Psiquiatria e política: o jaleco/a farda e o paletó de Antônio Carlos Pacheco e Silva | Gustavo Querodia Tarelow

Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1998) nasceu no limiar do século, filho de abastada família paulista. Em seus textos memorialísticos, o renomado psiquiatra relatou o ambiente que o esperava quando veio ao mundo na capital de São Paulo: um lar “puro e coeso” ( Tarelow, 2020 , p.40). De certa forma, na obra Psiquiatria e política: o jaleco, a farda e o paletó de Antonio Carlos Pacheco e Silva, notamos que as noções atribuídas a esse lugar doméstico – “pureza” e “coesão” – serviram como coordenadas para suas atividades médicas e políticas ao longo da vida. Nelas se pautaram seu investimento em um ideal de povo brasileiro e suas contribuições como intelectual, principal tema que percorre a obra de Tarelow. Leia Mais

La sombra de la sospecha: peligrosidad/ psiquiatría y derecho en España (siglos XIX y XX) | Ricardo Campos

Ricardo Campos Foto M.G.Diario de Sevilla
Ricardo Campos | Foto: M.G./Diario de Sevilla

Entre las penurias que dejó a su paso la pandemia de covid-19, el tiempo de encierro y la tragedia, también nos trajo una buena noticia como la aparición del libro de Ricardo Campos (2021), al cual pasaremos a referirnos. Se trata de un trabajo que amplía la vasta producción de su autor dentro del campo de la historia de la medicina, abordando ahora un objeto de larga duración que tiene su sustento en una sólida perspectiva cultural de la ciencia. Dentro de este planteo, el lector podrá sumergirse, a través de una narrativa amable, en ideas complejas que interpelan los vínculos entre saber y poder en España durante un período que se extiende desde mediados del siglo XIX hasta el final del franquismo.

Puede señalarse que los cruces constituyen el rasgo distintivo de un texto cuyo punto de partida queda planteado en el subtítulo al colocar un problema, el de la peligrosidad, entre dos disciplinas, la psiquiatría y el derecho. A partir de allí comienzan a desplegarse sucesivos cruces, que incluyen la vocación por integrar a un campo de debate trasnacional, identificados con mucha agudeza en España. Leia Mais

La sombra de la sospecha. Peligrosidad/ psiquiatría y derecho en España (siglos XIX y XX) | Ricardo Campos

El nuevo ensayo publicado por Ricardo Campos, investigador del Instituto de Historia del CSIC y uno de los mejores conocedores de la historia de la psiquiatría en España, no es simplemente una tentativa para reconstruir el pasado de las relaciones entre medicina mental y derecho penal en nuestro país. Se trata ante todo de elaborar un diagnóstico de la situación actual de este problema, un verdadero ejercicio de historia del presente. ¿Por qué la noción de peligrosidad, que funciona como un instrumento administrativo, policial y jurídico y no como un concepto científico, se empeña en persistir dentro de nuestro sistema penal interpelando al psiquiatra para que justifique la primacía de un derecho punitivo de autor y no de actos y circunstancias?

El proyecto de modificación del Código Penal presentado en 2013 por Ruiz Gallardón, entonces Ministro de Justicia o las controversias recientes sobre la vigencia de la “prisión permanente revisable” revelan la actualidad del problema planteado en el libro. A diferencia de lo que sucedía hasta hace muy poco, la psiquiatría española, al menos la representada en la Asociación Española de Neuropsiquiatría, no es proclive a legitimar este revival del concepto de peligrosidad, pero la ambigüedad persiste. Esta tiene que ver, como señala el autor en la Introducción del ensayo, con una tensión inherente al saber psiquiátrico desde su origen; su funcionamiento a la vez como disciplina con pretensión de cientificidad y como instrumento de orden público. Aquí se inscriben las dos interrogantes que el ensayo trata de responder: ¿por qué la psiquiatría, nacida con el noble anhelo de conocer, cuidar y recuperar al demente, acabó desembocando en la patologización del crimen y en la criminalización de la enfermedad mental?; ¿por qué esta disciplina unió su destino al derecho penal reforzando el tránsito de una punición dirigida al acto hacia un castigo centrado en la personalidad del potencial perpetrador? Leia Mais

Psiquiatria e Política: o jaleco/a farda e o paletó de Antonio Carlos Pacheco e Silva | Gustavo Queródia Tarelow

O Texto A obra é o resultado da pesquisa de doutoramento do historiador Gustavo Queródia Tarelow, que atualmente, desenvolve estudos no setor educativo do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP e também é autor da obra “Entre comas, febres e convulsões: os tratamentos de choque no Hospital do Juquery (1923- 1937)”, pela Editora UFABC, 2013.

