Representação dos árabes e muçulmanos na televisão brasileira | César Henrique de Queiroz Porto

RC Destaque post 2 Representação dos árabes
César Henrique de Queiroz Porto | Imagem: Arquivo pessoal/UNIMONTES

A telenovela tem uma importância transcendental para a cultura brasileira. No ar há quase 70 anos2, o Brasil já se viu, por muitas vezes, representado nas inúmeras narrativas ficcionais produzidas e exibidas pelas emissoras brasileiras de televisão. Contudo, não foram apenas as telenovelas com enredos repletos de brasilidade que acompanhamos nesse longo período de teledramaturgia brasileira, haja vista que – dada a originalidade dos novelistas3 – também pudemos acompanhar tramas que trouxeram ao telespectador culturas e costumes de outros povos como, por exemplo, a telenovela O Clone, de autoria de Glória Perez, produzida e exibida entre 2001 e 2002, pela TV Globo.

O Clone foi exibida no emblemático ano de 2001, marcado não apenas pelo início do século XXI, mas também pelos ataques terroristas contra os Estados Unidos, promovidos pela organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda, liderada pelo saudita Osama Bin Laden. No dia 11 de setembro de 2001, os terroristas lançaram ataques suicidas – através de aeronaves – contra os prédios do Pentágono, em Washington, e no World Trade Center (também conhecido como Torres Gêmeas), em Nova York, resultando na morte de mais de três mil pessoas. Foi nesse contexto histórico que vinte dias após o atentado terrorista, em 01 de outubro de 2001, estreou a telenovela O Clone, trazendo em sua espinha dorsal toda a cultura muçulmana, além de outros temas tabus como clonagem humana e dependência química. Leia Mais

Forbidden Passages. Muslims and Moriscos in Colonial Spanish America | Karoline P. Cook

El nuevo libro de Karoline Cook es más que bienvenido. Su razón es sencilla: hasta la fecha no existía una monografía sobre la inmigración morisca a las colonias hispanas en América durante los siglos XVI y XVII. Su justificación es más compleja, pero enriquecedora a la vez: el tema de los moriscos adquiere para la sociedad hispana y sus colonias de ultramar una relevancia específica, porque para entonces era deplorable tener un antepasado musulmán, judío, indígena o africano. Por tanto, las identidades se convertían en estrategias para camuflar, en la medida de lo posible, un pasado “impuro”. Un musulmán convertido al cristianismo se encontraba en la mira de la Inquisición por posible herejía, quedaba bajo la sospecha de impureza de sangre, lo que, a su vez, entorpecía el acceso al poder y lo hacía blanco de las redes de vigilancia de la Casa de Contratación que, de este modo, podía prohibir su migración a las colonias. El miedo fue el aliado más poderoso de este aparato normativo, que reducía a los moriscos a una categoría peyorativa equiparable con la desconfianza. Los musulmanes habían sido construidos como enemigos del pasado y presente a partir del espíritu medieval de las cruzadas. Con esta herencia, después de la Reconquista (1492), los levantamientos de las Alpujarras (1568-1571) y diferentes expulsiones fueron resignificados, también con ecos transatlánticos, como inasimilables, rebeldes y desleales. Se imaginaron como aliados del imperio otomano, cercanos a los bereberes del norte de África o, incluso, asociados con enemigos protestantes. Leia Mais

When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam | Philip Michael Penn

Ao contrário do que sugeriram alguns analistas em momento anterior, a religião não desapareceu do horizonte nestas primeiras décadas do século XXI. Ao contrário, o revival da militância religiosa, que não cessa de se fazer presente de diversas formas nos projetos e preocupações contemporâneas, constitui-se em um importante desafio às análises sobre as crises contemporâneas que nos afligem. Esses fenômenos de efervescência religiosa de amplas consequências sociopolíticas e culturais, contudo, não são desconhecidos dos historiadores. Talvez um dos mais importantes deles tenha sido o que se alastrou pelo Oriente Médio do primeira metade do século VII, onde se verificou o embate entre o cristianismo bizantino e o zoroastrianismo sassânida, o recrudescimento das disputas cristológicas que já dividiam as comunidades cristãs há duzentos anos, e o surgimento do Islã, que se apresentou ao mundo a um só tempo como religião e como projeto imperial. O espetacular ressurgimento do islamismo político em nossos noticiários faz com que olhemos para esses eventos de modo assustadiço e anacrônico, como se sementes ou prefigurações. As realidades que nos são apresentadas pela documentação de época, porém, são bastante mais complexas.

