Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de história na segunda metade do século XIX – MELO (HH)

MELO, Ciro Flávio de Castro Bandeira. Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de história na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, 224pp. Resenha de: CARVALHO, Rosana Areal de; RODRIGUES Elvis Hahn. Manuais didáticos de História do Brasil: entre a memória e o esquecimento. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.314-319 março 2010.

O livro Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de história na segunda metade do século XIX publica a tese de doutoramento defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 1997, pelo professor Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo que, além da reconhecida trajetória no ensino de História, se faz amigo do tempo. Sem pressa, como bom mineiro, vem cunhando a vida de professor sustentada em experiências riquíssimas, seja proveniente dos níveis de ensino nos quais atuou, seja pelo gosto de estudar que sempre manifestou.

Trata-se de um estudo comparativo entre dois manuais escolares de história, em momentos distintos da educação brasileira: Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo e História do Brasil, de João Ribeiro. São obras de referência sobre o conhecimento histórico, no âmbito didático. Em comum, além da produção de um manual escolar (termo mais apropriado para a época), os dois autores estiveram vinculados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, e foram professores do Colégio Pedro II. Logicamente, em medida e tempos diferentes.

A partir daqui, a resenha deste livro se faz muito difícil, pois se trata de uma tese defendida em 1997. Uma resenha nos moldes tradicionais trataria de confrontar a obra com a produção historiográfica da época. Neste caso, temos outra possibilidade: que influências essa obra exerceu na produção historiográfica posterior? Qual seria o melhor caminho a tomar? Independente do caminho a tomar, não temos dúvida de que a jornada empreendida pelo Prof. Ciro exigiu muito fôlego. Primeiro, porque trilhou por várias áreas do conhecimento: aborda a historiografia brasileira, ao tratar das produções vinculadas ao IHGB e as influências de historiadores como Varnhagen e Capistrano de Abreu. Trata do ensino de história, dado que os autores foram professores do “Pedro II”, modelo de ensino secundário instituído no Brasil na mesma década da criação do IHGB. E, junto com o ensino de história, temos o cerne do trabalho, que é compreender e confrontar dois manuais didáticos nos aspectos relativos à elaboração, às influências recebidas pela historiografia disponível e ao processo de didatização do conhecimento histórico. Perpassa, portanto, as representações sobre a história do Brasil: o que deve ser memória e o que deve ser esquecimento. Segundo, porque para tratar de cada uma dessas áreas se fez necessário outros tantos estudos que estão presentes na obra. Por exemplo, parte da trajetória do IHGB, envolvendo os autores-mestres como Varnhagen e Martius. Ainda inclui o Imperial Colégio de Pedro II, chamado Ginásio Nacional após a Proclamação da República. São os “agentes”.

O trabalho se debruça sobre dois momentos. O primeiro – Os agentes – abarca o lugar de produção das obras em seus respectivos momentos históricos. Enuncia as influências presentes em cada uma das obras e como estas se remetem à tradição historiográfica produzida pelo IHGB, a partir de sua fundação, em 1838. O segundo momento – Os livros – faz um estudo comparativo de como os manuais abordam temas consagrados e emblemáticos da História do Brasil tais como: o Descobrimento, os indígenas, as invasões estrangeiras, a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana, a Revolução Pernambucana de 1817, a Chegada da Família Real, a Independência, Escravidão e Abolição. Melo aborda esses temas a partir das continuidades e rupturas, na medida em que defende a hipótese da obra de Macedo ser destinada à educação dos súditos da Coroa, e a obra de Ribeiro comprometida com a educação do cidadão republicano.

Nesta primeira parte da tese, Melo enuncia seus referenciais teóricos a partir dos conceitos de hegemonia, direção e controle sobre o todo social e político. Direção aos aliados e domínio sobre os opositores. O ensino de história se insere nesta relação como forma não violenta de hegemonia de uma visão de mundo, segundo os enunciados de Gramsci.

A partir destes conceitos, Melo compreende a obra Lições de História como expressão da centralidade e estabilidade da monarquia, para a formação do súdito. E História do Brasil, por outro lado, significa ruptura dos modelos construídos por Varnhagen, no sentido de formação do cidadão republicano; expressão de um tempo de esperanças políticas a partir da República e da abolição. Neste sentido, lança mão do historicismo alemão e dos estudos antropológicos (sob a égide da biologia e eugenia), conceitos predominantes no Brasil ao final do século XIX. Em síntese, Melo dá um trato de historicidade aos seus objetos, observados à luz de seu tempo.

