Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do século XIX – ARALDI (CN)

ARALDI, Clademir Luís. Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do século XIX. Pelotas: Dissertatio Filosofia, 2017. Resenha de: MEIRELES, Tulipa Martins. Dos românticos a Nietzsche. Oito estudos sobre a Filosofia do século XIX. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.3  set./dez. 2018.

Compreendemos que o período moderno e contemporâneo da história da filosofia ocidental é permeado pelo sentimento de crise e crítica vivenciado pelo ser humano europeu no final do século XVIII e ao longo do século XIX. Nesse contexto, o indivíduo passa a perceber a si mesmo a partir do estabelecimento das novas estruturas do mundo moderno que afetam sua maneira de viver. Após o triunfo científico e a derrocada dos ideais religiosos e humanistas próprios de uma sociedade dominada pela secularização e industrialização das massas, a constituição do sentido da vida e das formas de existir encontram na criação artística, na concepção de Subjetividade, própria do Gênio, e na noção de Natureza criadora uma forma de unir o Espírito com a Natureza, a Ciência com a Arte. Essa atitude, como manifestação do sentimento e do conflito entre a interioridade inquieta e a realidade racionalizada, tanto quanto os esforços por preencher o “vazio moderno” a partir de ideais laicizados como os de progresso, razão e ciência, parece ter ocupado grande parte do pensamento dos artistas e filósofos da época, assumindo sua forma mais acabada e radical no pensamento tardio de Nietzsche1.

Em Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do Século XIX encontramos uma seleção de estudos que oferecem um desenvolvimento para essa temática. A obra foi publicada em 2017 e constitui-se do material produzido em 2015 para a disciplina História da Filosofia Moderna e Contemporânea do curso de Licenciatura em Filosofia a Distância da Universidade Federal de Pelotas (CAPES – UAB). Ao selecionar os oito estudos que compõem essa obra e ao discutir com pensadores como Karl Löwith e Eric Hobsbawn, o autor propõe uma investigação sobre as “rupturas e transformações que se deram no âmbito da Filosofia Moderna e Contemporânea”. Essas transformações são tentativas de responder a questão: “Como a Filosofia reage ao triunfo das ciências naturais e da industrialização no século XIX?” (p. 2). Conforme expõe, o século XIX sentiu o impacto de dois importantes acontecimentos: a dupla revolução, francesa e industrial e o progresso tecnocientífico do mundo. Sua hipótese é que a dupla revolução no mundo ocidental e a consequente transformação no modo de viver das pessoas, gerou um desconforto por parte do indivíduo que sentiu o vazio deixado pela crise dos antigos valores que resultou em certo sentimento de perda do sentido da própria existência. A essa crise, a Filosofia encontrou nas noções de arte, natureza e subjetividade uma forma de conceber, pela via da arte, um caminho fecundo na direção de uma nova concepção de vida.

Nesse contexto, o Romantismo apresenta-se como uma das primeiras reações à secularização e à racionalização, propondo a criação artística e a Filosofia da arte como crítica às estruturas modernas, a partir da qual era possível ressignificar o mundo. O ímpeto revolucionário da arte e da criação artística perpassa os oito estudos propostos pelo autor, que encontra traços da atitude romântica de Schelling a Hegel, passando pelo Idealismo de Fichte e de Marx a Nietzsche, passando por Schopenhauer, Kierkegaard e o materialismo de Feuerbach. Nietzsche é apresentado como o filósofo que sustenta a crítica mais radical da modernidade. Ao anunciar a morte do Deus cristão como advento fundamental e a radicalização do niilismo moral consequente, o filósofo sustentaria a necessidade de instaurar um projeto de “transvaloração dos valores”, a partir do qual a criação de valores afirmativos da vida seriam possíveis.

O livro integra oito Capítulos e é precedido por uma Apresentação, na qual o autor expõe o tema geral, as principais problemáticas que serão tratadas e o desenvolvimento dessas questões por parte dos filósofos. A proposta dos românticos a Nietzsche torna visível tanto a crise da filosofia metafísica e moral como os novos caminhos que se abrem para a filosofia nessa época de crise e crítica da modernidade. Nelas são valorizadas as especulações românticas, assim como o reino da arte, no seio de uma época secularizada e dominada pela ciência natural. Araldi apresenta a riqueza do pensamento filosófico do século XIX, quando a modernidade passa a pensar a autossuperação de si mesma.

O capítulo 1, intitulado Os românticos e o idealismo alemão, é dividido em dois tópicos: Gênio, natureza e sentimento e Schelling e a filosofia da arte romântica. O autor apresenta o Romantismo como um movimento cultural, artístico e filosófico que pretendia através arte, do gênio artístico e criador, revolucionar todas as estruturas do mundo moderno. O Romantismo é caracterizado pelas noções de Subjetividade, próprias do gênio criador, de arte e de Natureza que se apresentavam como atitude, maneira de viver e movimento cultural e filosófico que tinham como objetivo preencher o “vazio da modernidade” a partir da união entre Espírito e Natureza. Pela arte e pela obra de arte os românticos manifestavam o caos e o desconforto que traziam dentro de si. Mesmo não sendo um movimento homogêneo, os românticos tinham em comum a busca pela “fuga da modernidade” que se dava no âmbito do refúgio em um passado remoto ou na projeção de um futuro utópico.

No contexto da “dupla revolução”, românticos como Hölderlin, Schlegel, Schelling e Schopenhauer consideravam que a Filosofia e a vida filosófica encontravam-se ameaçadas tanto pela política, como pela economia e pela ciência. Conforme Araldi, “A modernidade é marcada por abalos das estruturas religiosas, políticas e culturais tradicionais, assim como pelo pressentimento de novas formas de vida” (p. 9). Segundo ele, os românticos tinham consciência de que estavam vivendo em um período de transição para uma “nova era”.

