarto capítulo (Rock and gold, p. 89-110), examina o tema na Idade do Bronze européia. Os principais sítios arqueológicos examinados nesta análise são os provenientes da Escandinávia, especialmente os importantes conjuntos petroglíficos de Bohuslän, Boglösa, Scania e Litslena, todos situados na Suécia. A grande maioria das representações destes locais é figurativa, mostrando em especial cenas de homens dançando, portanto máscaras, equipamentos de guerra, cenas de fertilidade e consagração, barcos, animais e variados desenhos geométricos como círculos raiados. Seguindo certa tradição analítica, os autores dedicam sua interpretação para mitos relacionados com o transcurso solar e os ritos funerários. Alguns objetos que também são associados a motivos celestes e a mitos solares são o cone de Etzelsdorf e o recentemente polêmico disco de Nerbra, ambos da Alemanha, e o carro solar de Trundholm, da Dinamarca.

Os capítulos quinto e sexto (Priests, politics and power, p. 111-142 e Monsters, gender-benders and ritualist in the roman empire and beyond, p. 143-178) examinam com detalhes as fontes arqueológicas da Idade do Ferro e as literárias greco-romanas. Os temas mais explorados pela dupla de pesquisadores são as visões de explorações de outros mundos – típica de relatos de experiências xamânicas durante o transe – e as questões relacionadas com o status dúbio destes praticantes, tanto a nível social quanto sexual. Um dos momentos mais interessantes é o confronto entre o relato clássico de Tirésias com Odin, deus dos escandinavos, especialmente no que diz respeito às suas ambivalências sexuais e o papel de negociadores de outros mundos. Outros relatos igualmente mencionados com destaque são os de Plínio, o velho, Tácito e a Saga de Erik, o vermelho.4 Tanto na literatura romana quanto na celta e nórdica, os autores identificam a importância do triplismo a nível simbólico e cosmológico – refletindo o imaginário religioso original da Eurásia, onde os mitos xamânicos dividem o cosmos em três níveis e nove mundos. A nível material, o triplismo é manifestado especialmente na arte escultural, por exemplo, nas representações de deuses latinos com três faces ou três chifres, e a nível simbólico nas figuras do triskelion, triqueta e valknut, estes últimos da área celto-nórdica.5

O último capítulo (Myths and magic, p. 179-202), detalha várias análises sobre a literatura e mitologia de origem céltica, em especial, as fontes literárias galesas e irlandesas da Idade Média. Diversos personagens dos manuscritos Mabinogi e Táin Bó Cúailnge, como Pwyll, Math, Lleu, Gwydion e Cu Chulainn, são analisados dentro de uma perspectiva de conexões com o xamanismo,6 especialmente em seus contatos com outros mundos e metamorfoses animais. Em outro momento, os autores debatem o tema das profetisas e profetas nas ilhas britânicas, como Fedelma e Cathbadh, estabelecendo algumas relações entre magia e política, entre as quais as advindas da realeza e da sucessão dinástica.7 Também relacionado a poderes proféticos e xamanismo é o fenômeno do druidismo, onde os sacerdotes ligam-se a múltiplas funções no mundo Celta.8 Alguns dos mais peculiares casos de druidismo-xamânico são os denominados “homens pássaros”, profetas que vestiam peles de pássaros, conectados ao simbolismo destes animais como intermediários do outro mundo, do poder sobrenatural e do “vôo xamânico”.

Na conclusão do livro (p. 203-211), talvez o ponto mais importante destacado pelos autores seja a respeito de uma revisão do conceito diacrônico de xamanismo e em problematizar como os elementos tradicionais deste fenômeno mágico-religioso foram manifestados em diferentes modelos de expressão na arte, na sociedade e nas culturas européias. Em particular, a possibilidade de futuros estudos sobre tradições religiosas sobrevivendo abaixo da romanistas e reputadas como superstições na Idade Média, e, de que forma a herança do paganismo foi manipulada ou “filtrada” pelos redatores cristãos dos manuscritos.

O livro possui uma bela e bem cuidada estrutura iconográfica. Dezenas de gráficos, mapas, tabelas, ilustrações e fotografias coloridas e em preto e branco tornam o texto muito mais acessível ao leitor. Em especial, as ilustrações de Anne Leaver reconstituindo as atividades da profetisa Veleda (p. 117) e do uso de runas entre os germanos antigos (p. 123), ambas descritas por Tácito, foram bem pesquisadas.

A obra é recomendável não apenas aos interessados em história da religião e da magia na Antiguidade e Idade Média. É um valioso instrumento reflexivo para os pesquisadores interessados na documentação arqueológica enquanto reflexo de práticas, ideologias e simbolismos sócio-culturais. Neste sentido, a Arqueologia não se torna excludente do conhecimento produzido em outras áreas das ciências humanas, mas cria a possibilidade de uma interação entre as várias vias de interpretação do passado. Investigando o tema do xamanismo dos remanescentes pré-históricos à literatura de origem Celta, Miranda e Stephen Aldhouse-Green também tornam possível o diálogo interdisciplinar, algo muito necessário aos atuais estudos acadêmicos em nosso país.

Notas

1. Um exemplo do recente interesse arqueológico pelos estudos xamânicos: Price (2001; 2004: 109-126).

2. Sobre o xamanismo em geral e sua relação com as religiosidade e mitologias da Europa pré-cristã, conferir a sistematização de alguns debates críticos recentes (como limites metodológicos e conceituais de abordagem, além da questão da construção discursiva da academia), especialmente os vinculados à Antropologia e história da religião: Stuckard (2005: 123-128). Para recentes discussões sobre o xamanismo urbano no Brasil e suas implicações teórico-metodológicas, verificar: Magnani (1999: 113- 140).

3. Para um debate clássico sobre esta perspectiva, conferir: Eliade 1998 (originalmente escrito durante os anos 1950).

4. O historiador Carlo Ginzburg demonstra a sobrevivência folclórica de mitos e símbolos de origem xamânica euro-asiáticas em plena Idade Média, que constituíram a base das imagens sobre bruxaria e o fenômeno imaginário do sabá das bruxas: “um único esquema mítico foi retomado e adaptado em sociedades muito diferentes entre si, do ponto de vista ecológico, econômico e social” Ginzburg (2001: 162).

5. Para um debate sobre o xamanismo entre os germanos, especialmente na Escandinávia da Era Viking, verificar: Schnurbein (2003: 116-138); Langer (2004: 98-102).

6. Para o historiador francês Christian-J Guyonvarc’h (1997: 218-219) é um erro associar o xamanismo aos Celtas, citando como reforço a esse posicionamento o clássico de Mircea Eliade, Le chamanisme et les techniques archaiques de l’extase, 1951. Porém, constatamos que neste referido livro (Eliade 1998: 416- 417), o autor cita algumas narrativas confirmando mitos e ritos de caráter extático, portanto xamânicos, entre os Celtas. Também o historiador italiano Carlo Ginzburg, em sua formidável obra sobre mitos medievais, faz um detalhado levantamento de diversas fontes confirmando o xamanismo céltico: Ginzburg 2001: 111-112, 115-118, 121-123, 128, 191-193.

7. Vários acadêmicos atuais acabam perpetuando fantasias, anacronismos e interpretações equivocadas em se tratando de temas relacionados com a mulher nas sociedades antigas, especialmente a céltica. Um dos mais correntes destes erros é o vínculo com a utopia do matriarcado: “O dragão pagão é antes de tudo um símbolo de poder; símbolo da mulher que já possuiu um lugar social garantido pelo matriarcado céltico em épocas remotas” (Rocha, 2003). Em uma perspectiva ainda mais equivocada, a pesquisadora canadense Manon Dufour (Mestre em Ciências da Religião pela Universidade de Quebec) analisou os supostos aspectos sacerdotais da mulher celta antigo-medieval por meio da obra literária contemporânea As Brumas de Avalon, além de também defender uma feminilidade sagrada e o matriarcado entre os Celtas, mesclando as teorias de tripartição de Dumézil com um referencial feminista radical e o simbolismo dos arquétipos (cf. Dufour 1999: 5-21). Para um referencial da construção da utopia do matriarcado entre o academismo oitocentista e sua inexistência de um ponto de vista arqueoantropológico para qualquer período da História, verificar a sistematização de Georgoudi (1990: 569-590, 2007: 24-27).

8. A respeito do druidismo entre os Celtas, ver: Lupi 2004: 70-79.

Referências

DUFOUR, Manon B. L’existence de la druidesse: une perception renouvelée du concept de féminité en Occdent. Recherches féministes 12 (2), 1999, pp. 5-21.

ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (originalmente escrito durante os anos 1950).

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003.

GEORGOUDI, Stella. Bachofen, o matriarcado e a Antiguidade: reflexões sobre a criação de um mito. In: DUBY, Georges & PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente, vol. 1. Porto: Edições Afrontamento, 1990. pp. 569-590.

_____ L’invention d’un mythe: le matriarcat. Les collections de L’Histoire 34, 2007, pp. 24-27.

GINZBURG, Carlo. História noturna: a origem do sabá. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

GUYONVARC’H, Christian-J. Magie, medicine et divination chez les Celtes. Paris: Payot, 1997.

LANGER, Johnni. Poder feminino, poder mágico. Brathair 4 (1), 2004, pp. 98-102. Disponível em: http://www.brathair.com/Revista/N7/review_magia_seid.pdf Acessado em 13 de maio de 2007.

LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-79. Disponível em: http://www.brathair.com/Revista/N7/druidas.pdf Acessado em 02 de maio de 2007.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. O xamanismo urbano e a religiosidade contemporânea. Religião e Sociedade 20 (2), 1999, pp. 113-140.

PRICE, Neil (ed.). The archaeology of shamanism. London: Routledge, 2001.

_____ The archaeology of seiðr: circumpolar traditions in Viking pre-Christian religion. Brathair 4 (2), 2004, pp. 109-126. Disponível em: http://www.brathair.com/Revista/N8/archaeology_seidr.pdf Acessado em 02 de maio de 2007.

ROCHA, Fábio Libório. A bruxa, a serpente, e as fadas: a discriminação feminina e o conceito de maravilhoso na Europa Medieval. Monografias.com, 2003. Disponível em: http://br.monografias.com/trabalhos/discriminacao-feminina/discriminacaofeminina.shtml Acessado em 04 de junho de 2007.

SCHNURBEIN, Stefanie V. Shamanism in the Old Norse tradition: a theory between ideological camps. History of Religions 43 (2), 2003, pp. 116-138.

STUCKARD, Kocku von. Constructions, normativities, identities: recent studies on shamanism and neo-shamanism. Religious Studies Review 31 (3/4), 2005, pp. 123- 128.

Luciana de Campos – Professora Mestra. Doutoranda em Letras UNESP. E-mail: [email protected]

Johnni Langer – Pós-doutor em História pela USP bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected]


ALDHOUSE-GREEN, Miranda; ALDHOUSE-GREEN, Stephen. The quest for the shaman: shape-shifters, sorcerers and spirithealers of Ancient Europe. London: Thames and Hudson, 2005. Resenha de: CAMPOS, Luciana de; LANGER, Johnni. O Xamanismo do Paleolítico aos Celtas. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.2, p. 164-168, 2007. Acessar publicação original [DR]

A lenda de diamante: Sete lendas do mundo celta | Edmond Baily

A tradução de obras celtológicas, tanto de estudos acadêmicos quanto de fontes históricas e literárias, sempre são bem-vindas, pois infelizmente os pesquisadores brasileiros deparam-se com a dificuldade de encontrar tais obras em língua materna nas estantes das bibliotecas e livrarias. Mas o que percebemos é que há um interesse do mercado editorial em publicar obras antigas que, na maioria das vezes, trazem representações equivocadas a respeito dos Celtas, mas que podem fazer grande sucesso apelativo com o público. A tradução de A lenda de diamante, do francês Edmond Bailly, vem justamente de encontro a esse propósito.