Esta historicidade é desenvolvida a partir dos referenciais que conduzem a produção das obras. Para tanto, discorre sobre a fundação e o papel do IHGB na construção do saber histórico e na produção historiográfica brasileira. Destaca Von Martius e Varnhagen, por conta de suas contribuições e importância a partir das premissas enunciadas em suas obras Como se deve escrever a história do Brasil e História Geral do Brasil, respectivamente. Recorre, também, aos traços biográficos dos autores pesquisados, seus papéis enquanto professores do Imperial Colégio de Pedro II/Ginásio Nacional, compreendido como lugar da intelectualidade brasileira do século XIX.

A análise destes “agentes” é importante para se compreender o deslocamento das linhas explicativas da história brasileira. A obra de Macedo, ou Dr. Macedinho, como era conhecido, é, em última instância, uma síntese da obra de Varnhagen, preparada para uso didático dos alunos do Colégio Pedro II.

A obra de Ribeiro, por outro lado, busca romper com os paradigmas da obra anterior, que perdurou ao longo do século XIX neste colégio e em outras escolas secundárias pelo país afora, pois era uma obra obrigatória nos exames preparatórios para ingresso nos cursos superiores no Brasil.

A obra de Von Martius, para Melo, influencia a obra de Ribeiro, mais do que este enuncia em seu prefácio, que apenas diz que Martius deu indicações vagas e inexatas como modelo de investigação sobre a história brasileira. A propósito desta assertiva, Múcio Leão, autor contemporâneo de João Ribeiro, ao redigir a apresentação da obra Trechos Escolhidos, cuja coletânea reúne diferentes ensaios e enxertos de João Ribeiro sobre diferentes áreas, já anunciava a influência de Martius sobre a obra de Ribeiro: “[Martius] que escreveu um pequeno mas lúcido trabalho ensinando Como se deve Escrever a História do Brasil, trabalho em cujas linhas gerais João Ribeiro em parte se inspirou” (LEÃO, 1960, p. 10). Ainda que, pela análise documental, possamos chegar à mesma conclusão, e a obra de Leão esteja citada na bibliografia da tese, Melo não a anuncia no seu trabalho, ou seja, não informa que tal questão já havia sido colocada por um estudioso que lhe é anterior – a obra fora publicada pela Livraria Agir em 1960.

Macedo, por outro lado, apesar dos elogios a Martius, segue na esteira de Varnhagen, inclusive no tom encomiástico próprio ao historiador oficial da Monarquia. Por exemplo: não reconhece a participação das três raças que constituem a nacionalidade brasileira. Esta estaria restrita à civilização branca, católica e portuguesa, que seria o legado da nação independente e monárquica, como manda a tradição do povo aqui constituído e ungido pela vontade divina.

Ao longo da segunda parte da tese se debruça sobre o cotejamento entre os manuais em questão e demonstra a importância dos mesmos quanto ao ensino de história do Brasil. Joaquim Macedo compõe sua história tendo como centro os reis e príncipes e, em alguns casos, subalternos mais ilustres que deixaram suas marcas na expansão e consolidação do império português.

O Brasil independente, neste sentido, é uma continuação autônoma, sem dúvida, da civilização portuguesa. O tratamento dado a questões como a escravidão africana, a independência do Brasil, as sedições no período colonial, é marcado pela contenção, sem esboçar qualquer conflito com a Coroa. No entanto, e isso Melo deixa bem claro, as concepções mais pessoais de Macedo estão em obra literárias, utilizadas como parâmetro de comparação para problematizar o sentido da história em Lições que não expressa, necessariamente, o posicionamento do autor sobre o tema.

Macedo aborda a história política sob um ângulo jurídico, tratando as sedições, como a Inconfidência, a Conjuração Baiana e a Revolução de 1817, como crimes de lesa-majestade, causa da acertada repressão da Coroa, além de serem movimentos que não respeitaram as tradições e os costumes brasileiros. Nesta linha interpretativa, a monarquia era o caminho mais adequado às tradições brasileiras, sobretudo, quando comparada às Repúblicas hispanoamericanas, que se esvaíam em guerras civis. O que era um excelente argumento para Macedo explorar e criticar os ideais republicanos presentes em segmentos políticos no Brasil à sua época.

