Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil | Ivana Jinkins, Kim Doria e Murilo Cleto

RC Destaque post 2 11 impeachment

Examinar processos sócio-políticos “à quente”, em meio ao desenrolar das tramas, é um desafio posto aos historiadores dedicados ao chamado Tempo Presente, campo do conhecimento ainda alvo de fortes críticas, desconfianças e de sua própria precariedade, pois os que incursam nele podem estar munidos de perspectivas construídas anteriormente ao “agora”, mas desprovidos do conhecimento profundo sobre detalhes mais recentes. Embora Marc Bloch tenha, desde o século passado, comprovado que o presente pode e deve ser investigado pelos profissionais da história, ao desvelar as razões pelas quais, segundo ele, a França sucumbiu tão rapidamente ao nazismo em 1940 no seu icônico A Estranha Derrota, ainda existe resistência, dentro e fora do ofício, em reconhecer essa possibilidade e esse dever. Leia Mais

White Power Music

SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. Northampton: RNM Publications, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. A extrema-direita faz barulho: música, fascismos e intolerância no recente cenário europeu. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 14, p. 81-84, out./dez. 2013.

Em 06 de agosto de 2012, o ex-militar norte-americano Wade Michael Page, então com 40 anos, entrou um templo Sikh na pequena cidade de Oak Creek, em Winscosin, munido de uma submetralhadora, com a única intenção de ferir os fieis que praticavam seus rituais religiosos naquela manhã de domingo. O resultado foi a morte de 8 pessoas, incluindo um policial e o próprio Page, que cometera suicídio. Naquele mesmo ano os Estados Unidos já havia se chocado com dois crimes semelhantes: os massacres da escola primária de Sandy Hook, em 14 de dezembro, e de Aurora, no Colorado, em 20 de julho. No entanto, o crime cometido por Wade Michael Page levantou no país novos questionamentos, além do já tradicional debate sobre as armas.

No mesmo dia em que o fato ocorreu, o The New York Times publicou uma matéria intitulada “Winscosin killer fed and was fueled by hate-driven music”II (ou “o assassino de Winscosin alimentava e era alimentado por músicas guiadas pelo ódio”).

A chamada Hate Music, a qual Page era adepto por meio do White Rock, passou a ganhar destaque junto ao crime, não sendo representada apenas como um mero detalhe, mas como um relevante motivador da intolerância praticada por ele. Tratam-se de gêneros musicais voltados ao ódio ao Outro, a tudo e todos que não se aproximam do ideal de raça e sociedade que as bandas, em sua maioria composta por skinheads fascistas, defendem.

Mas o que é este grande rótulo musical chamado Hate Music e, principalmente, seu mais ativo subgênero, o White Rock? Estas questões são exploradas a fundo no livro “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance”, publicado em 2012 e organizado pelo historiador Paul Jackson e pelo cientista político Anton Shekhovtsov, através da RNM Publications. Sua produção independente é resultado de trabalhos realizados pelo “Radicalism and New-Media Research Group”III (“Grupo de pesquisas em radicalismo e novas mídias”), da University of Northampton, na Inglaterra, e compila nove artigos dedicados às “músicas de ódio”.

Trata-se de uma publicação inédita no Brasil, cujo acesso está limitado aos próprios sites do grupo e de seus colaboradores, podendo ser adquirido pelo valor de 12 libras (aproximadamente R$44,00). Ela faz parte da série “Mapping the Far-Right”, cujo objetivo é realizar um mapeamento de ações da extrema-direita na Europa, de onde são provenientes todos os autores que colaboram com o livro. Neste caso, é o rock fascista que ganha destaque em artigos que abordam sua presença em diferentes países: Alemanha, França, Suécia, Grécia, Hungria, Romênia e República Tcheca. Há também a presença de textos que não necessariamente abordam os cenários musicais, mas os personagens do White Rock, a simbologia, debates sobre gêneros nos círculos fascistas e a participação a importância da informática para os músicos.

