Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família” / Mauro L L Condé

Acaba de vir a público o livro com o título Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família”, de Mauro Lúcio Leitão Condé, professor e pesquisador em Epistemologia, Filosofia e História das Ciências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O livro é uma escolha de Mauro Condé de artigos e capítulos de livros publicados em coletâneas e periódicos brasileiros, em diferentes momentos de sua trajetória intelectual, entre os anos de 1993 e 2018. Seu propósito é corajoso e sua premissa, clara: usar o método wittgensteiniano das “semelhanças de família” (Familienänhlichkeiten) para compreender a ciência, a história, e filósofos como Fleck, Kuhn, Koyré, Nietzsche e Maquiavel.

A Apresentação explicita qual a intenção de Condé (p. 15) com o seu livro:

Sempre vi em Wittgenstein uma possibilidade de ler outros autores ou de lidar com diferentes problemas filosóficos. Assim, em certo sentido, tornei-me ‘usuário’ do pensamento de Wittgenstein, isto é, a partir do autor das Investigações Filosóficas, procurei explorar problemas filosóficos – não necessariamente os mesmos abordados por ele – ou contrapor sua filosofia à de outros pensadores com a finalidade de elucidar tais problemas. (…) O que apresento aqui é exatamente essa parte em que analisei autores e problemas explicitamente a partir da obra de Wittgenstein. Neste exercício de reunir esses textos não foi propriamente a minha intenção expor um ponto de convergência nas abordagens dos diferentes autores e problemas analisados, mas simplesmente ter a possibilidade de expor em um único trabalho estas várias ‘semelhanças de família’ – e também dessemelhanças – do pensador austríaco com esses filósofos e problemas filosóficos pouco visitados por exegetas da obra wittgensteiniana.

Também especifica um dos objetivos centrais de Condé (p. 16): o autor usa o método wittgensteiniano das “semelhanças de família” para constituir uma “teoria da ciência”, para pensar elementos de uma “teoria da história”, e para aproximar Wittgenstein de cinco importantes filósofos: Fleck, Kuhn, Koyré, Nietzsche e Maquiavel.

Na Apresentação encontramos ainda os pensadores e temas que sempre interessaram Condé ao longo de seus anos de pesquisas e como ele fez para mantê-los unidos numa obra coerente. A leitura que Condé nos convida a fazer de seus ensaios é contextual, que procura devolver os textos ao seu momento de produção, mas também interna, uma vez que persegue os conceitos inerentes ao objeto nos muitos “labirintos da linguagem”. Esse tipo de leitura nos mostra no fim o longo caminho de pesquisa que Condé percorreu para fazer aparecer o seu objeto, assim como as questões que colocou, os problemas teóricos que enfrentou, e tudo isso sem deixar de lado o rigor metodológico.

No Capítulo I, intitulado “Wittgenstein e a gramática da ciência”, Condé aborda a possível constituição de um novo “modelo de racionalidade científica” com o método das “semelhanças de família” explicitado pela filosofia da linguagem-epistemológica-social do segundo Wittgenstein. Ao reconduzir a racionalidade científica moderna à noção de gramática das Investigações Filosóficas, que encontra na dimensão filosófica da linguagem as formas de se desenvolver para além dos limites da gramática normativa de uma língua em especial, Condé (p. 27) propõe uma abordagem original da ciência contemporânea, baseada no que ele chama de “gramática da ciência” ou “conjunto das regras, das práticas e dos resultados científicos” e nas relações entre os conceitos wittgensteinianos de “uso”, “jogos de linguagem”, “semelhanças de família” e “regras”.

No Capítulo II, intitulado “A gramática da história: Wittgenstein, a pragmática da linguagem e o conhecimento histórico”, Condé (p. 34) faz uma interpretação da questão da temporalidade nas Investigações Filosóficas, com base no próprio método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, e sugere uma nova teoria da história no segundo Wittgenstein, cujo núcleo é o que ele conceitua como “‘gramática do tempo’ ou dos processos históricos, isto é, ‘gramática da história’”. Além disso, o conceito de “gramática da história” de Condé (p. 41) também pode servir para compreender a ciência da história, seu modus operandi, suas múltiplas interações sociais e culturais, portanto, “as possiblidades gramaticais do fenômeno histórico”.