A obra apresenta sete narrativas – as sete lendas – e um capítulo intitulado “Notas e esclarecimentos”, onde são arroladas explicações tanto de termos que aparecem nas narrativas como “consciência”, “eternidade das almas”, “religião”, entre outras como também de termos diretamente ligados à cultura celta: “druidismo”, “Ogham” e “vates”. Muitas dessas definições estão permeadas de idéias esotéricas, espíritas e algumas advindas da celtomania francesa dos séculos XVIII e XIX.

Publicada pela primeira vez na França em 1909 (La légend de diamant), quando a Doutrina Espírita já estava consolidada, o livro apresenta a sociedade celta e, em particular os Druidas como monoteístas, preocupados com o “bem da humanidade” e em viverem única e exclusivamente para realizar a vontade do Pai Celestial. Essas construções são fictícias e não correspondem às descrições dos druidas feitas por autores clássicos como Júlio César, Cícero e Plínio, para citar alguns.[1] Essas idealizações, tanto dos celtas, como dos druidas presentes na obra, vinham de encontro às intenções de um determinado grupo que, procurava projetar no passado, suas concepções de mundo, de vida, de religião e de fé. A França por fazer uma exaltação ao seu passado gaulês e, por vezes, buscar ali inspiração para o seu forte nacionalismo, foi o cenário perfeito para que florescessem obras como A lenda de Diamante.

A primeira lenda “O encantamento da harpa” apresenta logo no terceiro parágrafo um equívoco quanto ao panteão celta. Há a menção da deusa do mundo inferior Hela, que pertence ao panteão escandinavo! Os celtas não possuíam divindades guardiãs dos mundos subterrâneos. Esse equívoco cometido pelo autor e por outros autores do mesmo período deve-se à ausência de conhecimentos e de uma pesquisa mais aprofundada sobre os mitos e o panteão celta que, infelizmente ainda não existia no final do século XIX e início do XX,[2]

e reflete parte das fantasias que, lamentavelmente ainda povoam o imaginário contemporâneo.

A terceira narrativa “O único amor” traz a estória de uma desilusão amorosa e dos transtornos ocasionados por ela. A jovem Gwennola, filha de uma grande “colar de ouro” – essa é denominação que os grandes chefes e guerreiros recebem nas narrativas de Bailly – tem o seu amor recusado por Yvor um exímio harpista. Com a recusa de Yvor em aceitar Gwennola como esposa, é desencadeada uma terrível guerra entre os demais pretendentes e a moça é obrigada a vagar sem rumo até encontrar Niod, que lhe mostra uma perspectiva: ela deve deixar o orgulho e o egoísmo e sair pelo mundo levando alento, conforto e cura a todos que necessitarem. Seguindo as ordens de Niod, Gwennola parte e, por onde passa, não deixa de oferecer ajuda a quem necessita. Passa então a ser conhecida como a “viúva virgem”. Todos esses elementos contidos na narrativa estão repletos de ensinamentos cristãos onde é preciso sofrer para conquistar as glórias eternas. Há uma passagem já no final da narrativa que reflete não só os preceitos cristãos, mas também a crença em uma reencarnação evolucionista como meio de purificação e elevação do espírito:

“- Levante-se, minha irmã bem-amada. E não perca a confiança, sua grandeza á superior à minha, pois lhe foi dado se humilhar e se arrepender. Doravante, você não estará mais sujeita à servidão dos sentidos, embora sua libertação ainda não seja completa, pois você recaiu no Abred de Necessidade e está exposta ao Mal e à Morte. Será preciso que você renasça ainda duas vezes, nesse mundo de dor, nessa mesma pátria da qual a faço protetora. Duas vezes ainda o artesão do orgulho estenderá para você os frutos envenenados de seu pomar. Duas vezes ainda você será a carne para o holocausto. Então, eu a levarei, finalmente liberta, para a luz da morada eterna de nossa perpétua felicidade!…” (Bailly 2006:52).

Nesta mesma narrativa há a menção aos eubages que, são descritos como uma “espécie de adivinho da antiga Gália. Hierarquicamente abaixo dos Druidas, encarregava-se da parte externa dos cultos” (p. 46). Segundo autores clássicos latinos como Diodoro, explica que o vate realizaria os sacrifícios (humanos, por exemplo) e interpretaria os augúrios. Mas, essa função também é atribuída aos druidas. Na verdade, o vate poderia estar numa hierarquia inferior ao druida. Na antiga Irlanda, o ensino máximo era reservado à formação em druida, portanto, o vate/eubage seria responsável pelo ofício do sacrifício, enquanto o druida teria funções de cunho mais teológico/filosófico, e seria o responsável pela doutrina e interpretaria os sacrifícios. Na verdade, ambas as funções se confundem, pois druida não deixa de ser um termo geral. Essa nota da tradução merecia um cuidado maior na sua elaboração para elucidar com mais clareza o leitor que pode não estar familiarizado com as terminologias da religiosidade celta.

Na narrativa “Os do Carvalho” encontramos a descrição de uma legião romana tentando a golpes de machado derrubar um grande carvalho sagrado. Para tentar impedir tal ato os druidas permanecem nos galhos da árvore recitando as tríades e os demais ensinamentos. Os sacerdotes são apresentados ao leitor como homens benevolentes que estão sendo vítimas da intolerância romana que procura não só exterminar sua religião, mas também todo o seu conhecimento. O desfecho da narrativa mostra a redenção dos druidas em um sacrifício:

“Quando o sacrifício foi consumado, quando vítimas e algozes dormiam, quietos, na reconciliação do sono da morte, as almas dos Do Carvalho voaram, puras e santas, sobre as asas impetuosas da fogosa cotovia. E enquanto os eleitos de Gwynfyd saldavam a feliz libertação de seus irmãos bem-aventurados, aqui embaixo, maravilhosas rosas de cor púrpura desabrochavam sobre as brancas túnicas dos sacrificados, chamando os Da Terra para a comunhão de Sabedoria e de Amor!” (p. 118).

Essa representação dos druidas lembra em muito o martírio sofrido por muitos cristãos que, por defenderem a sua fé, morreram assim como os druidas nas mãos dos romanos. Percebe-se claramente um juízo de valor do autor onde apresenta os druidas como homens bons e puros e apresentados como os eleitos de Deus e, os romanos como vilões que, tinham como missão exterminar os escolhidos e, que por isso mesmo eram severamente punidos. Uma visão maniqueísta de celtas e de romanos.

A última narrativa “Os do Awen” traz uma personagem muito conhecida das estórias arturianas: Merlin. Este é apresentado como um sábio e talentoso bardo que, em companhia de mais outros dois igualmente geniais travam uma disputatio com o Demônio, o artesão de todos os males. Enquanto há o embate, o próprio Jesus Cristo assiste a tudo e, glorioso no final defende e acolhe os três bardos como novos emissários da boa nova. Ao colocar o Cristo como personagem de uma narrativa de suposta origem celta, o autor procura conceder aos druidas um perfil cristão. Essa construção anacrônica deste povo como precursor do cristianismo muito tempo antes deste surgir, faz com que alguns pesquisadores sejam adeptos do que convencionou-se denominar como “cristianismo druídico”.[3] Uma fantasia que procura conferir aos druidas uma imagem de pureza e benevolência, para tentar desconstruir a imagem descrita nas fontes clássicas como executores de sacrifícios humanos e incitadores de guerra. Infelizmente essa representação dos druidas é ainda apresentada em muitos cursos e livros esotéricos e, por mais que as pesquisas arqueológicas, históricas e literárias apresentem uma visão contrária, ainda há resistência em aceitá-la. E, essa resistência muitas vezes tem sido um grande entrave para uma divulgação de pesquisas sérias sobre os celtas. Além essas fantasias há outras como a das avós-druidas, que nada mais são do que invenções de ditos pesquisadores que baseiam suas investigações em uma visão distorcida e envolta em brumas das fontes clássicas, aliadas é claro, à sua relutância em admitir que seus argumentos, muitas vezes, nada mais são do que frutos de sua fértil imaginação.

Com relação ao pensamento de Bailly, esse tem fortes raízes na celtomania e no esoterismo francês. Durante o final do século XVIII, diversas publicações literárias popularizaram o interesse pela língua e religiosidade dos antigos habitantes da Gália. E, apesar do sucesso das coleções de antiquários pela Europa, a Arqueologia desta época ainda era muito insipiente em termos metodológicos, popularizando várias fantasias relacionadas aos Celtas: os grandes megálitos (como Carnac e Stonehenge) foram considerados de origem druídica. O sucesso destas hipóteses arqueológicas vão se somar a uma perspectiva nacionalista pela França, e regionalista na Grande Bretanha, especialmente no início do Oitocentos, onde a memória a respeito dos gauleses foi cristalizada sob a forma de culto do passado (Launay 1978: 11-18). Um dos mais emblemáticos livros desta tendência é Monuments celtiques, 1805, de Jacques Cambry (Cunliffe 1999: 12). Mas essa valorização extremada de um passado idealizado também teve diversos momentos anacrônicos, e um dos mais contundentes foi a idéia fantasiosa entre os escritores da primeira metade do século XIX de que os druidas e Celtas foram adoradores de uma única divindade (Ellis 2001: 132), nas palavras do próprio Bailly: “(…) Druidismo, nada esteve mais ausente dessa grande crença que o Politeísmo” (p. 144).

Em particular, um texto do escritor M. Édouard Fourmier obteve um certo êxito nos meios intelectuais franceses. Publicado originalmente na revista Siècle em 1847, e posteriormente num livro de 1859 (Le vieux neuf), o texto seria uma espécie de registro folclórico de antigas tradições dos bardos da Gália, mas na realidade possuía diversos anacronismos: monoteísmo, crença na reencarnação evolucionista, dogma dos druidas para com a caridade humana e divina, entre outros aspectos. O mesmo texto de Fourmier foi publicado no primeiro ano da Revista Espírita, de 1858, periódico editado por Allan Kardec, o codificador do Espiritismo. Kardec havia se interessado pelo fenômeno do mesmerismo e das mesas girantes a partir de 1854, e adotado esse nome que teria origem em uma suposta vida passada que teve como druida na Gália. Seu túmulo, datado de 1869, foi construído imitando um dólmen. As influências da celtomania no Espiritismo Kardecista ainda são objetos de poucos estudos, mas as conexões existiram.[4] O druida, neste caso, seria uma espécie de antecipador do modelo de pureza de conduta e dos valores morais idealizados para os religiosos do Oitocentos, transfigurados em um passado nacional de cunho heróico (a Gália). O fato é que a idéia de um monoteísmo druídico sobreviveu tanto no Espiritismo quanto no esoterismo francês. No primeiro caso, o exemplo mais famoso é o livro de Leon Denis, O gênio céltico e o mundo invisível, publicado em 1927.

Outra forte influência no livro de Bailly advém do esoterismo, a exemplo da citação: “herança dos antepassados, o Arquidruida que, ele próprio, havia recebido do grande sacerdote atlante” (p. 9). A imagem dos druidas como descendentes dos atlantes foi criada pela teosofista Helena Blavatsky, especialmente em A doutrina secreta, de 1888.[5] A obra de Bailly, desta maneira, foi influenciada diretamente pelas idéias existentes desde Fourmier, mas radicalizou ainda mais os elementos monoteístas, originando o que podemos considerar de druidismo cristão (ou cristianismo druídico), o ápice do anacronismo em escritores populares da França. Muitas obras esotéricas modernas ainda perpetuam fantasias e anacronismos advindos dos séculos passados,[6] prejudicando uma popularização de idéias corretas sobre os Celtas.

