Ensino da Geografia e Mídia: linguagens e práticas pedagógicas | Vicente de Paula Leão e Inêz Aparecida de Carvalho

A obra Ensino da Geografia e Mídia: linguagens e práticas pedagógicas dos autores Vicente de Paula Leão e Inêz Aparecida de Carvalho Leão traz reflexões sobre a utilização de textos mediáticos no ensino de geografia, a partir de uma pesquisa de campo realizada através de questionários e observações de vídeos feitos com professores em escolas publicas e privadas nos Estados de Minas Gerais e São Paulo. A obra explora os aspectos ligados à aplicação desse recurso em sala da aula, avaliando suas vantagens e desvantagens e fazendo reflexões sobre o ensino de geografia e a prática docente. Apresentaremos o livro conforme sua organização, a introdução, posteriormente seus capítulos e as considerações finais, finalizaremos destacando pontos importantes, tecendo criticas e sugestões.

A introdução do livro de Vicente de Paula apresenta quais os pontos serão discutidos ao longo da obra, indica que sua investigação surgiu de uma preocupação, sobre como o recurso midiático esta sendo utilizado nas aulas de geografia pelo docente, destacando as dificuldades que os professores possuem em relacionar esses recursos com a própria ciência geográfica e principalmente a ausência de mediação entre o texto midiático e o ensino em sala de aula. Entre seus procedimentos metodológicos, utilizou a pesquisa de campo com questionário com aspectos quantitativos e qualitativos e filmagens de aulas de geografia onde os professores utilizavam o recurso midiático. Leia Mais

Ensino da Geografia e Mídia: linguagens e práticas pedagógicas | Vicente de Paula Leão e Inêz Aparecida de Carvalho

A obra Ensino da Geografia e Mídia: linguagens e práticas pedagógicas dos autores Vicente de Paula Leão e Inêz Aparecida de Carvalho Leão traz reflexões sobre a utilização de textos mediáticos no ensino de geografia, a partir de uma pesquisa de campo realizada através de questionários e observações de vídeos feitos com professores em escolas publicas e privadas nos Estados de Minas Gerais e São Paulo. A obra explora os aspectos ligados à aplicação desse recurso em sala da aula, avaliando suas vantagens e desvantagens e fazendo reflexões sobre o ensino de geografia e a prática docente. Apresentaremos o livro conforme sua organização, a introdução, posteriormente seus capítulos e as considerações finais, finalizaremos destacando pontos importantes, tecendo criticas e sugestões.

A introdução do livro de Vicente de Paula apresenta quais os pontos serão discutidos ao longo da obra, indica que sua investigação surgiu de uma preocupação, sobre como o recurso midiático esta sendo utilizado nas aulas de geografia pelo docente, destacando as dificuldades que os professores possuem em relacionar esses recursos com a própria ciência geográfica e principalmente a ausência de mediação entre o texto midiático e o ensino em sala de aula. Entre seus procedimentos metodológicos, utilizou a pesquisa de campo com questionário com aspectos quantitativos e qualitativos e filmagens de aulas de geografia onde os professores utilizavam o recurso midiático. Leia Mais

A cidade nas fronteiras do legal e ilegal – TELLES (NE-C)

TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. As dobraduras da cidade. Resenha de: LUCCA, Daniel de. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.90, Jul, 2011.

Em seus escritos sobre Michel Foucault e Gottfried Leibniz, Gilles Deleuze forjou e utilizou-se do conceito de dobra (plis)1. Segundo Deleuze, tudo no mundo existe dobrado. A vida, ela mesma, seria uma dobra aberta, permanentemente inacabada e cuja flexão ao fora e ao dentro remeteria a um tipo de movimento que implica e multiplica, conecta e separa, dividindo-se infinitesimalmente em outras dobras menores e maiores, mas conservando sempre uma coesão que é própria de sua articulação. De Leibniz, Deleuze também tira a metáfora da cidade como um labirinto do contínuo: passagens e bloqueios, pedaços daqui que se encontram acolá, contornamentos, reviravoltas, mil dobras. Se essa cidade-labirinto pode ser de fato imaginada como o evento do origami, cuja arte dobra, desdobra e redobra infinitamente a superfície de sua trama, então a São Paulo que emerge do trabalho de Vera da Silva Telles parece ser uma espécie de experimentação radical desse pensamento.

Resultado de dez anos de diálogos, reflexões e inflexões de pesquisa, A cidade nas fronteiras do legal e ilegal apresenta e descreve de perto uma São Paulo em certos aspectos inusitada. O mundo urbano aparece ali precisamente no cruzamento cerrado de inúmeros vetores de transformações: no mundo do trabalho e suas relações; nos novos circuitos da economia informal urbana; na globalização e no ultraliberalismo dos mercados metropolitanos; na reconfiguração do Estado e dos serviços públicos; na proliferação das ONGs, associações e outros dispositivos gestionários diante da “nova questão social”; no surgimento de micromecanismos de regulação local dos conflitos cotidianos e nas implicações e figurações do crime e da violência. A articulação entre os problemas empíricos, a multiplicidade de conceitos e referenciais teóricos e as inúmeras questões de ordem metodológica impressionam o leitor desavisado e traduzem a densidade e a pluralidade do pensamento de uma autora que tem sido referência obrigatória nos estudos sobre a dinâmica urbana paulistana.

O livro, produto de sua livre-docência defendida no departamento de sociologia da Universidade de São Paulo no final de 2010, é fruto de um intercâmbio mais amplo com pesquisadores estrangeiros e brasileiros, destacando-se aí o papel fundamental da equipe de jovens pesquisadores que, sob sua orientação, se voltaram para as diversas facetas na qual as mutações da cidade poderiam ser flagradas, descritas e analisadas. Dividida em duas partes, a organização da obra reflete um duplo momento de reflexão da pesquisa. A primeira parte, intitulada “Experimentações”, expressa uma fase inicial das investigações que contou com a parceria de Robert Cabanes e resultou na publicação, em 2006, de um livro organizado por ambos os autores2, a partir de um conjunto de pesquisas coletivas do qual originam os três primeiros capítulos da obra aqui discutida. Já a segunda parte, “Deslocando o ponto da crítica”, aponta para o esforço de colocar a situação urbana paulistana num jogo mais ampliado de referências, nacionais e internacionais, e para um aprofundamento maior das implicações empíricas, políticas e teóricas dos ilegalismos urbanos.

De fato, o trabalho enfrenta um dos maiores desafios colocados para os estudos urbanos hoje: articular coerentemente conceitos que capturem processos, mecanismos, agências e diversas mediações capazes de apreender a heterogeneidade, a fragmentação e a polarização social da metrópole contemporânea. Diferente dos estudos que tomam a cidade apenas como paisagem ou pano de fundo dos processos analisados, ou mesmo daquelas pesquisas que a focam como principal realidade a ser interrogada, há um empenho geral em cruzar diferentes instâncias de análise e distintos setores de atividade urbana em prol de um diagrama de inteligibilidade transversal, mas sempre situado no tempo e no espaço. Com isso, aquilo que é lançado ao primeiro plano é justamente o trabalho instersticial dos conectores, mediadores, tradutores, passadores, em suma, os operadores das dobras que permitem jogar com o mundo urbano e seus múltiplos campos de gravitação. Desse modo, a cidade e seus problemas, ou melhor, “a questão urbana”, não é tratada numa definição prévia e modelar, mas como diz Telles “é figurada no andamento mesmo das prospecções como questão (parcial) e interrogações (sempre reabertas)”3.

Se o conjunto da obra tem como principal eixo de articulação justamente esta transitividade entre diversos territórios, universos de códigos e circuitos de práticas, é nas fronteiras do legal e ilegal, como diz o título, que toda argumentação analítica e empírica centra fogo. A principal referência teórica aqui é Michel Foucault e seu conceito de “gestão diferencial dos ilegalismos”, conceito que diz respeito a um conjunto de práticas de diferenciação, tipificação e hierarquização ativadas por dispositivos que cristalizam, fixam suas formas e “tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeição”4. Longe de desconsiderar os efeitos materiais e políticos da lei, busca-se compreender que o exercício de sua letra, “a assinatura do Estado” como diz Veena Das5, instaura campos de força e de conflito, estabelecendo todo um jogo de posições “numa espécie de tabuleiro de xadrez, com casas controladas e casas livres, casas proibidas e casas toleradas, casas permitidas a uns, proibidas a outros”. Disso, conclui-se, “numa formulação bem brasileira”6, como lembra Angelina Peralva no prefácio do livro, que “a lei não é feita para impedir tal ou tal tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de burlar a própria lei”7.

A obra persegue, assim, esses “torneios da lei”, dobraduras que articulam não só o legal e o ilegal, mas também o lícito e o ilícito, o formal e o informal. O foco nos ilegalismos e nos jogos de poder disputados em suas fronteiras, como explica a autora, busca lançar luz sobre uma inquietante linha de sombra que perpassa a experiência metropolitana em suas dimensões mais cotidianas e corriqueiras. E aí reside uma poderosa hipótese: a de que a vida urbana é atravessada, e em boa medida estruturada, por uma crescente teia de ilegalismos – novos, velhos e redefinidos – dispersa nas práticas e nos fluxos urbanos, os mais variados, assim como os mais prosaicos.

Um caso analisado no capítulo 5 (“Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder”) é ilustrativo. Doralice, 40 anos, moradora de um bairro da periferia paulistana, trabalha como diarista e também faz e vende pães e doces para complementar a renda de sua extensa família. Mulher batalhadora, Doralice “não hesita quando surge a oportunidade de montar uma banca de CDs piratas em um bairro próximo à sua casa”, acionando com isso uma cascata de relações com intermediários: os “garotos de uma favela ao lado chamados para garantir a venda durante o dia, enquanto ela sai para o trabalho de diarista”; o agenciador dos CDs e o laboratório em que os CDs são copiados e distribuídos; os fiscais e os policiais aos quais os vendedores de rua têm de pagar pela proteção, ou melhor, pela extorsão. Entre essas relações mobilizadas como forma de lidar com as necessidades da vida, Doralice também se enreda numa “espantosa rede que opera o mercado de receitas médicas fraudadas para conseguir o remédio de que depende a vida do marido”, e acaba transformando-se, vez ou outra, na própria intermediária desse mercado negro. Mais à frente, “Doralice não encontra nenhuma razão moral para recusar o ‘serviço’ que lhe é proposto por um conhecido próximo e de confiança, e colocar a encomenda de ‘farinha’ em sua bolsa, entrar no ônibus, atravessar a cidade e tranquilamente levar a mercadoria a seu destino, trazendo de volta um ganho modesto, mas que fará toda a diferença no orçamento doméstico”8. Nesse trânsito, essa personagem não se vê como alguém comprometido com o “mundo do crime” ou com práticas imorais, mas como alguém que está se virando do jeito que pode através de “bicos” aqui e acolá.