Schelling é o considerado o principal filósofo do Romantismo, por ter construído uma Filosofia da Natureza que é também uma Filosofia da arte. Seu pensamento foi uma tentativa de unir a filosofia de dois pensadores importantes para o Romantismo: Fichte, filósofo da Subjetividade, que influenciou diretamente os românticos por ter valorizado o Espírito (Eu Absoluto) em sua Filosofia Idealista, e Goethe, através de sua concepção de Natureza criadora. Para Schelling, a Natureza possui um valor tão elevado quanto o Espírito, sendo também ela incondicionada, dinâmica e viva. O princípio originário em Schelling, como união entre Natureza e Espírito, não é, contudo, inteiramente racional e consciente, pois o Espírito não é somente razão, mas sobretudo vontade originária. Ainda que diferente de Schopenhauer, para quem a vontade é a própria origem consciente do mundo, a vontade para Schelling anseia pela consciência. A intuição estética, própria do gênio artístico, é considerada a via privilegiada para alcançar o princípio originário, pois a criação artística é o meio de tornar concreta a manifestação do Espírito. Schelling é nesse sentido considerado o pensador que traz os traços mais marcantes do Romantismo em sua Filosofia da arte, que é desenvolvida principalmente na obra Ideias para uma filosofia da natureza (1797).

O capítulo 2, intitulado De Fichte a Hegel: idealismo subjetivo e dialética especulativa, é composto por dois tópicos: Fichte e o idealismo da subjetividade e Dialética especulativa de Hegel. Segundo o autor, Fichte foi o filósofo que pretendeu unificar os antagonismos herdados da filosofia kantiana, tentando superar o dualismo entre o mundo da necessidade natural e o mundo do Espírito, da liberdade. Fichte fez a opção pela supressão de um dos termos e sustentou que o Espírito e sua interioridade eram o que havia de mais efetivo. Em sua obra Fundamento de toda Teoria da Ciência (1794) ao colocar o “Eu puro” no centro da filosofia teórica e prática, ele construiu um Idealismo da Subjetividade, que influenciou tanto o Romantismo como Hegel. Hegel, por sua vez, teria radicalizado a teoria da Subjetividade a partir da construção de uma “dialética especulativa”, na qual elaborou uma Metafísica da Subjetividade Absoluta, tendo sido o ponto culminante do Idealismo alemão.

Assim como os românticos, Hegel considerou a modernidade o momento de transição para uma época radicalmente nova, sendo o primeiro a desenvolver um conceito de modernidade propriamente filosófico. Em Fenomenologia do espírito (1807) o filósofo concebeu a filosofia como um processo histórico, sem, contudo, abdicar de pressupostos racionais e dialéticos. Assim, se Fichte está interessado pela história atemporal do Eu e Schelling pela história do mundo, da arte e dos mitos, Hegel estaria interessado pela “vida do Espírito” que ele considera um procedimento histórico no qual o Absoluto se manifestaria de maneira contínua, progressiva e racional. Sua intenção seria construir uma Filosofia da História, mostrando que o Espírito é história e que a História Universal resulta do Absoluto. No entanto, na visão do autor, Hegel não conseguiu unir satisfatoriamente os movimentos fenomenológicos com os históricos, nem sua Filosofia da História com a Filosofia do Espírito, pois ao valorizar a vida universal do conceito, Hegel teria desvalorizado as transitoriedades históricas. Seu método “dialético especulativo”, como o esforço sistemático para elaborar a primazia do Espírito diante das contradições e limitações do mundo histórico e real expôs, contudo, a miséria da filosofia idealista, e nesse momento a história entrou no período da crítica da esquerda hegeliana.

O capítulo 3, intitulado Feuerbach e a esquerda hegeliana é também apresentado em dois tópicos: Feuerbach, Hegel e a esquerda hegeliana e A crítica da religião e a antropologia. Segundo Araldi, a esquerda hegeliana considera-se a herdeira legítima da filosofia de Hegel e Feuerbach (1804-1872) é o filósofo que rompe com a “Direita hegeliana” escrevendo em 1830 a obra Pensamentos sobre a morte e a imortalidade, em que se afasta das tentativas de justificar o Estado e a Religião pela razão. Em 1839 escreve a obra Crítica da filosofia hegeliana, na qual compartilha com outros autores da esquerda hegeliana a proposta de “despotencializar a filosofia”. No entanto, Feuerbach é um filósofo recolhido demais para propor a transformação da filosofia em práxis. Ainda assim, foi um importante pensador do materialismo do século XIX, tendo construído uma filosofia como tentativa de reduzir a metafísica e a teologia à antropologia. Com essa redução o filósofo pretendia sustentar a verdadeira essência do cristianismo, que tinha como foco o indivíduo. Sua obra A essência do cristianismo, escrita em 1841, teria sido muito relevante, segundo Engels, por pelo menos dois aspectos: por seu materialismo, a partir de sua concepção de natureza; e pela crítica à religião, que teria influenciado Marx. Segundo Araldi, a antropologia de Feuerbach consiste na compreensão de que todos os resultados da religião podem ser reduzidos à essência humana, definida como Razão, Vontade e Coração.

O capítulo 4, intitulado A dialética e a práxis histórica em Marx é apresentado em três momentos: A crítica a Hegel: a miséria da filosofiaA dialética como práxis histórica e Fim da Filosofia, Fim da História? Do círculo dos jovens hegelianos de esquerda, Marx foi o pensador que mais se destacou ao propor a superação da Filosofia a partir de uma crítica da sociedade inseparável da práxis revolucionária. Segundo o autor, a crítica de Marx a Hegel se dá pelo caráter abstrato atribuído ao homem. Hegel concebe a essência do homem como autoconsciência, pensamento puro e nesse sentido, a alienação para ele, é alienação da autoconsciência. Diferentemente, para Marx, a autoconsciência é apenas um aspecto da natureza humana e seu interesse é investigar a “alienação efetiva”. Desse ponto de vista, a dialética para ele consistiria no esforço em recuperar as forças essenciais do homem, que foram alienadas, e nasceram para a objetivação, concebendo o homem como ser objetivo e natural. Com relação a sua práxis histórica, o jovem hegeliano propôs uma Filosofia como “crítica interventora”, na qual concebeu a possibilidade de transformar a práxis histórica, política e social a partir da tomada de consciência do sujeito humano, em meio às tensões da sociedade. Para ele, esse caminho da sociedade culminaria no “comunismo”. O que move o processo histórico, em sua concepção, são as próprias capacidades dos seres humanos: a produção, o trabalho e a práxis social.