Na obra resenhada, Tarelow se dedica a analisar a trajetória acadêmica, profissional e política de Antonio Carlos Pacheco e Silva, procurando problematizar seu legado, analisando suas subjetividades dentro do contexto histórico em que ele estava inserido. Desta maneira, o autor deixa claro que não é objetivo do livro a produção de uma biografia de análise memorialística – como fizeram outras biografias dedicadas a exaltar suas contribuições profissionais, retratando-o como um grande psiquiatra e ilustre político – mas compreender como seu posicionamento político- ideológico esteve presente em sua prática como médico, professor e dirigente de instituições hospitalares. Leia Mais

La psiquiatría más allá de sus fronteras: instituciones y representaciones en el México contemporáneo | Andrés Ríos Molina

O livro La psiquiatría más allá de sus fronteras: instituciones y representaciones en el México contemporáneo, como o próprio título indica, tem como objetivo explorar as formas como a psiquiatria se relacionou com os campos sociais, políticos e culturais no México, ultrapassando as fronteiras da clínica. Coordenada por Andrés Ríos Molina (2017), a obra reúne autores que, a partir de metodologias e aportes teóricos diversos, procuram explorar as relações estabelecidas entre sociedade e psiquiatria sob o viés da história cultural. Para desenvolver esse tipo de análise, eles partem de um primoroso, variado e inovador conjunto de fontes, que envolve desde planos educativos, correspondência administrativa, cartografias, imagens publicitárias, fotografias, fotonovelas até comics.

Os cinco capítulos que compõem a obra se estruturam em torno de um duplo viés historiográfico, privilegiando, por um lado, o estudo das instituições educacionais, médicas e governamentais onde a psiquiatria desempenhou um papel relevante e, por outro, as representações culturais sobre a loucura, tanto no âmbito do discurso como da prática, disseminadas em múltiplos espaços da Cidade do México. Nesses capítulos são apresentados outros atores sociais, além dos médicos e psiquiatras, como pedagogos, administradores públicos, empresários e fotógrafos, entre outros, que também se preocuparam em alguma medida com questões relacionadas às enfermidades mentais. Leia Mais

Medicalização em psiquiatria – FREITAS; AMARANRE (TES)

FREITAS, Fernando; AMARANRE, Paulo. Medicalização em psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. 148p. Resenha de: WHITAKER, Robert. Uma leitura crítica da medicalização em psiquiatria. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15, n.1,  jan./abr. 2017 .

A psiquiatria moderna tem nos proporcionado uma nova forma de pensar sobre nós mesmos, e nesse curto e fascinante livro, Medicalização em psiquiatria, Fernando Freitas e Paulo Amarante apresentam um conjunto de evidências e argumentos da percepção empobrecida feita sobre nós humanos. Os dois autores também detalham como o atual paradigma de cuidado da psiquiatria é construído sobre ‘ficções’. O livro é concluído com um olhar sobre terapias alternativas promissoras e, como tal, advoga fortemente a necessidade de se repensar os fundamentos do cuidado psiquiátrico.

Se o livro Medicalização em psiquiatria pode ser descrito como uma nova adição à crescente biblioteca internacional de livros de ‘psiquiatria crítica’, é notável que, nesse âmbito, ambos os autores têm posições de liderança dentro do establishment em Saúde Mental.

Paulo Amarante, psiquiatra, é reconhecido por décadas de trabalho e de luta pela reforma da atenção psiquiátrica no Brasil. No final da década de 1980, após ter estudado com Franco Basaglia e outros psiquiatras italianos que desenvolveram o cuidado comunitário em seu país de origem, Amarante militou e colaborou na redação da legislação de saúde mental que tem levado à desinstitucionalização no Brasil. Hoje, ele é o presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), e professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, unidade científica da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), instituição vinculada ao Ministério da Saúde. Fernando Freitas, psicólogo, é ex-diretor da Abrasme e, como Amarante, é professor e pesquisador da Ensp/Fiocruz.