Ribeiro, por sua vez, explora a ação de outros agentes, como o povo, para designar a formação do país e da nacionalidade brasileira. Isto implica em tratar a questão da miscigenação, negada e/ou omitida em Macedo, como formadora da raça mameluca, especificidade da nacionalidade brasileira. A Monarquia, para Ribeiro, significou um atraso, que impediu o povo de se apossar do Estado e desenvolver a democracia. Por outro lado, tem na Monarquia o legado da unidade política nacional que, possivelmente, teria se fragmentado em diversas repúblicas, a exemplo da América hispânica. A interpretação de Ribeiro segue a linha de evolução do povo e das instituições brasileiras que tem, na República, o seu regime definitivo e consoante com o estágio de desenvolvimento do caráter real da nacionalidade brasileira.

Melo explica-nos a superioridade das reflexões na obra de Ribeiro, que contava com mais de 50 anos do IHGB no âmbito da produção e organização das fontes; sem contar com as reflexões filosóficas mais sofisticadas, como as de Tobias Barreto e Silvio Romero, da Escola de Recife, expoentes do germanismo nas ciências humanas no Brasil, ao final do século XIX. No contexto em que Macedo produziu sua obra a história do Brasil estava por fazer. Por isso, apenas sintetiza a obra mestra – História Geral, de Varnhagen. Contudo, em aspectos como a chegada da Família Real e a Independência, Macedo tem certa autonomia em relação à obra de Varnhagen, com reflexões próprias e distintas. Ribeiro assimila bem o materialismo alemão, que coloca na cultura e na economia o sentido das ações e do desenvolvimento da história brasileira, numa contraposição à obra de Macedo, imbuída de teologia, como uma das determinantes do desenvolvimento de nossa história.

Entendemos que o mérito do trabalho está em resgatar, no âmbito das idéias e discursos, os caminhos do ensino de história ao longo do século XIX e primeira metade do século XX. Se, por um lado, não explora a fundo os significados históricos nas linhas interpretativas dos autores, por outro, abre caminhos para discussões que lhe sucederam em torno da nacionalidade brasileira no ensino de história, como Feições e fisionomias: a história do Brasil de João Ribeiro de Patrícia Hansen.

Neste sentido, entendemos que os referenciais de Gramsci não esgotam os significados históricos. Ou seja, mais do que expressão de uma relação de forças presentes na sociedade brasileira do século XIX, são elementos constituinte da realidade, na medida, em que dirigem opiniões, que se desdobravam em ações políticas, valores e costumes e mesmo preconceitos, notadamente, sobre os negros e as nações indígenas.

Há que se destacar, ainda, uma antiga discussão: o papel do livro didático na difusão do conhecimento histórico. Em que medida um manual didático pode acompanhar os resultados mais recentes da pesquisa historiográfica? Nos trabalhos analisados por Melo ao mesmo tempo em que está explícita a historicidade de cada manual, identifica-se a posição política dos autores.

Seguindo esse raciocínio, não é difícil compreender o papel do livro didático de História num contexto de repressão como foi caracterizado o período da Ditadura Militar no Brasil, por exemplo. No entanto, os anos 80 nos colocam frente a uma outra realidade. Por um lado, surgem as novas correntes historiográficas que vão redirecionando o fazer histórico, consoante a uma nova concepção de história, de documento, de sujeito histórico. Nesses anos, o livro didático foi profundamente discutido enquanto instrumento pedagógico.

Por outro lado, convive-se com a reconstrução democrática e seus desdobramentos, muito especialmente no campo educacional e, para os fins deste trabalho, a “revolução” no ensino de história. De uma forma simples, podemos dizer que os anos 80 foram anos de experiências, de busca de alternativas para romper com as amarras tão duras experimentadas pelo ensino de História nos anos anteriores. Essa “revolução” atingiu também os livros didáticos, incluindo as ações do Ministério da Educação e Cultura com a criação do Plano Nacional do Livro Didático. Estabeleceu-se, então, o grande desafio: em que medida o livro didático é capaz de difundir o conhecimento histórico no que este tem de mais atualizado, seja do ponto de vista do conteúdo seja quanto aos procedimentos metodológicos.

Mas, então, prevaleceu a lei de mercado: livros descartáveis em oposição à longevidade das obras analisadas por Melo; projetos gráficos elaboradíssimos, em detrimento do conteúdo; e, ainda pior, livros de qualidade que colocam em suspenso a formação do professor. Mas também devemos reconhecer que a “verdade” histórica é hoje cada vez mais questionada, menos estável. Ao mesmo tempo em que a pesquisa histórica é cada vez mais veloz. Em alguma medida, sem dúvida, tal realidade está refletida nos livros didáticos do final do século XX.