As editoras brasileiras, ao invés de publicarem qualquer material sem nenhum critério, poderiam traduzir obras clássicas ou de investigadores renomados, a exemplo das dezenas de livros de Miranda Green, ainda inéditos em nosso país. Apesar deste panorama editorial, os estudos acadêmicos sobre Celtas no Brasil estão aumentando qualitativa e quantitativamente, deixando cair por terra algumas afirmações preconceituosas daqueles que insistem em afirmar que os estudos celtas se constituem como mero apêndice dos estudos clássicos, germânicos e medievais. A busca por informações de maior qualidade pelo público leigo já é um sinal dessa transformação.

AGRADECIMENTOS: Ao professor Fillipo Olivieri, pelas informações preciosas sobre os Druidas e a Gália.

Notas

1. Para referenciais bibliográficos e acadêmicos sobre o druidismo, consultar: Lupi 2004: 70-79.

2. “Mas, pouco mais bem informados do que os antigos, os amantes do celtismo perpetuam as velhas confusões. É preciso citar esta frase de Malo Corret de La Tour d’Auvergne, nativo de Carhaix, extraída de seu ‘Origens Gaulesas’, aparecido no ano da ponte de Lodi, onde ele se mostra menos bom lingüista do que intrépido granadeiro: ‘Vários dos hinos gauleses… estão contidos num poema erse, chamo a Edda… Esse monumento rúnico… seria próprio para nos esclarecer sobre os Celtas…’ Ele visivelmente ignorava que a palavra ‘erse’ designa o dialeto gaélico da Escócia, que a Edda é uma coletânea de lendas escandinavas e que as runas constituem o antigo alfabeto germânico”. Launay 1978: 12.

3. O termo é muito popular em textos espanhóis, para contextualizar o cristianismo praticado em povos germânicos e celtas logo após a conversão: http://www.nuevorden.net/r_204.html; http://www.elamigobuster.c.telefonica.net/aurelius.htm Acessados em 18 de junho de 2007. 4 Em termos sócio-históricos, o Espiritismo kardecista foi uma influência de idéias do mesmerismo, celtomania, esoterismo, cristianismo e ciência popular do século XIX. Para algumas reflexões sobre as origens do Espiritismo, especialmente as influências anglo-americanas na formação das novas idéias religiosas e funerárias da França, consultar Cuchet 2007: 74-90.

5. Blavatsky rompeu com algumas tradições do período, por exemplo, creditando os monumentos megalíticos diretamente aos atlantes e não aos druidas e Celtas (Blavatsky 1888: vol. 2: 756). Outra idéia inovadora da teósofa no imaginário da época foi a de que os atlantes possuíam uma tecnologia muito sofisticada, como o uso de aeroplanos e inventos motorizados, uma idéia muito utilizada depois por videntes e escritores. Mas uma imagem sobre os druidas permaneceu: a de sacerdotes com alto grau de moralidade e ética. Para considerações acadêmicas sobre as relações do atlantismo com o esoterismo oitocentista consultar: Vivante & Imbelloni 1939: 175-186.

6. A exemplo do escritor Cláudio Crow Quintino, que entre outras considerações, perpetua representações idílicas e moralistas da sociedade Celta e do druidismo, herdeiras do esoterismo oitocentista, mas com alguns novos elementos da literatura New Age pós-Brumas de Avalon: “(…) a sociedade celta (…) vivia em harmonia com o mundo à sua volta (…) Entrevê-se nesse procedimento a elevação de consciência ecológica dos celtas (…) uma sociedade em que tanto homens quanto mulheres desfrutavam dos mesmos direitos e prerrogativas (…) sem Roma, teriam os celtas formado um império e se corrompido da mesma forma? É provável (…) Os celtas (…) não eram bárbaros iletrados, tampouco apreciadores de sanguinários sacrifícios humanos”. Quintino 2002: 23, 239, 240, 241; “Ser celta é viver intensamente, é vencer desafios, é cantar quando um ente querido morre (…) Ser celta é, no fim das contas, ser humano”. http://druidismo.com.br/m_ensaios-secelta.htm Acessado em 21 de junho de 2007.

Referências

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Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin | Edward Rutherfurd

O romance escrito pelo autor inglês radicado há mais de dez anos nas terras irlandesas – Edward Rutherfurd que, ao longo de suas quase setecentas páginas procura recontar a história da formação tanto de Dublin como da Irlanda, possui certa base de pesquisa histórica, alguma atualização nas discussões acadêmicas e historiográficas, mas, preservou em sua narrativa, imagens estereotipadas e temas polêmicos.

As duas primeiras partes do romance, Dubh Linn e Tara, envolvem o passado céltico da ilha, enfatizando os aspectos religiosos e sociais. A religiosidade pagã é mostrada com respeito e reverência, porém, com certo referencial da literatura esotérica atual, possuindo pouca ou nenhuma semelhança com as narrativas míticas irlandesas, embora conserve alguns nomes próprios que aparecem em textos como “Deidre” e “Noise”, por exemplo. Na questão do sacerdócio, o autor, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor de bibliografia especializada – ao descrever os druidas portando roupas e acessórios de pássaros, portanto realizando práticas xamânicas (ver AldhouseGreen, 2005: 195-197) em outras passagens da obra acaba cometendo erros (a posição de druida era hereditária, p. 30) ou assumindo posições equivocadas (as druidesas tendo o mesmo poder dos druidas e a mesma tonsura, p. 84, ou mesmo tendo um poder maior que os reis, p. 87).

Sobre polêmicas envolvendo o papel das druidesas ver Ellis (2001: 105-130). Na realidade, em nenhuma sociedade antiga a mulher teve papel religioso predominante em relação ao masculino, sendo essa representação da sacerdotisa amplamente poderosa um referencial anacrônico. Em seu estudo The World of the Druids, Miranda Green apresenta uma análise das fontes clássicas onde são descritas as funções dos druidas. Nessa obra, Green menciona que existiam mulheres sábias que poderiam ser aliadas dos druidas, mas, em hipótese alguma, podem ser consideradas druidesas. O uso da tonsura druídica por mulheres como aparece descrita no romance é uma licença poética do autor que, dentro do universo ficcional tem liberdade para criar, mas jamais pode conferir um caráter verdadeiro a essas criações. Essas descrições parecem estar aliadas ao discurso esotérico atual que procura mostrar que as mulheres eram realmente poderosas e detentoras de um conhecimento que foi perdido e que precisa ser resgatado.

Outras situações envolvendo mulheres também apresentam problemas, como a suposta liberdade feminina em relação à escolha do casamento (p. 42), outro anacronismo muito comum nos escritos contemporâneos e esotéricos sobre os Celtas. Essa liberdade feminina descrita e defendida no romance de Rutherfurd pode ter sido influenciada pelo romance As brumas de Avalon, onde a autora Marion Zimmer Bradley confere às personagens femininas um grande poder de decisão e de autoridade interferindo nas decisões de governantes e reis e subordinando os druidas ao seu comando. Essa visão da mulher é extremamente fantasiosa, pois descreve um poder feminino que nunca existiu, transformando a vida das mulheres radicalmente para melhor, mostrando assim que, no passado, as sociedades realmente eram harmônicas porque viviam sob uma ginecocracia e, tudo se degradou depois que as mulheres foram destituídas. Essa visão equivocada é infelizmente hoje defendida por correntes esotéricas que instigam as mulheres modernas a buscarem àquela liberdade; utopia essa que seria um retrocesso para as mulheres. Essa reivindicação de um grande poder feminino que foi perdido, mas que ainda persiste em alguma regiões, é defendido ferozmente por alguns acadêmicos que insistem em atribuir um poder druídico a algumas mulheres da Armórica atual. Conhecidas como “avós druidas”, essas mulheres seriam as detentoras e guardiãs de todo o saber que fora extinto com a chegada do cristianismo. O mais apropriado a dizer dessas mulheres é que elas não são os receptáculos do conhecimento advindo dos druidas, mas sim guardiãs das tradições folclóricas que podem sim ter reminiscências da cultura celta. Afirmações como estas partindo de acadêmicos estão travestidas de uma militância semelhante ao discurso esotérico que querem provar a todo custo que a cultura celta ainda se mantém pura e viva como nos séculos que antecederam a cristianização e que cabe às mulheres estabelecer esse resgate no presente. Teses como essas figuram muito bem no campo da ficção, não devendo em hipótese alguma ser levadas a sério no campo da investigação científica comprometida com a análise séria e criteriosa das fontes.

O terceiro capítulo, São Patrício, envolve o processo de cristianização da região. Neste momento, o autor mostra-se bem atualizado, demonstrando que o conhecimento sobre este personagem histórico é controverso e muito polêmico. Rutherfurd constrói a narrativa seguindo a atual concepção de que Patrício não teria sido o primeiro evangelizador da Irlanda, sendo antecedido por várias comunidades e até bispos, que após sua morte foram transformados em seus discípulos. Ou seja, uma construção hagiográfica dos fatos históricos (p. 220). A estratégia de evangelização adotada, primeiro converter os druidas e membros importantes para depois o restante das comunidades, também está presente no romance. Mesmo o intenso conflito entre mosteiros rivais foi citado (p. 202), demonstrando que o escritor não adotou nenhuma concepção idealista da fé cristã. No romance há uma perfeita integração entre cristão e pagãos, principalmente por parte dos druidas convertidos que aceitam a nova religião de forma pacífica encontrando pontos em comum com a antiga crença e até exaltando o cristianismo como a verdadeira religião e que só ela é capaz de conduzir os homens ao único criador. Uma passagem interessante da narrativa apresenta um diálogo entre a personagem Deirdre e o druida convertido Larine, onde este relata à sua interlocutora que “(…) a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano”. (p.166). Essa afirmação do personagem demonstra o cristianismo como possuidor de uma herança do mundo clássico, e, aqueles que se convertem têm acesso a toda verdade humana. Por essa passagem é possível perceber uma clara exaltação ao cristianismo e da figura do bispo Patrício em detrimento da antiga religião e do conhecimento druídico.

O processo de invasão e colonização dos Vikings foi desenvolvido nos capítulos 4 e 5. O contexto social foi bem descrito, mostrando tanto os conflitos entre noruegueses e irlandeses, quanto suas interações e casamentos interétnicos. A descrição da famosa batalha de Clontarf, envolvendo o também famoso líder Brian Boru, ao contrário, foi pouco explorada em termos de narrativa militar, sendo por isso muito decepcionante.

Os piores momentos da obra foram a permanência de dois estereótipos. O primeiro é referente aos Celtas usarem um crânio como taça para brinde em comemorações e festas (p. 34). Trata-se de uma imagem literária fantasiosa, criada pelos gregos e perpetuada pelo medievo em diante (Langer 2003: 32). O segundo estereótipo, mais grave ainda, é a caracterização dos guerreiros Vikings portando elmos com chifres (p. 191). Uma fantasia criada e popularizada no Oitocentos, totalmente desmentida pela pesquisa acadêmica (Langer 2002: 07).

