Hipátia | IFSP | 2016

Hipatia3 Hipátia
Hipátia de Alexandria / Desenho de Jules Maurice Gaspard (1862–1919). Reprodução Wikimedia Commons /

A Hipátia – Revista Brasileira de História, Educação e Matemática  (São Paulo, 2016-) – Qualis B2 na área de Ensino -, conforme sugere seu nome, aceita trabalhos de História da Matemática, Educação Matemática e de Matemática (pura e aplicada).

Artigos de Educação também serão aceitos para apreciação. A revista foi oficialmente criada em 8 de março de 2016. Duas concepções principais nos norteiam:

  1. ajudar a ampliar a participação da mulher na ciência no Brasil;
  2. abrir um espaço para jovens pesquisadores (mestres, doutorandos ou doutores que tenham obtido título há, no máximo, cinco anos).

Isso significa que procuramos dentro da composição de nosso Conselho Editorial, Conselho Científico e em nossas edições, obter uma maioria de pesquisadores ou de trabalhos cujos autores atendam a pelo menos um desses quesitos.

É salutar destacar que, no entanto, contribuições de outros pesquisadores continuam sendo de grande valia. Não é cobrado qualquer valor sobre o envio e processamento dos artigos.

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[Acesso livre]

ISSN 2523 2686

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Modelagem em Educação Matemática – MEYER et al (Bo)

MEYER, J. F. C. A.; CALDEIRA, A. D.; MALHEIROS A. P. S. Modelagem em Educação Matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Resenha de: KISTEMANN JÚNIOR., Marco Aurélio. BOLEMA, Rio Claro, v. 26, n. 42B, p.743-746, abr., 2012.

O final da década de 1970 marca o início da trajetória da Modelagem Matemática na educação matemática brasileira, em oposição, segundo a pesquisadora Lourdes Maria Werle de Almeida, ao Movimento da Matemática Moderna, como uma alternativa de se fazer matemática nas aulas de matemática e em outros espaços, e contrária à ideologia da certeza.

Há diversas entradas para Modelagem Matemática, tanto no âmbito da Matemática Aplicada quanto na Educação Matemática. No contexto da Educação Matemática ela pode ser compreendida como um caminho para o processo de ensino e aprendizagem da Matemática ou para o fazer Matemática na escola, tendo como norteadores a observação da realidade, discussões e investigações que modificam não só as ações que usualmente têm lugar na sala de aula, mas também as formas como se observa o mundo.

Na Introdução do livro sob análise, os autores apresentam estudos que, ao serem desenvolvidos, modificaram o status quo em duas realidades, o que serve de exemplo da Modelagem Matemática como instrumental de intervenção e avaliação do mundo em seus diversos aspectos. Apresentam, ainda, exemplos nos quais são revelados procedimentos de Modelagem que trilham três passos essenciais, quais sejam: a formulação do problema, a resolução aproximada e a avaliação, pressupondo, segundo os autores, o diálogo, a negociação e o acordo, além de buscar a leitura crítica dos resultados.

Apresenta-se, no início do primeiro capítulo, uma analogia entre as escolas filosóficas (Logicismo, Intuicionismo, Formalismo e Hipoteticismo) de fundamentação à Matemática e o cotidiano da Educação Matemática para que, em seguida, seja promovida interessante discussão acerca da objetividade e do formalismo intrínsecos à Matemática, e as consequências desse formalismo na linguagem e nas práticas do professor de Matemática.

Embora reconheçam que a Matemática ainda é considerada, por boa parte da sociedade, como uma disciplina difícil e que afasta as pessoas por, frequentemente, estar desconectada dos fazeres cotidianos, os autores creem que com a introdução da Modelagem nas práticas escolares é possível passarse da mera observação a termos e problemas matemáticos algoritmizáveis para a manipulação e interação com objetos e problemas sem respostas definidas e únicas, o que constituiria sujeitos, num processo de atribuição de significados, por meios da construção e resolução de problemas relevantes para um dado contexto.

Nesse sentido, a ideia que permeia todo o livro é de que para se adotar a Modelagem há que se reconhecer a existência de problemas reais com hipóteses de simplificação, ainda inexplorados num dado contexto, e que tais problemas – que exigirão atribuição de significado, avaliação e crítica por parte dos alunos – venham a se constituir como significativos para estes sujeitos e suas respectivas comunidades.