Infelizmente, nosso olhar para esta realidade ainda é míope. De acordo com o Anonymi auctoris Chronicon ad annum Christi 1234 pertinens, importante texto siríaco medieval, em 636, depois de vencer os persas e assistir às primeiras vitórias árabes a expensas de seus domínios, o imperador bizantino Heráclio abandonou Antioquia aos apetites de seus soldados e à iminente conquista muçulmana. A partir deste ponto, o Império Romano do Oriente perderia suas possessões no Oriente Médio e na África, passando geralmente a um combate defensivo contra o jovem Califado. Trata-se, no entanto, de uma virada não só na história da região e da humanidade, mas igualmente da historiografia. A maior parte dos historiadores interessados na história do cristianismo, ao se deparar com a década de 630, faz o mesmo que Heráclio e diz “Sozou, Síria!” O mais comum é que, em suas reconstituições e análises, o cristianismo médio-oriental, que durante séculos constituiu o coração pulsante do ecúmeno cristão, desapareça subitamente a partir daí; seus objetos de reflexão passam a ser, preferencialmente, os documentos e questões dos cristianismos latino e (em proporção muito menor) bizantino. Por outro lado, em uma pragmática divisão do trabalho intelectual, historiadores interessados na ascensão do Islã e na formação do ecúmeno muçulmano fazem o caminho inverso e se dedicam ao estudo intensivo dos textos em árabe e em persa referentes a tais fenômenos. Ambas as abordagens sobre esse período de crise, contudo, são problemáticas e, como se afirmou antes, míopes. Se não mais, porque ignoram as condições e perspectivas da maior parte da população então submetida ao domínio islâmico: cristãos não bizantinos e não latinos, que permaneceram por séculos sob o domínio do Califado sem passarem de modo necessário pelo processo de islamização.

Os membros das antigas Igrejas apostólicas do Oriente, que compunham talvez três quartos do número total de cristãos da segunda metade do primeiro milênio da Era Comum, assim marginalizados pela historiografia, o são por razões diversas. Duas são particularmente notáveis: o fato de serem sistematicamente ignorados – quando não deliberadamente silenciados – pelos historiadores da Igreja de matriz latina (católicos ou protestantes) e bizantina (gregos, russos, entre outros) como heterodoxos, cismáticos e, por consequência, supostamente menores; e, a dificuldade de acesso aos documentos por eles produzidos, em função de barreiras linguísticas e editoriais. Tal cenário é bastante trágico ao se considerar de uma só vista o crescente interesse pela história do Islã inicial e a precariedade ainda vigente dos estudos referentes aos textos escritos no âmbito das Igrejas de matriz siríaca. Ora, os escritos produzidos por cristãos sírios nos séculos VII a IX são simplesmente fundamentais para se reconstituir o processo de estabelecimento do Islã no centro daquelas partes que hoje conhecemos como sendo o mundo muçulmano. É certo que os especialistas em história islâmica dispõem de centenas de milhares de páginas de documentos de época, escritos em árabe e em persa, referentes à vida de Muhammad, ao governo dos primeiros califas e da dinastia omíada, mas a maior parte delas remonta efetivamente ao período posterior à ascensão dos abássidas, em 750, quando houve um grande investimento da parte dos novos donos do poder para sistematizar o que se conhecia sobre o passado do Califado como uma forma de corroborar suas reivindicações do exercício de uma autoridade, não apenas de fato, mas legítima. Não é fácil separar, no âmbito deste amplo acervo documental, o material realmente antigo das interpolações posteriores. Uma exceção evidente a este quadro é, sem dúvida, o Corão, mas se deve recordar que ainda há uma enorme resistência da parte de muitos pesquisadores (e não apenas entre os que são muçulmanos devotos) em submetê-lo a uma exegese histórico-crítica conveniente. Lidar com os textos siríacos da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII que mencionam o Islã não é, portanto, apenas se deparar com mais uma das visões cristãs sobre o movimento dos seguidores de Muhammad, mas com uma perspectiva particularmente esclarecedora para a própria história islâmica. E isso: 1) Porque se tratam de textos, em sua maior parte, contemporâneos das realidades às quais se referem; 2) Porque, ainda que seja verdade que os cristãos siríacos também compreenderam e descreveram o Islã de acordo com suas próprias formações e interesses, contudo, de um modo geral, seus escritos não foram tão profundamente marcados por um viés agressivo quanto os de autores bizantinos e latinos que produziram imediatamente diante da linha de fratura entre os Estados que os abrigavam e o Califado. Vivendo no interior da Dar alIslam, os cristãos siríacos tinham contato cotidiano e um conhecimento direto do que escreviam a respeito do Islã; se a confiabilidade histórica e o índice de distorção ideológica da realidade constante em seus testemunhos é diversa, entretanto, não se deve esquecer que eles se vinculam diretamente a um cenário onde esses cristãos comiam e negociavam com muçulmanos, casavam e trabalhavam com muçulmanos, educavam seus filhos junto com os filhos dos muçulmanos, e serviam como burocratas, soldados e diversos tipos de colaboradores no Estado Islâmico.