A história de Doralice não é excepcional, é uma entre outras, “a vida de uma mulher infame” diria Foucault9, uma história minúscula que permite entrever a complicada cadeia de mediações e relações de poder que conectam e situam os sujeitos na trama concreta de suas existências. São então os traçados dessas “mobilidades laterais”, como conceitua Telles, que permitem explorar essa zona cinzenta na qual a cidade cotidianamente é dobrada e virada pelo avesso em suas normas, códigos e regulamentações formais. A cuidadosa análise das trajetórias urbanas – resultado, entre outras coisas, da proximidade com o trabalho de Robert Cabanes e seus estudos sobre o método biográfico10 – emerge como perspectiva capaz de enfrentar e redesenhar as dicotomias e binaridades clássicas presentes em boa parte dos estudos sobre cidade e segregação urbana: trabalho e moradia; produção e reprodução social; exploração do trabalho e espoliação urbana; centro e periferia; riqueza e pobreza; e, como não poderia deixar de ser, a cidade legal e a cidade ilegal. No livro, esses pares conceituais não são propriamente abandonados, mas permanentemente problematizados, recolocados e dobrados uns nos outros, no movimento mesmo das descrições etnográficas que acompanham e fornecem o solo no qual a análise se desenrola.

Do ponto de vista metodológico, é de fato notável como o foco nas mobilidades e nos regimes de circulação, com seus bloqueios, desvios e formas de acesso contrapõe e desloca a imagem da cidade partida11 ou da cidade de muros12, para outra que reside nas tramas da cidade13 e que preenche justamente o “entre” dos espaços fronteiriços. Contudo, longe de negar a existência de dispositivos de controle, barragem ou mesmo contenção na cidade, a análise buscou atentar para o fato de que as fortificações e os cercos da vida urbana são, todos eles, muito mais prenhes de fissuras e porosidades do que se imagina. Não partindo das partes separadas e extremadas que supostamente comporiam uma cidade dual, mas voltando-se para a própria relação que instaura ou contesta o movimento da divisão, o livro de Telles problematiza o próprio trabalho de dobradura que a experiência urbana opera sobre si mesma, evidenciando no jogo dessas fronteiras as zonas de turbulência e de intensa negociação que ainda precisam ser mais bem entendidas, mas que da ótica de seus atravessadores e passadores ordinários não são tão excepcionais assim.

No entanto, o problema da mobilidade urbana não é novo. Influenciado pelos trabalhos de Georg Simmel e seu personagem conceitual do “estrangeiro” (stranger), como um ser ao mesmo tempo múltiplo e móvel, interno e externo aos agrupamentos, os estudos da Escola de Chicago inauguraram um novo modo de analisar a cidade. A cidade vista através do movimento de seus habitantes, através de seus conflitos, de seus deslocamentos e seus modos de territorialização14. Mas se na passagem para o século XX a experiência de pesquisa em Chicago sobre as histórias de vida, as trajetórias habitacionais e ocupacionais, associava diretamente entre si os fenômenos de migração, urbanização, industrialização e modernização, hoje, cem anos depois, as questões colocadas pelos estudos de mobilidade são de outra ordem e outra escala. Se os fenômenos de ecologia urbana eram montados com relação ao problema das nacionalidades e da integração nacional americana – assim como os estudos urbanos brasileiros dos anos 1970 e 1980 tinham como questão de fundo o processo de modernização (sempre incompleta) de nosso país -, após os anos 1990, com a abertura dos mercados aos capitais e demais fluxos transnacionais que pousam e decolam em velocidade nas grandes metrópoles, iria se tratar de uma análise ecológica muito mais ligada à globalização e seus territórios15.

Esse é outro importante eixo de inflexão do livro. Ao demonstrar como o crescimento do mercado informal está diretamente conectado aos circuitos de um novo capitalismo mundializado, opera-se aqui mais uma dobra, de modo que a reluzente e pujante economia global é colocada face a face com o mundo ordinário das reciprocidades populares, estendendo e complexificando mais ainda as relações entre riqueza e pobreza urbana. E as etnografias de sua equipe de pesquisadores flagram bem esse processo. Como revela o trabalho de Carlos Freire16 sobre os circuitos urbanos do comércio informal que mobilizam o “trabalho sem forma”, conectando contrabando e pirataria e estabelecendo poderosas articulações entre o informal e os circuitos ilegais das economias transnacionais. Aqui, as vagas migratórias também são outras, não mais aquelas que buscam necessariamente a instalação durável e a inserção permanente numa sociedade hospedeira. São trabalhadores muito mais flexíveis, conectados e circulantes, bolivianos operando na indústria de confecção paulistana, articulados e agenciados, por sua vez, pelos comerciantes coreanos que controlam o nicho do tecido sintético na cidade.

Como também mostra a pesquisa de Claudia Sciré17, a economia doméstica é toda redefinida em função das condições de acesso aos grandes equipamentos de consumo, shopping centers, Casas Bahia e feirinhas das mais variadas que, com uma literal “financeirização da pobreza” decorrente da explosão do consumo popular e a generalização dos cartões de crédito, alteram a organização familiar, as sociabilidades vicinais e as práticas de lazer locais. Nesses circuitos de troca e dádiva, entrecruzam-se, mais e mais, lógicas da dívida onde se compra hoje para se pagar apenas quando puder. Os contratos de troca extrapolam a palavra empenhada e se formalizam em documentos jurídicos implicados também em juros variáveis e variantes. São práticas de endividamento sucessivo que enredam parentes e amigos na financeirização do velho “fiado” e que, entre os empréstimos que vão para lá e para cá, prorrogam sempre mais o momento de pagamento, podendo levar a gestão da dívida, sua negociação, ao infinito.

O capítulo final do livro, o único totalmente inédito, toca no centro nervoso das discussões a respeito deste fantasma que ronda a metrópole e que é chamado, no singular, de “violência urbana”. Em torno da impressionante queda na taxa de homicídios que se deu em São Paulo a partir dos anos 2000, Telles mostra como se montou um verdadeiro campo de disputas e controvérsias no qual argumentos políticos, estatísticos, sociológicos e etnográficos se cruzam e se confrontam na busca pela explicação do acontecimento e na legitimação dos discursos em pauta. Entre as hipóteses dispostas nesse debate destaca-se aquela que, celebrada pelo próprio governo do estado de São Paulo, explica a baixa no índice dos assassinatos como resultado da eficiência das políticas de segurança pública. Também a “hipótese PCC” circula nessa discussão apoiada na ideia de que a hegemonia da facção no comércio das drogas teria contribuído para a “pacificação” de territórios conflagrados mediante expedientes como os “debates”. Chamados também de “forinhos”, os “debates” são uma espécie de tribunal em que as partes envolvidas são chamadas para dar sua palavra, com a participação dos patrões da biqueira e a intermediação de “irmãos” do “partido”, seja presencialmente ou através de celulares. Nas palavras da autora:

No início, mecanismos postos em prática na resolução das desavenças internas aos “negócios do crime” e às organizações criminosas. Surge, primeiro no universo carcerário e transborda, depois, para os bairros da periferia da cidade e, em pouco tempo, passa a ser acionado para a regulação de microconflitos cotidianos: de brigas de vizinhos a disputas em torno da distribuição de lotes em áreas de ocupação de terra, passando por problemas com adolescentes abusados, pequenos delitos locais, brigas de marido e mulher e miríades de situações próprias da vida nesses bairros18.

Com isso aprendemos que, entre a prisão e o bairro, não só pessoas e coisas circulam, mas também valores e modos de agir, procedimentos e “debates” fluem pelos inúmeros “vasos comunicantes” que conectam o dentro e o fora da cadeia19. Dialogando com estudos recentes e amparada por um trabalho de campo de longa duração com Daniel Hirata20 – pesquisador cuja interlocução nesse ponto é de fundamental importância na argumentação da autora -, Telles coloca em evidência as formas territorializadas de regulação extralegal da vida (e também da morte) e explora as continuidades e as descontinuidades desses diferentes mecanismos de gestão através da recuperação da história urbana local e seus principais personagens. Com isso, “justiceiros”, “matadores” e “traficantes” aparecem como marcadores temporais de diferentes regimes de poder numa cronologia da violência que se estende por trinta anos no passado. A variação de escala e a mudança de perspectiva, operada em prol das “histórias minúsculas” desses personagens, com efeito, dissolve o espectro monstruoso e abstrato da “violência urbana” e, entre outras coisas, revela como as “mortes matadas” ocorrem, também, por motivos os mais corriqueiros, comuns e demasiadamente humanos possíveis: traições, mal-entendidos, brigas, pendências, vinganças, acertos de conta.

O livro termina com este aprofundamento crítico a respeito dos jogos de vida e morte na cidade de São Paulo, seus jogadores, percursos e cenas de atuação, questões muito diferentes de suas pesquisas anteriores, que tematizavam centralmente a pobreza, a cidadania e suas relações21. A trajetória de pesquisa de Vera Telles desenha, de fato, um importante deslocamento nos campos de problematização que efetua e que pode ser parcialmente flagrado em seus aspectos teóricos no capítulo 4 do livro (“Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito”), em que, num debate mais amplo travado com seus interlocutores do CENEDIC (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania)22, interroga-se a respeito dos limites da linguagem dos direitos e da implosão de seu vocabulário conceitual: leis, cidadania, participação e espaço público.

Situado no meio do livro, o capítulo constitui uma espécie de dobradiça articulando as duas metades da obra e permite compreender melhor as reviravoltas de uma pesquisadora que, vinte anos atrás, tinha como principal referência Claude Lefort e Hannah Arendt (e os problemas da “invenção democrática” e da “revolução”), e hoje trabalha sob um diagrama de análise montado a partir de Michel Foucault e Giorgio Agamben (e a própria reconceituação da política referente ao “biopoder” e à “governamentalidade”, à “vida nua” e ao “estado de exceção”).