O capítulo 5, intitulado Schopenhauer, o pessimismo e o valor da vida, é exposto a partir de três tópicos: O pessimismo na juventude de SchopenhauerO Pessimismo e a sabedoria dos Antigos e A vontade de viver, o ascetismo e o Nada. Nesse capítulo o autor sustenta que o tema do pessimismo esteve presente no pensamento de Schopenhauer desde sua juventude. Ainda que não tenha sido uma invenção sua, pois o pessimismo já estava presente na Antiguidade, tanto na filosofia como nas religiões, o pensamento de Schopenhauer é considerado ‘a forma mais acabada de pessimismo’. O filósofo pretendeu construir uma metafísica maior, ‘verdadeira’, que é também uma arte da vida, assente na ascética, sendo esta a proposta de uma “arte de viver pessimista” e afirmativa.

Em O mundo como vontade e representação Schopenhauer desenvolve sua “Verdadeira metafísica” que considera a vontade como o que há de mais essencial e originário, ela é a “coisa em si”. Para ele, o mundo dos fenômenos possui em relação ao mundo da representação uma preocupação prática, ética e ascética, que torna difícil justificar uma separação entre o mundo e a vontade. Enquanto “coisa em si”, a vontade é a essência do próprio fenômeno, mas ao mesmo tempo em que é independente, ela penetra no mundo para poder se manifestar. Para ele a vontade, ao se manifestar, abre a possibilidade para a “autorredenção”. A proposta do filósofo é conceber uma vontade que seja capaz de alterar o próprio querer e assim negar a vontade de viver.

Para ele, a vida é um constante necessitar e o homem é a manifestação concreta do querer que busca incessantemente saciar suas necessidades e logo após é conduzido ao tédio e à dor. A vontade de querer viver é nesse sentido negativa e consiste na passagem para o “nada”. Sua perspectiva sobre a vida ocorre, portanto, a partir da recusa no núcleo da vida e do vivente, no sentido de elevar-se acima do querer. Essa perspectiva é “relativa e fugaz”, proveniente de um indivíduo que a partir de si, se volta contra os instintos de dentro e de fora de si. Nesse movimento ele pode retornar a si transformado, mas nunca abandona completamente seu ser. A forma mais eficiente de arrancar-se dessa existência, para Schopenhauer, está no âmbito da ascese, mas também da arte e da ética. Assim, em meio às esperanças revolucionárias do século XIX, Schopenhauer quer livrar-se das paixões da vida e das ilusões modernas a partir de uma “arte pessimista de ser feliz”. Segundo o autor, o pessimista teria sido um dos primeiros a criticar o pensamento idealista de Hegel, por não considerar a efetividade do mundo, os sofrimentos do mundo, que ele compreendia como vontade e representação.

O capítulo 6, de título Kierkegaard: o indivíduo, o desespero e a fé cristã é constituído também por três seções: Kierkegaard e seu tempoDa estética para a ética: por que Don Juan e Abraão se desesperam? E A doença para a morte. Segundo o autor, o filósofo dinamarquês buscou a superação da filosofia na religião, na fé e no desespero, a partir da estética e da ética. Para ele, o indivíduo decidido a si mesmo só poderia superar o desespero da existência no confronto com Deus. No contexto da existência transitória e angustiante da vida moderna, Kierkegaard sustentou que o indivíduo experimenta possibilidades de liberdade que o levam ao desespero. A angústia está na base da subjetividade própria do ser humano, tanto no estágio estético em que o indivíduo se depara com toda a transitoriedade da vida, como no estágio ético, em que se defronta com seu “eu mais próprio”, não podendo se furtar de assumir a tarefa de sua existência. O desespero, enquanto aspecto abstrato, pode ser considerado em Kierkegaard uma vantagem do ser humano em relação aos outros animais, mas pode também ser visto, como uma das “piores misérias”. Para ele é somente pela fé cristã que o homem consegue elevar-se acima do desespero, consistindo no ápice do desenvolvimento espiritual do ser humano. Contudo, segundo Araldi, o pensamento de Kierkegaard apresenta um paradoxo filosoficamente desafiador, a partir da concepção de um indivíduo único, como um Si-mesmo, que se eleva diante de Deus.

O capítulo 7, intitulado O positivismo e as ciências no século XIX, apresenta a importância filosófica do positivismo do século XIX com relação as ciências naturais que se consolidavam em todas as esferas da vida humana, em duas seções: Auguste Comte: a física social e a lei dos três estados e Spencer e o positivismo evolucionista. O positivismo de Comte é considerado a expressão do triunfo das ciências naturais no século XIX e também signo de uma nova mentalidade cientificista que tinha pretensão de torna-se a “nova religião”. A partir de sua “física social”, Comte pretendia compatibilizar a visão humanista com os progressos científicos, mas acabou em uma visão dogmática. Spencer por seu lado, pretendia compatibilizar as aspirações humanas e morais com o pensamento científico a partir de uma ciência moral e social, pela fisiologia. Nesse capítulo vemos os esforços da filosofia para preencher o vácuo da modernidade através da compatibilização com o progresso científico. Será, contudo, com Nietzsche que essas ideias encontrarão uma radicalização mais acentuada e à filosofia ficará a tarefa de “criar novos valores”, como tentativa de unir a ciência com a arte.

O capítulo 8, intitulado Nietzsche: a crítica da moral e a filosofia do futuro, é constituído por cinco tópicos: As três transmutações do EspíritoA crítica da moral em Humano, demasiado humanoA crítica da modernidade em Além do bem e do malA genealogia da moral e A criação de novos valores e a filosofia do futuro. Nesse capítulo, o autor apresenta os aspectos críticos e criativos do pensamento de Nietzsche, que busca ir além da modernidade ocidental, não só na moral, mas na metafísica e na religião. A partir da ênfase na tarefa afirmativa deixada à filosofia do futuro, como tentativa de compatibilizar a ciência com a “ética-estética”, encontramos nesse capítulo um dos projetos mais ambiciosos do século XIX para superar a crise dos valores.