Criticando as ações pedagógicas dependentes de livros didáticos, os autores asseveram que a estratégia por eles proposta, que visa modelar para compreender fenômenos, possibilita investigações e a produção de dados matemáticos pelos alunos que, assim, podem ter melhores condições para decidir pelas ações a tomar, o que permite também a criação, no estudante, de um cabedal político que fará diferença em seu entorno social e vai além da investigação e do conteúdo matemático em si.

O segundo capítulo apresenta a concepção dos autores sobre Matemática e Modelagem, defendendo a vinculação entre a Modelagem e uma intenção de educar matematicamente, que problematiza o currículo (um dos principais focos da discussão) e vale-se de ferramentas matemáticas para um dado tipo de problema, num dado momento.

Os autores explicitam sua discordância com o pensamento de algumas correntes que, ao reduzirem a Modelagem a um método para o ensino de conteúdos matemáticos, legitimam um currículo rígido e ajudam a cristalizar uma concepção de Matemática como ciência da verdade e da certeza. Eles, ao contrário, almejam, com a Modelagem, ensinar Matemática de modo que os alunos, como agentes ativos, criem mecanismos de reflexão e ação.

Para entenderem a origem da Modelagem e sua inserção no currículo, e defenderem que Modelagem e Matemática consolidam-se e vinculam-se às questões sociais, os autores detalham, em seções curtas, exemplos de algumas situações-problema, explicitando o que entendem por Matemática (Pura e Aplicada) e por aplicações na (Educação) Matemática, cuidando de apresentar e discutir estratégias pedagógicas, riscos e inseguranças que podem vir à cena quando se opta por uma ação parametrizada pela Modelagem.

No terceiro capítulo os tópicos aprofundam a preocupação com a Modelagem em suas possibilidades para a sala de aula. Destaca-se como significativa a referência aos programas de formação de professores que, em sua maioria, ainda se encontram recheados de cientificismos e fundados em modelos que defendem os conhecimentos matemáticos e pedagógicos como instâncias apartadas. Defendem os autores que a formação de professores de Matemática, na perspectiva da Modelagem, passa pelo questionamento do direito de se universalizar o particular, de igualar diferenças e pretender abarcar a totalidade já que nem sempre o processo de ensino e aprendizagem pautado na Modelagem implicará em sucesso inquestionável.

No item Modelagem e Práticas Docentes os autores refletem sobre experiências que vivenciaram com estudantes, apresentando alguns exemplos que revelam como a modelagem, numa perspectiva crítica, foi (e, portanto, pode ser) desenvolvida nas salas de aula.

O quarto capítulo apresenta ao leitor algumas perspectivas de Modelagem e um panorama dos estudos realizados na área, desde sua origem (na Matemática Aplicada) até sua incorporação pela Educação Matemática. Há, ainda, seções que abordam a Modelagem em relação a distintas áreas. Mesmo para os iniciados ou já mais experientes (considerando inclusive o público-alvo das obras de Educação Matemática publicadas pela Autêntica) este capítulo tem sua relevância na medida em que apresenta concepções de Modelagem de diversos pesquisadores e matizes.

Destacamos, deste capítulo, tanto os trechos em que os autores defendem a aproximação entre Etnomatemática e Modelagem – já que, segundo eles, as Matemáticas devem estar intimamente relacionadas à cultura, de modo a compor caminhos que conduzam os indivíduos a (re)pensar e compreender a relação entre conhecimentos matemáticos, práticas e vivências – e o modo esclarecedor com que são feitas aproximações entre Modelagem e Educação Ambiental, Modelagem e Educação Matemática Crítica, Modelagem e Pedagogia de Projetos, e Modelagem e Tecnologias da Informação e Comunicação.

No capítulo final enfatiza-se que a Modelagem deve propiciar a compreensão do fenômeno estudado, sabendo que, sempre, novos ciclos de Modelagem poderão ser efetuados, o que confere a essas práticas, segundo os autores, um caráter de diversidade, dinamicidade e dialogicidade.

Em síntese, o livro é de leitura obrigatória para todos os educadores matemáticos que pensam ser importante, parafraseando Edgar Morin, deslocarse do determinismo e das verdades imutáveis em busca de uma racionalidade que dê sustentação aos pressupostos do pensamento sistêmico e da complexidade que nos cerca.