É Anton Shekhovtsov que, em sua introdução, faz uma síntese do que é o White Rock, como surgiu e por que é um objeto tão importante para compreender a existência dos fascismos na Europa atualmente. Com isto, o leitor desavisado situa-se no tema que será explorado repetidas vezes. Embora certos aspectos sejam abordados muitas vezes no decorrer do livro por diferentes autores, há variadas visões sobre uma ou outra conceituação, diferentes formas de abordagem e possibilidades múltiplas de questionamentos, que acabam realizando uma rede de informações.

Por exemplo, embora alguns textos, como o livro “Diário de um skinhead: Um infiltrado no movimento neonazista”, do jornalista espanhol Antonio Salas, afirmem que o White Rock possui uma relação de troca entre músicos e partidos de extremadireita, onde jovens são recrutados aos partidos pelas músicas e os partidos financiam as bandas, a socióloga Chiara Pierobon apresenta sistematicamente evidências que comprovam esta relação. Ela afirma, graças a uma metodologia específica, apresentando tabelas com resultados numéricos de pesquisas, que em meio à crise das organizações de extrema-direita na Alemanha, a música é vista como um elemento agregador central.

O White Rock age, portanto, como um instrumento ideológico e de socialização. Neste sentido, estamos acostumados a pensar que as bandas são meros fantoches para os partidos, detentores do patrocínio que será utilizado em seu benefício, como se estivesse contratando um serviço. Mas o historiador francês Nicolas Lebourg e seu colega Dominique Sistach, tentam provar o contrário quando afirmam que os grupos políticos “Nouvelle Resistance” e “Unité Radicale” passaram a usar em adesivos e panfletos um símbolo que representava a banda “Fraction”.

Um dos artigos que mais chama a atenção é escrito pela socióloga grega Sofia Tipaldou, abordando a presença do subgênero na Grécia atualmente, diante de um cenário de crise onde a participação política ativa do “Aurora Dourada”, partido explicitamente neonazista, vem sendo observado com preocupação. Ela afirma que a música vem sendo cada vez mais difundida entre os parceiros do partido e explorada como mecanismo político. Isto revela o papel da música não como forma de entretenimento, mas um agente em nome das causas fascistas. Esta faceta evidencia-se na frase que acompanha a logo do selo musical Black Sun Rising Records, usado pela autora pala ilustrar este pensamento: “Algum dia eles desejarão que nós estejamos fazendo apenas música”.

Respeitando suas metodologias, suas ciências e pesquisas específicas, os autores concordam que o White Rock é um tipo de música que exalta as ideologias e práticas fascistas, buscando uma doutrinação de seus ouvintes por meio de suas bandas. Mais do que isto: evoca seus ouvintes a realizarem atos de violência intolerante contra todos que se mostram contrários às suas visões de mundo, ou diferentes dos indivíduos que integrariam suas “sociedades perfeitas”. Todo este pensamento é confirmado por Paul Jackson, ao fim do livro. Ele estabelece que o principal objetivo do livro é expor diferentes propostas de abordagem deste que é um tema importante para compreender os fascismos no Tempo Presente.

A música como meio de comunicação e propaganda entre os fascistas de hoje é sempre uma questão levantada por autores que exploram seus principais consumidores, os skinheads. A diferença apresentada neste livro é que a música é um elemento central, abordado com minúcia pelos colaboradores. Estes, por sua vez, não recebem detalhamentos importantes que normalmente são incluídos em outros livros, como as áreas em que atuam ou outras contribuições que já realizaram, sendo necessário recorrer aos seus currículos para conseguir estas informações.

Os textos que compõem “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance” oferecem novas análises sobre as mudanças nos fenômenos fascistas da atualidade por meio da música. Nos mostram que este subgênero preserva narrativas ultranacionalistas e racistas, recrutando jovens às causas políticas envolvidas com os fascismos. Além disto, o White Rock evoca confrontos urbanos onde a violência ao Outro é levada às últimas consequências.