No Capítulo III, intitulado “Ciência e linguagem: Ludwik Fleck e Ludwig Wittgenstein”, Condé estabelece aproximações entre a epistemologia de Fleck e a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein, frisando os elementos motivadores das uniões entre os dois pensadores em que toda a discussão do capítulo se baseia: aqueles do estilo de pensamento e da gramática. Condé (p. 53) analisa as convergências da dimensão filosófica da linguagem de Wittgenstein com a teoria da ciência de Fleck por meio do método wittgensteiniano das “semelhanças de família”: com ele, as uniões entre os dois pensadores são demonstradas e contrastadas com a “epistemologia do neopositivismo até então vigente”. É essa chave metodológica que Condé (p. 54) usa para tratar as correspondências entre os estilos de pensamento científicos em Fleck e a gramática da ciência em Wittgenstein, e também para delinear a concepção de realidade pertinente a ambos os pensadores, uma realidade que certamente não possui um “fundamento metafísico”, mas sim está “ancorada nas diferentes ‘situações’ com as quais nos deparamos”.

No Capítulo IV, intitulado “Léxico versus gramática na ciência: a virada linguística de Kuhn e o segundo Wittgenstein”, Condé mantém aberto o caminho para um estudo das similaridades entre o conceito de léxico de Kuhn e a noção de gramática do segundo Wittgenstein. Condé (p. 86) diz que “a virada linguística de Kuhn tenta resolver antigos problemas apresentados em sua teoria da ciência anterior, estabelecida em A Estrutura das Revoluções Científicas”. Diz também que, com a inflexão linguística de Kuhn, “o conceito de revolução científica deve agora ser visto não como uma ruptura radical, mas como uma mudança de linguagem” (p. 86). Segundo Condé (p. 86), essa mudança de linguagem é tanto conceitual como da realidade, é ela que possibilita o conceito de léxico, o qual serve para solucionar os problemas da incomensurabilidade da ciência e do mundo, isto é, “as dificuldades de linguagem de diferentes grupos ou entre teorias científicas do presente e do passado”. Condé desenvolve e prolonga essa perspectiva na primeira metade da discussão e concentra-se em mostrar as similaridades entre o conceito kuhniano de léxico e a noção wittgensteiniana de gramática contida nas Investigações Filosóficas na segunda metade do capítulo. Para Condé, ao formular sua teoria do léxico, Kuhn assimila conceitos da gramática de Wittgenstein, como “uso”, “jogos de linguagem”, “semelhanças de família” e “regras”. Com esses conceitos, Kuhn cria uma nova epistemologia da ciência, mais completa e aberta às diversas realidades. Nesse longo capítulo, Condé convence-nos do funcionamento do método wittgensteiniano das “semelhanças de família” para especificar, conhecer e aprofundar as similaridades entre os pensadores e os temas de que vêm tratando em seu livro.

No Capítulo V, intitulado “Koyré e Wittgenstein: o internalismo reconsiderado a partir de uma perspectiva pragmática”, Condé segue o fio condutor do livro e interpreta a concepção de história da ciência de Koyré com o método das “semelhanças de família” do segundo Wittgenstein. A análise da história da ciência koyreriana sob o ponto de vista da filosofia da linguagem wittgensteiniana permite que Condé identifique os pontos em comum entre os dois pensadores. Para Condé (p. 117), a identificação entre os dois pensadores se dá por meio do internalismo da história da ciência de Koyré, que estabelece a autonomia da ciência, e a pragmática e gramática da linguagem de Wittgenstein, que estabelece a ideia de autonomia da gramática. Aqui, a ideia nova e estimulante de Condé (p. 118) é a que diz respeito ao terceiro momento do capítulo, a qual culmina com a sua proposta de “reconsideração do internalismo de Koyré superando os seus aspectos negativos e o requalificando para que ele possa ser entendido como a afirmação da autonomia da ciência e não o isolamento entre ciência e sociedade”. A discussão de Condé(p. 142-143) provém sobretudo da compreensão de que “a ciência, mesmo sendo um produto social – portanto, sujeita às influências externas –, possui regras próprias de comportamento que lhe conferem autonomia em relação a esses mesmos fatores sociais”. É nesse sentido que Condé (p. 143) consegue estabelecer correspondências e parentescos entre Koyré e Wittgenstein:

se, por um lado, a partir de Wittgenstein podemos ter boas razões para ver a ciência como instituição, ou um tipo de gramática que emerge das práticas sociais, por outro, o internalismo de Koyré, pelo menos em parte, ainda parece atual na medida em que nos alerta para a necessidade de pensarmos a autonomia da ciência com relação a essas práticas sociais.