Marco Aurélio Kistemann Jr. – Doutor em Educação Matemática, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, SP. Professor do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brasil. E-mail:[email protected].

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Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet – GOMES (Bo)

GOMES, M. L. M. Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. Resenha de: ANDRADE, Mirian Maria. BOLEMA, Rio Claro, v.23, n. 36, p.809-817, ago., 2010.

O livro de Gomes originou-se de seu doutorado2 realizado na Universidade de Campinas, UNICAMP – SP, sob orientação de Antonio Miguel. A estrutura adotada na obra configura-se, grosso modo, em uma introdução seguida de seis capítulos aos quais seguem conclusões e referências bibliográficas.

Na introdução Gomes faz algumas considerações iniciais em relação ao trabalho como um todo, explicitando o que abordará em cada um dos capítulos seguintes. Neste momento esboça elementos para uma ideia sobre as contribuições, à educação matemática, dadas por quatro importantes pensadores das Luzes, a saber: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet.

Vinculadas a essas contribuições apontadas pela autora, é que se originaram os títulos dos capítulos, ou seja, cada um desses títulos, de certo modo, sublinha um aspecto considerado importante (talvez o aspecto mais marcante, segundo a leitura de Gomes) da obra de cada um desses “filósofos”3 em relação à Educação e à Educação Matemática4.

O capítulo 1, intitulado “Considerações sobre a educação matemática na França do século das Luzes”, é dedicado à apresentação de um quadro geral da educação na França do século XVIII, buscando fixar o solo em que radicam as contribuições dos quatro iluministas. A referência inicial é a carta 128 do conjunto das Cartas Persas de Montesquieu, cujo conteúdo expressa dois pontos fundamentais relacionados à educação matemática na França àquela época: O primeiro deles transparece no destaque conferido ao matemático, frequentemente denominado geômetra à época, bem como à sua maneira de ver o mundo – é o grande estágio de desenvolvimento atingido pelas ciências e pela matemática, já no início do Setecentos. […] o segundo ponto […] na ordem pedagógica setecentista, o estudo das letras prevalece sobre o das ciências, e a matemática tem pouco espaço. (GOMES, 2008, p. 26-27) A autora refere-se ao expressivo número de publicações na segunda metade dos setecentos, na França, carregadas de reflexão pedagógica que produziram uma diversidade de ideias. Dentre elas, Gomes destaca duas que se configuram como fundamentais à compreensão das concepções (em relação à educação matemática) dos quatro filósofos em questão: “[…] a necessidade de estatizar a educação escolar, é particularmente marcante, como veremos em Diderot e Condorcet” (GOMES, 2008, p. 30) e “[…] a necessidade premente de reformar o conteúdo da educação escolar, com a abertura de um espaço importante para a matemática, está explícita nos escritos dos quatro autores abordados neste trabalho” (GOMES, 2008, p. 30). Ainda, nesse momento, nos são apresentados aspectos gerais da instrução primária e secundária antes da Revolução Francesa. Na França do século XVIII, a educação primária era a escola do povo, enquanto a educação secundária atendia apenas a uma minoria composta pela nobreza e pela elite burguesa.

Dentre os quatro iluministas, Diderot e Condorcet se sobressaem por defenderem uma educação para todos, uma formação na qual a educação matemática possuiria especial importância.

Encerrando este capítulo inicial, a autora discute em linhas gerais o ensino jesuíta e a educação matemática na França. De acordo com Gomes, a Companhia de Jesus investia efetivamente no ensino secundário, dado que o ensino primário não lhe era conveniente – citando Compayre, “tudo se subordina a fé, e a fé do povo não tem melhor salvaguarda do que a ignorância” – e o ensino superior, dito “a alta ciência”, vive de liberdade, o que os jesuítas não poderiam admitir. Maria Laura Magalhães Gomes apresenta, então, um esboço de como eram gerenciadas as questões relativas ao estudo nos colégios da Companhia de Jesus, apontando que, dos quatro iluministas aos quais o foco do livro se volta, apenas D’Alembert não estudou em instituição jesuíta.