A partir da exposição sobre Das três transmutações, discurso presente em Assim falou Zaratustra, o autor apresenta a tentativa ali presente de “abarcar todo o movimento do espírito humano, da vida do próprio Nietzsche e da história da filosofia ocidental” (p. 117). Segundo Araldi, estaria na base do pensamento de Nietzsche a ideia de uma “transmutação radical” na qual o indivíduo, livre dos valores transcendentes, buscaria ultrapassar a si mesmo para criar novos valores.

Através da criação da Filosofia do Espírito Livre, presente na segunda fase do pensamento de Nietzsche, o filósofo buscaria libertar-se dos mestres Schopenhauer e Wagner, que até então marcavam seu pensamento, buscando refúgio na ciência, no filosofar histórico, no positivismo e na psicologia moral de Paul Rée. A proposta de uma ‘história efetiva da moral’ teria sido realizada nas últimas décadas do século XIX, momento no qual Nietzsche compartilha com Paul Rée a derivação dos sentimentos morais a partir dos sentimentos de prazer e desprazer. Perspectiva que irá mudar na fase tardia, com o desenvolvimento da doutrina da vontade de potência que passa a ser o novo critério para a avaliação dos valores morais.

Em Além do bem e do mal, obra do período tardio do pensamento nietzschiano, a história natural da moral ganharia um novo desenvolvimento a partir do método de análise genealógico. Para Nietzsche, a vontade de potência foi o critério utilizado para criticar não só os valores morais tradicionais, mas também para estabelecer novos e construir uma tipologia da moral, que definiu dois tipos de moral: uma afirmativa, proveniente da moral dos senhores, e uma moral negativa, proveniente da moral dos escravos. O projeto de naturalizar a moral em Além do bem e do mal encontra, contudo, lacunas que Nietzsche irá tentar preencher em Genealogia da moral. Mas essa obra também não esgota o estudo sobre a história da moral e suas consequências niilistas, deixando a promessa para um estudo que estaria por vir: A vontade de potência que, no entanto, não fora concluída.

Ao distinguir o surgimento de dois tipos de moral, a moral dos senhores e a moral dos escravos, o genealogista mostra que no tipo nobre, o valor de bom, se refere ao que provém dos instintos fortes da vida. Em oposição, ruim, é tudo aquilo que é desprezível e fraco em relação ao nobre, que é forte. Para o tipo de homem da moral escrava a moral nasce a partir da forma de valorar do fraco: o bom é tudo que se opõe ao nobre, guerreiro, forte e dominador, que é considerado mau na moral escrava. Nietzsche compreende a forma de valorar do sacerdote ascético nos seguintes termos: “Ao ‘dizer-não’ para o odiado nobre, ao voltar-se para fora de sua existência malograda, o sacerdote propriamente não cria, mas inverte valores” (p. 129). A história da moral teria sido assim, dominada por essa inversão dos valores. Para ele, se a moral escrava triunfa é a partir da negação dos instintos afirmativos da vida, considerados bons na moral dos fortes. A análise genealógica, nesse sentido, apontaria a fonte moral não só da verdade e da religião, mas da metafísica e da ciência.

Conforme o autor apresenta, no período tardio das obras de Nietzsche, entre 1885-1888, o filósofo insere o caráter artístico no procedimento de criação de valores. Para Nietzsche, a moral poderia ser justificada como fenômeno estético, na medida em que os juízos e valores morais teriam origem em percepções estéticas, sem o suporte das oposições metafísicas. O projeto de reduzir a moral à estética, presente nos escritos tardios, deveria, contudo, ser questionado. Segundo o autor, esse projeto está no âmbito do indivíduo singular que se colocaria para além do período moral da humanidade. Para Nietzsche, o indivíduo soberano é aquele que, liberado da moralidade dos costumes, é igual apenas a si mesmo. O indivíduo soberano, considerado um indivíduo singular e autônomo, estaria no final do processo da história universal da moral. Ele encontrar-se-ia, portanto, no período “extramoral”, cuja condição é a naturalização do homem, que se torna possível através da investigação genealógica-histórica da moral. Para Nietzsche, a própria moralidade revelaria a imoralidade reinante tanto na natureza como na história.

Para o autor, Nietzsche seria precursor de uma “nova filosofia afirmativa”, como intenção de superar a moralidade consolidada no homem moderno. No entanto, teria se restringido a investigar criticamente a história natural da moral e lançado à filosofia do futuro a tarefa de afirmar a si mesmo pela via ético-estética – que consiste na sua tentativa de romper com a crise do mundo moderno. Segundo Araldi, é somente pela arte que a existência pode ser afirmada para Nietzsche. E para propor valores não-morais, como uma arte afirmativa de si mesmo, o homem precisa se liberar dos velhos valores herdados da tradição europeia. E nesse sentido, o projeto de naturalizar a moral, auxiliaria na tarefa deixada aos filósofos do futuro.

Ao final de sua trajetória Do Romantismo a Nietzsche, o autor deixa o questionamento: “Num mundo dominado pelas ciências, o que resta para a filosofia?” (p. 136). Esse questionamento encontra ao longo dos estudos selecionados por Clademir Araldi o seguinte desenvolvimento: a filosofia do século XIX buscou na união tanto do Espírito com a Natureza como da Arte com a ciência uma maneira de reagir ao vazio deixado na modernidade. Por meio desses estudos recentes, compreendemos que o filósofo alemão descreveu o espírito moderno a partir do niilismo moral, enquanto um processo que encontra aí sua forma mais radical. Esse sentido já estava presente em seu trabalho anterior Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche (1998), a partir da qual percebemos que a criação de novos valores como forma de conceber uma maneira de viver afirmativa torna-se necessária. Em Do romantismo a Nietzsche o autor insere tal problemática no contexto histórico da filosofia moderna e contemporânea que se apresenta como crítica mais radical a esse estado de crise já reivindicado pelos primeiros românticos.

Da subjetividade do gênio criador à tentativa de reduzir a ética à estética a partir de uma análise genealógica dos valores morais, vemos um percurso na história do pensamento ocidental que privilegia a via artística como tentativa de conceber a noção de vida, a partir de um indivíduo, que para além da moral e do progresso tecnocientífico, busca dar um sentido afirmativo à existência. Em nossa concepção, a aposta nos filósofos do futuro, enquanto criadores de novos valores, deixa, portanto, essa tarefa a ser realizada pela filosofia: a de conceber novos valores para a vida, que encontra na trajetória dos românticos a Nietzsche, como herança do ímpeto tempestuoso e ao mesmo tempo criador da modernidade, uma via significativa.