Condé (p. 143) considera que os pressupostos essencialistas da história da ciência de Koyré são os pressupostos gramaticais ou institucionais da ciência na filosofia da linguagem de Wittgenstein, e ele vê nisso a unidade fundamental das concepções de ciência dos dois pensadores.

No Capítulo VI, intitulado “Nietzsche e Wittgenstein: semelhanças de família”, Condé passa à análise da obra de Nietzsche tentando encontrar filiações entre este filósofo e a filosofia da linguagem da segunda fase de Wittgenstein. Por meio do método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, Condé aborda uma temática difícil em Nietzsche, e em alguns momentos de sua obra oscilante, que é a questão da linguagem e a concepção de racionalidade que ela envolve. A filiação entre Nietzsche e Wittgenstein, dois pensadores de tradições filosóficas completamente diferentes, é vista por Condé (p.157) em dois pontos:

tanto Nietzsche quanto Wittgenstein não iniciaram suas carreiras diretamente na filosofia, mas foram conduzidos a filosofar, a partir de algumas questões colocadas por eles; (…) e o filosofar de ambos recusa o caminho da escrita acadêmica e das formas canônicas de pensar institucionalizado para um pensar que se expressa nos ‘aforismos’, nas ‘sátiras’ e nas ‘paródias’.

Além disso, Condé (p. 158) vê filiação entre os dois filósofos em suas tentativas de “destruição da metafísica”. Enfim, para Condé (p. 163), Nietzsche e Wittgenstein concebem a linguagem em uma perspectiva pragmática e moral e a usam para criticar a própria linguagem em sua acepção essencialista, e também a realidade em sua representação metafísica, o primeiro mais do que o segundo.

No Capítulo VII, intitulado “Maquiavel e Wittgenstein: a astúcia da linguagem”, Condé desenrola um parentesco entre a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein e a filosofia política de Maquiavel, pelo método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, que percebe claramente dimensões que escapam a simples esquemas analíticos da história da filosofia ocidental. Desse parentesco, Condé (p. 176) ressalta dois aspectos, o primeiro é que

Maquiavel constrói uma crítica à ideia de uma essência do político defendida, grosso modo, pela filosofia política clássica. Wittgenstein, por sua vez, critica radicalmente a ideia de uma essência da linguagem buscada pela filosofia da linguagem tradicional.

O segundo aspecto de que nos fala Condé (p. 176) é que

ao construir uma filosofia política sem essências, Maquiavel enfatizará a importância do discurso, isto é, a importância da linguagem na dimensão do político antecipando, assim, alguns aspectos dos desenvolvimentos posteriores da filosofia da linguagem ocorridos no século XX, sobretudo a partir de Wittgenstein.

Para Condé, portanto, essas duas “semelhanças de família” unem Wittgenstein e Maquiavel, além de certa atitude pragmática com relação à realidade. Condé entra nos mecanismos da obra O Príncipe, de Maquiavel, e examina, por meio da noção de gramática contida nas Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, as diferentes possibilidades do político. Condé constata que a filosofia política de Maquiavel não se restringe a mostrar os fatos, ela é uma discussão totalmente conceitual, a nível das representações do político, muito próxima então da filosofia da linguagem da segunda fase de Wittgenstein.

Aqui, acabamos de avaliar o livro Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família”, de Mauro Condé. Sem dúvida, o método wittgensteiniano das “semelhanças de família”, que o autor usa nos sete ensaios, abre uma perspectiva singular de interpretação das relações de Wittgenstein com a ciência, com a história, e com filósofos como Fleck, Kuhn, Koyré, Nietzsche e Maquiavel. O resultado satisfatório não depende só do método wittgensteiniano, mas também da maneira como Condé o emprega: a aproximação a que o autor submete esses diferentes pensadores o permite confrontar filosofias e conceitos e encontrar os vínculos que os enlaçam. O livro de Condé nos surpreende exatamente por isso. Mas a maior de todas as surpresas do livro foi encontrar, no capítulo sobre uma possível teoria da história em Wittgenstein, um modelo diferente de investigação do passado, que poderia responder muito bem às exigências das diferenças temporais que não conseguimos conformar juntas sem cometer anacronismos: um modelo fundamentado na multiplicidade dos tempos da história.