A beleza do livro começa a se tornar evidente no primeiro capítulo, onde ambos proporcionam um contexto filosófico amplo para se entender o que a psiquiatria biológica moderna tem feito. Escrevem sobre a ‘medicalização’ da vida moderna e as consequências que ela tem para nós como indivíduos. É um fenômeno que surgiu no período pós-Segunda Guerra Mundial; e enquanto avanços médicos – como o descobrimento de antibióticos – ajudaram a pôr controle sobre muitas doenças, o crescimento da indústria médica encorajou o cidadão moderno a ver a si próprio através das lentes médicas de ‘o que há de errado comigo’. Isso é particularmente verdadeiro na psiquiatria.

Dessa forma, Freitas e Amarante lembram aos leitores o que está em jogo. Medicalização pode se tornar um meio de controle social, com o indivíduo encorajado a adotar o ‘papel de doente’, o que leva à perda da autonomia individual. Nós somos encorajados a pensar que é ‘anormal’ sofrer, ou experimentar dor em nossas vidas, quando, claro é que, como qualquer busca na literatura irá nos lembrar, o sofrimento é inerente ao ser humano.

No que diz respeito à medicalização de nossas vidas emocionais, ela tem sido alimentada por uma ‘aliança profana’ que foi formada – como os autores apontam – entre a psiquiatria acadêmica e a indústria farmacêutica nos Estados Unidos na década de 1980. As empresas farmacêuticas passaram a contratar psiquiatras de escolas médicas prestigiadas daquele país para servirem como seus consultores, conselheiros e porta-vozes. Tal aliança passou a contar ao público uma narrativa sobre grandes avanços científicos. Pesquisadores haviam descoberto que os transtornos mentais eram ‘doenças cerebrais’ causadas por ‘desequilíbrios químicos’ no cérebro, e que poderiam ser então corrigidas por uma nova geração de drogas psiquiátricas. Com a difusão dessa narrativa para o público, o consumo de drogas psiquiátricas nos Estados Unidos explodiu, e, rapidamente, essa ‘aliança profana’ conseguiu exportá-la para o Brasil e outros países desenvolvidos em todo o mundo.

Freitas e Amarante proporcionam uma desconstrução sucinta dessa narrativa, começando com a crise existencial que por fim levou a Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês) a adotar sua narrativa de ‘modelo baseado na doença’. Nos Estados Unidos, assim como igualmente se passava em muitos outros países, os psiquiatras nos anos 1960 geralmente não eram vistos como ‘médicos de verdade’. Então, no início dos anos 1970, o psicólogo David Rosenhan, da Universidade de Standford, publicou um estudo que publicamente humilhou a profissão.

Rosenhan e outros sete voluntários ‘normais’ se apresentaram em hospitais psiquiátricos, afirmando que ouviam uma voz que dizia ‘vazio’ ou alguma outra palavra simples. Todos foram admitidos e diagnosticados como ‘esquizofrênicos’, e ainda que eles se comportassem normalmente dentro do hospital, nenhum membro da equipe hospitalar – incluindo psiquiatras – identificou-os como impostores. Em contraste, os outros pacientes no hospital os reconheceram. Os ‘loucos‘ no hospital manifestaram muito mais discernimento que os profissionais.

Essa humilhação – e outros desafios sociais para a sua legitimidade – forçou a APA a refazer o seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM). A corporação profissional precisava apresentar os psiquiatras ao público como ‘médicos de verdade‘, e, em 1980, foi publicado o DSM III, que passou a ser propagandeado como um grande avanço científico, por passar a ser um manual de ‘doenças’ e de ‘transtornos’ reais que poderiam ser confiavelmente diagnosticados. Mas, como Freitas e Amarante escrevem, o DSM – que se tornou a ‘bíblia’ mundial da psiquiatria – não é baseado na ciência. Os diagnósticos são ‘constructos’ com critérios de sintomas arbitrariamente definidos; 35 anos de pesquisa têm fracassado em validar qualquer um dos transtornos mentais como doenças distintas.

Com o DSM III em mãos, a psiquiatria americana passou a nos persuadir a acreditar na noção de que depressão, ansiedade, psicose e outros transtornos mentais são causados por desequilíbrios químicos no cérebro. Essa narrativa é a de que as doenças cerebrais podem ser tratadas com sucesso por meio de medicamentos. Mas, como os autores explicam, pode-se considerar que a hipótese química tenha sido derrubada em 1996, quando Stephen Hyman, à época diretor do Nacional Instituto de Saúde Mental (NIMH) nos Estados Unidos, escreveu um artigo sobre como as drogas psiquiátricas ‘perturbam’ a função normal do cérebro em vez de corrigir um desequilíbrio químico. Remédios psiquiátricos, conforme os autores corretamente explicam, fazem o seu ‘cérebro funcionar anormalmente’.