Referências

ARALDI, Clademir. Do romantismo a Nietzsche: rupturas e transformações na filosofia do século XIX. Pelotas: NEPFIL Online, 2017. [ Links ]

ARALDI, Clademir. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 5, p. 75-94, 1998. Disponível em: <Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/upload/cn_05_05%20Araldi.pdf >. Acesso em: 30/04/2018. [ Links ]

HOBSBAWM, Eric. A Era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. [ Links ]

Notas

1 Assim, percebemos que se a ideia que dominou o século XX deixou de lado a compreensão das raízes românticas do século XIX, o historiador Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções: Europa 1789-1848 ([1998]) apreendeu diferentemente esse significado, atribuindo grande valor a Filosofia da Natureza Romântica para o século XIX, contribuindo inestimavelmente para o pensamento filosófico contemporâneo, na mesma esteira seguida por Araldi.

Tulipa Martins Meireles – Doutoranda da Universidade Federal de Pelotas, UFPEL, Pelotas, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns, and the Unity of a Life – SCHECHTMAN (D)

SCHECHTMAN, M. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns, and the Unity of a Life. Oxford: Oxford University Press, 2014. Resenha de: BORBA, Alexandre Ziani de. Dissertatio, Pelotas, v.47, 2018.

Marya Schechtman volta a publicar uma obra, também sobre identidade pessoal e pessoalidade, após 18 anos. Staying Alive demonstra ser fruto de um longo período de maturação teórica. O livro é um exemplo de boa escrita sobre um tópico filosófico. Mesmo em passagens onde as ideias expostas pela filósofa não são tão claras, ela as reconhece como ideias que merecem explicações e que eventualmente serão melhor explicadas ao longo do livro. E quando nos deparamos com a filósofa declarando uma frase duvidosa, ela presta um serviço à inteligência de seus leitores, reconhecendo a dubitabilidade da ideia por ela declarada e apresentando razões para que aceitemo-la ‒ ou antecipando que assim será feito no decorrer da leitura.

Além de tratar sobre o tema da pessoalidade e da identidade pessoal, o livro acaba por nos forçar a refletir sobre a metodologia filosófica comumente empregada neste assunto. Como Schechtman destaca, o método comumente empregado em filosofia para tratar o problema da identidade pessoal envolve reflexões acerca de cenários hipotéticos que buscam o tipo preciso de relação, ou relações, que são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para se obter as condições de persistência de pessoas. Porém, a filósofa quer apresentar razões para que duvidemos desta metodologia, uma vez que entes tão complexos como nós, pessoas, não parecem poder ser compreendidos a partir de um único tipo de relação ou de um conjunto de relações necessárias e suficientes.

Schechtman pretende endossar uma perspectiva bastante original, de acordo com a qual as relações que constituem nossa identidade pessoal estão relacionadas a considerações práticas não por acidente, mas de maneira inerente. Conforme a obra se desdobra, o significado da palavra “inerente” é elucidado. A obra ela mesma pode ser dividida em três grandes partes, como a própria Schechtman destaca. A primeira delas cobre os quatro primeiros capítulos, os quais buscam insights de diferentes visões existentes sobre a identidade pessoal, usando-os para oferecer um quadro geral de nossas identidades a partir de uma conexão com nossas considerações práticas. Schechtman, ao longo de toda a obra, se apresenta como uma filósofa que busca evitar as deficiências e salvaguardar as vantagens relativas de cada teoria por ela abordada. Espera-se, assim, que o resultado final seja bastante satisfatório ‒ tanto quanto se possa ser neste assunto. A segunda parte da obra cobre os capítulos 5 e 6, nos quais a filósofa elabora em detalhes sua própria abordagem, que ela chama de “visão da vida da pessoa” [person life view] (daqui em diante, PLV) que, basicamente, mas de maneira não muito informativa, define a identidade de uma pessoa em termos da unidade de um tipo característico de vida. Em outras palavras, a identidade de uma pessoa é definida por se viver uma vida característica de uma pessoa. Posto desta maneira, a tese é claramente circular, não sendo, portanto, informativa. Porém, é preciso ter em mente que esta é apenas a ideia básica e geral da visão de Schechtman e as minúcias de sua visão revelam uma visão bastante amadurecida sobre o assunto.

A terceira e última parte da obra cobre apenas o capítulo 7. Aqui, a filósofa debate questões ontológicas a respeito da pessoalidade e da identidade pessoal. De acordo com ela, a PLV deve ser encarada como um tratamento a respeito da identidade literal de pessoas, não apenas metafórica ou figurativa. Schechtman acaba por sugerir modificações na própria questão a respeito da identidade pessoal, ou melhor, na maneira como a questão é tradicionalmente colocada.

Os primeiros quatro capítulos buscam dar uma maior precisão na ideia de que fatos acerca da identidade literal de seres como nós estão “inerentemente conectados” a considerações práticas. Para isto, o capítulo 1 inicia discutindo as ideias do filósofo John Locke. Schechtman oferece uma interpretação acerca do tratamento de Locke sobre identidade pessoal que escapa das interpretações padrão, segundo as quais a identidade pessoal pode ser definida em termos de relações puramente psicológicas ou, de maneira ainda mais restrita, relações mnemônicas. Como Schechtman nota, para Locke, “pessoa” é um “termo forense”. Muitos tomam a asserção de Locke como sendo a de que juízos de identidade devem diretamente coincidir com juízos forenses. A esta visão, a filósofa chama de “modelo da coincidência”. No entanto, Schechtman propõe que, embora as evidências textuais não sejam conclusivas, Locke pode ser interpretado como promovendo uma conexão mais substantiva entre identidade pessoal e capacidades forenses—como as de responsabilidade moral e racionalidade prudencial. Segundo ela, o tratamento de Locke para a identidade pessoal em termos de continuidade, ou mesmidade [sameness], de consciência é um tratamento das condições de identidade para aquilo que ela chama de unidade forense [forensic unit]. Deste modo, Schechtman sugere que, para Locke, uma pessoa é um alvo de considerações práticas relativas às suas capacidades forenses. A este modelo, Schechtman dá o nome de “modelo da dependência”, e é basicamente este o modelo que a filósofa quer endossar ao longo da obra, com a diferença de que, para a filósofa, as considerações práticas relevantes para a identidade pessoal vão além das capacidades forenses de uma pessoa.

