Os Desafios da Cooperação Tripartite Brasil – Cuba – Haiti / História Ciências Saúde — Manguinhos / 2016

As experiências tradicionais de cooperação internacional do eixo Norte-Sul foram em sua grande maioria verticais e autoritárias. Nos últimos anos, um novo modelo de cooperação estruturante está emergindo entre países médios e países em desenvolvimento, em que os participantes têm uma relação horizontal, com diálogo efetivo, e cujo progresso é concebido a partir de aprendizagem e benefício mútuos. O Brasil teve uma experiência importante nesse novo tipo de colaboração com a Cooperação Tripartite Brasil-Cuba-Haiti. O objetivo principal dos artigos deste dossiê é contribuir para uma avaliação dessa experiência, levando em consideração que as categorias principais do novo modelo de cooperação devem ser a relevância e o caráter sustentável da cooperação.

É importante que essa colaboração tripartite representativa do novo modelo de cooperação tenha ocorrido em um país cuja trajetória histórica é um emblema dos problemas, dos desafios e das vicissitudes políticas do Caribe, mas também de lutas e resistências importantes para o processo de formação do mundo contemporâneo. Desde as últimas décadas do século XX, sobretudo a partir da queda da ditadura de François Duvalier, em 1971, a instabilidade política e social, a violência e a precariedade das condições de vida e de saúde tornaram-se características marcantes do Haiti. Isso começou a mudar em 1º de junho de 2004, quando as Nações Unidas começaram a articular uma série de ações internacionais destinadas a restituir uma democracia “vigiada”, fortalecer as instituições do Estado e promover iniciativas para a erradicação da pobreza extrema. Foi um grande desafio atuar em um dos países mais pobres da América Latina, com população de aproximadamente nove milhões de habitantes, da qual 40% vive nas zonas urbanas, e que apresenta configuração insular. É nesse contexto que nasce a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), força militar de estabilização social e institucional, na qual o Brasil apresenta-se desde o primeiro momento como uma liderança expressiva dos contingentes militares plurinacionais. Agravando a situação de instabilidade, em 12 de janeiro de 2010, o Haiti é atingido por um terremoto com força de 7,3 na escala de Richter, o qual afetou fortemente a região sudoeste do país. Em um país já devastado pela pobreza, o terremoto agravou o quadro de tragédias naturais de uma região sujeita a furacões e tormentas tropicais. Diante da magnitude do desastre, as forças nacionais e agências de cooperação já em operação no país percebem que as intervenções necessitam de estratégias de médio e longo prazos, em que fortalecer a saúde pública (a situação da maioria da população haitiana em termos de saneamento básico e condições de habitação era calamitosa) seja um objetivo fundamental.

A Cooperação Tripartite entre Brasil, Cuba e Haiti teve início em 2011, com o objetivo de fortalecer o sistema de saúde haitiano. Envolveu recursos substantivos doados pelo Brasil ao Haiti para o desenvolvimento de ações estratégicas. No Brasil, o projeto teve a liderança do Ministério da Saúde, que buscou apoio de instituições nacionais para parcerias nas áreas de formação de recursos humanos, entre elas a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nesse processo, couberam às unidades e aos programas da Fiocruz envolvidos – a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict) e o Canal Saúde, todos sob a coordenação técnica do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris) – as iniciativas de formação de profissionais de saúde de diversas categorias, as quais buscaram privilegiar uma cooperação horizontal e estruturante. O Canal Saúde, em parceria com o Ministério da Saúde do Haiti e mídias locais, liderou as estratégias de comunicação para a promoção da saúde no país caribenho, com destaque para a estruturação de programas de rádios comunitárias no interior do país. O Icict focou as ações de cooperação no fortalecimento do suporte tecnológico ao ensino de saúde e no desenvolvimento dos sistemas de informação, resultando na Campanha Nacional de Vacinação e no desenvolvimento da Rede Haitiana de Vigilância, Pesquisa e Educação na Saúde, em que colaborou com a Ensp e a UFRGS.