Perguntávamos, e era a pergunta que eu própria fazia quando lidava com essas realidades: quais as potências que permitem transformar o “pobre” (personagem) em “cidadão” (outro personagem)? Pois, agora, a pergunta é outra. A pergunta que esses personagens estão nos sugerindo é: como escapar da morte matada ou da infelicidade do pobre coitado?23

Mas a retórica do “desmanche” e da “era da indeterminação”, utilizada para caracterizar essa transformação da política em pura administração das urgências e gestão dos riscos, não funciona, tal qual se poderia imaginar, como um paralisante do pensamento e da ação. Muito pelo contrário, a incerteza de nossa atualidade emerge no livro como o principal propulsor do esforço em descrever este mundo em mudança. Não por acaso, todo o corpo da obra é organizado em função desta experimentação de forte teor etnográfico: “experimentação como prática de pesquisa, como forma de produção de conhecimento, também como experiência de pensamento” (p. 11).

Transversal às escolas e às tradições nacionais, seja na interlocução de longa data com a literatura sociológica brasileira (Lúcio Kowarick, Chico de Oliveira, Cibele Rizek) ou na problematização da cidade através de referenciais franceses ainda pouco conhecidos em nosso país (Marcel Roncayolo, Bernard Lepetit, Isaac Joseph, Yves Grafmeyer), destaca-se no trabalho um notável diálogo com o pensamento antropológico (Arjun Appadurai, Veena Das, George Marcus, Paul Rabinow, Bruno Latour, Ulf Hannerz, Michel Agier, Alain Tarrius, Alba Zaluar). Ainda que difuso, esse diálogo aparece aqui e ali em todo corpo da obra e ajuda a estabelecer o fio condutor no qual o parâmetro descritivo da pesquisa se desdobra no próprio parâmetro da crítica. Seja como for, talvez fosse interessante operar aí uma outra dobra, não destacada no livro e que seria ao mesmo tempo um aprofundamento desse diálogo com a antropologia. Uma dobra capaz de vergar a pesquisa sobre si mesma, fazendo-a refletir mais detidamente sobre as condições de investigação quando o campo é “minado” e marcado pela desconfiança e pelo medo. O que, por sua vez, permitiria introduzir a própria urgência no coração (não só da política, mas também) do trabalho etnográfico.

O leitor que se dedica a pesquisas em paisagens análogas definitivamente fica muito instigado em saber mais sobre a “cozinha” do trabalho de investigação: como se deu a entrada em campo, quais os parâmetros metodológicos que orientaram a seleção dos entrevistados, quais foram os contextos de enunciação das narrativas registradas; e também sobre a tessitura das relações estabelecidas entre os objetos e os sujeitos da investigação, especialmente quando esta, como é o caso, se desenrola num tempo de longa duração. Além destas, outras questões podem ser levantadas. O que significa, de fato, pesquisar em territórios de exceção? Quais condições de trabalho e de conhecimento se impõem ao pesquisador nessas zonas de turbulência e indeterminação? Como pensar sobre o conflito e a violência quando se está fazendo pesquisa no centro desses processos? Como teorizar sobre a localização desses saberes?

Essas e inúmeras outras perguntas afloram da leitura do vigoroso trabalho de Vera Telles. E é justamente pela multiplicidade de problemas abertos, conceitos apresentados, hipóteses levantadas, também pela impressionante quantidade e qualidade de informações sobre São Paulo, que A cidade nas fronteiras do legal e ilegal é uma formidável “caixa de ferramentas” para pesquisadores da área e um manancial de conhecimento para todos aqueles que se interessam em decifrar a cidade numa perspectiva que transcenda o já dito. Essa obra de fôlego, que nos apresenta uma São Paulo em processo e feitura, e por isso mesmo incerta e desconcertante, desenha uma paisagem urbana onde tudo pode se relacionar com tudo. Uma cidade feita de dobraduras na qual sempre existe uma dobra dentro da outra e na qual o maior perigo é perder-se na vertigem do embaralhamento promovido pelos inúmeros caminhos que a cidade-labirinto nos propõe.

Notas

1 DELEUZE, Gilles. A dobra: Liebniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991; [Links] Deleuze, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. [Links] 2 TELLES, V. da S. e CABANES, R. (orgs.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Humanitas, 2006. [Links] 3 TELLES, V. da S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010, p. 26. [Links] 4 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 226. [Links] 5 DAS, Veena. “The Signature of the State: The Paradox of Illegibility”. In: Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley/Los Angeles: University California Press, 2007. [Links] 6 TELLES, V. da S., op. cit., p. 10.
7 FOUCAULT, M. “Gerir os ilegalismos”. In: POL-DROIT, Roger (org.). Foucault entrevistas. São Paulo: Graal, 2006, pp. 50-51. [Links] 8 TELLES, V. da S., op. cit., pp. 173-75.
9 FOUCAULT, M. “A vida dos homens infames”. In: Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. [Links] 10 CABANES, R. Travail, famille, mondialisation. Récits de la vie ouvrière. São Paulo: IRD/Karthala, 2002. [Links] 11 VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. [Links] 12 CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2003. [Links] 13 TELLES, V. da S. e Cabanes, R., op. cit.
14 GRAFMAYER, Yves e JOSEPH, Isaac (orgs.). L’Ecole de Chicago: Nassaince de l’ecologie urbaine. Paris: Aubier- Montaigne, 1994. [Links] 15 ALSAYYAD, Nezar e ROY, Ananya. “Modernidade medieval: cidadania e urbanismo na era global”. Novos estudos Cebrap, nº 85, 2009. [Links] 16 FREIRE, Carlos. Trabalho informal e redes de subcontratação. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH- USP, 2008. [Links] 17 SCIRÉ, Claudia. Consumo popular, fluxos globais: práticas, articulações e artefatos na interface entre a pobreza e a riqueza. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2009. [Links] 18 TELLES, V. da S., op. cit., p. 208.
19 GODOI, Rafael. “Prisão, periferia e seus vasos comunicantes em tempos de encarceramento em massa”. Texto apresentado no seminário Crime, violência e cidade. São Paulo: FFLCH-USP, 2009. [Links] 20 HIRATA, Daniel. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: tese de doutorado, FFLCH- USP, 2010. [Links] 21 TELLES, V. da S. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; [Links] Telles, V. da S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34, 2001. [Links] 22 OLIVEIRA, Francisco de e Rizek, Cibele Saliba (orgs.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. [Links] 23 TELLES, V. da S., op. cit., p. 170.

Daniel de Lucca – Professor de Antropologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e doutorando em Ciências Sociais na Unicamp.

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Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte | Ronaldo Pereira de Jesus

Os estudos sobre a sociedade imperial do Brasil baseados em critérios de estratificação social de classe, desde sempre, é fato, ressoavam as concepções de mundo das classes dirigentes ou “dominantes”, ou “superiores”. Tal se dava seja porque se enaltecia, num primeiro momento, a “obra virtuosa” de edificação da Nação-Estado monárquica levado a cabo por sua diligente elite política; seja, depois, devido à análise crítica do papel dessas mesmas elites imperiais e sua obra: 1) a edificação do aparato jurídico do Estado pelos homens de letra e lei imperiais, consubstanciada em seus diplomas magnos que são a Constituição de 1824, o Código Criminal de 1830, o do Processo Criminal de 1832 e o Código Comercial de 1850; 2) a construção de uma identidade nacional, costurada em ponto-cruz pelos artistas, com grande peso dos escritores, sob a luz romântica do século (aqui, de nosso romantismo indianista); e, 3) a direção política da máquina governamental, em particular durante o segundo reinado, sob a tutela da indefectível mão paternal do summa potestas imperial.

Pelo menos desde os anos 1980, porém, sob influência da recepção das diversas matrizes do que se batizou de history from Below ou history from the bottom up, em particular da história social britânica de E. P. Thompson e Eric Hobsbawm mas igualmente de outras vertentes da história cultural que têm as camadas populares como sujeitos privilegiados de análise, como a micro- história italiana, os historiadores brasileiros procuraram expandir os horizontes das concepções ou visões de mundo constitutivas dessa heterogênea sociedade brasileira do século XIX, um mosaico complexo e que se torna complexo devido à sobreposição de critérios de identidade dos indivíduos, que misturam elementos de caráter jurídico (escravos, forros, livres), de caráter político (baseada em padrões censitários como cidadãos ativos, não-ativos e não-cidadãos), de estratificação social de classe (escravos, senhores, trabalhadores livres), de estratificação social de ordem (religiosos, militares aristocratas, trabalhadores), e, como ainda acontece no Brasil errante de hoje, critérios de identidade étnica (pretos, brancos, índios, pardos (?)). Em verdade, essa historiografia renovadora que surgiu nos anos 1980 foi mais bem sucedida quando identificou seus sujeitos (não ousaria dizer aqui “objetos”) de estudo a partir de critérios de estratificação de classe, nomeadamente os escravos no século XIX. Nomes justamente conspícuos, modelares de nossa historiografia, como Kátia Mattoso, João José Reis, Eduardo Silva, Silvia Hunold Lara, Luiz Geraldo Silva, Manolo Florentino e tantos outros aqui deram e dão enorme contribuição. Porém, a rigor, não me vem à mente estudo bem sucedido quando aqueles critérios se diluem, trabalho que resta por fazer.

O livro de Ronaldo Pereira de Jesus soma-se a esse esforço coletivo de nossa historiografia no sentido do resgate dos modos de ver a instituição monárquica e a figura do imperador de uma perspectiva from below, do ponto de vistas das camadas populares. Este talvez seja um dos grandes desafios que não apenas Ronaldo Pereira, mas todos os pesquisadores que compartilham desta perspectiva enfrentam, ou seja, a definição criteriosa do que se encontra below: entre vários, o autor opera com termos como “população pobre”, “classes populares”, “camadas populares”, “gente comum”, “povo”, “setores subalternos” (no prefácio ao livro, Sidney Chalhoub fala da “gente miúda”). A composição desse segmento só pode ser abrangente, para conter “o setor mais diretamente ligado ao cativeiro, composto por escravos e libertos, negros e mulatos” (p.10). A estes se somam os “homens livres pobres (miseráveis, mendigos, ‘vadios’ ou ‘desclassificados’)”. Devem compor a “gente comum”, ainda, pequenos comerciantes, artesãos, “executores de ofícios indignos”, militares de baixa patente, funcionários públicos de baixo escalão e operários. Por certo que há subjacente um desafio metodológico. As “elites”, por mais ambíguo que seja este conceito mesmo, deixaram registros de sua experiência. O investigador pode mesmo nomear os membros das elites (sejam estas elites políticas, intelectuais, econômicas ou qualquer outro recorte); pode agrupá-los, pode resgatar sua rede de relações. Há tanto documentação como metodologia para isso (prosopografia, por exemplo). Trata-se daquela famosa metáfora brechteana: sabemos quase tudo do faraó de tal pirâmide, mas muito pouco dos escravos que a levantaram. De modo que as visões de mundo dessas classes subalternas chegam-nos muita vez enviesadas, por terem sido registradas pelos vencedores e produtores da memória oficial.