O romance de Rutherfurd possui muito mais qualidades que as obras do escritor brasileiro Orlando Paes Filho (como a série Angus), que deixa explícito em suas linhas uma profunda militância cristã mostrando desprezo por outras crenças que não estejam subordinadas à Igreja Católica, fato esse que compromete em muito a narrativa. Desagradando àqueles que, admiradores da literatura de aventura, não professam a mesma religião defendida com tanta veemência nos romances de Paes Filho, que jamais pode ser comparado a outros romances históricos como os escritos por Margareth Yourcenar, Bernard Cornwell ou José Saramago, deve este livro ser lido com critério.[1]

Nota

1. Esta resenha contou com a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer, especialmente nos capítulos 4 e 5, referentes aos Vikings na história da Irlanda.

Referências

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Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: [email protected]


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Thor: filho de Asgard | Geraldo Cantarino

Essa fantástica ilha do Brasil, tão estreitamente vinculada a toda mitologia de São Brandão, pertence, com esta à antiga tradição céltica preservada até os dias de hoje. Richard Henning.

Nos bancos escolares, aprendemos que o nome do nosso país, Brasil advém da abundância de determinada madeira existente no litoral, chamada pau-brasil onde se extraia um corante vermelho de grande valor comercial na Europa que entrava no Renascimento, mas ainda respirava ares medievais. Este corante púrpura, como nos esclarece Sérgio Buarque de Holanda na clássica obra da historiografia brasileira Visão do Paraíso, “desde o século IX era conhecido no comércio árabe e italiano sob os nomes de Brasil e verzino” (Holanda, 1994: 173). Desde o Oitocentos, alguns estudos já demonstravam que o nome Brasil não proveio da cor da madeira em brasa, mas teria raízes mais antigas, provenientes de mitos celtas. Constante na cartografia européia dos séculos XIII ao XVI, a fabulosa ilha de Hy-Brazil possivelmente foi inspiração para que o imaginário português preterisse esse nome aos oficiais Vera e Santa Cruz, de caráter mais político e religioso: “primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado” (Souza, 2004: 35). As denominações burocráticas cederam lugar à terminologia mítica, apesar de posteriormente alguns autores coloniais acreditarem que este nome teria advindo da madeira homônima, um engano que se perpetua até nossos dias. Durante os anos 1940 a 1960, alguns estudos historiográficos fizeram levantamentos preliminares e algumas conclusões sobre as raízes deste passado filológico (a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda e Gustavo Barroso), acabaram não criando outras pesquisas ou influenciando novas perspectivas. Em 2000, em um pequeno verbete para o livro Dicionário do Brasil colonial, o historiador Ronaldo Vainfas afirmou que o vocábulo Brasil teria provindo do imaginário europeu pré-cabralino e que teria sido utilizado pelos portugueses como mito geopolítico. Desta maneira, as referências sobre o tema nunca passaram de pequenas citações ou estudos rápidos, não originando dissertações ou teses, nem mesmo artigos mais detalhados ou a busca de fontes confiáveis nos arquivos europeus.

É neste contexto que foi publicado o livro Uma ilha chamada Brasil, do jornalista Gerlado Cantarino. Aproveitando-se da falta de interesse genérico dos acadêmicos e dentro de uma perspectiva estritamente comercial, Cantarino publicou uma obra que peca pela linguagem extremamente coloquial, pela falta de seriedade documental e pelo grande apelo esotérico e mesmo fantasioso de seu autor.2 Mitos tradicionais do Ocidente, como a Atlântida, a presença de fenícios e vikings na América do Sul3 , entre outros, foram tratados como fatos ou possibilidades, em detrimento da “verdade oficial” mantida pela academia, num tom verdadeiramente conspiratório especialmente pelos antigos escritores de 1850 a 1940. Uma ideologia típica desde o século XIX: tentar demonstrar o verdadeiro passado nacional, originando o que muitos denominam de “Arqueologia Fantástica” ou “Neodifusionismo”, teoria que procurou demonstrar o contato transoceânico entre os europeus e americanos antes das viagens de Colombo e Cabral. Reciclando antigas narrativas de autores coloniais, estes teóricos afirmavam que diversos povos, entre eles hebreus, africanos, escandinavos e fenícios, haviam estado no Brasil e América do Sul há vários séculos. Para isso baseavam-se em supostas inscrições misteriosas encontradas nas florestas ou sertões (na realidade, arte pré-histórica dos indígenas) ou enviadas para os grandes centros (como as famosas inscrições fenícias, que com o tempo provaram ser apenas falsificações)4. Com o início do século XX, todas estas teorias demonstraram ser apenas idéias fantasiosas, sem comprovações arqueológicas e carregadas de preconceito, racismo e intolerância pelo verdadeiro passado brasileiro, o povoamento indígena. A citação de Cantarino do livro Antiga História do Brasil, de Ludwig Schwennhagen – onde afirmava que o sítio de “7 Cidades” no Piauí seria o vestígio de uma antiga cidade fenícia, na realidade, formações geológicas naturais – beira simplesmente o ridículo (Cantarino, 2005: 85-86). A reiteração da famosa pedra da Paraíba (2005: 92-93), supostamente encontrada em 1872, já foi estudada por vários especialistas, tanto epigrafistas quanto historiadores, que demonstraram ser uma fraude realizada no Brasil Imperial. Até nossos dias, existem diversos escritores, quadrinistas e roteiristas de cinema que empregam essas idéias neodifusionistas, procurando convencer o grande público de que este passado mítico realmente existiu. Infelizmente, o jornalista Geraldo Cantarino perpetua esse procedimento, criando obstáculos para que um estudo realmente sério e acadêmico possa ser efetuado sobre as origens celto-irlandesas do nome do nosso país, esse sim passível de estudo e que infelizmente foi tema apenas de abordagens parciais. O caminho para pesquisas futuras está aberto, mas resta o cuidado para os investigadores não serem atraídos para referências enganadoras e sem qualidade, a exemplo do livro Uma ilha chamada Brasil.

O jornalista Geraldo Cantarino se dispôs a desenvolver uma extensa pesquisa sobre as origens celtas do nome Brasil e, como autor da pós-modernidade tanto suas leituras e pesquisas mereciam ser mais densas e profundas como exige o período em questão – há menções à obra de autores consagrados, como Capistrano de Abreu e Gustavo Barroso – e não se fixar em autores praticamente desconhecidos e a panfletos como citados no primeiro capítulo da obra: “(…) e encontrei-me, outra vez, com aunt Caitlín que havia feito uma cópia do material distribuído na palestra de Tralee” (Cantarino, 2004: 19) esquecendo-se de pesquisas já consolidadas como a realizada nos anos 1950 por Sérgio Buarque de Holanda e que se mantém atuais.

Logo no prefácio de Uma ilha chamada Brasil, encontramos alguns problemas que denotam o desconhecimento do autor ao tratar do tema. Na página 13, o autor escreve: “(…)observatórios lunares abandonados que, embora inativos, repousam em isolamento esplêndido ao longo do litoral ocidental celta” (Cantarino, 2004: 13 – grifo nosso). Há aqui uma informação equivocada, que o leitor desconhecendo que os celtas foram povos que habitavam a Europa desde a Ásia Menor (Galácia) até a Irlanda, podem acreditar que só este último país foi um reduto celta, como, atualmente muito esotéricos querem acreditar e, pior ainda, difundir essa falsa idéia. Um outro equívoco ainda relacionado à Irlanda diz que o Brasil deve seu nome à Irlanda (Cantarino, 2004: 14). Existe uma confusão feita pelo autor, pois este nome não está associado ao folclore irlandês, mas sim aos celtas que originalmente habitaram aquele país. Mais grave ainda é observar que estas informações constantes no prefácio da obra foram escritas por um autor escocês!

A narrativa de Cantarino vai se construindo de forma extremamente informal e jocosa utilizando a primeira pessoa do singular, transparecendo que o autor está escrevendo um diário e tratando o leitor como um infante recém alfabetizado, que descobre o prazer de descobrir um novo texto. Há ainda um tom “memorialista” na narrativa extremamente parcial e não condizente com a linguagem jornalística que o autor parece quer empregar em sua obra. Ainda no primeiro capítulo há uma menção aos irlandeses que durante o século XIX migraram para o Brasil fugindo da grande fome. Este episódio foi tema de um artigo intitulado “Cego furor homicida”, escrito pelo editor Christopher Burden e publicado na revista Nossa História. O artigo em questão é muito mais completo e elucidativo do que a descrição de Cantarino e apresenta qual foi a verdadeira razão da presença irlandesa nas terras brasileiras durante o Primeiro Império.

A narrativa que em primeira instância propunha-se a apresentar aos leitores uma abordagem séria das origens celto-irlandesas do nome Brasil vai-se construindo como obra de ficção e não como narrativa jornalística comprometida com a realidade e nem como um relato histórico sério já que o autor utiliza-se de construções condizentes com as narrativas ficcionais:

“Zarpei rumo ao desconhecido. (…) Desviei da correnteza por onde passa a história oficial para percorrer antigos atalhos e rotas marginais, inclusive aquelas por onde fluem as águas mágicas do realismo fantástico. Pelo caminho, fadas, semideuses e figuras mitológicas surgiram na minha frente em aparições virtuais” (Cantarino: 2004, 37).

A jocosidade utilizada pelo autor para tratar de temas que são fontes de estudos como o realismo fantástico e a mitologia de pesquisadores como Fraçoise Le Roux e Christian Guyonvarc’h que dedicaram suas pesquisas para comporem trabalhos detalhados e extremamente sérios sobre a mitologia celta aqui parecem serem estes temas daqueles que insistem em descobrir uma outra verdade que parece se apresentar somente aos esotéricos. Cantarino, a exemplo da máxima da célebre série de TV dos anos 1990 “Arquivo X”, busca a verdade lá fora e não a aprofunda nas obras sérias dedicadas ao tema e nem apresenta novas perspectivas realmente comprometidas com a cientificidade. A descrição apresentada da ilha de Hy-Brasil não aparece como a de um paraíso, mas sim de um lugar recorrente nas narrativas infantis:

“É a morada escolhida por fadas, dragões e deuses aposentados. Ou, ainda, duendes, gnomos e antigas tribos, quando não mais encontram um lugar para ficar no mundo contemporâneo” (Cantarino, 2004: 43).

Afirmando que Hy-Brasil é o local escolhido pelos “deuses aposentados” o autor parece, mais uma vez caracterizar a ilha mítica como um objeto a ser explorado apenas pela ficção não merecendo ser o foco de estudo de historiadores e mitólogos, por exemplo.

Mas, infelizmente os equívocos do autor não transparecem apenas nas análises e interpretações sobre as origens celtas do nome Brasil, pois também ele transmite ao leitor dados errados sobre pesquisadores quando afirma ser paulista a arqueóloga Niède Guidon (Cantarino, 2004: 73). A pesquisadora em questão é francesa e trabalha no Brasil há muitos anos realizando pesquisas no Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí onde luta bravamente contra as intempéries e os parcos recursos governamentais para manter um dos grandes legados do homem pré-histórico brasileiro.

Uma idiossincrasia cometida pelo autor é denominar celta como raça: “(…) definir o que passou a ser chamado Raça Celta” (Cantarino, 2004: 112). Do ponto de vista da Antropologia moderna, o conceito de raças está ultrapassado, só existe uma raça há cerca de 30 mil anos na Terra, o Homo sapiens sapiens. Os celtas podem ser definidos por um conceito etno-lingüístico, como um povo falante de uma mesma língua indo-européia.

O capítulo seis do livro, intitulado “Significado religioso”, se detém a uma longa descrição de narrativas das viagens de São Brandão e sua busca pelo Paraíso. O autor ao apresentar versões da Navigatio não procura analisá-las em profundidade, apresentando ao leitor as impressões sobre a busca do paraíso de Hy-Brasil que foram construídas por poetas desde a Idade Média até o século XIX. Não há análise ou discussão densa acerca das narrativas destas viagens, somente traduções livres e pequenas conclusões inócuas sobre a busca do paraíso terreal, seja pelo santo ou por aqueles que enveredam na leitura.