Este número de História, Ciências, Saúde – Manguinhos traz quatro artigos que descrevem e analisam parte dessa importante experiência nos campos da epidemiologia, gestão de recursos físicos e tecnológicos de saúde e outras dimensões biomédicas da cooperação internacional em saúde Sul-Sul. Alguns estudos priorizam o olhar das ciências sociais, como o que investiga os migrantes haitianos no Amazonas e outro que aborda o debate etnográfico sobre cooperação internacional para a saúde no Haiti. Em conjunto, os artigos convidam a refletir a respeito de como encontrar um formato realmente colaborativo e sustentável para os processos de cooperação estruturante no eixo Sul-Sul, sem dúvida um grande desafio para os países da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Nesse sentido, representam não somente um aporte acadêmico, mas também uma contribuição para o debate acerca das políticas de cooperação em medicina, educação e saúde pública entre as nações da América Latina e do Caribe.

Aproveito para agradecer a Paulo Buss sua contribuição na aplicação dos princípios da cooperação estruturante à experiência da Cooperação Tripartite Brasil-Cuba-Haiti, e a Luisa Regina Pessoa, cujas sugestões e recomendações trouxeram elementos conceituais e operacionais para uma análise mais apurada da complexa realidade haitiana.

Carlos Linger – Centro de Relações Internacionais em Saúde / Fiocruz


LINGER, Carlos. Apresentação. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, n.2, abr. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Brasil-Alemanha: Imigração, Cidadania e Cooperação / Textos de História / 2008

Apresentação

Os temas imigração, cidadania e cooperação entre povos e nações vêm adquirindo renovada relevância na historiografia acompanhando a tendência de outras disciplinas como a sociologia, a antropologia e a geografia, em primeira linha em face das novas dimensões colocadas por esses fenômenos em um mundo globalizado.

O presente número da revista Textos de História enfoca esses três temas a partir do aspecto bilateral teuto-brasileiro; melhor dizendo, do ângulo brasileiro sobre a imigração alemã, a luta pela cidadania desses imigrantes e seus descendentes na terra receptora e da cooperação no sentido Alemanha- Brasil.

Alemães no Brasil aportaram desde Cabral, haja vista o piloto Mestre João. Não obstante, os textos do presente Dossiê tratam, preponderantemente, da emigração alemã no período que corresponde à grande onda migratória na época da revolução industrial do século XIX.

Os anos de 1840 a 1890 correlacionam-se à aludida fase da migração em massa motivada por busca de melhores condições de vida, fuga de anos de fome, revoluções, mecanização do campo. Tudo isso em um contexto marcado pelas novas condições de deslocamento proporcionadas pelas novas tecnologias nos meios de transporte de massa – navios a vapor fabricados com placas de aço, trens de ferro que transportavam os migrantes para os portos de embarque ou para o interior dos países de destino. Não obstante, outras experiências que extrapolam esse período são também abordadas.

Os fluxos migratórios dirigiam-se majoritariamente aos Estados do Sul, mas, em pequena escala, espalharam-se por pontos de praticamente todo o território brasileiro, em especial, nas cidades portuárias.

Facetas dessa imigração são abordadas por Mercedes Gassen Kothe, que mostra a situação que os imigrantes alemães encontraram em São Paulo, nas fazendas de café e nos núcleos coloniais nas primeiras décadas da Primeira República.

A tentativa de assentar imigrantes alemães no sul da Bahia, nos anos 1920, é tema narrado por Albene Miriam Menezes em uma abordagem fundamentada no contexto histórico da questão migratória no mundo do pós Primeira Guerra Mundial e das especificidades daquele Estado.

A inserção desses imigrantes e seus descendentes nas respectivas comunidades possui características diferenciadas na dependência direta do desenvolvimento econômico, social e político das regiões nas quais se localizavam os seus núcleos populacionais.

Desse modo, a luta pela construção da cidadania encontra-se, assim, diretamente condicionada à uma gama multifacetada de vetores formais, legais, políticos, sociais econômicos e autárquicos.