Referências

SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. RNM Publications: Northampton, 2012.

Pedro Carvalho Oliveira – Graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).

White Noise: Inside the International Nazi Skinhead Scene – LOWLES (CTP)

LOWLES, Nick; SILVER, Steave. (Ed). White Noise: Inside the International Nazi Skinhead Scene. Londres: Searchlight, 1998. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. Barulho, cabeças raspadas e raiva: neonazismo e música em White Noise, de Nick Lowles e Steve Silver. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 08 – 08 de julho 2012.

Se observarmos como, no século XX, a juventude se manifestou, perceberemos que em cada um de seus movimentos houve uma trilha sonora. Nos anos 1950, o surgimento do rock’n’roll com Chuck Berry, Elvis Presley e Little Richard, entre outros, evocava o direito de ser jovem, de se divertir e esquecer o conflito político entre capitalismo e socialismo no auge da Guerra Fria (1945-1991), ditando uma nova forma de se comportar. Nos anos 1960, este mesmo rock tentava combater com palavras e acordes tudo que estava errado: a guerra do Vietnã (1965-1975), o conservadorismo e o autoritarismo. Nos anos 1970, o punk rock voltava ao princípio, às mesmas bases do rock’n’roll cinquentista e eliminava a preocupação política, atrelado a uma espécie de niilismo lírico, conformado com uma guerra nuclear iminente que nunca aconteceu, embora mais tarde tenha ganhado feições de contestação.

Por gritar a liberdade e o direito de ser, de expor seus sentimentos, suas angústias, suas vontades, o rock tornou-se o porta-voz dos anseios da juventude de maneira que são eles os principais consumidores do mercado cultural ligado a este gênero. Uma cultura que não está apenas restrita aos discos, mas também a camisetas e acessórios de suas bandas favoritas, ou com os lemas preferidos de contestação ao stablishment. Entretanto, a história dos movimentos jovens em todo o mundo nos enganou, de certa forma, ao nos fazer pensar de maneira ingênua que a revolta da juventude era apenas contra os símbolos da repressão, contra o que era visto como antiquado, excessivamente autoritário e conservador. Ledo engano.

O livro White Noise – Inside de international nazi skinhead scene (Searchlight: Londres, 1998) vem para nos mostrar exatamente o contrário. Editado por Nick Lowles e Steve Silver, ativistas de uma das maiores organizações anti-fascistas da Inglaterra, a Searchlight, o livro expõe em suas 89 páginas as principais características dos movimentos neonazistas ingleses, por meio da organização musical. Seus principais traços, os esquemas mundiais de distribuição e a forma como a música neonazista é um grande atrativo para jovens que, insatisfeitos, aceitam atacar inimigos que, a princípio, não são os seus, mas que logo acabam se tornando.

Se no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 os punks não acreditavam num futuro, como bradava Johnny Rotten, vocalista da lendária banda inglesa Sex Pistols, parte dos skinheads britânicos, influenciados por partidos de extrema-direita como o National Front e o British Movement, principalmente, acreditavam que havia sim um futuro. Mas, este estava em medidas políticas e sociais tomadas no passado. Para eles, nem o capitalismo norte-americano e nem o socialismo soviético pareciam alternativas interessantes para seus anseios. Os protestos que faziam em suas músicas eram contra ambos, mas a favor de uma doutrina fascista, do racismo e da intolerância, edificado por Adolf Hitler na Alemanha e que deveria ser seguido como exemplo em todo o mundo.