O capítulo 2 apresenta os chamados “modelos fortes da independência”, para os quais questões sobre identidade pessoal devem ser rigidamente distinguidas de questões práticas, sugerindo, assim, uma divisão do trabalho para cada uma destas questões. Do lado da axiologia, Schechtman apresenta Christine Korsgaard e sua teoria agencial da identidade como a principal representante deste modelo. Do lado da metafísica, a filósofa apresenta Eric Olson e seu tratamento biológico da identidade pessoal como o principal represente deste modelo.

Partindo dos trabalhos de Hilde Lindemann, o capítulo 3 propõe uma ampliação do modelo da dependência que Schechtman favorece para elucidar a conexão inerente entre identidade pessoal e considerações práticas. Para ela, nós devemos ampliar nossa concepção da importância prática da identidade pessoal para além das considerações forenses que herdamos de Locke. Uma consequência desta visão é a de que muitos indivíduos que não seriam considerados pessoas na visão de Locke ‒ tais como lactentes e pessoas com demência ou deficiências cognitivas graves ‒, serão consideradas como pessoas genuínas em seu modelo da dependência ampliada. Pessoas, neste modelo, são loci individuais de interação prática para os quais todo o conjunto de interesses e considerações práticas associadas à pessoalidade são apropriadamente direcionadas. Porém, como a própria filósofa nota, dado o amplo escopo de interesses práticos que nós temos com pessoas, não é imediatamente claro como definir um único locus que é um alvo inerentemente apropriado de todos estes interesses. Este é, de maneira sumarizada, o que Schechtman chama de o “problema da multiplicidade”.

Ao terminar o terceiro capítulo de sua obra, Schechtman deixa por ser respondido três grandes desafios à sua proposta, a saber, o desafio sincrônico da unidade individual, o desafio diacrônico da unidade individual e o desafio da unidade definicional. Enquanto este último é tratado no quinto capítulo da obra, o capítulo 4 se dedica a apresentar duas abordagens que, cada uma à sua vez, podem lançar luz aos dois primeiros desafios. Em particular, Schechtman argumenta que o tratamento da mente corporificada de Jeff McMahan, ou mais especificamente, sua teoria dos interesses temporalmente relativos [theory of time-relative interests], pode lançar luz ao desafio sincrônico da unidade individual. Por outro lado, a abordagem da autoconstituição narrativa, que a própria Schechtman havia desenvolvido em sua obra anterior ‒ The Constitution of Selves (1996) ‒, de acordo com ela, lança luz ao desafio diacrônico da unidade individual.

O capítulo 5 faz uso dos insights ganhos nos primeiros quatro capítulos para avançar o tratamento positivo da identidade pessoal de que Schechtman quer nos convencer, a saber, a PLV [person life view]. Numa formulação circular, não-informativa, desta ideia, pessoas são entidades que vivem tipos característicos de vidas, a saber, “vidas de pessoas”. Na sua melhor expressão, a PLV é formulada como a visão segundo a qual pessoas são entes que vivem uma vida constituída por interações dinâmicas entre funções e atributos biológicos, psicológicos e sociais. Nesta visão, a ideia de que as vidas de pessoas são inerentemente sociais é crucial. Considero que este aspecto da proposta de Schechtman aponta para uma guinada social no debate sobre pessoalidade. Para a filósofa, viver uma vida característica de pessoas envolve ocupar um espaço ‒ o “person-space” ‒ no interior de uma infraestrutura social e cultural do tipo que seres como nós naturalmente desenvolvem. Schechtman toma o cuidado de tornar claro o significado de palavras como “cultura” e “infraestrutura social” aos seus leitores.

No capítulo 6, Schechtman propõe que nós entendamos as condições de perisistência de uma pessoa não em termos de condições necessárias e suficientes, mas como um conjunto de propriedades que se reforçam mutuamente. Para a filósofa, há uma variedade de combinações diferentes de relações às quais colaboram entre si para a manutenção de uma unidade singular, integrada de interação ‒ que é a pessoa. Deste modo, Schechtman propõe que a PLV seja baseada em um modelo de propriedades aglomeradas, de acordo com a qual não há condições necessárias e suficientes para a continuidade de uma pessoa, mas tão somente um aglomerado de propriedades que se reforçam de maneira mútua. No caso de pessoas, como já antecipado pela PLV, estas propriedades envolvem seus componentes biológicos, psicológicos e sociais.

Finalmente, o capítulo 7 se dedica à ontologia das pessoas. De acordo com Schechtman, a PLV é corretamente considerada como um tratamento da identidade literal de pessoas. Para argumentar em favor de seu ponto, a filósofa precisa responder aos desafios que surgem a partir dos defensores do tratamento biológico da pessoalidade ‒ o chamado “animalismo” ‒, tal como defendido por Eric Olson. Algumas possíveis respostas ao animalismo são apresentadas.

Nesta resenha, quero tratar particularmente da proposta positiva de Schechtman para a pessoalidade e identidade pessoal. A meu ver, Schechtman tem razão em destacar que pessoas são entes envolvendo a interação de um aglomerado de propriedades que vão desde seus componentes biológicos até seus componentes psicológicos e sociais. Mais ainda, ela tem razão em destacar que estes componentes não são facilmente isoláveis uns dos outros. Em boa medida, muitos cenários hipotéticos na literatura sobre identidade pessoal desconsideram tanto os componentes biológicos e sociais com os quais pessoas se realizam, quanto a íntima interação entre eles e os componentes psicológicos ‒ o que nos leva ao questionamento da metodologia padrão. Ao fim e ao cabo, Schechtman parece indicar uma abordagem mais antropológica para o problema da identidade pessoal, uma para a qual uma guinada social se faz necessária.