Com isso, ficam ressaltadas, de certo modo, algumas das influências educacionais originárias – tanto desses pensadores quanto de uma significativa parcela da sociedade da época – que seriam, no correr da história, questionadas e reformuladas pelos iluministas.

O capítulo segundo, “Diderot e o sentido político da educação matemática”, é dedicado ao estudo da obra de Denis Diderot (1713 – 1784).

Para esse pensador – como já ressaltado no próprio título do capítulo – a educação é um fato primordial para a vida individual e social do indivíduo, direito de todos, de acordo com os méritos e as capacidades de cada indivíduo: para Diderot, portanto, a educação (e veremos que também a educação matemática) é elemento de uma agenda política.

Diderot é considerado o principal editor da Enciclopédia (obra emblemática do iluminismo francês) ainda que usualmente, nas citações, ele apareça como companheiro de D’Alembert. Em 1775 Diderot responde à solicitação da imperatriz da Rússia, Catarina II, enviando-lhe o projeto para a constituição de uma universidade no qual é visível o lugar privilegiado dado à educação matemática.

Um exame da Explicação detalhada do sistema de conhecimentos humanos – texto da Enciclopédia cuidadosamente analisado por Gomes – mostra a proposta de Diderot e D’Alembert quanto à localização da matemática na divisão geral dos conhecimentos humanos, sendo portanto esse exame um ingrediente fundamental para compreendermos a posição de Diderot em relação à matemática. Para ele “o objeto da matemática é a quantidade, um abstrato que os sentidos exteriores percebem; a partir dessa percepção, o Entendimento produz o conhecimento pela reflexão” (GOMES, 2008, p. 53).

Na organização dos estudos proposta por Diderot no Plano de uma Universidade, o enciclopedista exercita suas crenças sobre a educação matemática, que defendiam o conhecimento matemático como instrumental e formativo. A importância do aspecto formativo é notada no texto das Primeiras noções sobre as matemáticas para uso das crianças, obra inacabada que atenderia à execução do Plano. Essa potencialidade da matemática é evidenciada quando Diderot refere-se à geometria que, segundo ele, é a mais simples das lógicas. Para Diderot, o estudo das matemáticas, junto à alfabetização, deveria necessariamente ser acessível a todos, do primeiro ministro ao camponês: todos deveriam saber ler, escrever e contar.

Em relação ao aspecto prático/instrumental, percebe-se que a prioridade da educação matemática é justificada no projeto de Diderot pelo bom funcionamento da sociedade. A autora interpreta o papel desses dois aspectos matemáticos (formativo e instrumental) como constituintes essenciais de seu projeto pedagógico. Apoiada em Dolle, Gomes afirma que, para Diderot, a essência da organização política é a educação.

Duas passagens, segundo a autora, ilustram de modo claro as principais ideias de Diderot em relação à aprendizagem matemática, a saber: “Como quer que seja, segue-se que as matemáticas puras entram em nossa alma por todos os sentidos, e, portanto, que as noções abstratas nos deveriam ser bem familiares” (GOMES, 2008, p.79), um excerto das Adições à Carta sobre os surdos e mudos, e “Saber geometria ou ser geômetra são duas coisas muito diversas. É dado a poucos homens serem geômetras; é dado a todos aprender a aritmética e a geometria”. (GOMES, 2008, p. 79), excerto do Plano de uma Universidade. Finalizando o segundo capítulo, a autora discute as indicações metodológicas de Diderot em relação ao ensino de matemática.

O terceiro capítulo, cujo título é “D’Alembert e a epistemologia da matemática como base da educação matemática”, é dedicado ao estudo do iluminista Jean Le Ronde D’Alembert (1717 – 1783). Para Gomes, fontes ricas para conhecermos o pensamento desse iluminista em relação à educação matemática são os verbetes da Enciclopédia e o Ensaio sobre os elementos da Filosofia. Estudando esses textos, a autora afirma que é possível constatar dois componentes fundamentais das reflexões desse filósofo: D’Alembert situa Bolema, Rio Claro (SP), v. 23, nº 36, p. 809 a 817, agosto 2010 813 a fonte de todo conhecimento na experiência (concordando com Locke) e acredita que existe uma ligação entre todos os objetos de nosso conhecimento, e pensa a geometria como sinônimo da matemática, ainda que não deixe de, em seus escritos, atribuir importância à álgebra.