Há um capítulo dedicado as representações de Hy-Brasil nas diversas artes como sugere o título “Arte e Literatura” onde o autor mais uma vez apresenta uma relação da várias representações que a busca da ilha paradisíaca recebeu desde da Idade Média até a contemporaneidade. Especificamente em um parágrafo Cantarino traça um paralelo entre a ilha de Avalon que, segundo Jean Markale trata-se de “uma ilha maravilhosa da tradição céltica, uma espécie de terra das bem-aventuranças onde há maçãs que dão frutos o ano todo e que explica seu nome derivado de uma palavra galesa e bretã, aval, maçã” (Markale, 1999: 29). O simbolismo da “Ilha das Maçãs” ou o paraíso celta foi bem analisado no artigo “Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha paradisíaca” de Adriana Zierer. Neste texto, a pesquisadora de estudos célticos faz não só uma análise pormenorizada do simbolismo da maçã nas artes plásticas e na literatura como também as representações de Avalon em diversas narrativas de origem celta e, principalmente no mito arturiano.

O tema das origens celtas do nome Brasil é, ainda, infelizmente pouco explorado por pesquisadores brasileiros, sejam eles historiadores ou críticos literários e, este desinteresse muitas vezes abre precedentes para que diletantes façam pesquisas com qualidade sofrível ou, pior sem qualidade alguma e a divulguem e perpetuem estereótipos e imagens fantasiosas. A obra em questão enquadra-se nesta descrição. Há ainda muito a ser pesquisado tanto sobre as origens celtas do nome da Terra brasilis como das raízes medievais que estão presentes e impregnadas na cultura popular e no cotidiano deste os tempos da colônia e que são constantemente desprezados pelos pesquisadores, que parecem ainda relutar em aceitar que somos fruto de uma mentalidade medieval.

Geraldo Cantarino em sua pesquisa pecou pelo uso excessivo da linguagem coloquial que é inadmissível numa pesquisa mesmo que essa seja de popularização. As descrições tornam a obra ainda mais enfadonha e denotam falta de critério por parte do autor na escolha das suas fontes. Esperamos que os estudantes universitários que ora iniciam suas pesquisas nos estudos celtas (que segundo alguns somente poucos escolhidos merecem realizá-los, o que ao nosso ver é um erro) não se inspirem nesta obra e muito menos a tomem como referência.

Notas

1. A presente resenha recebeu a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer (PD-USP, bolsista da FAPESP). Conceitos e idéias integrantes do texto são de co-autoria do colaborador.

2. Outro autor que recentemente retoma as teorias neo-difusionistas é o explorador norte-americano Jim Woodman, em duas obras: Ancient New World: A Journey Across Medieval América. Xlibris Corporation, 2001 e The ancient inscriptions of Paraguay. Epigraphic Societu, 1989. No primeiro livro (pp. 75-82), o pesquisador analisa o mito da ilha Hy-Brazil e no segundo, supostas inscrições existentes no Paraguai que ele interpreta como sendo de origem Celta. Por sua vez, o francês Jacques de Mahieu interpretava as ditas inscrições como sendo de origem Viking. Na realidade, elas têm origem pré-histórica indígena, sendo, portanto, fantasiosa qualquer outra interpretação. Em uma série de fotografias em um site que atualmente não está mais disponível em conteúdo pela internet (Arthur Franco: A Idade das Luzes e os Megalitos de HyBrasil), o esotérico gaúcho Arthur Franco tentava demonstrar que no Rio Grande do Sul encontravam-se diversos megálitos gigantescos, alguns com até 100 metros de altura, supostamente realizados pelos Celtas em incursões pelo Brasil. Pelo exame nas fotografias, percebemos que se tratavam de formações geológicas naturais, tomadas como artificiais. No Brasil e na América, existem casos de megalitismo, mas de origem indígena com dimensões modestas, sem nenhuma relação com o de origem européia e muito menos Carnac e Stonehenge. Este autor também publicou uma obra de cunho esotérica com conteúdo parcialmente disponível na internet: A idade das luzes. Porto Alegre: Editora Wodan, 1997 (Disponível em: http://www.bibliotecavirtual.pro.br/historia/hebreus4.html Acessado em 20 de setembro de 2006). Outro pesquisador brasileiro que defende a presença Celta no passado brasileiro é Luiz Caldas Tibiriçá, sem nenhuma comprovação científica por parte da comunidade acadêmica. Sobre suas pesquisas ver: http://www.terra.com.br/istoegente/50/testemunha/index.htm . Acessado em 20 de setembro de 2006. A internet ainda disponibiliza vários textos sobre o encontro de inscrições Celtas (ogâmicas) na América, todas sem nenhuma viabilidade científica: Irish in América before Columbus http://www.aislingmagazine.com/aislingmagazine/articles/TAM17/Columbus.html Acessado em 20 de setembro de 2006.

3. Para considerações sobre os Vikings na América do Norte, ver Langer, 2006: 28-30; sobre os navegantes nórdicos no Brasil pré-cabralino, do qual não ocorre nenhuma evidência científica até nossos dias, vide Langer, 2004: 22-25.

4. A respeito da antiga teoria de que navegadores fenícios e hebreus teriam estado no Brasil e do qual não existem comprovações arqueológicas, ver os estudos de Langer, 2002: 87-108; 2003: 75-102. Sobre os conceitos racistas, eurocêntricos e preconceituosos destas antigas teorias, ver Langer, 2001: 222-228.

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YOSHIDA Akira (Aut) et ali, Thor: filho de Asgard (T), Panini Comics (E), LANGER Johnni (Res),  Brathair (Btr), Representações (l), Thor, História em Quadrinhos

Johnni Langer – Pós- doutorando em História pela USP, bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected]


YOSHIDA, Akira et alli. Thor: filho de Asgard. São Paulo: Panini Comics, 2005. Volume 1-12. Resenha de: LANGER, Johnni. As representações do deus Thor nas HQs. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 50-54, 2006. Acesso apenas do link original [DR]

Curso de literatura inglesa | Jorge Luís Borges

Originário de aulas ministradas na Universidade de Buenos Aires durante a década de 1960 [1], o livro ainda mantém um interesse vivo pelas valiosas conclusões que Borges sugere de seus conhecimentos em fontes manuscritas e impressas de línguas germânicas. Os sete primeiros capítulos – ou aulas – referem-se aos períodos da Antigüidade e Idade Média. Neles, o professor explicita sobre as técnicas poéticas, as características e os princípios da literatura dos antigos saxões e dos escandinavos. Também demonstra em suas aulas que o panorama político europeu, especialmente da Inglaterra, foi muito favorecido pelas invasões nórdicas. É justamente neste aspecto que Borges revela muito mais que uma simples admiração por estes povos, identificando as personagens com um passado glorioso e heróico: “Os Vikings talvez tenham sido a gente mais extraordinária entre os germanos da Idade Média. Foram os melhores navegantes da sua época (…) à maneira de muitos escandinavos cultos, não era apenas guerreiro mas, além disso, era poeta” (p. 22).

Simplificadores do moderno idioma inglês, os antigos escandinavos possibilitaram a consolidação do futuro império britânico, segundo as mesmas idéias de Borges (pp.100-102).[2] Essa visão heróica e gloriosa dos bárbaros pode ser percebida pelo espaço concedido à análise dos épicos anglo-saxões, como Beowulf e das sagas islandesas. Para o escritor, o período em que viveram estes aventureiros não era simplesmente uma época de desordem e caos, mas um momento extremamente propício para a formação de estruturas literárias complexas: “uma época bárbara mas que propendia à cultura, que gostava da cultura”(p.20). Assim, podemos incluir os estudos teóricos de Borges como a culminação de um processo de recuperação da imagem do bárbaro que teve início no século XVIII e que foi essencialmente centrada na literatura.

Ao contrário do Renascimento e sua revalorização da cultura clássica, o Setecentos foi marcado pelo ressurgimento dos estudos da literatura dos povos da Europa Setentrional, especialmente os de origem Celta e Germânica [3]. Manuscritos foram traduzidos e publicados nas línguas modernas, obras teóricas surgiram, novos poemas e narrativas foram criadas ao estilo das arcaicas. Esta adaptação e reinterpretação literária esteve atrelada à concepções de fundo nacionalista, tão em voga na época. Os intelectuais, na realidade, estavam preocupados em resgatar valores tais como identidade social e demarcar as origens do que eles então definiam como sendo suas nações. A literatura servia diretamente tanto como marco simbólico desta consciência nacional, como um instrumento de propaganda dos valores antigos que deveriam ser resgatados.

Um caso especialmente estudado por Borges diz respeito ao Ciclo Ossiânico [4]. Durante o século XVIII, a Escócia procurou criar uma identidade diferenciada da Inglaterra (de origem histórica anglo-saxônica), mas que o mesmo fosse alternativa ao passado Celta comum aos irlandeses. James Macpherson [5] foi incumbido de recolher lendas na Escócia, de origem irlandesa mas que foram alteradas e sintetizadas para que sua região tivesse uma identidade nacional própria. O resultado foi a obra Fingal: Ancient Epic Poem in Six Books (1762), que fez grande sucesso em toda a Europa pré romântica. [6] O Ciclo Ossiânico também conhecido como Ciclo de Finn apresenta narrativas supostamente ambientadas no século III d.C. O ciclo de narrativas traz longas composições muito populares entre as gentes simples da Irlanda durante a Idade Média. Essas narrativas de cunho popular em muito se assemelham as narrativas do Ciclo Arturiano ou Bretão [7] compostas a partir do século XII principalmente na França. Esses dois ciclos de narrativas mais se aproximam do que se distanciam pois, além do caráter popular e folclórico de suas narrativas têm em comum as aventuras de suas personagens. Os Fiannas são considerados uma espécie de guarda de elite do grande rei da Irlanda. Entre as suas tarefas estão o recolhimento de impostos e a proteção dos mais fracos. As incumbências dos Fiannas são praticamente as mesmas dos Cavaleiros do Távola Redonda, fiéis servidores do rei Artur. Muitas das aventuras narradas no Ciclo Ossiânico podem ser comparadas com as do Ciclo Arturiano. Acreditamos que a semelhança narrativa mais próxima seja uma aventura vivida pelo próprio Finn, na aventura amorosa intitulada Diarmaid e Grinné. Grinné é uma jovem que vai ser entregue como concubina para o rei Finn mas ela se apaixona por Diarmaid, jovem cavaleiro e fiel servidor de Finn. Sabendo da paixão dos jovens o rei Finn finge que desistiu de manter a jovem como concubina, mas durante uma caçada ele constrói uma armadilha para que Diarmaid morra. Ao perceber a trama de morte inevitável Grinné não consegue avisar seu amado e, ao vê-lo morto deixa-se morrer ao seu lado. Essa “aventura” é o arquétipo da mais conhecida narrativa do Ciclo Arturiano, Tristão e Isolda, onde os jovens incapazes de concretizarem seu amor em vida se deixam morrer para que o sentimento sobreviva após a morte e possa se consumar. O tema do amor que só é possível se concretizar após a morte sempre trágica ou violenta dos amantes é recorrente na literatura ocidental desde a Antigüidade e para os românticos foi um tema profícuo, não só pelo fascínio que ele exercia e que foi representado tanto na prosa como na poesia dos autores dessa escola literária, mas que inspirou também pintores e escultores que representaram com beleza as malezas arquitetadas por Eros e Tanatos.