É exatamente disso que o livro trata: os aspectos dessa música e toda a ideologia em torno dela, sua presença entre os jovens como forma de propaganda e exaltação da memória nazistas, além da forma como este tipo de música está articulado. As organizações, como a Blood & Honour, os selos musicais como o alemão Rock-O-Rama e o francês Rebelle Européens; as lojas de artigos, como a inglesa Cutdown; a divulgação, por meio de zines e revistas como a própria Blood & Honour. A música nazista, ou “música de ódio”, é retratada de maneira profunda pelos organizadores da obra, a fim de que seja chamada a atenção da Europa para o mal que representa este gênero entre a juventude.

Trata-se, segundo o livro, de um mercado que foi crescendo no submundo da Inglaterra, até atingir outras regiões do continente europeu. Os lançamentos em CDs eram, em sua grande maioria, clandestinos e caseiros, possuindo um aspecto artesanal, como algo realizado às escondidas. O mesmo ocorria com os shows, os quais o público só conhecia o local de apresentação das bandas poucas horas antes do evento, a fim de que a polícia ou os manifestantes anti-fascistas não interferissem. A divulgação era realizada de maneira independente, no boca a boca, ou por meio dos fanzines, espécies de panfletos em forma de pequena revista, normalmente fotocopiado ou impresso em casa. Trata-se de uma espécie de clube, restrito a brancos, nacionalistas e nacional-socialistas, indivíduos supostamente puros e cientes de seu papel na sociedade: limpá-la do que consideravam diferente. Mesmo que o livro possua uma vasta quantidade de informações pertinentes sobre os movimentos skinheads neonazistas e seu envolvimento com a música (sendo este um ponto para observar o seu relacionamento também com as políticas de extrema-direita na Europa), devemos nos debruçar de maneira crítica sobre ele. Por ter sido produzido e distribuído por uma organização concentrada em denunciar grupos intolerantes, a Searchlight, a obra possui um caráter de denúncia que não se apóia claramente em informações que impeçam a existência de alguns deslizes. Por exemplo, desde o início seus autores e colaboradores se preocupam em defender que os skinheads, neonazistas ou não, são um grupo que possui a intolerância em suas bases, ditando modelos de masculinidade e de comportamento, os quais não admitiam divergências. Segundo o livro, embora os skinheads tenham se alinhado à música jamaicana, como ao ska e ao reggae, e tenha se identificado com a cultura dos imigrantes caribenhos, o racismo era algo intrínseco à sua cultura, aproveitando-se muito mais dos ritmos musicais do que o que o povo jamaicano tinha a lhes oferecer.

Este tipo de declaração não agradaria ao jornalista escocês George Marshall, autor do livro “Espírito de 69 – A bíblia do skinhead”, talvez a mais completa obra a respeito do tema já escrita. Nela, Marshall aborda a cultura skinhead, o seu surgimento, suas principais características, suas ramificações, seus gostos musicais e as diferenças entre os skinheads neonazistas e os chamados trad skins, ou skins tradicionais. Estes segundos, de acordo com Marshall, possuem afinidades indiscutíveis com os negros, são declaradamente anti-racistas, embora, admite o autor e também skinhead, a violência tenha feito parte daquele estilo de vida. Entretanto, há capítulos em sua obra dedicados à forma como, por meio da música, os skinheads tentaram se desvincular do rótulo de neonazistas, quando os primeiros começaram a surgir no fim dos anos 1970.

Mesmo que Marshall tenha sido um skinhead, nos permitindo pensar que sua afetividade com o grupo não lhe permitiria difamá-lo ou simplesmente admitir certos problemas (o que, de fato, ele acaba fazendo), ele não é o único a escrever sobre os skinheads afastando-os da ideia de serem todos neonazistas ou racistas. Antonio Salas, pseudônimo do jornalista espanhol que esteve, durante um ano, infiltrado no movimento skinhead neonazista espanhol, o que rendeu o livro “Diário de um skinhead – Um infiltrado no movimento neonazista”, não parece ter adquirido qualquer tipo de empatia pelos jovens nacional-socialistas com quem teve contato. Ainda assim, é claro em sua obra que o surgimento de ideias de extrema-direita entre estes grupos ocorreria muitos anos depois de sua maturação, num momento em que, inclusive, o movimento parecia estar decadente.