Aspectos desse processo são tratados no texto de Ryan de Sousa Oliveira, que traz reflexão sobre o exercício da cidadania política entre os teutobrasileiros no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX, e busca contribuir para o debate de algumas questões controversas sobre o processo de integração do grupo dos teuto-brasileiros no jogo político brasileiro. Silvana Krause avalia a diversidade do comportamento político das zonas coloniais alemãs no sul do Brasil sob uma perspectiva histórica, além de fazer uma reflexão sobre identidade étnica e como esta se relaciona e se situa em outras esferas da construção de identidades.

E por fim, René Gertz analisa a possível influência positiva e negativa da presença de descendentes de alemães no Brasil sobre as relações com a Alemanha, no decorrer do tempo. Essa abordagem estende-se da segunda metade do século XIX até a Segunda Guerra Mundial, compreendendo também a tentativa de verificar como esse tema foi visto pela historiografia pertinente.

Outra dimensão desses entrelaçamentos teuto-brasileiros é a da cooperação, que por si só tem largo escopo; ela pode ser identificada, por exemplo, no âmbito das próprias comunidades de alemães e seus descendentes.

Sem embargo, ao longo dos dois séculos em tela, a cooperação adquire muitos aspectos. Nesse sentido, as diferentes modalidades de cooperação da Alemanha com o Brasil ocorrem ao longo do período, desde o envio de livros didáticos, instrumentos musicais e implementos agrícolas até excursões de cientistas para observar as lavoras brasileiras e propor soluções para alguns de seus problemas. Essa cooperação dá-se tanto no nível dos atores sociais como dos governos. No campo do saber, a exemplo das áreas filosófica, jurídica, técnica, artística e científica, observa-se uma clara influência alemã no Brasil.

Assim, Cláudia de Rezende Machado de Araújo analisa a influência do direito alemão no direito brasileiro. Fato esse observável desde o tempo colonial, haja vista a influência daquele nas Ordenações portuguesas. Destaque é dado para a influência do constitucionalismo alemão, em particular da Constituição da República de Weimar (1919), sobre as Constituições brasileiras de 1935 e 1988.

Por seu turno, Marina Helena Silva aborda a situação do Brasil na conjuntura econômica internacional, no período anterior à Segunda Guerra Mundial, demonstrando sua inter-relação com o mercado interno e baiano.

Trazendo para o debate aspectos dos dias atuais, Carla Miranda enfoca o tema da cooperação técnica entre os dois países; seu estudo identifica uma mudança nessa cooperação a qual, a partir da década de 1980, volta a centrar a cooperação técnica à capacitação para o desenvolvimento, partindo de uma dimensão político-estratégica alemã.

Além das reflexões explicitadas nos textos, uma das contribuições subjacentes, até onde os estudos aqui apresentados podem permitir, vem a ser a identificação da necessidade de enfoques desses temas em uma perspectiva comparada. Certamente, o cotejamento da problematização dos temas em uma dimensão de reciprocidade aprofundaria a abordagem dos mesmos. Ilustrativamente, o tema da cidadania urge estudos que abordem os problemas a ele relacionados tanto no Brasil, país de destino dos migrantes, como na Alemanha, terra de origem do fluxo migratório.

Desse modo, o presente dossiê, longe de esgotar os assuntos tratados, pretende de alguma forma contribuir com informações e abordagens específicas para o debate na seara histórica acerca da imigração, cidadania e cooperação entre povos e países de um modo geral e mais especificamente ao que reporta os aspectos relacionados com os alemães e seus descendentes no Brasil, assim como ao que se consubstancia no contexto da cooperação entre o Brasil e a Alemanha, particularmente ao que diz respeito à faceta da cooperação técnica.

A todas as autoras e autores o agradecimento cordial da Textos de História e particularmente da organizadora do presente dossiê, com a esperança de que suas contribuições possam animar o debate acadêmico, mesmo que de forma pontual, e ser útil de alguma forma para o leitor interessado em História.

Albene Miriam F. Menezes

Organizadora

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