A narrativa de Tristão e Isolda que tem a sua matriz em Diamaid e Grinné teve desde o século XII muitas versões. No século XII Béroul e Thomás de Inglaterra compuseram duas das mais conhecidas e estudadas versões, Gottfried de Estrasburgo no século XIII compôs uma versão mesclando elementos da cultura celta com a cultura germânica e que no século XIX serviu de inspiração para Richard Wagner compor a sua versão da tragédia dos amantes. E, por fim no século XIX, Joseph Bédier, filólogo francês estabeleceu uma versão onde mescla elementos das três narrativas medievais mas que se iguala em beleza e elementos fundamentais para se estudar a força do mito do amor eterno que sobrevive após a morte.

O amor dos jovens Diarmaid e Grinné e Tristão e Isolda é um sentimento puro, que se encontra em seu estado “natural”, ele ainda não foi corrompido por convenções sociais, podemos dizer que, grosso modo, esse sentimento é algo sentido apenas por bárbaros, pessoas que não receberam o refinamento social devido e é por essa mesma razão que os românticos – tanto escritores como pintores – tão avessos às convenções vão eleger o “amor bárbarico” como um dos principais temas de suas obras, representando assim toda a sua rebeldia e insatisfação com as leis, padrões e moldes sócio- culturais vigentes. [8]

Além deste caráter puramente estético, no século XIX a imagem do bárbaro foi reforçada como incentivo nacionalista, mas desta vez com cada região tendo os seus próprios mitos literários. Os países da Escandinávia utilizaram seu patrimônio cultural dentro de especificidades regionais, onde os sentimentos patrióticos incorporaram elementos da literatura, história e mitologia dos tempos pagãos. Especialmente o historiador e poeta Erik Geijer no livro Svenka folkets historia (História dos povos suecos, 1836) utilizou a sociedade dos antigos nórdicos como um modelo social perfeito, onde a harmonia do povo e de seus líderes foi quebrada pela chegado do cristianismo e do feudalismo.[9] O “espírito” dos tempos passados era refletido na arte decorativa, no interior das casas e dos edifícios, nos jornais, na vida cotidiana e nas idéias políticas, sempre em consonância com o progresso tecnológico e social dos tempos modernos.[10] A poesia e a literatura romântica da Escandinávia refletiam diretamente os mitos nórdicos com ideologias políticas do presente. Obras literárias como a famosa Frithiofs Saga (1825) de Esaias Tegner, apesar de conter heróis medievais, possuem comportamentos e valores condizentes com a realidade histórica vivida pela Suécia do Oitocentos.

Concedendo especificidade ao contexto inglês, Borges examinou em suas aulas um conjunto de artistas que resgataram a imagem bárbara durante o final do século XIX, a Irmandade Pré-Rafaelita. [11 ]Os temas preferidos do grupo eram a mitologia arturiana, temas medievais e escandinavos. Os principais escritores pré-rafaelitas que Borges analisou foram Dante Gabriel Rosseti [12] e William Morris [13]. Rosseti foi um dos fundadores do movimento e peça fundamental para entender a principal ideologia artística reinante na época vitoriana. Segundo Borges, a valorização de temas medievais visava essencialmente a busca da nobreza no passado. Em uma época onde a tecnologia, o urbanismo e a industrialização tomavam grande vulto na Inglaterra, os artistas voltam-se para a busca do belo – idealizada nas figuras femininas de Isolda, Guinevere e Morgana – e no herói, principalmente no rei Artur, Tristão e Lancelot. Tanto estas figuras femininas quanto masculinas pertencem ao ciclo arturiano, um conjunto de narrativas de origem Celta, que foram mescladas aos princípios cristãos do comportamento cavalheiresco da Idade Média, como já vimos. Com isto, temos duas formas básicas da imagem do bárbaro realizada pelos artistas pré-rafaelitas: de um lado, o bárbaro (herói pagão), que é resgatado em sua forma pura, de um ponto de vista estético e histórico.[14] De outro lado, o herói pagão que foi cristianizado e moldado pelo cavalheirismo medieval, principalmente na forma dos personagens arturianos.

Um dos principais idealizadores do herói pagão foi o poeta William Morris. Além de tradutor de várias Sagas e epopéias escandinavas, o artista escreveu poemas narrativos resgatando o que Borges denomina de “consciência do germânico” dentro da História e arte inglesa.[15] Em um deles, The Earthly Paradise (1870), a mitologia nórdica é apontada diretamente como elemento nostálgico e nobiliárquico da sociedade inglesa: “Oh Breton, and thou Northman, by this horn/Remember me, who am of Odin’s blood”.[16] Ou seja, aqui o narrador apresenta o rei inglês como descendente direto do deus Odin, o principal do panteão germânico. Um resgate literário dos valores simbólicos das antigas sociedades, em plena Inglaterra vitoriana. Em outra obra, Sigurd the Volsung (1876), a importância do herói pagão de origem escandinava foi ainda mais acentuada. Baseado em manuscrito islandês homônimo, este poema épico enfatizava a tragédia, a derradeira morte do principal personagem. Esta característica essencialmente romântica, também seria muito comum ao movimento pré-rafaelita com a predileção iconográfica dos artistas pelas narrativas trágicas de Tristão e Isolda [17] e da morte de Artur.[18] Mas não podemos nos esquecer que os próprios deuses germânicos também eram essencialmente trágicos, pois ao contrário da mitologia clássica (onde todas as divindades são imortais), eles teriam um final, durante a batalha de Ragnarök. Explicando a existência de telas como Odin (1870) e Freyr (1870), por Edward BurneJones,[19] onde as duas divindades apresentam um olhar melancólico, ambas olhando para baixo e numa atmosfera de extrema tristeza. Outro momento trágico resgatado por este movimento artístico é o funeral, que surge ao final do poema Sigurd, de Morris (com a morte do herói e o suicídio de Brunhilde na pira funerária) e na famosa tela de Francis Dicksee, Funeral of a Viking (1893).

A imagem literária do homem e também da mulher bárbara que foi construída durante os séculos seja na literatura como nas artes plásticas, em muitos momentos não foi uma imagem negativa, mas procurou exaltar determinadas virtudes que para os jovens idealistas românticos estavam um tanto esquecidas. Ao nos expor com maestria e bom humor aspectos tanto da literatura inglesa como da efervescência cultural que foram os séculos XVIII e XIX na Inglaterra, Borges nos oferece também novas perspectivas de análises de fontes importantes não só para uma maior compreensão das letras, mas das representações de figuras que ainda hoje povoam nosso imaginário e nos encantam!

Ao apresentar suas aulas durante um período conturbado da história latino-americana, Borges não ensinou apenas nomes, autores e características literárias, ele concedeu aos seus alunos uma aproximação com a literatura germânica – e repete o feito com os seus leitores de hoje – de se encantarem com a beleza das letras compostas em um momento especial, onde resgatar a imagem e o espírito dos bárbaros não era somente uma fonte de inspiração e um modelo estético mas sim uma admiração pelo espírito de liberdade e de criatividade.

Notas

1 O livro foi organizado por Martín Arias e Martín Hadis, através de transcrições das aulas ministradas por Borges na Universidade de Buenos Aires.

2 Muito da imagem que o teórico transmite em suas aulas na década de 1960 provinha do cinema: “E eles, enquanto isso, vêem como os vikings vão desembarcando. Podemos imaginar os vikings com seus elmos ornamentados com chifres, ver chegar aquela gente toda” (p. 60). Essa representação dos guerreiros nórdicos portando chifres com ornamentos córneos surgiu durante o início do Oitocentos, produto de uma arte romântica e nacionalista, promovendo o resgate viril e poderoso dos Vikings. Posteriormente, essa fantasia popularizou-se nas histórias em quadrinhos, literatura e cinema. Conf. LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies, Visby (Sweden), n. 4, 2002. Borges deve ter estruturado este estereótipo em filmes como Príncipe Valente (1954) e romances populares, dos quais cita The Long Ships (do original Röde Orm, 1945, versão inglesa da década de 1950).

3 Designamos literatura de origem Celta toda produção literária originada do folclore ou tradição oral e transcrita após o século VIII em países como a Irlanda (Celtas irlandeses), Escócia (Pictos e Escotos), País de Gales, Bretanha inglesa e francesa (Bretões) e França (Gauleses). A de origem germânica refere-se aos países escandinavos e Islândia (Vikings), Alemanha (Germanos antigos) e Inglaterra (Anglosaxões). Borges realizou um estudo clássico sobre literatura germânica: BORGES, Jorge Luís & VAZQUES, Maria E. Literaturas germanicas medievales. Buenos Aires: Falbo Librero, 1965.

4 “Le Cycle de Finn, ou Cycle Ossianique, est le cycle consacré à la province du Leinster. Mais il déborde de loin les frontières de ce petit état et se retrouve, très florissant, dans l’Écosse tout entière. C’est le Cycle de Finn, transmis par la tradition orale depuis de siècles, que Mac Pherson a connu et quíl a répandu dans toute l’Europe. Car Fingal n’est autre que le nom romantique de Finn et Ossian celui de Oisin (= le Faon). Finn est le roi. Mais à la différence de Conchobar, il n’exerce pas une autorité légale sur l’Irlande ou sur une troupe de véritables nomades, de guerriers errants, qui sont passés à la posterité sous le non de Fianna (Fenians). Ces Fianna ont vraisemblament eu une existence historique, au temps du roi suprême Cormac Mac Airt, c’est-à-dire à la fin du IIe. Siècle de notre ère. Ils constituaient une sorte d’État dans l’État, et ils furent souvent en froid, nom seulement avec le roi suprême mais aussi avec les différents rois de provinces ou de tribus sur le territoire desquels ils exerçaient leurs talents”. MARKALE, Jean. L’épopée celtique d’Irlande. Paris: Payot, 1993, p. 159.

5 “James Macpherson nasceu nas Highlands da Escócia, nas Terras Altas da Escócia, nas serras da Escócia, no ano de 1736, e morre em 1796. (…) Macpherson nasce e se cria num lugar agreste ao norte da Escócia, onde ainda se falava um idioma gaélico, isto é, um idioma celta, afim, naturalmente, ao galês, ao irlandês e à língua bretã levada à Bretanha – antes chamada Armórica – pelos bretões que se refugiaram das invasões saxãs do século V” (Borges, 2002: 157-8).

6 “Como Macpherson não queria que os personagens fossem irlandeses, fez de Fingal, pai de Ossian, rei de Morgen, que era a costa setentrional e ocidental da Escócia (…) Macpherson foi acusado de falsário (…) Atualmente, não nos interessa se o poema é ou não é apócrifo, mas o fato de que nele já está prefigurado o movimento romântico” (Borges, 2002: 166). Uma das pinturas mais famosas inspiradas na obra de Macpherson é Ossian na margem do Lora invocando os deuses ao som de uma harpa, de Grançois Gérard (sem data). Nesta composição, temos os elementos chaves do romantismo europeu: atmosfera de mistério e horror, elementos ruinísticos, atmosfera onírica, e é claro, os elementos advindos da mitologia Celta. Conforme: WOLF, Norbert. A pintura da era romântica. Lisboa: Taschen, 1999.