Uma das ideias que Schechtman desenvolve em sua obra é a de que pessoas se tornam pessoas no interior do que ela chama de “person-space”, o qual possui a dinâmica peculiar de autoperpetuar pessoas enquanto pessoas. Apesar de considerar este conceito bastante atrativo, devo dizer que senti falta de um tratamento mais minucioso acerca da dinâmica que o caracteriza e de como um tratamento minucioso desta dinâmica se conecta à guinada social que Schechtman parece favorecer. Explico. Schechtman, ela mesma, reconhece o “person-space” como um espaço autoperpetuador na medida mesma em que serve para o desenvolvimento dos seres que o sustentam (Cf. p. 118) ‒ no caso, pessoas. Ora, se é assim, então a existência de pessoas atípicas enquanto pessoas ‒lactentes, pessoas com severas debilidades cognitivas e pessoas em estado vegetativo persistente ‒ depende ontologicamente da existência de pessoas típicas ‒ pessoas com capacidades forenses ‒, pois, do contrário, a infraestrutura cultural e social que permite a perpetuação das vidas características de pessoas não pode ser satisfeita.

Embora entenda que o ponto de Schechtman seja o de justificar a ampliação da pessoalidade a casos atípicos de pessoas, parece improvável, como já argumentado, que a dinâmica autoperpetuadora do “person-space” seja satisfeita caso muitas ou quase todas as pessoas sejam exemplares atípicos do tipo de entes que somos. Deste modo, para que esta dinâmica seja satisfeita, é preciso que quase todas as pessoas sejam pessoas típicas, i.e., pessoas com capacidades forenses. Se eu estiver certo, então as capacidades forenses de pessoas são base para a dinâmica autoperpetuadora do “person-space”.

Alexandre Ziani de Borba – PPGFil – Universidade Federal de Santa Maria

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Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea- CORTI- D

CORTI, L. Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea. Roma: Carocci Editore, 2014. Resenha de: BAVARESCO, Agemir. Dissertatio, Pelotas, v.47, 2018

O autor, Luca Corti, tem a seguinte trajetória intelectual: Obteve sua graduação (2008) e o mestrado (2011) em filosofia na Universidade de Florença. O doutorado (2015) realizou-se na Universidade de Pádua, tendo como tema de tese Mind and Method in Hegel’s Philosophy of Subjective Spirit, sendo o orientador o Prof. Luca Illetterati. Corti tem em seu currículo vários pós-doutorados em universidades europeias, além de desenvolver uma ampla pesquisa expressa em artigos, livros e traduções (ver currículo em http://rub.academia.edu/LucaCorti/CurriculumVitae).

O livro Ritratti hegeliani pode ser considerado uma história da filosofia americana sobre Hegel. O autor mantém a boa tradição italiana de escrever histórias da filosofia. O livro é composto de cinco capítulos em cada um trata de um autor. O primeiro é sobre Wilfrid Selars e seu kantismo normativo (p.29 a 58); o segundo descreve a filosofia de McDowell e o seu espaço de razões na experiência (p.59 a 110); o terceiro é a leitura de Robert Brandom sobre Hegel (p.111 a 180); o quarto é a intepretação de Robert Pipin e sua interpretação normativa institucional de Hegel (p.181 a 234); e o último é a leitura de Terry Pinkard entre história e natureza em Hegel (p.235 a 270).

Luca Corti divide a sua pesquisa a respeito da recepção americana de Hegel em três fases que correspondem a três perguntas: 1ª fase: How Hegel Came to America? Esta fase corresponde a primeira metade do século XIX em que alguns filósofos americanos adotam em seu trabalho algumas ideias alemãs, entre os quais William T. Harris e Henry C. Brokmeyer. Eles foram os primeiros a engajar-se num projeto de tradução de Hegel e sua abordagem é mais eclética do que propriamente filosófica.

A 2ª fase: How Hegel Left America? A resposta foca-se a partir de dois grandes filões da tradição americana: o pragmatismo e a filosofia analítica. Do lado do pragmatismo menciona-se William James que tem uma fase mais crítica e depois de reconciliação em relação a Hegel. Porém, outros pragmatistas como J. Dewey e Charles Peirce têm uma relação mais articulada com o pensamento hegeliano. Do lado da filosofia analítica, mais anti-hegliana temos Moore (Refutation of Idealism) e Russell. Segundo Corti estas duas fases são um tanto ignoradas nos departamentos de filosofia americanos ao longo do século XX. Enfim na 3ª fase: How Hegel Came Back to America? Para Corti, esta fase trata da recepção de Hegel feito pelo mainstream filosófico americano nos últimos 40 anos, cujo livro será dedicado a descrever os cinco autores principais deste período: Sellars, McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard.

No começo dos anos 50, há um renascimento dos estudos hegelianos inspirados pela pesquisa de Sellars que admira Hegel, embora o cite raramente. Porém, as raízes históricas e teóricas deste renascimento encontram-se em Sellars, cujos autores McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard de uma forma ou de outra inspiram-se. Corti afirma que tentará elaborar uma síntese reconstrutiva das suas interpretações e dos debates que gravitam ao seu redor, respondendo a duas questões: “Como Hegel retornou aos Estados Unidos”, mas sobretudo: “Qual Hegel retornou ao centro das atenções nesse contexto filosófico?” (Idem, p.19).

Cabe ponderar que segundo Corti, embora a relação daqueles autores com Sellars seja fundamental, ele não é o único, mas também há a influência do segundo Wittgenstein e da tradição analítica, e de Charles Taylor e de Klaus Hartmann e John N. Findlay que já nos anos 50 e 60 traziam da Europa uma nova leitura de Hegel.

Há um debate sobre a etiqueta da Escola de Pittsburgh e o círculo sellarsiano. Alguns começaram a chama-la de “Escola neohegeliana de Pittsburgh” ou “neohegelianos de Pittsburgh”. Porém, nem todos os membros sentiram-se identificados com tal etiqueta, como por exemplo McDowell. Por isso, eliminou-se o adjetivo hegeliano e manteve-se apenas “Escola de Pittsburgh”.