Porém subjazem aí, também, duas questões de ordem teórica: primeiramente, no que tange ao caráter generosamente inclusivo desse conceito de “pessoas comuns”. Compartilhariam todos aqueles segmentos das mesmas visões da monarquia? Em segundo lugar, não obstante o autor expressar sua opção pela análise da diferenciação social de classes e da dinâmica da relação entre elas, ao evocar a brilhante análise da “dialética da malandragem” de Antonio Candido sobre os três mundos (do trabalho, da ordem e da desordem) que justamente ordenavam o universo social das Memórias de um sargento de milícias, o autor ancora sua análise numa estrutura teórica que concebe a sociedade escravista monárquica em sua divisão em ordens e não em classes. O que, a meu ver, é efetivamente mais profícua para seus propósitos e lhe oferece bons frutos, ainda que persista a tensão conceitual.

Muito sagaz e bem realizada é a forma como Ronaldo Pereira de Jesus estruturou sua pesquisa e construiu sua narrativa. Depois de uma exaustiva recensão bibliográfica, as visões da monarquia, do monarca e do governo imperial (que muitas vezes se confundem), foram criteriosamente pesquisadas em diversos e complementares fundos documentais. Dentro do sistema paternalista em que se erigia a monarquia brasileira, os súditos recorriam à coroa para todo tipo de benefício pessoal. Num universo imenso de súplicas dirigidas ao monarca para obtenção de todo tipo de graça (prática comum desde o reinado de D. João e mesmo antes, na história da monarquia portuguesa), o autor coligiu as súplicas dirigidas ao monarca pelas pessoas comuns, lavradas cunho próprio ou por terceiros. Em seguida, procurou depurar aquelas visões da monarquia inscritas nas homenagens dirigidas à Coroa por inúmeras corporações de ofício e associações profissionais, de classe ou beneficentes (de auxílio mútuo, por categorias sócioeconômicas). Aqui, o autor sugere a existência do movimento de um proto-operariado organizado e portador de uma consciência de classe que, sábia de seus direitos, pugnava por estes direitos junto ao Estado (por isso, com Fausto, denomina-o “estatista”), desenvolvendo “práticas de contestação aliadas a uma discursividade radical ao longo da segunda metade do século XIX” (p.96).

As visões da monarquia são perscrutadas, em seguida, em três movimentos importantes do Segundo Reinado, como são a Revolta do Vintém, o Abolicionismo e os impactos da Abolição da escravidão propriamente dita sobre as visões da gente comum sobre a realeza. Um dos capítulos mais saborosos do livro, a narrativa sobre a Revolta do Vintém permite ao autor perceber uma alteração de percepção da monarquia, de protetora e paternal para sua crítica contumaz, que chega à mobilização coletiva e violenta, ao gosto dos riots estudados por Rudé e Hobsbawm. Para o autor, a Revolta do Vintém ensejou mesmo a “alteração radical e momentânea das atitudes e expectativas diante do regime político e do imperador”, mais do que “uma mudança significativa e duradoura no imaginário popular e nas representações das pessoas comuns acerca da Monarquia. A recuperação da participação popular (singela!) no movimento abolicionista, levada a cabo nas conferências realizadas na Corte nos momentos decisivos da campanha (1885-1887), nos festivais abolicionistas e na mobilização efetivamente popular consiste numa das grandes contribuições de toda a obra. Embora constatando que o Abolicionismo, como movimento formador de opinião pública, foi definitivamente um movimento de elite, o autor conclui “supondo que a profusão de imagens negativas do imperador e do regime monárquico abalou consideravelmente as percepções positivas do imperador e da monarquia entre as pessoas comuns da corte” (p.163). Porém, independentemente dessa gradação valorativa e essa é a tese recorrente do livro, para além dela subsistiria entre a gente comum da corte “o pragmatismo, a indiferença e o afastamento de sempre”. Ou seja, as pessoas comuns pouco se deixavam “contaminar” pelas visões positivas da monarquia e do monarca, como “pai dos pobres”, benevolente e justo estas sim imagens difundidas pelas camadas dominantes. Assim também, pouco alteraria o quadro a “outorga” da libertação dos escravos pela Princesa Izabel, já que todas as festas da abolição foram manifestações públicas das classes escravistas e de setores médios urbanos, expressões de “alívio e entusiasmo por não mais habitar um país escravista” (p.173). O povo, a gente comum, não foi senão espectador nessa festa. Espectador bilontra, mas espectador.

Afora pouquíssimos ruídos de edição, o texto de Ronaldo Pereira de Jesus é muito bem cuidado, bem escrito, prazeroso. Seu livro expressa mais uma contribuição séria e bem executada deste importante setor da historiografia brasileira que se dedica a escrever a história daqueles sujeitos que foram insistentemente esquecidos por ela.

Jurandir Malerba – Professor no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FFCH/PUC-RS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: [email protected]


JESUS, Ronaldo Pereira de. Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. Resenha de: MALERBA, Jurandir. Vossa Alteza, vista cá debaixo. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.162-164, jan./jun., 2011.

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A ideia de justiça em Schopenhauer – CARDOSO (V-RIF)

CARDOSO, Renato César. A ideia de justiça em Schopenhauer. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. Resenha de: ALMEIDA, Juliana Fischer de. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.2, n.1, p.129-133, 2011.

No rol das preocupações centrais de Arthur Schopenhauer não se encontra a filosofia do direito; o pensador sempre tratou do tema de maneira periférica em seus escritos. Contudo, é possível se pensar num sistema jusfilosófico no interior desse pensamento. O livro A ideia de justiça em Schopenhauer, de autoria do professor do Programa de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, Renato César Cardoso, tem como principal intuito buscar especificar justamente tal sistema em Schopenhauer, a partir da seguinte problemática: “como compreende Schopenhauer os conceitos de justiça e de direito, quais as relações que se estabelecem entre ambos, bem como entre esses e o restante de sua doutrina? Como se estruturaria uma filosofia do direito de matiz schopenhaueriana” (p.23)?

O fio condutor do pensamento do autor em vista da problemática acima perpassa, primeiramente, os conceitos de representação e de vontade. Em seguida, define a questão da justiça/injustiça, abordando os questionamentos morais; e, por fim, aborda temas como o direito de propriedade, a finalidade do Estado e o direito de punir do mesmo, contemplando novamente os aspectos morais da discussão.

Na primeira parte do livro, intitulada O mundo como representação, Cardoso analisa um dos conceitos centrais do pensador alemão, a representação:

Todo o mundo conforme o conhecemos, no tempo, no espaço, submetido inapelavelmente ao princípio da causalidade, tudo isso é representação para o sujeito que conhece, e nada mais. Tudo o que conhecemos empiricamente, tudo nos é dado apreender pela sensibilidade, nos é dado de forma condicionada, sob o princípio da razão e submetido àquelas suas formas às quais já nos referimos – tempo, espaço e causalidade (p. 51).

A representação tem como pressupostos as formas a priori (tempo, espaço e causalidade), um sujeito que conhece, mas é incognoscível, e o objeto que é conhecido. O mundo é revelado como uma representação individual, pessoal, é conhecido por nós, não existe por si só. Assim, é a própria representação que pressupõe o sujeito e o objeto. Como fechamento da abordagem sobre a representação, o autor aduz à questão do princípio de razão suficiente proposta por Schopenhauer, que consiste, resumidamente, em quatro raízes de ligações entre as representações: “a causalidade física, as relações matemáticas, o enlace lógico e a lei da motivação, relativa aos seres vivos” (p.67). Somente a partir desses critérios é possível supor um indivíduo e o distinguir dos demais seres.

Na segunda parte da obra, O mundo como vontade, o autor se detém ao exame da ampla noção da vontade em Schopenhauer. Para se ter acesso à autêntica realidade do mundo enquanto coisa-em–si, não se pode seguir pelo fio dos componentes da representação, mas considerar um outro “como” (als), independente das limitações representacionais, a saber, a vontade, o princípio impulsionador do mundo. Esta não se submete às leis da razão, não é passível de ser detalhadamente conceituada, está em todas as partes, é atemporal, una, imutável, não está condicionada por uma causalidade, é livre e tem por finalidade exclusiva o querer incessante. Portanto, a vontade se determina pela via negativa. Ao final da análise sobre a vontade, Cardoso aventa algumas indagações que se ligam à temática proposta no livro: como a vontade, definida por este conceito, afeta o homem, seu modo de agir e de ver o mundo? Como compreender a moral, o direito e a justiça partindo-se de semelhante formulação?

Para responder a essas questões, o autor parte da abordagem da liberdade da vontade em Schopenhauer. Há três tipos de liberdade: física, intelectual e moral. No âmbito da primeira, pode-se entender a liberdade como a ausência de impedimento de ordem material, obedecendo somente à vontade. Neste tipo de liberdade o que está em jogo é a ação, em que o homem é livre quando capaz de agir pela sua própria vontade. Segundo o autor, o problema da questão não reside, contudo, na ação, mas na liberdade da vontade, fazendo o seguinte questionamento: “podemos obviamente fazer o que queremos, mas será possível também, por sua vez, querer o que queremos” (p.85)?