Duas questões são tomadas como centrais para a compreensão das idéias de D’Alembert: sua posição de, tendo como base o pensamento de Locke, defender a matemática como um conhecimento tributário da experiência; e sua concepção sobre o conhecimento matemático ser e funcionar como uma cadeia de verdades (no que D’Alembert reflete harmonia com concepções cartesianas).

Nas linhas desse capítulo, Gomes nos deixa perceber que a matemática participava – de modo essencial e com destaque – do quadro de conhecimentos de D’Alembert: para ele, deveria ser facultado a todas as pessoas o acesso ao conhecimento elementar da matemática. Sobre as indicações para a educação matemática, a autora nos mostra que, em D’Alembert, o principal instrumento para a instrução científica (particularmente a educação matemática) é o livro-texto.

O ponto básico da proposta de educação matemática de D’Alembert reside na elaboração de livros didáticos que exponham esses conteúdos de acordo com as diretrizes que ele propõe. Essa tarefa não é simples: D’Alembert revela-se muito insatisfeito em relação aos textos de matemática de sua época e critica fortemente seus autores por não considerá-los à altura do empreendimento que realizam. […] para D’Alembert, não é o professor quem entregará ao educando o conhecimento pronto: os textos devem fornecer muito material a ser pensado, pois só existe aprendizagem pelo esforço da própria mente. (GOMES, 2008, p. 153).

No quarto capítulo do livro, “Condillac e o prisma cognitivo da educação matemática”, por sua vez, seguem as discussões em torno do filósofo Étienne Bonnot Condillac (1714 – 1780). Segundo Gomes, o objeto essencial dos trabalhos de Condillac é o conhecimento humano, o método por excelência é o analítico, e os fundamentos centrais de sua obra provêm dos trabalhos de Newton e de Locke. Duas parecem ser as principais diferenças entre Locke e Condillac: a primeira delas é que, no filósofo francês, há uma radicalização do sensacionismo; a segunda refere-se ao papel desempenhado pelos signos nas operações mentais (para Locke a linguagem é instrumento, enquanto que para Condillac o papel dos signos está na própria formação do pensamento refletido).

Para tecer relações entre a obra de Condillac e a Educação Matemática, Gomes abre três frentes: na primeira, aborda as concepções desse iluminista em relação à aritmética, expondo a importância dada por ele aos signos e seus usos; na segunda, traz à tona a visão de Condillac em relação à álgebra – quando Gomes afirma que tudo o que Condillac valoriza na matemática é exatamente o que Diderot frequentemente rejeita –; e, por fim, na terceira das frentes, Gomes apresenta as concepções do filósofo francês em relação aos conhecimentos geométricos.

A apresentação e discussão de algumas considerações epistemológicas e pedagógicas de Condillac, relativas à educação matemática, encerra o capítulo: como D’Alembert e Diderot, Condillac também valoriza a matemática como um conhecimento essencial à formação humana.

O último dos quatro iluministas a ser estudado por Gomes é Jean- Antoine-Nicolas Caritat, o Marquês de Condorcet (1743 – 1794), a quem a autora dedica o quinto capítulo de seu livro. Em “Condorcet e a educação matemática na instrução pública”, sabemos que foi ele, dentre os quatro filósofos abordados, o único que viveu para conhecer a Revolução Francesa. Gomes refere-se a Condorcet como uma figura ilustre na matemática, na filosofia e na educação, além de brilhante político e intelectual do século das Luzes. Por alguns é chamado de “o último dos iluministas”, por outros, como um dos principais – se não o principal – divulgadores da Enciclopédia ao século XIX. Baseada em trabalhos de historiadores da Matemática, Gomes destaca o pioneirismo de Condorcet em um campo denominado por ele mesmo como “matemática social”. Na história da Filosofia, esse pensador é destacado pelo Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano que, segundo a autora, é seu testamento filosófico, uma síntese histórica dos progressos da humanidade. Em Condorcet, é possível notar a influência de Voltaire principalmente no que tange ao combate à Igreja e à luta em favor da tolerância.