Dessa forma, Freitas e Amarante desconstroem o ‘mito’ da psiquiatria moderna passo a passo. Em seguida, revisam a literatura de resultados sobre antipsicóticos e antidepressivos. Essa sessão talvez pareça particularmente surpreendente para leitores leigos. Um olhar atento à pesquisa revela que as drogas não proporcionam particularmente um benefício maior em relação ao placebo, nem mesmo em curto prazo, e que, a longo prazo, pacientes sem medicação – e isso é verdade até para aqueles diagnosticados com esquizofrenia – têm melhores resultados.

Então, o que há para ser feito? Se o Brasil e outras sociedades têm organizado o seu cuidado em torno de uma falsa narrativa, quais novos caminhos podem ser achados para ajudar aqueles que sofrem com suas mentes? No seu capítulo de encerramento, Freitas e Amarante descrevem um caminho à frente. Eles discutem vários programas terapêuticos, no passado e no presente, que têm focado em proporcionar um cuidado psicossocial e fazendo uso limitado – ou não – de medicações, que têm provado ser bastante bem-sucedidos. Em particular, falam da abordagem do ‘Diálogo aberto’ (Open dialogue) empregada no norte da Finlândia, que tem produzido notáveis resultados a longo prazo para as pessoas diagnosticadas com transtornos psicóticos.

Em suma, os dois autores visam um novo paradigma de cuidados que possa ‘oferecer uma atenção psiquiátrica’ fora dos manicômios e que não crie pacientes crônicos. Em outras palavras, Freitas e Amarante visam um paradigma de cuidado que ajude as pessoas que lutam com as suas mentes a verdadeiramente se recuperarem e poderem levar as suas vidas da melhor forma possível.

*Tradução de Flávio Sagnori Mota e Nina Isabel Soalheiro, integrantes da equipe do Grupo de Pesquisa Desinstitucionalização, Políticas Públicas e Cuidado da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Robert WhitakerJornalista especializado em Medicina e Ciência, presidente da Mad in America Foundation, Cambridge, MA, EUA <[email protected]>

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A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito – COELHO (REi)

COELHO, J. R. A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito. Rio Grande do Norte: Editora Sapiens, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Ariane Rocha Felício de. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014.

A obra de José Ramos Coelho, filósofo e doutor em psicologia clínica, tem como proposta principal mostrar como a psiquiatria está ampliando seu campo de conhecimento e atuação para todos os aspectos da vida humana, levantando um debate em torno da temática da medicalização. As questões próprias das pessoas e da sua existência estão sendo postas como algo relacionado à bioquímica cerebral, podendo ser, com isso, lidadas apenas com indicação de fármacos. O modo pelo qual a crítica à medicalização da existência se dá é, tomando os gregos clássicos como exemplo, a partir de uma alusão a um espetáculo teatral, no qual estão envolvidos os personagens, o cenário, a trama e os atos, contextualizando criticamente as práticas dos médicos, sobretudo dos psiquiatras, a partir de uma perspectiva filosófica. Numa linguagem de fácil compreensão e com uso frequente de metáforas e ironias, o livro discute a morte do sujeito enquanto ser pensante e dotado de sentimento e sensibilidade, através de uma “cura” das suas inquietações por meio de fármacos.

Fortes emoções, sentimentos intensos, dor, alegria, falta de concentração, etc. Tudo isso está sendo concebido como doenças mentais ou como sinal de algum distúrbio. Nesse sentido, Ramos traz na sua obra que a psiquiatrização da existência está suscitando um grande aumento no número de casos de doenças mentais ao longo de todo o mundo, usando como exemplo o autismo, o qual passa por um crescimento significativo dos casos. O modo pelo qual a medicina contemporânea, sobretudo psiquiatria, está concebendo o homem é, em realidade, o sintoma de uma mudança mais ampla e profunda, uma vez que as ciências médicas não estão à parte da sociedade, mas são, também, o reflexo dela.

O contexto médico-hospitalar está refém do que Ramos denomina de “pharmacolonialismo”. Se com o avanço tecnológico a medicina conseguiu progressos significativos para o controle e a erradicação de algumas doenças, outras novas estão surgindo e/ ou sendo inventadas pelo marketing da psiquiatria. No protocolo seguido pelos médicos e psiquiatras, parece que aquele ser humano “cuidado” é o que menos importa no cenário. Ir de encontro a essa perspectiva é a grande luta presente no livro, ele convida o leitor a refletir criticamente acerca da medicalização de todos os aspectos da vida, se portando contra o fenômeno, sendo a favor da singularidade, da autonomia e partindo para uma defesa contundente da vida.