O autor frisa que na liberdade da vontade não se aplica o princípio de razão, logo no mundo da representação inexiste liberdade, pois há causalidade que determina a conduta. Assim, somente no campo da vontade é que a liberdade se faz presente. De acordo com Cardoso, Schopenhauer rompe com a tradição racionalista, a qual fundamentava a liberdade como uma condição racional, visto que o intelecto – representação – é subjugado pela vontade – essência. Para finalizar, “o indivíduo faz o que quer, sempre, porque é já objetivação de sua vontade, é a própria expressão do seu querer, dessa vontade” (p.89). Assim, respondendo à pergunta sobre se é possível querer o que queremos, a resposta é afirmativa, pois, uma vez que a liberdade reside na própria vontade e o ser humano é a manifestação fenomenal desta, a “vontade não determina o ato do homem, ela é o seu ato” (p.89).

Antes de abordar especificamente a temática proposta no livro, sobre a justiça, Cardoso investiga alguns aspectos da questão moral para, a partir disso, poder determinar o que é justiça/injustiça, o direito de propriedade, a fundamentação do Estado e seu direito de punir em Schopenhauer. No que tange à moral, Schopenhauer critica Kant e desenvolve sua própria teoria, refutando o aspecto racional como fundamentação para a ação moral. Segundo o autor,

O que caracteriza o ato moral, virtuoso, ensina Schopenhauer, é exatamente o contrário do que propunha Kant, é o amor, a compaixão, o compadecer-se […]. Não é na aridez e na frieza da racionalidade que se encontra o fundamento da moralidade, mas sim, ensina Schopenhauer, no tomar para si, como seu, o sofrimento do outro (p. 101).

Assim, Cardoso frisa a proposição ética schopenhaueriana do “não faças mal a ninguém, mas antes ajuda a todos o quanto puderes” (p.107), sendo que existem dois graus para identificá-la: no primeiro deles se dá na medida em que a motivação moral é sobreposta aos interesses egoísticos (sentido negativo); no segundo, a moral leva o homem a agir em prol de outrem (sentido positivo). Desta feita, o autor destaca que no primeiro grau encontra-se a justiça e no segundo a caridade, tendo ambas por base a compaixão, na qual se assenta a natureza humana.

Abordada a questão da moral e como ela é o alicerce da justiça, passa-se a tema central da obra de Cardoso, qual seja, a justiça. Neste capítulo, a autor inicia destacando o que seria a ideia de justiça eterna em Schopenhauer, sendo entendida como aquela em que a realidade não necessita garantir os direitos individuais, como comumente a tradição a entende, pois tal espécie de justiça – metafísica- não se aplica ao mundo fenomenal regido pelo princípio de individuação. Um segundo desdobramento que o autor enfatiza a partir da justiça schopenhaueriana, é justamente a questão da injustiça.

A doutrina do direito de Schopenhauer, como ressalta o autor, se diferencia da kantiana, pois vincula o direito à ética, sendo esse o ponto de partida para se entender a noção de injustiça. Quando a vontade individual se sobrepõe ilegitimamente sobre a vontade de outrem, Schopenhauer a conceitua como um ato de injustiça. Cardoso apresenta as duas formas de manifestação da injustiça schopenhaueriana: a violência e a astúcia. A primeira ocorre sempre quando se afirma uma vontade sobre a outra, já a segunda forma se dá quando a injustiça é caracterizada pela anulação da vontade do outro e o reconhecimento somente da “minha” vontade, por meio da dissimulação, enganando o outro sobre sua vontade. Assim, a ideia de injustiça está intimamente ligada com a moral. Em seguida, o autor passa à análise da justiça e do direito.

A justiça, segundo elucida Cardoso, “é toda a ação que não transpassa a vontade na qual se manifesta, não negando a vontade em outro” (p.125). O autor afirma que em Schopenhauer existe a figura da legítima defesa, pois quando, mediante força impede-se que a vontade do agressor se imponha, não se comete um ato de injustiça, sendo, portanto, um ato justo. Desta feita, a justiça é a negação da injustiça. Por sua vez, o direito em Schopenhauer é o direito natural e não o positivo, anterior à constituição do Estado e atrelado à moral, sendo indissociáveis. No capítulo intitulado Do direito de propriedade e dos contratos, o autor encerra a questão da justiça/injustiça e se detém ao exame da propriedade e dos contratos. No que tange ao direito de propriedade em Schopenhauer, Cardoso afirma que este é um direito natural e deve ser protegido, mas ressalva que não é qualquer tipo de propriedade que deva ser protegida, mas somente aquela que é fruto do trabalho. A mera ocupação ou o direito ao primeiro ocupante não possuem fundamentação moral, portanto não são protegidas pelo direito.

Sobre os contratos, Cardoso sustenta que, em Schopenhauer, o descumprimento dos contratos é uma injustiça, pois engana a vontade, levando minha ação a ser diferente de minha vontade. A fundamentação dos contratos se aplica também ao contrato social, pactuado entre os governantes e governados. Dessa forma, chega-se ao último tópico da temática proposta pelo autor, a saber: a finalidade do Estado e o direito de punir do mesmo. No capítulo O Estado, Cardoso afirma:

O Estado, visto sob o prisma de Schopenhauer, é a decorrência natural da soma dos egoísmos racionalizados. Sua função primordial, o motivo pelo qual foi criado, é a prevenção da injustiça. Sua razão de ser principal é esta: o Estado não existe para punir a injustiça cometida, mas para prevenir que elas ocorram (p.137).

A teoria schopenhaueriana sobre a finalidade do Estado é inspirada em Hobbes, ambos descrentes da raça humana e partidários de governos “autoritários”. Assim, de acordo com autor, a função do Estado é negativa, pois evita os ataques externos – estrangeiros; internos – entre os cidadãos contra outros concidadãos; e protege contra os governantes – instauração do direito público e da separação dos poderes. No que se relaciona ao direito de punir do Estado, Cardoso ressalva que a responsabilidade não acontece por aquilo que se faz, mas por aquilo que se é, devido à questão da vontade livre, na medida em que, conforme já fora dito, a liberdade reside na vontade e não na razão. O direito em Schopenhauer, segundo Cardoso, atua sobre os motivos que agem sobre a vontade e não sobre a racionalidade. Por fim, destaca-se que a finalidade da punição é a prevenção e não a vingança, haja vista que a função do Estado é prevenir as injustiças.

O autor, na conclusão de seu livro, sublinha a importância do pensamento de Schopenhauer para se pensar um direito mais compassivo e menos racionalizado. Desse modo, o professor Renato César Cardoso propõe ao leitor uma importante reflexão do pensamento jurídico sob um autêntico viés filosófico. Rompendo, assim, com a tradição, instiga-nos a uma leitura mais pormenorizada de um tema pouco explorado do pensamento schopenhaueriano.

Juliana Fischer de Almeida – Mestranda em Filosofia pela PUC-PR.

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Culturas Políticas na História: novos estudos – MOTTA (S-RH)

MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). Culturas Políticas na História: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009, 232 p. Resenha de: CORDEIRO JUNIOR, Raimndo Barroso. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [24] jan./ jun. 2011.

A produção e o uso de conceitos, construtos semânticos que ultrapassam o sentido pragmático da linguagem ordinária e se impõem na medida em que são elaborados e apropriados pelos falantes, pressupõe uma tensão social e política interposta no conflito gerado por uma multiplicidade de significados. Ainda mais, quando sabem os usuários que os sentidos atribuídos aos termos da fala fatalmente serão discordantes e, em consequência disso, impor uma definição hegemônica representa lograr uma vitória política.

As disputas pelo controle desses significados marcam o cotidiano das comunidades linguísticas em dimensões diversas: política, filosofia, estética, ciência etc. Além disso, nas ciências humanas, considerando a especificidade de sua natureza epistemológica, a instrumentalização de conceitos heurísticos e operacionais configura um desafio de significação e de consistente manuseio de instrumentos teorico-metodológicos. Leia Mais

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940) – BICCAS (RBHE)

BICCAS, Maurilane de Souza. O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, 216 p. Resenha de: GUIMARÃES, Paula Cristina David. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940), livro publicado em 2008 pela editora Argvmentvm, é resultante da pesquisa de doutoramento empreen­dida por Maurilane de Souza Biccas, pós-doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde integra a coordenação do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Niephe).

Com sólida experiência em trabalhos sobre impressos peda­gógicos que, recentemente, vem crescendo no Brasil e muito tem contribuído para os estudos em história da educação, Biccas realiza, neste trabalho, uma investigação sistemática sobre o impresso pe­dagógico mais representativo na história de Minas Gerais, a Revista do Ensino. A autora não se restringe somente à Revista; utiliza outras fontes documentais como jornais, decretos e leis da época pesquisada no intuito de complementar e esclarecer as informações obtidas da fonte principal de sua investigação.

Composto de seis capítulos, o trabalho destaca aspectos re­lacionados à materialidade, produção, circulação e distribuição da Revista do Ensino, “impresso pedagógico oficial de educação direcionado aos professores, diretores e técnicos da rede pública de ensino do estado de Minas Gerais” (p. 15), entre os anos de 1925 e 1940. A obra tem por objetivo “descrever e analisar os aspectos relacionados à materialidade da Revista aos conteúdos nela vei­culados, às mudanças ocorridas nos seus primeiros dezesseis anos de circulação e à produção de sentidos desencadeada por essas transformações editoriais” (p. 15). Para a realização do trabalho, autora fundamenta-se no campo de análise da “nova história cultural”, campo que vem impactando a produção historiográfica contemporânea e, de modo particular, a história da educação.

Quanto à materialidade da Revista, Biccas dispensa aten­ção especial à análise de capas, versos de capas, contracapas e quartas-capas dos números publicados. Como Marta Maria Chagas de Carvalho chama a atenção na apresentação do livro, a Revista do Ensino “não foi tratada como um veículo neutro para a comuni­cação dos conteúdos dos textos que edita, mas como performidade da ordenação da significação deles na materialidade mesma das diversas formas aplicadas à sua edição” (p. 13). Nesse sentido, Biccas recorre a autores que investem nesse mesmo pensamento quanto à importância da análise da materialidade dos impressos, tais como Roger Chartier e Michel de Certeau.

No primeiro capítulo do livro, “Ciclo de vida de um impresso oficial: Revista do Ensino 1925-1940”, a Revista é analisada dentro do seu momento histórico de constituição e circulação. A autora retorna ao momento de criação da Revista do Ensino, 1892, des­tacando que, após a publicação de apenas três números, a Revista foi desativada. Seu relançamento aconteceria em março de 1925, sendo interrompida entre os anos de 1940-1946 devido à Segunda Guerra Mundial, voltando a circular até 1971.