Também fica claro que as obras didáticas são expressão do tempo, do debate e dos conceitos de uma época, mas isso não significa a inexistência de outros caminhos, de outras possibilidades de escrita, ou de outras posições políticas. É isso que nos mostra Melo, em particular com o trabalho de Joaquim Macedo que, em suas obras literárias, era mais liberal do que se apresenta no livro didático; reforçando que este está destinado a uma missão e um público específicos. Hoje, da mesma forma, não é difícil identificar o posicionamento político dos autores nos livros didáticos; quando não, encontrarmos uma obra que se curvou aos ditames do mercado em detrimento da excelência do conteúdo.

Rosana Areal de Carvalho – Professora Adjunta Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) [email protected] Rua do Seminário, s/n – Centro Mariana – MG 35420-000 Brasil Elvis Hahn Rodrigues Mestrando Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) [email protected] Campus Universitário – Martelos Juiz de Fora – MG 36036-900 Brasil.

Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX | Ciro Bandeira de Melo

Introdução

Senhores da história e do esquecimento é a tese de doutoramento de Ciro de Melo, defendida na Universidade de São Paulo em 1997. Esse estudo imprescindível para todos os que se interessam pela história do ensino de História no Brasil finalmente foi publicado pela Editora Argvmentvm. A obra enfoca a disputa política pela representação do passado brasileiro na segunda metade do oitocentos.

O próprio título sintetiza bem a principal questão do texto: o que faz um acontecimento se tornar um fato histórico? Quem escolhe – e a partir de que critérios – o que será lembrado e o que será esquecido pela posteridade? Essas perguntas nos levam ao pressuposto que antecede à discussão: não há uma “verdade histórica”, mas construções históricas do passado. Leia Mais

História do ensino da história no Brasil – MATTOS (HE)

MATTOS, Ilmar Rohloff (org.). História do ensino da história no Brasil. Rio de Janeiro: Acess, 1998. Resenha de: CERRI, Luis Fernando. História & Ensino, Londrina, v. 8, p. 151-156, out. 2002.

Afirmamos continuamente que não há assunto que não possa ser melhor compreendido com o recurso à História. Este é um dos argumentos centrais para a manutenção da História como disciplina escolar, e das graduações em História; por que não deveria valer também para o próprio estudo da disciplina? Com esta perspectiva, Ilmar de Mattos organiza a apresentação de trabalhos de pesquisa de profissionais com diferentes formações e diferentes situações na carreira acadêmica, o que não desiguala o nível da contribuição de cada um dis trabalhos elencados (produzidos por profissionais ligados ao Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Com isso, a principal contribuição coletânea é uma reflexão séria e empenhada sobre o que foi o ensino de História no Brasil durante o império e até meados do século vinte, que possibilita pensar as teorias, metodologias e práticas que hoje se discute e que se no normatiza, debate acadêmico e na legislação.

A obra dá seqüência a uma perspectiva de retomada da História da disciplina, que tem expoentes nos nomes de Elza Nadai, Kátia Abud e Circe Bittencourt, entre outros(as). Mas a coletânea organizada por Mattos distingue-se e avança, pois traz ao público trabalhos que aprofundam os contextos competentemente reconstituídos pelas pesquisas anteriores, esmiuçando obras, autores, instituições e influências que pesaram sobre o quadro atual da disciplina escolar em questão.

A coletânea é aberta por Kaori Kodama, que retoma as variadas considerações da historiografia sobre o texto de Von Martius (“Como se deve escrever a história do Brasil”) c sobre o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no processo de constituição e de viabilização do ensino da história nacional na primeira metade do século XIX, com especial destaque para os preconceitos raciais que aí se inscrevem e que até hoje demandam combate incessante, não por serem explicitamente assumidos, mas por Imiscuírem-se em informações, explicações e posturas consagradas no ensino da história nacional.

Selma Rinaldi de Mattos abre uma importante seara, analisando os manuais de história produzidos pelo consagrado escritor Joaquim Manoel de Macedo. estabelecendo uma ponte necessária entre a literatura e a história mergulhadas no mesmo ambiente do nacionalismo romântico que esteve presente na constituição cultural da nação, concomitante à sua construção em outras áreas como a diplomática, política e econômica, protagonizada pelo Estado surgido em 1822. A autora dá destaque ao componente aristocrático presente no projeto político e conseqüentemente na obra pedagógica de Macedo, que para a autora é o primeiro que dá a feição de manual didático à história lida por Varnhagen no clássico “História Geral do Brasil”.