7 “O Ciclo Bretão, no qual se destacam os feitos do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, as aventuras de Galvain, Lancelot, Tristão e Isolda, Parcifal e a Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na História Britonum, de Nennius, obscuro historiador latino do século VIII, Artur aparece como herói dos celtas britânicos contra os invasores anglo-saxões. As versões autenticamente célticas da lenda estão no Mabinogion, coleção de narrações na língua do País de Gales; aqui a figura de Artur e dos Cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achando-se inteiramente transformados pela vivíssima imaginação céltica, nutrida de lendas de feiticeiros, fadas, florestas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabinogion na sua forma atual, foi redigido só no século XIV; os seus heróis célticos já têm a feição de cavaleiros franco-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma transformação foi operada pelo ‘historiador’ Geoffrey of Mommouth, cuja fantástica História Regum Britanniae que foi escrita entre 1135 e1138; parece que Geoffrey pretendeu criar, intencionalmente, um pendant inglês da geste francesa. O último retoque, enfim, foi de natureza religiosa. Deu-se sentido cristão a certos episódios do ciclo, e como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei Artur para a ilha de Avalon, paraíso dos celtas, a Demanda do Santo Graal e a transformação da Távola Redonda de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cavaleiros místicos”. CARPEUAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume I Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2ª edição, p. 140.

8 LE BRIS, Michel. Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004, p. 162-165. Na literatura francesa do século XIX, o Viking torna-se o herói romântico perfeito: aventureiro, sem nenhum temor, feroz, galante e essencialmente, livre. “Un personnage, dont le nom est déjà intervenu plusieurs fois, rassemble ce que le XIXe siècle a voulu mettre, en ce sens, sous le mot viking: c’est celui du roi de mer. L’expression seule suffisait déjà à déchaîner imaginations et passions: iéal aristocratique mêlé à tous les parfums de l’aventure, lois de l’héroïsme et de la brutalité (…) Le Viking, c’est l’homme libre”. BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986, p. 83-103.

9 LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999, p. 238.

10 Além disso, cada país escandinavo resgatou a memória dos tempos Vikings dentro de um referencial próprio, condizente com a realidade política então vigente (p.ex., a Suécia de 1814 a 1905 foi unida com a Noruega, ao mesmo tempo em que mantinha uma grande rivalidade com a Dinamarca).

11 Em inglês Pre-Raphaelite Brotherhood, grupo de artistas britânicos fundado em 1848 e dissolvido cerca do ano 1853. Movimento de reação ao convencionalismo da arte vitoriana, que buscava através da inspiração literária e simbólica, mitológica ou bíblica, restituir à pintura a pureza alcançada antes de Rafael, ou seja, no século XV. Seus representantes mais famosos foram Dante Gabriel Rosseti, W. H. Hunt, J. E. Millais, F. Brown, E. Burne-Jones e William Morris. O pintor brasileiro Eliseu Visconti chegou a ser influenciado pelo movimento. Conf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 19, p. 4772. A Irmandade Pré-Rafaelita fundou uma revista chamada The Germ (O Germe) para divulgar suas idéias, pinturas e poesias. BORGES, op. cit., p. 284. Para uma crítica estética deste movimento artístico ver: GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 404. Para o teórico Arnold Hauser, os pressupostos do pré-rafaelismo residiam em seu caráter poético/literário, espiritualista, histórico e simbólico: “(…) são idealistas, moralistas e eróticos envergonhados, como a grande maioria dos vitorianos (…) une um realismo que encontra expressão num deleite em ínfimos detalhes, na reprodução prazenteira de cada folha de grama e de cada prega de saia (…) exageram os sinais de perícia técnica, talento imitativo e perfeito acabamento”. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 840-842.

12 Dante Gabriel Rosseti: pintor, desenhista e poeta inglês (Londres, 1828 – Kent, 1882). Filho do escritor napolitano Gabriele Rossetti, exilado por suas opiniões políticas. Foi um dos fundadores da confraria prérafaelita. Seus quadros (Ecce ancilla Domini, 1850; O sonho de Dante, 1871) e poesias (A moça eleita, 1850) inspiram-se em lendas medievais e temas da poesia primitiva inglesa e italiana. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 21, p. 5137.

13 William Morris: poeta, artista e ativista político inglês (Essex, 1834 – Hammersmith, 1896). Inovador da estamparia e xilogravura. Escreveu poesias narrativas como The Life and Death of Jason (1867) e The Earthly Paradise (1868), poemas pós-românticos, medievalistas. Traduziu a Eneida (1876) e a Odisséia (1887) e interessou-se pelas literaturas escandinavas. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 17, p. 4090.

14 O herói pagão sobreviveu na literatura arturiana sob a forma do mago Merlin, um druida (sacerdote dos Celtas) que ainda mantinha seus poderes sob o surgimento do cristianismo. Este personagem arturiano também recebeu diversas representações pelos pré-rafaelitas durante o Oitocentos: O engodo de Merlin (1874), de Edward Burne-Jones; Merlin e Nimue (1870), de Gabriel Rossetti. Também as representações de feiticeiras, fadas e druidas fizeram sucesso na arte vitoriana: Morgan Le Fay (1864), de A. Sandys; Os druidas trazendo o azevinho (1890), de George Henry e A. Horned.

15 Segundo Borges, a literatura inglesa havia esquecido suas raízes germânicas. Foi com o romantismo que essa vertente foi redescoberta, algo impensável com Shakespeare e totalmente consciente no caso de William Morris e os pré-rafaelitas. BORGES, op. cit., p. 356-357.

16 “Ó bretão, e tu Normando, por este chifre/Lembre-se de mim, que sou do sangue de Odin”. Texto original retirado de BORGES, 2002: 359.

17 A personagem Isolda foi muito representada pelos pré-rafaelitas, especialmente Burne-Jones, Rosseti, Morris e Francis Dicksee. A imagem de Isolda resgata muitos dos valores da mulher pagã, em meio à sociedade cristã das primeiras versões literárias. O seu amor impossível com Tristão inspirou o romance de Shakespeare, Romeu e Julieta. Contemplação, redenção e tragédia tornaram-se as características essenciais do movimento pré-rafaelita. Sobre o tema ver: CAMPOS, Luciana de. Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina. Brathair 1 (2), 2001: 11-18 (www.brathair.cjb.net); CAMPOS, Luciana de. Em busca da bela dos cabelos de ouro: um estudo da representação da mulher/rainha Celta em Tristão e Isolda de Béroul. Tese de doutorado em Teoria Literária (Linha de pesquisa: História, Cultura e Literatura). Unesp/São José do Rio Preto, 2005.

18 Praticamente em todo o movimento pré-rafaelita, o rei Artur é quase sempre representado morrendo ou já morto na ilha de Avalon: L’morte d’Artur (1860) de James Archer – as rainhas choram ao lado de seu corpo próximo à praia; O rei Artur em Avalon (1894) de Edward Burne-Jones – o corpo do trágico rei repousa sobre uma ilha da costa da Bretanha, velado por nove rainhas. Para uma discussão historiográfica acerca de fontes literárias arturianas, consultar: ZIERER, Adriana. Artur: de guerreiro a rei cristão nas fontes medievais latinas e célticas. Brathair 2 (1), 2002: 45-61 (www.brathair.cjb.net).

19 Sir Edward Burne-Jones: pintor e desenhista inglês (Birmighan 1833 – Londres 1898). Aluno de Rosseti, uma das figuras marcantes do pré-rafaelismo; sua obra mistura mitologia antiga, lendas medievais e a religião cristã. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 5, p. 996.

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BORGES, Jorge Luís. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: LANGER, Johnni; CAMPOS, Luciana de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.1, p. 144-150, 2005. Acessar publicação original [DR]

Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais | D’arbois de Jubainville

Escritos entre os anos de 1904 e 1905 quando uma doença prendia-o ao leito e mais tarde se constituiu do material por ele usado em suas aulas, Jubainville oferece ao leitor/estudioso brasileiro uma rica fonte de estudos acerca da religião celta.

Jubainville com um texto simples e preciso faz um percurso histórico acerca da classe sacerdotal dos Druidas, apontando a suas funções dentro da sociedade celta, sua importância para o aprendizado tanto da alta magia como também da arte da composição e da narrativa e da história do povo celta e o próprio aprendizado druídico. Esse conhecimento era transmitido oralmente o que obrigava tantos os “alunos” como os “professores” a exercitarem constantemente sua memória. Ao descrever o ensinamento tanto dos druidas como dos bardos, que freqüentavam por mais de vinte anos as escolas mantidas pelos Druidas, Jubainville nos mostra como estas funcionavam e a importância da manutenção da oralidade:

Os Judeus e os Cristãos têm um livro, a Bíblia; os Maometanos têm um livro, o Alcorão; os Druidas também tinham um livro, mas ele não estava escrito. Era uma compilação de versos e essa compilação era tão desenvolvida que, para conseguir sabe-la bem, ou mesmo para compreende-la mais ou menos, foram necessários vinte anos de estudos a um certo número de alunos. (JUBAINVILLE, 2003: 57).

Mas, infelizmente toda essa “estrutura” das “colégios” mantidos pelos druidas e todo o conhecimento oriundo da oralidade com a conquista romana foi quase que totalmente extinto. Alguns pequenos focos de resistência foram mantidos e poucos druidas tanto na Gália como nas Ilhas Britânicas mantiveram seus alunos e desta forma, conseguiram preservar um pouco do seu conhecimento e história mantidos pela oralidade.

As conquistas romanas empreendidas nas povoações celtas da Gália e das Ilhas Britanicas não foram capazes de destruir completamente todo o poder que dos druidas. Durante a romanização dos celtas os druidas perderam muito de seus alunos que, por imposição, recebiam uma educação romana, aprendendo o latim e os costumes do conquistador, numa tentativa desses de exercer maior influência sobre os conquistados mas, havia aqueles que se recusaram a isso e deixavam seus filhos sob a guarda dos antigos sábios:

A grande epopéia que conta a criação das vacas de Cooley mostra-nos o Druida Cathu rodeado de alunos aos quais dá suas lições. Na redação mais antiga, os alunos são em número de cem. O escriba cristão ao qual devemos esse texto teve trabalho para constatar esse número: são, escreveu, “cem estouvados que estudam perto de Cathu a ciência druídica” (JUBAINVILLE, 2003: 80-81).

Todos os registros que sobreviveram – e os utilizados por Jubainville – são relatos dos conquistadores entre eles, De Bello Gallico, escrito por Julio César e Anais, de Tácito. Essas fontes apresentam uma visão do conquistador já impingindo certos juízos de valores às práticas sociais do povo conquistado. Jubainville, ao utilizar as fontes romanas para as suas pesquisas vai nos apresentando outros aspectos da sociedade celta que ficaram encobertos sob o véu da conquista.

A segunda parte do livro traz um estudo sobre os deuses celtas e as suas formas de animais. Analisando o mais famoso épico irlandês A razia das vacas de Cooley (Tain Bô Cualngé) e o percurso do herói Cûchulainn a serviço da rainha Medb, o autor vai nos apresentando o panteão celta e as formas de animais que os deuses tomavam fosse para proteger e guiar o herói ou para punir alguém que infringia alguma lei ou tabu.

A deusa da guerra Morrigan aparece para Cûchulainn em vários momentos da narrativa para provocá-lo. Ela aparece ora, como uma loba cinzenta, ora como uma vaca branca de orelhas vermelhas ou um corvo. Este último é o arauto das batalhas mais sangrentas e da morte. Analisando as formas de animais assumidas pelos deuses Jubainville nos mostra as metamorfoses sofridas pelos deuses para poderem exercer seu poder e, medirem forças com os mortais que, como Cûchulainn, ao longo da epopéia assemelha-se aos deuses. Ao analisar as formas de animais o autor mostra a profunda ligação dos celtas com a natureza e a sua obediência aos ciclos sazonais aos quais estava ligada a sua sobrevivência:

“Os pagãos, a princípio, adoraram a natureza tal qual ela se apresentava a eles: em primeiro lugar, o céu de onde vêm o dia, o calor e a tempestade; em segundo lugar, O mar, tão propício e freqüentemente tão perigoso para os navegantes; e em terceiro lugar a terra que habitamos”. (JUBAINVIILE, 2003: 107).