A Revista também é analisada como parte integrante e depo­sitária das mudanças educacionais ocorridas em Minas Gerais, como a Reforma Francisco Campos (1927). Na ocasião, o go­verno mineiro fez das páginas da publicação um valioso meio de apresentação, discussão, avaliação e estímulo à utilização das ideias pedagógicas renovadoras pretendidas por essa reforma. Esse impresso pedagógico também se revela como arena de disputas e acordos de diferentes interesses políticos e educacionais travados, por exemplo, entre católicos e “liberais”. Desse modo, e com as conexões que a autora realiza do momento histórico pesquisado, é possível perceber as relações de força que compunham o projeto editorial da Revista do Ensino.

Já no segundo capítulo, “Processos de produção e circulação”, a autora observa as formas de produção e as condições de circulação do periódico. Para tanto, faz uma descrição material e apresenta, de maneira detalhada e organizada, informações acerca de cada um dos 16 primeiros anos de circulação da Revista, relacionando: publicações, páginas por publicação, seções utilizadas, fotografias e ilustrações veiculadas, formato, presença ou não de propagandas, sumário e índice. Além disso, tendo em vista as diferentes formas de manipulação da Revista, a autora também analisa aspectos da dinâmica de apropriação que os professores faziam do periódico.

No capítulo três, “A dinâmica das formas e dos sentidos”, a pes­quisadora analisa as capas, versos de capas, quartas-capas e páginas finais que compõem a Revista do Ensino, a fim de explicitar como “conformam e se articulam os procedimentos de composição e de textualização” do periódico (p. 95). Nessa análise, Biccas percebe a capa como item de suma importância na composição da Revista, na medida em que atuava como um chamariz para a leitura. Para a autora, a capa representa um “espelho” dos diferentes projetos políticos e educacionais pelos quais a Revista passou, refletindo tensões, contradições e ambiguidades de tais projetos. Os diversos suportes que o periódico recebeu também foram objetos de análise para Biccas. Assim ela foi analisada, primeiramente, como anexo do Jornal Minas Gerais, depois como suplemento do mesmo Jornal e, finalmente, como Revista autônoma ao se desvincular do referido jornal. Oobjetivo dessa análise foi perceber como o suporte que veiculou a Revista marcava o modo como esta se apresentava para seus leitores.

No quarto capítulo, “Propaganda, publicidade e informação”, são analisadas a forma, o lugar e a intenção dos editores da Revista ao destinar um espaço para esse tipo de divulgação em um impresso educacional. Segundo a pesquisadora, 1929 foi o primeiro ano em que se veicularam propagandas na Revista de Ensino, além de ter sido o período de maior incidência propagandística. Nesse mesmo ano percebe-se que a maior parte dos anúncios de publicidade eram direcionados ao público-alvo da Revista do Ensino, os professores e diretores de escola. Os espaços destinados pelos editores a esses e outros tipos de anúncios foram as quartas-capas e, em alguns números, as páginas internas da Revista.

No capítulo cinco, “A Revista dada a ver: fotografias e ilustra­ções”, Biccas analisa as imagens veiculadas pelo periódico, para compreender a relação construída pelos editores ao apresentar fotografias e ilustrações como textos e também observar a atuação destes como elementos constitutivos do próprio periódico. Uma vez que a Revista do Ensino de Minas Gerais era um periódico oficial, os traços das políticas educacionais mineiras são evidentes em suas páginas. Por conseguinte, as imagens não são tratadas de forma periférica, mas analisadas como estratégias de transmissão de “mensagens que se pretende divulgar e inculcar” (p. 149). As fotografias e ilustrações utilizadas buscavam exprimir uma “men­sagem”, produzir um significado e um efeito junto aos leitores, chamando-lhes a atenção para uma nova concepção de educação que estava sendo forjada e deveria ser assimilada por eles. Nesse sentido, as imagens foram responsáveis pela divulgação de festas, prédios escolares, métodos pedagógicos e atividades escolares de crianças.

No sexto e último capítulo, “A síntese e difusão de modelos: esquadrinhando as seções”, a autora apresenta e analisa as seções que compõem os números da Revista, e observa que as seções sofreram processos importantes de constituição, permanências e rupturas dentro do projeto editorial. Para essa análise, Biccas apresenta dados sobre as seções, evidenciando o período em que elas foram criadas, o tempo de permanência e a que tipo de temá­tica se referiam. As seções também são analisadas tendo em vista a “política editorial adotada no período, procurando perceber que representação de professor-leitor os editores tinham e que propostas de formação foram traçadas a partir dessa concepção”.

Ao final da obra, Biccas conclui que os principais enfoques que guiaram a análise em sua pesquisa permitem considerar a Revista do Ensino “como um dispositivo de normatização pedagógica e de ampliação da cultura educacional dos professores” (p. 197). A Revista, ao mesmo tempo em que difundiu ideias e preceitos, promoveu determinados hábitos de leitura, modelados por suas indicações, configuração e forma como dispôs e organizou seus textos. Assim, a autora destaca que “ao mesmo tempo em que a Revista foi sendo produzida, também produziu e foi construindo o próprio campo educacional mineiro” (p. 200).

O livro resenhado expressa seu valor pela riqueza de detalhes, tais como a veiculação de gráficos e tabelas de informações, bem como pelos cruzamentos e comparações dos dados obtidos. Oolhar que a autora lança sobre seu objeto de pesquisa é, simultaneamente, singular e plural, ou seja, ao mesmo tempo em que isola os dados da Revista, Biccas os confronta e os articula, percebendo, assim, novos indícios de informações para suas análises.

No sentido empregado por Foucault (2002), a Revista do Ensino pode ser analisada como uma “tecnologia de poder”, na medida em que atuou como objeto de ação e de controle do gover­no mineiro sobre a atuação docente, sendo um suporte para leis, normas e recomendações das diretrizes educacionais durante seu período de circulação.

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940) é tema relevante para a história da educação na medida em que nos leva a uma reflexão sobre as diferentes possibilidades de pesquisa oferecidas pelo impresso pedagógico, principalmente no que tange às ideias em formação no campo educacional de um determinado período.

É possível perceber, ainda, o processo em que se deu a pesquisa com a materialidade do objeto quando a autora expõe, de forma clara e objetiva, a forma como lidou com os processos de orga­nização da Revista para a realização do trabalho. Demonstrando sua posição sobre a importância de análise do material impresso, Biccas apresenta, durante sua obra, análises meticulosas da Revista do Ensino, evidenciando sua riqueza de indícios dos aspectos pe­dagógicos no contexto histórico do período analisado. Por isso, ao ler a obra, é possível perceber que, ao voltarmos nosso olhar para um objeto de pesquisa como o impresso pedagógico, acabamos por decifrar complexos processos educativos que permearam a educação brasileira em determinado tempo e espaço.

Com uma multiplicidade de dados, análises minuciosas e com um convite para novas pesquisas, o livro resenhado constitui um rico material de referência para historiadores da educação que pesquisam ou desejam pesquisar acerca de im­pressos pedagógicos.

Referências

Foucault, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Paula Cristina David Guimarães – Mestranda em Educação pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: [email protected]

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Das pedras aos homens: tecnologia lítica na Arqueologia Brasileira – BUENO; ISNARDIS (BMPEG-CH)

BUENO, Lucas; ISNARDIS, Andrei (Orgs.). Das pedras aos homens: tecnologia lítica na Arqueologia Brasileira. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007. 270 p. Resenha de: FONSECA, João Aires da. Pesquisas recentes sobre material lítico na Arqueologia Brasileira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.2, maio/ago. 2010.

O livro “Das pedras aos homens” surgiu a partir das ideias discutidas no seminário “Tecnologia Lítica no Brasil. Fundamentos teóricos, problemas e perspectivas de pesquisa”. Organizado por Lucas Bueno e Andrei Isnardis, o livro tem como proposta reunir pesquisadores de diferentes formações científicas dentro da arqueologia, disponibilizando aos leitores um panorama não somente interessante como também essencial para que a arqueologia brasileira se torne cada vez mais sólida em conceitos e metodologias de pesquisa. Não há dúvida de que somente com esta diversidade de pesquisadores foi possível alcançar a proposta de se escrever um panorama de problemas e perspectivas sobre o contexto do material lítico em sítios arqueológicos brasileiros.

O que o livro apresenta ao longo de seus onze capítulos são as novas abordagens para o estudo deste tipo de material, não permanecendo somente nos estudos das ‘pedras’ (rochas) em si, mas indo além, criando contextos e quadros hipotéticos que permitem ir “das pedras aos homens”. Esta coletânea de artigos passa a ser uma referência atual sobre o estudo de tecnologia lítica na arqueologia brasileira, disponibilizando referências bibliográficas úteis sobre os temas abordados, o que permite aos leitores, em especial estudantes de arqueologia, um maior aprofundamento sobre os temas descritos.

Como exemplo, quais são as referências existentes sobre arqueologia experimental no Brasil? Como esta parte da arqueologia vem se desenvolvendo atualmente? É neste ponto que “Experimentação na Arqueologia Brasileira: entre gestos e funções”, de André Prous, e “Recent advances in stone-tool reduction analysis: A review for Brazilian archaeologists”, de Michael Shott, trazem à tona uma revisão do uso da experimentação.

André Prous introduz a importância da etnoarqueologia e do esforço próprio que o arqueólogo precisa ter ao reproduzir e utilizar o que poderiam ser as réplicas de instrumentos arqueológicos. Desta forma, o pesquisador aborda o material lítico a partir da experimentação, adquirindo mais dados para suas interpretações dos vestígios coletados e de seus prováveis contextos. É neste sentido também que a argumentação de Michael Shott incide sobre os diversos processos de redução que um artefato lítico pode ter passado, seja por meio do uso intenso ou de retoques para reavivar gumes, por exemplo.

As interpretações sobre o contexto arqueológico assumem um papel muito importante neste livro. Tal importância é justamente por ser esta a principal meta das pesquisas arqueológicas recentes. Para Andrei Isnardis, autor do capítulo “Notas sobre a solidão das indústrias líticas”, a distribuição espacial de diversos vestígios é essencial para retirar as indústrias líticas do que ele considera como “solidão”. Trata-se de uma crítica às pesquisas que lidam com os materiais analisados de maneira isolada, deixando de lado a interpretação do restante do material coletado, criando, assim, interpretações parciais do contexto do sítio.