Ramos nos põe a pensar que a doença no cenário atual está sendo analisada de forma descontextualizada. O enfoque principal é o agente patogênico ou a desordem e desequilíbrio na saúde que possa estar causando tal manifestação, negligenciando o adoecer como um processo. É como se a doença fosse considerada como uma fatalidade que ocorreu ao indivíduo, como se a pessoa fosse uma vítima de um infortúnio indesejado que a acometeu. O autor ressalta que a doença está presente num contexto, que pode ser oriundo de um conflito vivido pela pessoa ou do ambiente externo do qual ela faz parte; salientando que esses fatores estão sobrepostos e não atuam sozinhos.

É interessante pensar na reflexão que Ramos faz sobre os diferentes momentos vividos pela psiquiatria: antes vivíamos a história do horror, em que as torturas eram permitidas e o internamento era a saída mais plausível; hoje vivemos uma busca voluntária por um tratamento, na tentativa de aliviar os sintomas apresentados, de procurar seu papel social, ser escutado e cuidado. Dentro desse último momento é que Ramos afirma que a subjetividade contemporânea se sustenta: no primeiro momento o paciente, sentido algum tipo de mal-estar, se envolve na relação, buscando ser ouvido/assistido; no segundo, o conteúdo presente no seu discurso é “decodificado” a partir de um saber médico já pré-estabelecido, no qual a fala só se torna inteligível no momento em que é nomeado ou inserido em algum tipo de doença ou patologia; no terceiro, após a análise dos sintomas e sinais apresentados, o paciente é diagnosticado no seu mal-estar, classificado e batizado; finalmente no último ato, ele é medicado no intuito de voltar ao seu sadio e normal.

Usando o mito da caverna para elucidar sua crítica, Ramos afirma que quando a pessoa chega ao consultório médico a fim de buscar ajuda, ela julga não saber sobre sua própria história, não compreender o que se passa com ela. Ramos alega que isso ocorre, pois ela foi acostumada a pensar assim, muito embora ressalte que a pessoa que carrega consigo aquele mal-estar é também quem porta o conhecimento sobre sua própria angústia, seu próprio sofrimento; o fato é que não se tem noção desse conhecimento, pois, por vezes, as pessoas não conseguem acessá-los. No consultório, a pessoa encontra um especialista que supostamente (e os dois lados supõem isso) detém o conhecimento apropriado sobre o que está se passando e, com isso, é capaz de curá-la.

O autor ressalta que o perigo dessa doação dos cuidados da sua vida para um especialista pode estar na maneira com a qual o psiquiatra lida com isso. A quem ele está servindo? Ao paciente ou ao sistema? Ramos salienta que o psiquiatra pode assumir posturas diferentes. Pode se posicionar no sentido do não-saber e dialogar com a pessoa que o procura, estando aberto para a escuta, voltando seu trabalho para o esclarecimento, permitindo que o outro se conheça, possibilitando liberdade do sujeito. Por outro lado, o profissional pode se posicionar ao lado do sistema, facilitando a permanência da pessoa no lugar de alguém “cego” sobre sua própria vida, classificando-o dentro de alguma patologia e indicando o melhor fármaco a ser administrado.

Ramos tem o cuidado de não culpabilizar o médico/psiquiatra pelo possível posicionamento de surdez diante da pessoa que o procura. Ele salienta que o médico também está preso dentro do sistema (estão também aprisionados nele), que é regido pelo pharmacolonialismo. Caso se distancie dessa lógica e atue de outra maneira, o médico pode sofrer consequências reais, tais como ser processado por negligência e descaso. Com isso, muitos profissionais continuam seguindo o protocolo do sistema, pois isso lhes imuniza e assegura.

Ramos questiona o conceito de saúde, visto como a capacidade em manter-se em equilíbrio, argumentando que o sistema pode se manter saudável mesmo com mudanças, existe a possibilidade de adaptação dessas modificações. Além desse argumento, também salienta outro, através de uma metáfora com um skatista, concluindo que a doença poderia ser vista como uma tentativa do organismo de voltar para o seu equilíbrio. Ter saúde, então, não seria viver num preso modo que consensualmente é aceitável, mas poder sair do equilíbrio e depois equilibrar-se novamente, tendo domínio sobre isso, tornando a vida menos enrijecida.