Entendemos que o livro de Condé pode ser lido como um texto que trata de método e ensina a usá-lo de forma criativa e como instrumento de análise crítica, procurando compreender como funcionam as dimensões da linguagem, os modelos teóricos da ciência, da história, e como se constituem as filosofias de diversos pensadores, suas visões de ciência e da realidade. Podemos dizer que o livro de Condé serve como uma utilíssima aula de método e seus usos na pesquisa filosófica e histórica. Nesse sentido, acreditamos que filósofos e historiadores deveriam apreciá-lo.

Raylane Marques Souza – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS-UnB). Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGHIS-UFMG, 2016). Graduada em História, na modalidade licenciatura, pela Universidade Federal do Ceará (UFC, 2013). Foi bolsista do PET – Programa de Educação Tutorial (2011-2013) e do CNPq (2014-2016). É bolsista Capes (2017- ). Tem experiência e interesse de pesquisa nas áreas de Teoria e Filosofia da História, Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência, História da Historiografia e História das Ideias e Intelectual, com destaque para os seguintes temas: Friedrich Nietzsche e seu contexto intelectual; história do conhecimento histórico; filosofia do conhecimento científico e da vida; teoria, história e filosofia dos conceitos; teorias e filosofias da história; história da historiografia alemã (sécs.19-20); epistemologias e temporalidades. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Ludwig Feuerbach (GPLF-UFC), do Grupo de Estudos Marxistas (GEM-UFC) e do Grupo de Leitura Hegel (GLH-UFC), todos cadastrados na plataforma do CNPq. Também é membro da SBTHH – Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (desde 2013).


CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein e os filósofos: “semelhanças de família”. 1. ed. – Belo Horizonte [MG]: Fino Traço, 2020, 194p. Resenha de: SOUZA, Raylane Marques. Sete usos do método Wittgensteiniano das “Semelhanças de Família” HH Magazine – Humanidades em Rede. 11 nov. 2020. Acessar publicação original [IF].

 

Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência | Mauro Lúcio Leitão Condé

A ciência tem história? É dessa questão aparentemente singela e por que não óbvia, que o autor procura resolver e/ou apontar possíveis caminhos para discussão acerca do “problema da historicidade”. O livro em questão surgiu a partir de um curso ministrado pelo autor em 2013 na Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência por ele classificado como uma “análise de episódios importantes da historiografia da ciência produzida ao longo do século XX” (p. 19).1 Segundo o autor, não seria propriamente um livro de história da ciência, mas uma reflexão sobre como pensar filosoficamente a escrita da história da ciência (linguagem, narrativa, discurso), uma vez que, a “historiografia da ciência” situa-se entre a história da ciência e a filosofia da ciência, pois, “pressupõe sempre uma concepção epistemológica por trás de seus modelos” (p. 19), em que os paradigmas epistemológicos são também históricos, partindo da premissa kuhniana de que “a ciência tem história” (p. 20). Leia Mais

Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência | Mauro Lúcio Leitão Condé

A produção acadêmica mostra a importância de que as teorias e as práticas científicas sejam investigadas à luz de seu desenvolvimento desde o passado, motivo pelo qual a história da ciência se instituiu como domínio autônomo do conhecimento. Construída em debate (e também embate) disciplinar com a história, a filosofia e a sociologia, a história da ciência tem proposto questionamentos teóricos, alguns respondidos de diferentes maneiras ao longo do tempo, outros ainda não totalmente solucionados. Produzir uma narrativa em história da ciência suscita problemas metodológicos e epistemológicos para o pesquisador. De um lado, a escolha das fontes e a adoção do referencial teórico podem gerar dificuldades práticas para o trabalho investigativo; de outro, o caráter histórico da constituição da ciência interroga a escrita da história da ciência. É nesse cenário que se insere o livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência ( Condé, 2017 ). Leia Mais

Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência – CONDÉ (PH)

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência. Curitiba: ED. UFPR, 2017. 171 pg. Resenha de: SILVA, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da. Internalismo versus externalismo em história da ciência: uma proposta de integração. Projeto História, São Paulo, v.62, Mai-Ago, pp. 388-395, 2018.