Tal problema de interpretações parciais pode advir das divisões por grandes classes de vestígios. Para Isnardis, alguns pesquisadores acabam sendo caracterizados como ‘arqueólogos do lítico’, ‘arqueólogos da cerâmica’ ou ‘arqueólogos da arte rupestre’. A especialização dos pesquisadores acaba por causar este isolamento do material analisado, contudo, como o principal objetivo das pesquisas são as sociedades humanas, existe a necessidade de estudos que usem os vários artefatos dentro de um conjunto para que se chegue às possíveis interpretações de contextos sociais mais complexos, e não apenas de uma parte especializada.

Como exemplos desta necessidade de interpretar diversos dados, buscando uma visão dinâmica sobre a pré-história brasileira, na tentativa de articular vestígios, sítios, regiões e macrorregiões, pode-se citar os capítulos sobre o Brasil Central, “Organização tecnológica e Teoria do Design: entre estratégias e características de performance”, de Lucas Bueno, e “Metodologia de análise para as indústrias líticas do Pleistoceno no Brasil Central”, de Águeda Vilhena-Vialou.

Outra vertente clara no livro, tomada por todos os seus autores, é a inviabilidade, ou ineficácia, em se produzir estudos arqueológicos que contemplem estudos tipológicos baseados unicamente em instrumentos acabados. Como abordado por Jacqueline Rodet em “Uma terminologia para a indústria lítica brasileira”, e por Paulo Jobim em “Possibilidades de abordagens em indústrias expedientes”, existe uma tendência, iniciada na década de 1980, para a inserção nos estudos de contexto e de tecnologia dos conceitos de cadeia operatória, gesto, teoria do design e experimentação, em vez de estudos meramente tipológicos de peças já acabadas, enfatizando a necessidade de homogeneização da terminologia utilizada pelos pesquisadores, buscando-se sistematizar as nomenclaturas para a análise da tecnologia lítica.

Mais exemplos advém de Pedro Schmitz em “O estudo das indústrias líticas no PRONAPA, seus seguidores e imitadores”; de Adriana Schmidt em “Da tipologia à tecnologia: reflexões sobre a variabilidade das indústrias líticas da Tradição Umbu”; e de Sirlei Hoeltz em “Contexto e tecnologia: parâmetros para uma interpretação das indústrias líticas do Sul do Brasil”.

O capítulo de Pedro Schmitz caracteriza o papel da ciência arqueológica: cada época possui um contexto e limitações de pesquisa, e cada época sucessora irá acumular conhecimentos de épocas anteriores, reformulando-os e aplicando novos. A principal diferença entre o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) da década de 1970 e as pesquisas recentes, como a desenvolvida na Floresta Atlântica, é o maior dinamismo das pesquisas que, com o quadro teórico atual, possibilitaram chegar a conclusões regionais e mais amplas sobre a ocupação humana na região Sul do Brasil. Nesta mesma linha, Adriana Schmidt e Sirlei Hoeltz enfatizam a importância dos estudos que enfocam o caráter regional e que respeitam a contextualização espacial dos sítios, em suas características internas e externas, associadas a propostas metodológicas que compreendam a variabilidade artefatual como resultado de escolhas tecnológicas, na busca por identidades sociais no registro arqueológico.

Por fim, temos o divertido experimento literário escrito por Klaus Hilbert, “Indústrias líticas como vetores de organização social ou: Um ensaio sobre pedras e pessoas”. Hilbert preferiu intuir, explicando por meio de crônicas e múltiplas narrativas, “as pedras arqueológicas e as pedras lúdicas da infância e adolescência”, deixando um pouco de lado as listas de sequências analíticas de gestos e de atributos tecnotipológicos, descrevendo algumas relações entre pessoas e ‘pedras’.

A meu ver, o principal ponto do livro incide nas experiências dos autores, através de projetos de pesquisas que exemplificam seus fundamentos teóricos, seus problemas e as perspectivas abordadas. Contudo, como a proposta do livro refere-se à arqueologia brasileira, a principal crítica diz respeito em não ter explorado, por exemplo, referências sobre estudos de materiais líticos na porção Norte do Brasil, mais especificamente na região amazônica. Talvez esta seja uma lacuna importante a ser apontada, até mesmo devido à escassez de produção bibliográfica sobre o tema.

Como, provavelmente, ainda serão feitos novos congressos sobre tecnologia lítica brasileira, certamente não só a região amazônica entrará em pauta, como também as demais regiões que não foram discutidas neste primeiro livro, formando, assim, um panorama mais amplo, semelhante ao apresentado com maestria pelos organizadores.

João Aires da Fonseca – Mestre em Arqueologia pela Universidade de São Paulo. Bolsista do Programa de Capacitação Institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi/MCT. Curador do Museu do Marajó. E-mail: [email protected]

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Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de história na segunda metade do século XIX – MELO (HH)

MELO, Ciro Flávio de Castro Bandeira. Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de história na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, 224pp. Resenha de: CARVALHO, Rosana Areal de; RODRIGUES Elvis Hahn. Manuais didáticos de História do Brasil: entre a memória e o esquecimento. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.314-319 março 2010.

O livro Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de história na segunda metade do século XIX publica a tese de doutoramento defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 1997, pelo professor Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo que, além da reconhecida trajetória no ensino de História, se faz amigo do tempo. Sem pressa, como bom mineiro, vem cunhando a vida de professor sustentada em experiências riquíssimas, seja proveniente dos níveis de ensino nos quais atuou, seja pelo gosto de estudar que sempre manifestou.

Trata-se de um estudo comparativo entre dois manuais escolares de história, em momentos distintos da educação brasileira: Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo e História do Brasil, de João Ribeiro. São obras de referência sobre o conhecimento histórico, no âmbito didático. Em comum, além da produção de um manual escolar (termo mais apropriado para a época), os dois autores estiveram vinculados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, e foram professores do Colégio Pedro II. Logicamente, em medida e tempos diferentes.

A partir daqui, a resenha deste livro se faz muito difícil, pois se trata de uma tese defendida em 1997. Uma resenha nos moldes tradicionais trataria de confrontar a obra com a produção historiográfica da época. Neste caso, temos outra possibilidade: que influências essa obra exerceu na produção historiográfica posterior? Qual seria o melhor caminho a tomar? Independente do caminho a tomar, não temos dúvida de que a jornada empreendida pelo Prof. Ciro exigiu muito fôlego. Primeiro, porque trilhou por várias áreas do conhecimento: aborda a historiografia brasileira, ao tratar das produções vinculadas ao IHGB e as influências de historiadores como Varnhagen e Capistrano de Abreu. Trata do ensino de história, dado que os autores foram professores do “Pedro II”, modelo de ensino secundário instituído no Brasil na mesma década da criação do IHGB. E, junto com o ensino de história, temos o cerne do trabalho, que é compreender e confrontar dois manuais didáticos nos aspectos relativos à elaboração, às influências recebidas pela historiografia disponível e ao processo de didatização do conhecimento histórico. Perpassa, portanto, as representações sobre a história do Brasil: o que deve ser memória e o que deve ser esquecimento. Segundo, porque para tratar de cada uma dessas áreas se fez necessário outros tantos estudos que estão presentes na obra. Por exemplo, parte da trajetória do IHGB, envolvendo os autores-mestres como Varnhagen e Martius. Ainda inclui o Imperial Colégio de Pedro II, chamado Ginásio Nacional após a Proclamação da República. São os “agentes”.

O trabalho se debruça sobre dois momentos. O primeiro – Os agentes – abarca o lugar de produção das obras em seus respectivos momentos históricos. Enuncia as influências presentes em cada uma das obras e como estas se remetem à tradição historiográfica produzida pelo IHGB, a partir de sua fundação, em 1838. O segundo momento – Os livros – faz um estudo comparativo de como os manuais abordam temas consagrados e emblemáticos da História do Brasil tais como: o Descobrimento, os indígenas, as invasões estrangeiras, a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana, a Revolução Pernambucana de 1817, a Chegada da Família Real, a Independência, Escravidão e Abolição. Melo aborda esses temas a partir das continuidades e rupturas, na medida em que defende a hipótese da obra de Macedo ser destinada à educação dos súditos da Coroa, e a obra de Ribeiro comprometida com a educação do cidadão republicano.

Nesta primeira parte da tese, Melo enuncia seus referenciais teóricos a partir dos conceitos de hegemonia, direção e controle sobre o todo social e político. Direção aos aliados e domínio sobre os opositores. O ensino de história se insere nesta relação como forma não violenta de hegemonia de uma visão de mundo, segundo os enunciados de Gramsci.

A partir destes conceitos, Melo compreende a obra Lições de História como expressão da centralidade e estabilidade da monarquia, para a formação do súdito. E História do Brasil, por outro lado, significa ruptura dos modelos construídos por Varnhagen, no sentido de formação do cidadão republicano; expressão de um tempo de esperanças políticas a partir da República e da abolição. Neste sentido, lança mão do historicismo alemão e dos estudos antropológicos (sob a égide da biologia e eugenia), conceitos predominantes no Brasil ao final do século XIX. Em síntese, Melo dá um trato de historicidade aos seus objetos, observados à luz de seu tempo.

Esta historicidade é desenvolvida a partir dos referenciais que conduzem a produção das obras. Para tanto, discorre sobre a fundação e o papel do IHGB na construção do saber histórico e na produção historiográfica brasileira. Destaca Von Martius e Varnhagen, por conta de suas contribuições e importância a partir das premissas enunciadas em suas obras Como se deve escrever a história do Brasil e História Geral do Brasil, respectivamente. Recorre, também, aos traços biográficos dos autores pesquisados, seus papéis enquanto professores do Imperial Colégio de Pedro II/Ginásio Nacional, compreendido como lugar da intelectualidade brasileira do século XIX.

A análise destes “agentes” é importante para se compreender o deslocamento das linhas explicativas da história brasileira. A obra de Macedo, ou Dr. Macedinho, como era conhecido, é, em última instância, uma síntese da obra de Varnhagen, preparada para uso didático dos alunos do Colégio Pedro II.

A obra de Ribeiro, por outro lado, busca romper com os paradigmas da obra anterior, que perdurou ao longo do século XIX neste colégio e em outras escolas secundárias pelo país afora, pois era uma obra obrigatória nos exames preparatórios para ingresso nos cursos superiores no Brasil.