É no sentido de ter um primeiro contato com essa literatura que nos ajuda o When christians met muslims, de Michael Philip Penn, professor de Estudos da Religião, especialista em história do cristianismo primitivo, da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, EUA. Depois de estudar as interações entre rito e identidade nos textos cristãos da Antiguidade Tardia (em Kissing christians: ritual and community in Late Ancient Church, de 2005), Penn dedicou-se a investigar a presença dos cristãos siríacos no jovem mundo islâmico, projeto que rendeu a publicação simultânea, em 2015, de dois livros premiados: Envisioning Islam: syriac christians in the Early Muslim World e When christians met muslims, que é uma coletânea comentada de fontes utilizadas neste estudo. No livro sobre o qual aqui nos detemos, depois de uma breve introdução, Penn apresenta ao leitor vinte e oito escritos produzidos por cristãos siríacos nos quais está de alguma maneira tematizada a sua relação com os muçulmanos. Os textos, provenientes de diferentes nichos confessionais – miafisitas (inapropriadamente conhecidos como jacobitas), dioprosoponitas (inapropriadamente conhecidos como nestorianos), monotelitas e calcedônicos –, são dispostos em ordem cronológica e precedidos por parágrafos introdutórios nos quais se sintetiza o contexto de produção de cada escrito e o histórico de sua transmissão, desde o momento da possível composição até sua redescoberta pelos historiadores contemporâneos. Tratam-se de textos de diferentes estilos e funcionalidades (crônicas, epístolas, apocalipses, hagiografias, cânones sinodais, tratados teológicos e diálogos), dos quais, com a exceção de dois (a Controvérsia de Bēt Ḥalē e a Vida de Teódoto de Amida), omitidos por motivos não esclarecidos, Penn oferece novas versões em inglês. O conjunto é seguido por bons levantamentos bibliográficos, que encaminham eventuais interessados a estudos mais aprofundados a respeito de cada um dos documentos.

É indiscutível que é desejável que um historiador leia os documentos com os quais se propõe a lidar no idioma em que foram originalmente redigidos, assim como é preferível que, tratando-se de escritos que possuem variantes ou uma transmissão problemática, consulte diferentes manuscritos. Isso, entretanto, é virtualmente impossível aos estudantes mais jovens, não apenas os brasileiros, e por diferentes motivos. O mais importante talvez seja o fato de que ninguém se dispõe a investir horas de estudo aprendendo, digamos, o siríaco, se já não possuir um vivo interesse pelo que irá encontrar neste idioma. Nesse sentido, When christians met muslims é um manual importante, que pode despertar o interesse dos pesquisadores em exercício ou em formação para horizontes ainda muito pouco explorados, contribuindo para que, de fato, comecemos a dar passos no sentido de um estudo menos eurocêntrico de nosso passado comum. O livro é igualmente útil aos especialistas por fornecer bons levantamentos bibliográficos, material para exercícios de comparação e subsídio para uso em aulas e outras atividades de divulgação científica. Além disso, pode interessar cientistas da religião e teólogos, que ao pensar o cristianismo tardo-antigo e medieval lidam com contingências e desafios similares aos dos historiadores, assim como interessados em geral no contato entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio, no passado, mas também hoje. De fato, estou certo de que, ao recuperar as diferentes visões dos cristãos siríacos a respeito do Islã recém-surgido, os textos reunidos por Penn não só fornecem elementos para que entendamos melhor o desenvolvimento sociopolítico e cultural posterior da região, mas também nos ajudam no exercício, proposto em um livro de Carlo Guinzburg publicado há poucos anos em português, de “aprender a olhar o presente à distância, como se o víssemos através de uma luneta invertida”.

No caleidoscópio dos textos siríacos rememorados em When christians met muslims é inevitável que nos surja de novo a atualidade, “porém num contexto diferente, inesperado”; assim como não é possível encontrar hoje nem uma existência sempre harmoniosa entre cristãos e muçulmanos, nem um conflito permanente, necessário e inapelável entre essas partes, da mesma forma não se pode surpreender uma coisa ou outra da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII. A convivência entre cristãos e muçulmanos, que a tantos aflige, continua, portanto, como uma questão histórica e política reiteradamente em aberto.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz – Doutorando em História Política pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).  E-mail: [email protected]

PENN, Michael Philip. When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam. Oakland: University of California Press, 2015. Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Testemunhos de um mundo partilhado. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 18, p. 277-280, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]