Na sequência do capítulo – que, como os demais, é riquíssimo em informações e precioso nas interpretações – Gomes tece considerações quanto à visão de Condorcet sobre a educação matemática. Para tanto, ela focaliza as concepções e propostas desse pensador elaboradas, antes da Revolução Francesa, em seu plano de instrução pública, e o seu manual de aritmética (Meios de aprender a contar com segurança e facilidade) composto visando o mesmo Plano e, portanto, faz parte das diretrizes de um projeto para a França Revolucionária. Para esse filósofo, o conhecimento matemático está entre os que mais podem contribuir para a formação humana, e o que é mais necessário ao cidadão. Condorcet, assim como Diderot, crê que toda criança precisa saber contar e medir. Para ele, as ciências abstratas adequadas para uma criança são a aritmética, a geometria e a álgebra e sua proposta é favorável a fazer recomendações aos professores sobre a aprendizagem, ao invés de meramente oferecer livros às crianças.

Gomes apresenta e discute também o “informe” de Arbogast – um antecedente do manual de aritmética de Condorcet –, as doze lições de aritmética, os conteúdos do manual, bem como as dimensões didáticas, metodológicas e psicológicas desses materiais. Para finalizar tal capítulo, a autora expõe uma síntese da educação matemática na concepção desse iluminista iniciada com um paralelo em relação às concepções dos demais pensadores por ela tratados.

Diderot, defensor incansável da instrução pública, laica, gratuita e para todos os filhos de uma nação, afirmou a necessidade de começar o ensino pela matemática no Plano de uma universidade. D’Alembert, no Discurso preliminar da Enciclopédia, iniciou pela matemática a abordagem dos conhecimentos humanos, e insistiu na necessidade de que os livros elementares fossem escritos pelos cientistas mais eminentes. Condillac sublinhou em seus trabalhos o valor cognitivo da matemática, propôs reformas terminológicas sobre os nomes dos números de modo a evidenciar a analogia, fez o elogio da linguagem matemática, praticamente confundiu a álgebra com o método filosófico da análise.

Condorcet, o último representante da filosofia iluminista francesa, pertenceu a um tempo que lhe possibilitou, como matemático e político, empreender ações concretas no sentido da realização dos ideais científicos e pedagógicos de seus antecessores (GOMES, 2008, p. 297).

Gomes aponta outras similaridades entre as ações e intenções desses iluministas e encerra este capítulo afirmando que “Condorcet teve a oportunidade de ir além do trabalho de doutrinação no sentido de atribuir à educação matemática um lugar privilegiado no combate em favor da autonomia, da igualdade e do aperfeiçoamento do homem” (GOMES, 2008, p. 300- 301). A autora interpreta a obra de Condorcet – morto em 1794, quando fugia da perseguição sanguinária do regime do terror, num momento em que seu Plano para a instrução pública, posteriormente substituído por outras propostas, nem mesmo havia sido votado em assembleia – como uma das derradeiras expressões da filosofia iluminista da França do século XVIII.

O capítulo sexto do livro de Gomes é dedicado a considerar a educação matemática na França pós-iluminista. Resultado das contribuições desses quatro filósofos das Luzes, a Matemática torna-se, ainda que por pouco tempo, uma das principais disciplinas escolares. A partir da apresentação e da discussão dos Ensaios sobre a história do ensino de matemática, particularmente na França e na Prússia, um trabalho do pesquisador alemão Gert Schubring, a autora faz apontamentos sucintos em relação à situação da educação matemática em diversos períodos da história da França, como o da Convenção Nacional (1792 – 1795), o do Diretório (1795 – 1799), do Consulado (1799 – 1804), do Império napoleônico (1804 – 1814) e o da Restauração (1814 – 1848).

Ao concluir seu livro, Gomes afirma que, em síntese, os quatro iluministas por ela tematizados, apesar de divergirem em vários aspectos, sempre tiveram como ponto comum e princípio a luta pela prioridade da educação matemática na instrução. Salienta um aspecto fundamental que, dentre eles, diferencia Diderot: a defesa do método analítico, que fundamenta a defesa da mesma abordagem em D’Alembert, Condillac e Condorcet. Ressalta a crença de Diderot, Condillac e Condorcet na possibilidade de que toda criança pode – e deveria – ter acesso aos conhecimentos matemáticos e recorda a defesa de D’Alembert, Diderot e Condorcet quanto à responsabilidade dos professores que trabalham com a educação matemática e a importância dos livros elementares, cujos autores deveriam ser intelectuais eminentes.