O importante neste livro, e isto é mostrado de maneira bem organizada e detalhada, é podermos compreender a estrutura das organizações musicais neonazistas, o interesse dos jovens pelo gênero e o modo como estes podem ser comparados aos hippies dos anos 1960 e aos punks já nos anos 1980, muito embora os repugne: a música é uma saída, um meio de protestar e de tentar conversar, de expressar e de legitimar sua identidade. A diferença é que enquanto hippies pregavam a paz e os punks pregavam o anarquismo, os skinheads neonazistas pregavam o direito de gritar o ódio contra negros, homossexuais, judeus, comunistas, prostitutas, todos aqueles que acreditam serem uma mancha para a sociedade que integram. Uma situação preocupante e alarmante, que o livro não apenas denuncia, mas também explica.

Apesar de se restringir à Europa, White Noise nos introduz neste que aparenta cada vez mais ser um elemento intrínseco aos skinheads neonazistas: seu envolvimento com a música. O não muito grande, porém significativo mercado nacional-socialista não está mais restrito à Carnaby Street, onde existia a Cutdown, nem tampouco aos shows para 30, 40 pessoas organizados pela Skrewdriver e o Blood & Honour. Com a chegada da Internet, ele ganhou lojas virtuais que enviam seus produtos para todos os lugares do mundo. Criaram ambientes virtuais onde divulgam suas ideias e são capazes de se organizar mais efetivamente, através de fóruns e salas de bate-papo. Hoje, estamos a dois ou três cliques do ressurgimento de um ideal violento e intolerante. Ideal este que tem soldados, uniformes e hinos.

Referências

CAMUS, Jean-Yves. Skinheads. In: MEDERIOS, Sabrina Evangelista; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; VIANA, Alexander Martins. Dicionário crítico do pensamento da direita: idéias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad, 2000. p. 417-419.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. LOWLES, Nick; SILVER, Steve. White noise: Inside the international nazi skinhead scene. Londres: Searchlight, 1998.

MARSHALL, George. Espírito de 69 – A bíblia do skinhead. Tradução de Glauco Mattoso. São Paulo: Trama Editorial, 1993. SALAS, Antonio. Diário de um skinhead – Um infiltrado no movimento neonazista. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Planeta, 2006,

Pedro Carvalho Oliveira – Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (CNPq/UFS) Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET História/UFS) Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (DHI/UFS).

Acesso à publicação original

O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (PL)

São Paulo, capital, 2 de março de 1938. Enquanto a cidade começava a se recuperar dos muitos dias de festas e bailes de carnaval e o país se preparava para torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo da França, um crime ocorrido na Rua Wencelsau Braz chamou a atenção da polícia, da opinião pública e da população. As vítimas foram dois imigrantes chineses, que possuíam um restaurante no mesmo local onde moravam – cenário que viria a ser o de suas mortes. Seus dois empregados, um brasileiro e um lituano, também foram mortos.

O crime chamou a atenção pelo número de mortos, mas também pela maneira fria com a qual as vítimas foram supostamente tratadas. Nos dias de hoje, com a banalização da violência gerada principalmente pelos meios de comunicação, este crime não se diferencia significativamente de outros que podem ocorrer no dia a dia, em especial numa cidade grande e repleta de diferenças sociais como São Paulo. Mas em 1938, ele ficou marcado como um dos maiores crimes da época, sendo comentados por jornais, programas de rádio e pelas pessoas nas ruas, que a todo tempo lembravam “O Crime do Restaurante Chinês”. Leia Mais

O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (PL)

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. Quarta-feira de cinzas e sangue: “O Crime do Restaurante Chinês” de Boris Fausto e o Brasil dos anos 1930. Ponta de Lança, São Cristóvão, v. 5, n.9, p. 71-73, out., 2011.