A obra de Von Martius, para Melo, influencia a obra de Ribeiro, mais do que este enuncia em seu prefácio, que apenas diz que Martius deu indicações vagas e inexatas como modelo de investigação sobre a história brasileira. A propósito desta assertiva, Múcio Leão, autor contemporâneo de João Ribeiro, ao redigir a apresentação da obra Trechos Escolhidos, cuja coletânea reúne diferentes ensaios e enxertos de João Ribeiro sobre diferentes áreas, já anunciava a influência de Martius sobre a obra de Ribeiro: “[Martius] que escreveu um pequeno mas lúcido trabalho ensinando Como se deve Escrever a História do Brasil, trabalho em cujas linhas gerais João Ribeiro em parte se inspirou” (LEÃO, 1960, p. 10). Ainda que, pela análise documental, possamos chegar à mesma conclusão, e a obra de Leão esteja citada na bibliografia da tese, Melo não a anuncia no seu trabalho, ou seja, não informa que tal questão já havia sido colocada por um estudioso que lhe é anterior – a obra fora publicada pela Livraria Agir em 1960.

Macedo, por outro lado, apesar dos elogios a Martius, segue na esteira de Varnhagen, inclusive no tom encomiástico próprio ao historiador oficial da Monarquia. Por exemplo: não reconhece a participação das três raças que constituem a nacionalidade brasileira. Esta estaria restrita à civilização branca, católica e portuguesa, que seria o legado da nação independente e monárquica, como manda a tradição do povo aqui constituído e ungido pela vontade divina.

Ao longo da segunda parte da tese se debruça sobre o cotejamento entre os manuais em questão e demonstra a importância dos mesmos quanto ao ensino de história do Brasil. Joaquim Macedo compõe sua história tendo como centro os reis e príncipes e, em alguns casos, subalternos mais ilustres que deixaram suas marcas na expansão e consolidação do império português.

O Brasil independente, neste sentido, é uma continuação autônoma, sem dúvida, da civilização portuguesa. O tratamento dado a questões como a escravidão africana, a independência do Brasil, as sedições no período colonial, é marcado pela contenção, sem esboçar qualquer conflito com a Coroa. No entanto, e isso Melo deixa bem claro, as concepções mais pessoais de Macedo estão em obra literárias, utilizadas como parâmetro de comparação para problematizar o sentido da história em Lições que não expressa, necessariamente, o posicionamento do autor sobre o tema.

Macedo aborda a história política sob um ângulo jurídico, tratando as sedições, como a Inconfidência, a Conjuração Baiana e a Revolução de 1817, como crimes de lesa-majestade, causa da acertada repressão da Coroa, além de serem movimentos que não respeitaram as tradições e os costumes brasileiros. Nesta linha interpretativa, a monarquia era o caminho mais adequado às tradições brasileiras, sobretudo, quando comparada às Repúblicas hispanoamericanas, que se esvaíam em guerras civis. O que era um excelente argumento para Macedo explorar e criticar os ideais republicanos presentes em segmentos políticos no Brasil à sua época.

Ribeiro, por sua vez, explora a ação de outros agentes, como o povo, para designar a formação do país e da nacionalidade brasileira. Isto implica em tratar a questão da miscigenação, negada e/ou omitida em Macedo, como formadora da raça mameluca, especificidade da nacionalidade brasileira. A Monarquia, para Ribeiro, significou um atraso, que impediu o povo de se apossar do Estado e desenvolver a democracia. Por outro lado, tem na Monarquia o legado da unidade política nacional que, possivelmente, teria se fragmentado em diversas repúblicas, a exemplo da América hispânica. A interpretação de Ribeiro segue a linha de evolução do povo e das instituições brasileiras que tem, na República, o seu regime definitivo e consoante com o estágio de desenvolvimento do caráter real da nacionalidade brasileira.

Melo explica-nos a superioridade das reflexões na obra de Ribeiro, que contava com mais de 50 anos do IHGB no âmbito da produção e organização das fontes; sem contar com as reflexões filosóficas mais sofisticadas, como as de Tobias Barreto e Silvio Romero, da Escola de Recife, expoentes do germanismo nas ciências humanas no Brasil, ao final do século XIX. No contexto em que Macedo produziu sua obra a história do Brasil estava por fazer. Por isso, apenas sintetiza a obra mestra – História Geral, de Varnhagen. Contudo, em aspectos como a chegada da Família Real e a Independência, Macedo tem certa autonomia em relação à obra de Varnhagen, com reflexões próprias e distintas. Ribeiro assimila bem o materialismo alemão, que coloca na cultura e na economia o sentido das ações e do desenvolvimento da história brasileira, numa contraposição à obra de Macedo, imbuída de teologia, como uma das determinantes do desenvolvimento de nossa história.

Entendemos que o mérito do trabalho está em resgatar, no âmbito das idéias e discursos, os caminhos do ensino de história ao longo do século XIX e primeira metade do século XX. Se, por um lado, não explora a fundo os significados históricos nas linhas interpretativas dos autores, por outro, abre caminhos para discussões que lhe sucederam em torno da nacionalidade brasileira no ensino de história, como Feições e fisionomias: a história do Brasil de João Ribeiro de Patrícia Hansen.

Neste sentido, entendemos que os referenciais de Gramsci não esgotam os significados históricos. Ou seja, mais do que expressão de uma relação de forças presentes na sociedade brasileira do século XIX, são elementos constituinte da realidade, na medida, em que dirigem opiniões, que se desdobravam em ações políticas, valores e costumes e mesmo preconceitos, notadamente, sobre os negros e as nações indígenas.

Há que se destacar, ainda, uma antiga discussão: o papel do livro didático na difusão do conhecimento histórico. Em que medida um manual didático pode acompanhar os resultados mais recentes da pesquisa historiográfica? Nos trabalhos analisados por Melo ao mesmo tempo em que está explícita a historicidade de cada manual, identifica-se a posição política dos autores.

Seguindo esse raciocínio, não é difícil compreender o papel do livro didático de História num contexto de repressão como foi caracterizado o período da Ditadura Militar no Brasil, por exemplo. No entanto, os anos 80 nos colocam frente a uma outra realidade. Por um lado, surgem as novas correntes historiográficas que vão redirecionando o fazer histórico, consoante a uma nova concepção de história, de documento, de sujeito histórico. Nesses anos, o livro didático foi profundamente discutido enquanto instrumento pedagógico.

Por outro lado, convive-se com a reconstrução democrática e seus desdobramentos, muito especialmente no campo educacional e, para os fins deste trabalho, a “revolução” no ensino de história. De uma forma simples, podemos dizer que os anos 80 foram anos de experiências, de busca de alternativas para romper com as amarras tão duras experimentadas pelo ensino de História nos anos anteriores. Essa “revolução” atingiu também os livros didáticos, incluindo as ações do Ministério da Educação e Cultura com a criação do Plano Nacional do Livro Didático. Estabeleceu-se, então, o grande desafio: em que medida o livro didático é capaz de difundir o conhecimento histórico no que este tem de mais atualizado, seja do ponto de vista do conteúdo seja quanto aos procedimentos metodológicos.

Mas, então, prevaleceu a lei de mercado: livros descartáveis em oposição à longevidade das obras analisadas por Melo; projetos gráficos elaboradíssimos, em detrimento do conteúdo; e, ainda pior, livros de qualidade que colocam em suspenso a formação do professor. Mas também devemos reconhecer que a “verdade” histórica é hoje cada vez mais questionada, menos estável. Ao mesmo tempo em que a pesquisa histórica é cada vez mais veloz. Em alguma medida, sem dúvida, tal realidade está refletida nos livros didáticos do final do século XX.

Também fica claro que as obras didáticas são expressão do tempo, do debate e dos conceitos de uma época, mas isso não significa a inexistência de outros caminhos, de outras possibilidades de escrita, ou de outras posições políticas. É isso que nos mostra Melo, em particular com o trabalho de Joaquim Macedo que, em suas obras literárias, era mais liberal do que se apresenta no livro didático; reforçando que este está destinado a uma missão e um público específicos. Hoje, da mesma forma, não é difícil identificar o posicionamento político dos autores nos livros didáticos; quando não, encontrarmos uma obra que se curvou aos ditames do mercado em detrimento da excelência do conteúdo.

Rosana Areal de Carvalho – Professora Adjunta Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) [email protected] Rua do Seminário, s/n – Centro Mariana – MG 35420-000 Brasil Elvis Hahn Rodrigues Mestrando Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) [email protected] Campus Universitário – Martelos Juiz de Fora – MG 36036-900 Brasil.

A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna | Flávia Varela, Helena Miranda Mollo, Sérgio Ricardo da Mata e Valdei Lopes de Araujo

A coletânea organizada por Flávia Florentino Varella, Helena Miranda Mollo, Sérgio Ricardo da Mata e Valdei Lopes de Araujo é mais uma boa testemunha do recente incremento das reflexões sobre história e historiografia no Brasil.

Remontando ao II Seminário Nacional de História da Historiografia, realizado em agosto de 2008, em Mariana-MG (UFOP), o livro contém 14 artigos escritos por pesquisadores lotados em diferentes universidades de quatro das cinco grandes regiões brasileiras. É demasiado vasto e complexo o leque dos temas abordados no livro, de modo que uma discussão detalhada de cada um dos artigos seria aqui inapropriada. Muito mais oportuno parece ser um breve exame geral dos componentes de tal leque temático – e é precisamente isso o que se tentará a seguir. Leia Mais

Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX | Ciro Bandeira de Melo

Introdução

Senhores da história e do esquecimento é a tese de doutoramento de Ciro de Melo, defendida na Universidade de São Paulo em 1997. Esse estudo imprescindível para todos os que se interessam pela história do ensino de História no Brasil finalmente foi publicado pela Editora Argvmentvm. A obra enfoca a disputa política pela representação do passado brasileiro na segunda metade do oitocentos.

O próprio título sintetiza bem a principal questão do texto: o que faz um acontecimento se tornar um fato histórico? Quem escolhe – e a partir de que critérios – o que será lembrado e o que será esquecido pela posteridade? Essas perguntas nos levam ao pressuposto que antecede à discussão: não há uma “verdade histórica”, mas construções históricas do passado. Leia Mais