A partir de uma historicidade rica e interessante através da filosofia, sobre concepção de saúde, Ramos salienta que o homem se situa entre a natureza e a cultura, perpassando-se entre os dois. A busca por precisão das ciências exatas, a exigência de cientificidade acaba inibindo esse confronto entre as duas instâncias citadas. A ciência da saúde segue esse rumo e tende a transpor os conflitos do homem a conhecimentos e técnicas dos estudos bioquímicos, tentando curá-los através de medicações. Sobre essa questão (uso de medicamentos), Ramos enfatiza o crescimento das indústrias farmacêuticas a partir da segunda metade do século XX e sua importância para a verdade seguida pelos psiquiatras: “a verdade como adequação do diagnóstico à doença, via medicação”, sem manifestar muita sensibilidade com o outro e sua história. Embora a ciência da saúde tenha a pretensão de uma objetividade, de uma exatidão, Ramos ressalta que não é possível medir através de instrumentos, como régua e esquadro, se uma pessoa se encontra doente, portanto, esse diagnóstico fica a critério da subjetividade do psiquiatra; salientando que as fronteiras entre o normal e o patológico nunca foram demarcadas.

Fazendo uma alusão à bíblia, o autor afirma que quem rege esse modo de classificar as pessoas entre doentes e sadios é o código geral de doenças mentais. É ele que traz o consenso dos psiquiatras daquilo que deve ser considerado normal ou anormal; Ramos questiona o critério de verdade, a cientificidade desse consenso.
O autor questiona também a objetividade científica do DSM, que é fundado em comportamentos observáveis, quantificáveis e testáveis, parecendo negligenciar que os humanos são dotados de cultura, valores e linguagens. Com o DSM e o CID, toda a atividade profissional do psiquiatra é ouvir a queixa do paciente e enquadrar o que ouviu em alguma categoria nosológica, enquadrando-o e medicando-o, o sentido do enredo do paciente não interessa muito.

Com isso, para o autor, a psiquiatria acaba deixando de lado seus próprios objetivos, acarretando nas palavras do autor, uma “morte da psiquiatria”, pois tal especialidade médica tem como objetivo estudar a alma humana (psique=alma; iatros=médico) e não atuar da maneira que a nova psiquiatria atua, numa afinidade considerável com a neurociência, medicina e genética, deixando de lado uma postura terapêutica prospectiva e uma sensibilidade que o tornaria capaz de sentir o outro.
Ramos faz uma crítica a respeito das medicações, que vai além de efeitos colaterais ou dependência química, o autor se reporta também à permissão para o desequilíbrio, uma vez que ameniza qualquer sentimento, autoriza que a pessoa se sinta assim. O revista entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014 169 medicamento atua como uma máscara da aparência da normalidade e causa também uma “despersonalização”, o que contribui fortemente para a morte do sujeito.

Nessa obra, o autor procura refletir e demonstrar sua crítica a respeito da visão unilateral (via medicamentosa) das questões humanas. Querer tratar os conflitos com medicamentos é, para Ramos, suprimir a pessoa enquanto sujeito, criador de si e das suas particularidades. Ademais, o autor crê na possibilidade de uma intervenção terapêutica eficaz que respeita o reino da subjetividade.

Ariane Rocha Felício de Oliveira – Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação. E-mail: [email protected]

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Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio Grande do Sul | Yonissa Marmitt Wadi || Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria | Vera Portocarrero

O tema da constituição da psiquiatria no Brasil, que há algumas décadas vem sendo estudado em diferentes áreas — da psiquiatria às ciências sociais —, ganha agora mais duas contribuições importantes: Palácio para guardar doidos, de Yonissa Marmitt Wadi, e Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria, de Vera Portocarrero. Os dois trabalhos são, respectivamente, frutos de dissertações de mestrado na área da história e da filosofia, abordando os desenvolvimentos da psiquiatria em cidades e períodos históricos distintos. O livro de Wadi trata do processo de construção do primeiro hospício da província de São Pedro do Rio Grande do Sul — que culminou em 1884 com a criação do Hospício São Pedro. Analisa o lugar que a medicina ocupou nesse processo e em seus desenvolvimentos até os anos 1940. Já a dissertação de Portocarrero — defendida em 1980, e agora felizmente publicada através da iniciativa da Coleção Loucura & Civilização — toma como objeto a transformação da ciência e da assistência psiquiátrica no Brasil, no início do século XX, representada no pensamento do psiquiatra baiano Juliano Moreira. Leia Mais