São Paulo, capital, 2 de março de 1938. Enquanto a cidade começava a se recuperar dos muitos dias de festas e bailes de carnaval e o país se preparava para torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo da França, um crime ocorrido na Rua Wencelsau Braz chamou a atenção da polícia, da opinião pública e da população. As vítimas foram dois imigrantes chineses, que possuíam um restaurante no mesmo local onde moravam – cenário que viria a ser o de suas mortes. Seus dois empregados, um brasileiro e um lituano, também foram mortos. Leia Mais

O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (CTP)

FAUSTO. Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: ROSALBA, Patrícia Salvador Moura. O Crime do Restaurante Chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.

São Paulo, década de 1930, carnaval, festas, copa do mundo, crimes e justiça, são alguns dos temas retratados por Boris Fausto no livro O Crime do Restaurante Chinês. O autor faz um estudo detalhado sobre um episódio criminoso que acometeu o casal de chineses Ho-Fung e Maria Akiau e mais duas vítimas, dois homens que trabalhavam no estabelecimento comercial do casal. Para a produção do livro, Fausto recorre aos arquivos da história e da memória pessoal. Esmiúça os jornais publicados durante o marco temporal mencionado e o prodigioso processo criminal que detalha um dos fatos policias que mais chamou atenção da opinião pública paulistana na década de 1930. Resgata em sua memória a beleza e a mestria do carnaval de 1938, vivenciada sob a companhia da família por meio da participação do corso da Avenida São João, sempre ao cair da noite no domingo e terça-feira de carnaval. Relembra como o tal crime marcou a sua infância através das imagens estampadas nos jornais e que aterrorizaram suas noites, dos comentários que escutava nas ruas e no ambiente familiar sobre o episódio. Boris vivia, sentia, sofria com os fatos que conhecia sobre o crime na época de sua infância. As lembranças, a curiosidade do excelente pesquisador e sua trajetória profissional no campo acadêmico, contribuíram para que Boris Fausto construísse um enredo envolvente e misterioso com revelações que surpreendem o leitor a cada página e capítulos. Trouxe a baila discussões importantes que marcaram e ainda estão presentes na cultura brasileira como a importância da imprensa na formação da opinião pública, os dispositivos técnicos utilizados pelo sistema de justiça criminal para solucionar crimes, teorias raciais, a relação entre migrantes, imigrantes e trabalhadores marginalizados nas grandes cidades e, sobretudo, a grande euforia provocada por dois momentos importante de exacerbação da cultura brasileira, o carnaval e a Copa do Mundo de Futebol, realizada na França em 1938, aliás, rituais cristalizados nacionalmente que, em suas várias versões, continuam a movimentar os espaços culturais brasileiros provocando momentos de euforia coletiva.