O texto de Patrícia Santos Hansen traz um recorte cronológico posterior, que enfoca a reconstrução da disciplina sob novos princípios político, na implantação da República, por meio da análise da obra de João Ribeiro, autor de livro didático adotado pelo Colégio Pedro 11 no período. Para Hansen, João Ribeiro indica, em sua obra, uma ruptura com “a concepção de história vigente”, isto é, aquela consagrada durante o império, colocando-nos diante de um caso importante para a compreensão dos processos de confronto de perspectivas historiográficas e pedagógicas no ensino da história, do qual podem ser levantadas algumas reflexões, sobretudo referentes às permanências e às continuidades entre propostas que se confrontam.

Luiz Rcsnik narra e discute um outro processo de confronto de concepções sobre o ensino de História, num outro momento político nacional. Trata-se do debate sobre a autonomização ou não da História do Brasil em relação à História Geral ou da Civilização, que teve lugar no início da década de 1930. Neste momento permanecem as afirmações, nas obras de autores consagrados e nas orientações legais ou oficiais, sobre o papel central do ensino de História na formação do sentimento patriótico do cidadão. O diferencial neste momento é o debate sobre o método e sobre o tratamento do conteúdo (memorização dos fatos x compreensão e raciocínio sobre a História), colocado principalmente pela influência da Escola Nova. Para os partidários desta vertente educacional, grosso modo, o ensino da história nacional o reforço das diferenças e das rivalidades internacionais; para o IHGB, entretanto, esse ensino era imprescindível para garantir aos brasileiros o assumir da vocação de cidadãos de um país destinado à grandeza. Sustentada no governo federal, esta proposta sai vitoriosa, e acaba transformando-se numa importante ferramenta política do Estado Novo.

Neste ponto da coletânea é que podemos começar a reconhecer mais claramente alguns traços das propostas contemporâneas, que equivocada e apressadamente acabamos por chamar de “novas”, referentes por exemplo ao papel ativo do aluno no processo pedagógico, ao espaço para outras abordagens da história para além do político e do factuaL Essas “novidades” são contemporâneas à criação da Revista Annales, do que se deduz a inadequação das abordagens que lêem na influência desta vertente sobre a historiografia e o ensino de história no Brasil a raiz das propostas alternativas atuais.

Essas reflexões podem ser continuadas para os dois textos seguintes, que tratam do período que precede e inclui os primeiros tempos do regime militar. Neles, Daniel Mesquita Pereira (utilizando como fonte o Boletim de História Faculdade Nacional de Filosofia) e Francisco José Calazans Falcon (num depoimento na condição de docente da mesma faculdade neste período) dotam o leitor de informações e considerações sobre o debate da História e seu ensino neste momento e nesta instituição.

Ao final da leitura, a impressão que se tem lembra a tese de Amo Mayer (em A Força da Tradição, Cia. Das Letras), para o qual, os antigos regimes europeus mantêm sua força e disposição de determinar a história pelo menos até a Primeira Guerra Mundial, permanecendo, resistindo com sucesso às forças burguesas, urbanizantes, republicanas. Mayer destaca a sedução exercida pela nobreza sobre a burguesia, destacando que, mais que suprimir a primeira, a segunda almejava atingir o seu status, o que levou a uma simbiose entre ambas na maior parte da Europa, ao contrário do que se pensa ao reduzir a análise a nações às quais historicamente se deu maior destaque.

Esta impressão impõe-se pela similaridade que é possíve1 encontrar entre as afirmaçôes que se faz  incansavelmente hoje sobre os parâmetros hodiernos de qualidade do ensino da história, cujos princípios estavam delineados na década de 20, sendo suprimidos no Estado Novo, reafirmados na democratização nos anos 50 e 60, novamente suprimidos pelas reformas educacionais do regime militar, e novamente afirmados na redemocratização nos anos 80 e 90, desta vez aparecendo como “novo” ou “renovado”. Para usar estes termos, mostra-nos a obra, é preciso considerar a tradição quase secular do “novo” (uma contradição em termos), em relacionamento de longa data de confronto com o “tradicional”, o arcaico, muitas vezes incorretamente chamado de positivista. A conclusão, enfim, é que o ensino de História hoje tem diante de si alternativas que não podem ser tratadas a partir de um critério temporal (novo, inovador x tradicional), mas que precisam ser recuperadas em sua longa duração, em seu embasamento teórico e filosófico que atravessa o tempo e engloba vários séculos.

Por Luis Fernando Cerri – Doutor em Educação (Metodologia do Ensino), professor do DEHIS Universidade Estadual de Ponta Grossa [email protected]

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