Mais do que uma análise histórica sobre uma das maiores controvérsias existentes na História da Ciência, entre as escolas internalista e externalista de teoria científica, o livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, do Professor Titular de História da Ciência na UFMG Mauro Lúcio Leitão Condé, desenvolve a ideia de superação da dicotomia entre essas duas perspectivas metodológicas. O objetivo da obra é construir a categoria epistemológica “historicidade da ciência”, uma proposta que promoveria a articulação entre os elementos sociais com as dimensões empíricas do real.

O livro é resultado do minicurso ministrado em setembro de 2013, por Condé, na Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência – ligada ao Departamento de Filosofia da UFPR. Observada a trajetória acadêmica do autor, podemos concluir que esse estudo apresenta uma síntese de investigações que Condé vem desenvolvendo há quase três décadas. Em Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência o autor faz uso tanto de autores com os quais trabalha desde o início da carreira, como Wittgenstein e Thomas Kuhn, quanto de pensadores que começou a discutir com mais frequência nos últimos tempos, como Alexandre Koyré, Ludwik Fleck e Edgar Zilsel.

Como o problema da historicidade da ciência é de natureza epistemológica, esse estudo deve ser visto em um contexto disciplinar mais amplo. Para além das fronteiras da História da Ciência, o livro se alinha com outras áreas que investigam os pressupostos metateóricos que fundamentam a produção do conhecimento científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Antropologia. Embora o texto atinja uma notória profundidade teórica, é desenvolvido em uma linguagem simples e inteligível, sendo sua leitura indicada tanto aos iniciantes interessados em compreender a dicotomia externalismo versus internalismo, quanto aos iniciados que buscam aprofundar-se na temática.

Para operacionalizar sua análise, ou seja, para inter-relacionar as duas perspectivas metodológicas, Condé se utiliza do método comparativo. Em um primeiro momento, o autor elege representantes de cada uma dessas linhas teóricas – Koyré e Zilsel – e lança luz sobre seus principais pontos de divergência. Constatada a querela, Condé passa a analisar como a proposta externalista ganhou, a partir de Kuhn, proporções inimagináveis, ofuscando, inclusive, o que há de meritório na análise internalista. Por fim, o autor, resgatando ideias de Fleck e fazendo uso da filosofia da linguagem de Wittgenstein, procura desenvolver uma proposta de integração na qual tanto o internalismo como o externalismo são utilizados na confecção de uma epistemologia que analisa as influências socioculturais do cientista sem negligenciar o papel da natureza, a historicidade da ciência.

O livro se divide em prefácio, introdução, quatro capítulos e uma conclusão. O prefácio, escrito pelo professor da UFPR Eduardo Salles de O. Barra, busca introduzir o conceito de historicidade da ciência. Para Barra, o esforço de Condé se dá em compreender como o conhecimento científico é produzido por um profissional que está inserido em um determinado contexto. O que Condé, aos olhos de Barra, quer dizer é que o cientista não se encontra em uma ilha isolada quando pratica seus experimentos. Na realidade, existe um conjunto de valores sociais, de pressupostos, de imaginários, que, mesmo não intencionalmente, condicionam o cientista em suas atividades. A “esterilização” laboratorial não levaria em conta que o próprio cientista, na prática da ciência, já estaria partindo de pressupostos, tradições, consensos acadêmicos, refutando, assim, a possibilidade de se atingir um conhecimento pretensamente positivo.