Gomes afirma que não parece adequado concluir seu trabalho sem se referir, mesmo que rapidamente, ao pensamento de Rousseau, manifestado principalmente no Emílio ou Da educação, obra relevante e de grande repercussão no pensamento pedagógico após o século XVIII. Os quatro iluministas e Rousseau – nos assegura a autora – partilham das concepções sobre aprendizagem por meio da experiência dos sentidos mas, no entanto, a visão de Rousseau diverge demasiadamente da dos demais quanto às concepções metodológicas e psicológicas sobre a educação matemática que amparam suas propostas.

Gomes, por fim, considera a complexidade de seu tema de estudo e afirma que não teve a intenção de esgotá-lo: espera ter apresentado, em seu livro, uma contribuição à história da educação matemática e, especialmente, à história da educação matemática brasileira.

Nas páginas anteriores tentei sintetizar – a partir de minha leitura específica – o trabalho de Gomes. Uma angústia constante acompanha, entretanto, meu esforço de resenhista: a impressão de sempre estar deixando algo para trás, de sistematicamente estar negligenciando aspectos importantes, de não comunicar minimamente a riqueza que a autora expressa em seu livro.

Os capítulos são maciços de informações e interpretações extremamente relevantes e bem tecidas, o que torna complexa a intenção de resumir e transmitir ao leitor uma idéia de tudo o que Gomes aborda. Aos interessados na história da educação matemática e suas cercanias, recomendo fortemente a leitura da íntegra do trabalho. Trata-se de um texto de leitura agradável e de um notável exercício de análise e interpretação.

Notas

2 Disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000297451>.

3 “O termo philosophes” – afirma Gomes – “com que se auto-intitularam os intelectuais da Ilustração na França, caracteriza não um filósofo no sentido tradicional – um metafísico – , mas antes um pensador engajado, progressista, que luta contra o fanatismo e a intolerância, que defende a razão e as luzes, que mobiliza seu espírito crítico especialmente contra a Igreja católica e a monarquia absoluta” (GOMES, 2008, p. 105) .

4 “Embora na atualidade a expressão ´educação matemática´seja usada com diversos significados, entre os quais se sobressai o de um campo de investigação científica, utilizo-a no contexto histórico a que este trabalho se refere, a França do século XVIII, para designar o ensino de matemática em uma perspectiva mais ampla, isto é, como algo indissociável de seus múltiplos aspectos: epistemológicos, políticos, éticos, pedagógicos, históricos, filosóficos, metodológicos, psicológicos, sociais, culturais, teleológicos, axiológicos etc.” (GOMES, 2008, p. 21)  

Mirian Maria Andrade – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista – UNESP/Rio Claro. E-mail: [email protected]

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BOLEMA | Unesp | 1985

Bolema2 Hipátia

O Bolema – Boletim de Educação Matemática (1985 -) é uma das mais antigas e importantes publicações na área da Educação Matemática no Brasil. A Educação Matemática, em síntese, é uma região de inquérito que busca dar respostas a fenômenos educacionais relacionados à Matemática. Com a intenção de disseminar a produção científica em Educação Matemática ou áreas afins, o BOLEMA publica artigos, e a partir de 2017 resenhas convidadas, cujos focos relacionam-se ao ensino e à aprendizagem de Matemática e/ou ao papel da Matemática e da Educação Matemática na sociedade.

Embora nascido vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação Matemática da UNESP de Rio Claro, o BOLEMA já se tornou um periódico nacional, com corpo editorial e consultores de renome, do país e do exterior, tendo sido avaliado como periódico QUALIS NACIONAL A pela CAPES. Com três edições ao ano, o BOLEMA recebe artigos em fluxo contínuo.

Criado em 1985, o BOLEMA nasceu da iniciativa de um grupo de pós-graduandos do Programa de Pós-graduação em Educação Matemática da UNESP de Rio Claro – o primeiro centro de estudos pós-graduados, nessa área, na América Latina. Os dois primeiros números circularam no ano de 1985. A partir do ano de 2000 manteve, sem interrupção, a periodicidade semestral e, a partir do ano de 2008, atendendo à demanda da comunidade, tornou-se quadrimestral, incorporando à numeração das edições regulares algumas edições temáticas.

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ISSN 1980 4415

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