Esta análise realizada por Jubainvelle dos druidas e das formas animais dos deuses oriundas do seu material didático foi e ainda é de grande importância para o entendimento do funcionamento da sociedade celta e da sua religião. Esta obra vem preencher uma lacuna nas traduções dos estudos acadêmicos a respeito dos celtas no Brasil. Uma pesquisa de grande importância juntamente com as suas outras obras que, ainda carecem de tradução e, apesar de já contarem com mais de um século de existência ainda são fundamentais.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras/Unesp Docente da FAFI-UV. E-mail: [email protected]


JUBAINVILLE, H. D’arbois de. Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais. São Paulo: Madras, 2003. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Sacerdotes e divindades Celtas. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.1, p. 96-97, 2004. Acessar publicação original [DR]

Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros | Antonio L. Furtado

Com o convidativo título de Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros, mais uma vez, Antonio Furtado apresenta ao público brasileiro outra tradução [1] das narrativas da “Matéria da Bretanha”. As estórias do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda que, nos séculos XII e XIII encantaram tanto a nobreza, pois naquelas narrativas estavam presentes os ideais mais elevados e os modos e maneiras que esta mesma nobreza vivenciava e, também enchia os ouvidos e o imaginário dos menos abastados que, talvez, almejassem serem súditos de um rei justo como Artur e protegidos por cavaleiros como Lancelot e Gawaine.

Essas “aventuras” empreendidas tanto próprio Artur como pelos seus cavaleiros estão impregnadas pelo maravilhoso que, não são estranhos às personagens, pois fazem parte do cotidiano, como nos explica Todorov no livro As Estruturas Narrativas, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito” (TODOROV, 1979: 160). Muitas personagens das narrativas são conduzidas para situações onde se deparam com seres sobrenaturais, como gigantes, tema da primeira “aventura”, onde o próprio rei Artur enfrenta um gigante monstruosos na narrativa “O gigante do Monte Saint Michel”:

– Irei à frente, disse Artur, para combater o gigante. Vireis atrás de mim, e atentai para que nenhum de vós interfira enquanto eu mesmo puder valer, já que de outra ajuda não necessito. Pareceria covardia vir outro, além de mim, a combatê-lo. Socorrei-me, porém se perceberdes minha necessidade. (FURTADO, 2003: 70).

Artur parte sozinho para enfrentar o gigante e deixa claro os seus companheiros, que devem socorrê-lo só em caso de necessidade. Vemos aqui a representação do rei que está sempre à frente dos seus nas batalhas e faz questão de que a lei seja também aplicada a ele, como nos mostra John Boorman no seu filme Excalibur, de 1980, na cena em que a rainha Guinevere é acusada de adultério por um cavaleiro e implora ao seu marido e rei para que não seja julgada, mas Artur, responde que a lei deve ser aplicada também ao rei, caso isso não ocorra, não há justiça. Artur deve marchar à frente de seus cavaleiros na caça das aventuras.

Em “O juramento ambíguo de Isolda”, Artur e mais alguns cavaleiros, como seu sobrinho Gawaine (que nos apresentado como Galvão), “o mais cortês de todos os homens”, são chamados para julgarem Isolda esposa do rei Marcos, Duque da Cornualha e tio de Tristão, que foi acusada de adultério por três barões da Corte da Cornualha.

O rei Artur é convocado por Isolda por ser conhecido como o mais justo e nobre dos reis e por repudiar todo e qualquer ato de vilania. E, como Artur e seus cavaleiros representam os ideais da cortesia e da honra, vemos nas palavras de Galvão todo o asco que o ato dos barões contra Isolda lhe causa:

– Tio, se tenho permissão, a justificação que está combinada terminará mal para os três felões. O mais dissimulado é Ganelon: conheço-o bem e ele a mim. Já o derrubei em um lamaçal, durante uma justa forte e encarniçada. Se pego de novo, por São Richier, Tristão não precisará mais vir. Se puder agarrá-lo com as mãos, farei nele bastante estrago e o enforcarei no alto de um morro. (FURTADO, 2003: 160).

Os cavaleiros não hesitam em atender o apelo de uma donzela ou mesmo de uma rainha que esteja em perigo, pois são estas as oportunidades que esses homens de armas e de cortesia têm para fazerem valer seu juramento de defenderem as mulheres e os mais fracos, partirem em busca de aventuras e, talvez, conseguirem o amor da mulher que necessita de socorro.

As narrativas que têm como personagem principal Artur ou outro cavaleiro, fluem de maneira a cativar o leitor, com se este estivesse envolvido pela voz dos trovadores que, habilmente “encantavam” os homens e mulheres dos séculos XII e XIII quando apresentavam as aventuras e, mais ainda, os ideais que essas aventuras e as personagens representavam.

A leitura de Aventuras proporciona o resgate da ambientação, das falas das personagens e, principalmente, das suas atitudes, sejam elas de indignação perante a injustiça – como a de Galvão – ou de bravura e até de desolamento. As personagens arturianas estão vivas e, nas páginas do livro de Furtado é possível “viajar” ao lado de Galvão, Lancelot e Percival; seja na busca do Santo Graal ou no salvamento de uma donzela.

A tradução primorosa do francês antigo onde o estilo, a linguagem e o conteúdo mantiveram-se fiéis aos originais como o próprio autor afirma na Introdução da obra é um convite a mais – tanto aos estudiosos e pesquisadores da Idade Média, como aos leitores em geral – para que se descubra o mundo arturiano e da Matéria da Bretanha.

Aventurar-se pelas páginas dessa obra é como um mergulho no universo mágico do mito arturiano e um eterno encantar-se com as estórias do “rei que não morreu, apenas dorme e, em breve, retornará…”

Nota

1. Em 2001 foi publicada pela Editora Vozes a tradução dos Lais de Maria de França. Tradução de Antonio Furtado e prefácio de Marina Colassanti.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/São José do Rio Preto. E-mail: [email protected]


FURTADO, Antonio L. (Organização e tradução). Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. Prefácio de Gilberto Mendonça Teles. Petrópolis- Rio de Janeiro: Vozes, 2003. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Cavaleiros da Aventura. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 62-63, 2003. Acessar publicação original [DR]

Contos-de-fadas celtas

As narrativas selecionadas e apresentadas por Joseph Jacobs em Contos-de-fadas celtas são um convite para penetrarmos no fascinante mundo da mitologia celta. Os pequenos contos escritos ao estilo dos contos populares recolhidos pelos irmãos Grimm apresentam os elementos fantásticos comuns a esse tipo de narrativa: seres de outro mundo vem buscar os humanos para compartilhar as delícias da eterna juventude ou então, as personagens principais são grandes heróis capazes de toda e qualquer façanha para alcançar os seus objetivos. Alguns desses heróis são os protagonistas de determinadas histórias que fazem parte dos grandes ciclos das narrativas celtas, como por exemplo, o Ciclo Histórico ou o Ciclo de Finn. A maioria das narrativas foram reescritas e adaptadas durante a Idade Média e sofreram uma forte influência do cristianismo o que modificou um pouco algumas de suas características mas conservaram a essência da mitologia celta. As narrativas aqui selecionadas faziam parte da tradição oral do povo celta habitante das terras da Irlanda, Escócia e País de Gales e ainda hoje mantém vivos todos esses “contos-de-fada” como manifestação folclórica.

A primeira narrativa, “Connla e a donzela encantada” apresenta o herói Connla do Cabelo de Fogo, filho do rei Conn das Cem Lutas. Connla deixa-se seduzir por uma bela moça vinda do outro mundo. Ela o convida a seguí-la para juntos viverem em um lugar paradisíaco, onde ninguém sofre com doenças, a velhice ou morte. Conn, o pai tenta impedir o filho de partir nessa viagem sem volta mas, Connla parte com a jovem rumo ao pôr-do-sol e nunca mais são vistos. No desenrolar da trama elementos importantes da cultura celta vão sendo apresentados: a donzela aparece em uma curragh, barca de cristal mágica, utilizada para chegar ao Reino dos Mortos ou à Ilha de Avalon, ela oferece a Connla uma maçã, fruto sagrado e, por mais que esse fosse devorado, era sempre reconstituído.

Com uma narrativa ágil que prende o leitor ao texto os contos vão sendo apresentados de maneira a não só entreter, mas também, a apresentar a riqueza da cultura e mitologia celta.

Outra narrativa bastante interessante é “O’Shee Na Gannon e o Gruagach”. Esse conto vai apresentar o nascimento mágico da personagem título, O’Shee:

“O’Shee na Gannon nasceu de manhã, recebeu seu nome ao meio dia, e à noitinha foi pedir a mão da filha do rei de Erin em casamento”. (p.139)

Além demostrar como a personagem nasce, cresce e decide se casar no mesmo dia, ela escolhe como noiva a filha do rei de Erin, nome mitológico da Irlanda, clara referência ao passado mítico do país e a sua importância para o presente.

Mas, não só referências aos lugares sagrados e a alguns heróis desconhecidos existem nas narrativas; há um conto, “O pretendente de Olwen” onde o rei Artur e alguns dos futuros cavaleiros da Távola Redonda são personagens. Esse conto apresentado aqui em versão resumida mas conservando o eixo narrativo é um dos contos integrantes d’O Mabinogion [1]. O conto está nos “Quatro Contos Nativos Independentes”, segunda parte da obra e vai narrar a busca de Culhwch por sua pretendente, Olwen. O rei Artur, a mais conhecida personagem das narrativas que evocam tanto a mitologia celta como o imaginário medieval, é o pivô central da disputa pela mão da bela Olwen, auxiliando o primo Culhwch a conseguir vencer as provas para conseguir casar-se com a donzela. Nessa narrativa há descrições das armas utilizadas por alguns dos componentes das tropas do rei e, essas breves descrições apresentam a grandiosidade desses instrumentos nos remetendo ao espírito guerreiro dos celtas, mostrando a necessidade desse povo estar sempre atento às guerras e invasões de outros povos, fato constante e, portanto, era preciso estar em sempre em estado de alerta.

As descrições, tantos das armas como dos lugares e das personagens são realizadas de maneira sucinta, não há riqueza de detalhes, o que é uma características das narrativas mais curtas que privilegiam os aspectos fantásticos e mágicos esses sim, descritos com mais detalhes pois são o centro da narrativa. Há ainda alguns contos onde a personagem é visitada por seres fantásticos, como duendes e fadas e esses os agraciam com bons ou maus presentes dependendo da atitude do ser humano para com os seres etéreos.

As vinte e seis narrativas constantes no volume são uma pequena amostra da riqueza e beleza da mitologia celta e apresentadas na forma de narrativas curtas mas bem construídas, são fonte de conhecimento da cultura e sociedade celta e oferecem ao leitor e ao estudioso, subsídios para uma maior compreensão da importância do povo celta para a cultura ocidental.

Os elementos da narrativa fantástica estão presentes em todas as narrativas apresentadas e são eles, os responsáveis por enfatizarem o caráter mítico de cada conto e, desta forma, oferecer ao leitor – seja ele conhecedor da mitologia celta ou não -, uma chave para abrir as portas do fascinante mundo do povo celta.

Nota

1. A edição utilizada d’O Mabinogion é a seguinte: MORAIS, José Domingos (tradução e introdução) O Mabinogion. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras/UNESP/S.J. Rio Preto. E-mail: [email protected]


JACOBS, Joseph (seleção). Contos-de-fadas celtas. São Paulo: Landy Editora, 2001. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.1, p.65-66, 2003. Acessar publicação original [DR]