Mas essa forma de analisar a ciência como uma prática social observando seus condicionantes externos – ou seja, a visão externalista – teria se radicalizado em estudos do final do século XX, valorizando em demasia a abordagem sociológica da ciência e atingindo nuances próprias ao relativismo (p. 16). Estudos sobre a teoria científica desenvolvidos pelo Programa Forte da escola de Edimburgo acabariam por retirar a importância da natureza na prática científica, dando, assim, excessivo valor às dimensões sociais presentes no “fazer ciência”. Para Barra, o grande  mérito do livro de Condé está, justamente, em propor uma epistemologia ligada aos estudos sobre a teoria da ciência que, como veremos, pense a atividade científica como um produto da interação linguística entre o aspecto social, próprio do contexto do cientista, que não negligencia o papel do dado empírico proveniente da investigação do mundo natural.

Na Introdução, denominada A ciência tem uma história, Condé anuncia uma de suas teses centrais: a de que, para além da conclusão óbvia de que as ciências têm uma história, a forma como essas histórias são construídas também influenciam o próprio processo de produção científica. Isto é, constatada que a visão dos homens é condicionada historicamente, essa premissa é estendida aos cientistas e às atividades laboratoriais: “Todo conhecimento da natureza é tecido a partir de sua historicidade social e linguística” (p. 28). Mais do que história, as ciências possuem historicidade.

O Capítulo 1, intitulado O filósofo e as máquinas: Koyré, Zilsel e o debate internalismo versus externalismo, tem como objetivo mostrar que as origens desse debate remontam à controvérsia sobre as origens da ciência moderna. Os internalistas, representados na figura de Alexandre Koyré, defendem que a Revolução Científica aconteceu por conta de uma mudança na “atitude metafísica” (p. 32), uma alteração de pensamento no plano teórico, que desbancou a escolástica medieval e instaurou um novo cenário intelectual que possibilitou o desenvolvimento da ciência moderna e, consequentemente, das novas tecnologias. Do lado oposto, os externalistas, representados por Edgar Zilsel, advogam que a Revolução Científica foi protagonizada pelas mudanças oriundas da união do saber prático dos artesãos-engenheiros (o “saber-fazer”) com a racionalidade e o saber teórico da tradição filosófica (o “saber-pensar”), gerando o método experimental que caracterizou a ciência moderna. A emergência do capitalismo e a valorização da tecnologia e da mercadoria teriam influenciado esse processo. Assim, enquanto Koyré e os internalistas entendem a Revolução Científica como uma mudança de “atitude metafísica”, Zilsel e os externalistas a compreendem como uma consequência do novo contexto social e econômico que caracterizou a Modernidade.

Condé argumenta que, embora Koyré e Zilsel tenham lançado duas importantes perspectivas metodológicas para os historiadores da ciência, seus modelos continham imprecisões. O internalismo koyreniano, amplamente baseado no realismo matemático de perfil platônico e cartesiano, desconsiderava a influência do contexto na atividade dos cientistas. Já o externalismo, na forma como apresentada por Zilsel, além de não produzir o conceito de historicidade, já que não desenvolveu a ideia de que a história de uma ciência afeta o seu resultado, dava excessiva importância à tese de que a ciência moderna surgiu da união do “saber-fazer” com o “saber-pensar”. Este argumento foi questionado pelos internalistas que observaram que os antigos romanos também contavam com essas duas práticas em sua sociedade e não produziram a ciência moderna. Assim, mais do que desenvolvimento técnico, os internalistas defendiam que as mudanças trazidas pela Revolução Científica se davam na “atitude metafísica”.

No Capítulo 2, O elo perdido: Fleck e a emergência da historicidade da ciência, Condé mostra como a ideia de historicidade da ciência, amplamente divulgada por Kuhn na década de 1960, já existia desde a década de 1930, desenvolvida pelo médico e filósofo Ludwik Fleck. Este pensador teria sido o primeiro a refletir sobre as conexões que se estabelecem entre a ciência e a sociedade. Segundo Condé, Fleck inaugura uma nova epistemologia para se pensar a prática científica na qual a ciência não pode ser vista separada de seu contexto histórico e social. O conhecimento científico não seria apenas fruto do “estilo de pensamento” de um determinado coletivo de cientistas, mas de toda a sociedade na qual o praticante da ciência está inserido. A partir dessa constatação, Condé conclui que não existe conhecimento fora do social e, consequentemente, fora do tempo. Essa seria a noção de historicidade da ciência que Fleck chamaria, na década de 1930, de “ciência das ciências”. Essas ideias entrariam em conflito com o objetivismo característico do neopositivismo do Círculo de Viena, vertente epistemológica hegemônica da época, o que acabou por relegar Fleck ao ostracismo.