A perspectiva teórico-metodológica utilizada pelo autor está ancorada nos estudos denominados de micro-história. Com base em autores como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Le Roy Ladurie, a micro- história se constituiu como um gênero muito estudado que influenciou e influencia a construção de diversos estudos históricos. Portanto, Fausto ainda nos presenteia com detalhes metodológicos desta forma de fazer história, na medida em que evidencia em sua escrita as principais características dessa metodologia. Reduziu a sua escala de observação, com a narração do crime do restaurante chinês, no qual buscou significados importantes que falam da cultura paulistana e que passariam despercebidos na leitura ampla de grandes episódios. Concentrou a observação em pessoas comuns como Arias de Oliveira, Ho-Fung, Maria Akiau, José Kulikevicius e Severino Lindolfo Rocha, ambos marcados socialmente através dos estereótipos de algoz e vítimas. Extraiu dos discursos presentes nos jornais e nos processos, dos fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão social muito importante para entender e explicar a cidade de São Paulo dos anos 30 e suas peculiaridades, utilizando-se do estilo narrativo para contar a história. O livro está dividido em dezesseis capítulos, acrescentados de uma breve explicação e de uma introdução, nos quais a autor narra o acontecimento policial de 1938 em detalhes, com imagens ricas, fotos que apresentam São Paulo nos anos de 1930, manchetes dos jornais relatando o crime, além das fotografias das pessoas envolvidas no processo criminal, desde as vítimas, acusado e autoridades do Sistema criminal e médico. São fotos surpreendentes acompanhadas de explicações que envolvem o/a leitor/a na teia dos acontecimentos e os/as deixa com vontade de não parar de ler. Uma trama que envolve o debate entre saber, poder e ciência, esmiuçado em laudos periciais, testes psicológicos, teorias científicas, interrogatórios, depoimentos, confissões, relatórios, denúncia e sentenças, e coloca na cena principal o acusado Arias de Oliveira, negro, pobre, analfabeto e interiorano, cujo corpo e mente são analisados, estudados, destrinchados pelo Estado, numa ação que evidencia as interfaces da biopolítica. Para aguçar a curiosidade de quem ainda não teve o privilégio de tal leitura, recorro ao estilo descritivo e informo que em uma manhã da quarta-feira de cinzas de 1938, foram encontrados quatro corpos em um restaurante chinês, situado à Rua Wenceslau Braz nº 13. Os corpos espalhados no chão dividiam espaço entre mesas e cadeiras, e foram identificados como sendo de Ho-Fung, chinês, imigrante e proprietário do restaurante e de sua mulher Maria Akiau. Além do casal, também compuseram a cena do crime mais dois corpos de homens que foram identificados como o lituano José Kulikevicius e o brasileiro Severino Rocha, ambos trabalhavam no restaurante havia pouco tempo antes do crime. Os assassinatos contra os dois empregados do restaurante foram cometidos com diversos golpes de um cilindro de madeira, que era usado como pilão na cozinha do estabelecimento comercial. O dono do restaurante, além de ser espancado e ter várias fraturas na cabeça, também foi asfixiado, aparentemente, numa tentativa de não deixar dúvidas sobre sua morte. Maria Akiau, que foi assassinada por último, lutou com o criminoso, como demonstrou o laudo, através da constatação de marcas de unha em partes de seu corpo, e foi esganada com um laço de tecido apertado em seu pescoço. A partir da cena encontrada, a apuração dos assassinatos se desenrola e várias questões brotam, sem respostas imediatas. A principal delas se dirigia ao responsável pelo crime, ou seja, quem teria sido o assassino monstruoso? É nessa teia de acontecimentos que se chega ao principal suspeito, Arias de Oliveira. A história se desenvolve, de maneira rica em resgate de fatos históricos, e por meio de uma verdadeira aula de metodologia e análise de fontes documentais. Além do mais, coloca o/a leitor/a em contato com a memória pessoal de Boris Fausto em plena década de seu nascimento, revelações sobre sua família, seus medos, o marcante carnaval de 1938 e relatos indiciosos e inesperados sobre esse fato que lhe marcou e que ficou registrado, segundo o próprio Fausto “nas ilusões da memória” p.217 como “o mais aterrorizante elemento da cena do crime” p. 217, mas que não aparece registrado em nenhuma fonte analisada pelo autor. O livro em questão trata da história de São Paulo, e porque não dizer da História do Brasil, ligando acontecimentos culturais importantes a um crime que tomou as páginas dos jornais paulistanos em uma década marcada por importantes mudanças em âmbito nacional. Destaco que, uma das principais contribuições do autor é reflexão sobre as formas de se fazer história, através de uma discussão pertinente com a memória. Recomendo ao leitor a se debruçar sobre as páginas do Crime do Restaurante Chinês, certamente será uma prazerosa leitura, repleta de enigmas e descobertas.

Nota

Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa – Aluna do Programa de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Pesquisadora do Grupo de Estudos do Tempo Presente -GET e do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades-NIGS da UFSC.

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