No Capítulo 3, “Um papel para a História”: historicidade versus relativismo em Thomas Kuhn, Condé analisa Kuhn em dois momentos. No primeiro, quando, na década de 1960, publica A Estrutura das Revoluções Científicas, afirmando a importância do contexto histórico no “fazer científico” – premissa que foi de encontro às pretensões de objetividade do “racionalismo crítico” de Popper. E, em um segundo momento, a partir da década de 1970, quando alguns de seus seguidores conduziram o estudo da dimensão social da prática científica às últimas consequências, o que acabou por ocasionar o surgimento de grupos de pesquisas que desabilitavam qualquer pretensão objetiva de investigação da natureza – o Programa Forte de David Bloor seria um exemplo. Estes grupos, chamados socioconstrutivistas, foram considerados por Kuhn como relativistas. Segundo Condé, o autor da A Estrutura das Revoluções Científicas passaria o resto da carreira tentando desenvolver uma teoria que conciliasse a dimensão social com a natural. Entretanto, teria morrido antes de terminar esse projeto. Assim, a “tensão essencial” para Kuhn seria o paradoxo insolúvel no qual “sociedade” e “natureza” são, supostamente, inconciliáveis. Mas Kuhn teria deixado algumas pistas que apontavam para uma possibilidade de inter-relação linguística entre esses dois mundos. Abandonando a noção dos paradigmas, Kuhn passaria a estudar o diálogo entre os diferentes grupos científicos a partir da teoria da linguagem e da tradução dos seus respectivos “campos léxicos”.

Entretanto, segundo Condé, a teoria da linguagem científica desenvolvida por Kuhn defendia a “coisa em si” kantiana, o que o teria impedido de levar a análise linguística às últimas consequências. E é a partir desse horizonte que Condé, no Capítulo 4, Wittgenstein e a gramática da ciência: linguagem e práticas sociais no conhecimento científico, utiliza a filosofia da linguagem desenvolvida por Wittgenstein para estudar uma possibilidade de congregar os três conceitos: a sociedade, a linguagem e a natureza. A partir da ideia de “gramática da ciência” o autor propõe que a “historicidade do conhecimento” é feita pela linguagem, a partir da “tessitura”, ou entrelaçamento, dos aspectos sociais e dos dados empíricos obtidos do mundo natural.

Condé nega qualquer tipo de essência transcendental na linguagem, assumindo, por meio de Wittgenstein, que seu uso nos diferentes contextos é regido por regras – as “gramáticas” –, e que essas categorias de linguagem estão em permanente construção, sendo, portanto, produto da “práxis social”. O que Condé está defendendo é que a “coisa em si” kantiana é questionável nessa abordagem linguística e que a própria cultura científica estabelece, em um movimento permanente, as regras que normatizam as práticas científicas. Diferente do relativismo socioconstrutivista do Programa Forte, Condé admite que essa construção linguística da prática científica é feita, também, em diálogo com a natureza, compreendida como “objetos, fatos, ações” (p. 150). Assim, o autor argumenta que a epistemologia sugerida pela historicidade da ciência reconhece na linguagem a possibilidade de articulação da dimensão social com a natural e empírica do trabalho científico.

Na Conclusão do livro, Condé, além de desenvolver uma síntese das discussões dos capítulos anteriores, afirma que a historicidade da ciência pode ser um horizonte epistemológico produtivo para os analistas interessados em compreender a prática científica como um fenômeno de linguagem que congrega tanto a dimensão social quanto a natural.

O livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, mais do que apresentar de forma relevante uma possibilidade de superação do problema internalismo versus externalismo, fornece, com agudeza, novas diretrizes epistemológicas para o estudioso da teoria da ciência interessado em refletir sobre as historicidades possíveis na relação entre o “sujeito” e o “objeto” a partir de uma perspectiva linguística.

Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva – Bacharel em História pela Universidade de São Paulo, é aluno do Programa de Pós-graduação em História da UNESP/Assis. Tem experiência na área de História da Ciência. Número ORCID: 0000-0001-8697-2799. E-mail: [email protected].