Para Corti trata-se de constatar qual é o modo peculiar de relação desses autores com a história da filosofia, ou seja, de ler os textos da tradição, ao mesmo tempo, de um modo original e controverso. Sellars tinha um grande interesse pela história da filosofia afirmando que “sem história da filosofia, a filosofia, se ela não é cega ou vazia, pelo menos é muda” (Idem, p.21). Face às variadas leituras propiciadas pela abordagem histórica surge a questão: “Mas isso é realmente Hegel?”. Temos abordagens opostas: ou a crítica frontal que coloca os limites histórico-filológicos de tais leituras e uma aparente estranheza ao texto hegeliano (“este não é o verdadeiro Hegel”); ou então, a adesão ao novo modo de ler os textos, as vezes até fazendo Hegel um predecessor da filosofia analítica (ver p.23). Conti entende que a alternativa não se dá entre esses dois tipos ideais de abordagens, mas explicitando, dialeticamente, suas teorias e leituras históricas.

Tendo presente estes pressupostos, Luca Corti apresentará Sellars e sua interpretação de Kant, pois esta é fundamental para compreender os desdobramentos posteriores e os “retratos” elaborados por McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard. Para elaborar os referidos retratos, Corti apresenta de cada autor, em primeiro lugar, o quadro teórico e os temas de fundo, os aspectos mais discutidos e a herança histórica mais relevante. Depois, ele irá verificar como estes elementos se traduzem na leitura de Hegel. O objetivo de tais retratos é aproximar o leitor dos autores e também fazer emergir algumas semelhanças e problemas comuns entre eles. O esforço é fundir os vocabulários pertencentes a duas tradições distantes: o léxico hegeliano e a tradição do campo analítico.

A chave de leitura e o fundo teórico, segundo Corti, que une estes autores é a normatividade. O tema da ‘norma’ é central neste livro: “Todos os nossos autores partilham a ideia de que o pensamento e a ação sejam fenômenos do tipo normativo, relacionadas ao nosso seguimento de regras” (p.26). Cabendo distinguir que a ordem normativa não se reduz à ordem natural, ou seja, como Sellars diferenciava entre o “espaço das razões”, de natureza normativa, e o “espaço das causas”, próprio das explicações naturais.

O conceito de ‘regra ou norma’ é o que faz a ponte para a interpretação dos textos do idealismo alemão. Sellars aplicará a teoria normativa dos conceitos na leitura de Kant, abrindo a estrada para a passagem a Hegel realizado pelos seus sucessores: “A tese comum a todos estes autores é que Geist é, precisamente, o termo hegeliano para indicar uma dimensão normativa não naturalizável, figura fundamental da racionalidade prática e conceitual” (p.26).

Os termos regra e norma assumem significados múltiplos e controversos: O que são as normas? Qual é o seu estatuto? Como compreender fenômenos enquanto intencionalidade, o conhecimento perceptivo e o significado em termos normativos? As respostas a estas perguntas colocam em diálogo Hegel e Wittgenstein. Para isso é necessário retornar a Sellars e ver como ele aproxima Wittgenstein de Kant que ensina como seguir uma regra e, também, como Kant dialoga com Wittgenstein encontrando o pragmatismo. “Um encontro que produziu visões tão originais, fazendo do filósofo vienense o meio para um diálogo entre o pragmatismo e a filosofia clássica alemã” (p.27).

O livro de Luca Corti é uma obra que nos permite conhecer, de modo sistemático, uma das atualizações hegelianas contemporâneas muito importante: a recepção norte americana. O autor tem o mérito de apresentar os autores de modo didático, introduzindo a teoria de cada autor e a sua relação com Hegel. O leitor pode seguir os passos de apresentação do autor, pois ele usa um estilo simples e direto, evitando diletantismos ou informações desnecessárias, não perdendo o foco de sua pesquisa. Recomendo a leitura dessa obra incontornável para quem necessita conhecer a recepção hegeliana norte-americana.

Agemir Bavaresco – Pontifícia Universidade Católica – RS.

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Obras Filosóficas y Científicas – LEIBNIZ (D)

LEIBNIZ G W. Obras Filosóficas y Científicas. Granada: Editorial Comares,  2007. Resenha de: MIGUEL, Bernardino Orio de. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

La inmensa obra intelectual de Leibniz (Leipzig, 1646 – Hannover, 1716) ha asombrado siempre a sus biógrafos e intérpretes. Jurista, semiólogo, matemático, metafísico, teólogo, historiador y, por encima de todo, insaciable escrutador de todo aquello que pudiera incrementar el desarrollo de la razón humana, el filósofo emborronó miles de folios, la mayor parte de ellos publicados muchos años después de su muerte y no pocos todavía inéditos en la actualidad, constituyendo así un fascinante laberinto de ideas y proyectos, de hallazgos científicos y de hipótesis futuristas, que él rubricó bajo el epígrafe de la Ciencia General y el sueño de una Característica Universal, que permitiera a los humanos descubrir la unidad orgánica e intencional de un mundo “que, a su modo, representa al Creador”, y con ello caminar por el sendero de la felicidad posible. Pues – solía decir – “la ciencia es la caridad del sabio; y la sabiduría, la ciencia de la felicidad” (AA VI, 4, p. 3-7; 133-136; 136-140; 970-981, etc).

Esta inagotable selva de escritos de Leibniz ha inclinado a los editores de la Academia de Ciencias de Berlín y de Göttingen a optar por repartir de forma pragmática en Series monográficas todo el material disponible (Asuntos Generales y correspondencia General, Escritos Filosóficos, Escritos Matemáticos, Escritos Jurídicos y Morales, Escritos Teológicos, Correspondencias filosóficas, por una parte, y matemáticas, por otra, etc) y distribuir cronológicamente cada serie en sucesivos volúmenes. Otra opción hubiera sido mantener la sincronía de los diversos intereses del filósofo en una única serie, que habría permitido cotejar más fácilmente la evolución y las íntimas relaciones que anudaban su múltiple discurso. Pero esta segunda alternativa acarreaba otros muchos problemas no menores en el proceso de transcripción de manuscritos y edición crítica aséptica de una obra tan compleja.

Ha de quedar, pues, para nosotros leer al mismo tiempo, por citar sólo un ejemplo, un escrito filosófico como el Système Nouveau (1695) en un volumen, y su correspondiente discurso dinámico Specimen Dynamicum junto con su inevitable fundamento matemático Specimen Geometriae Luciferae de la misma época, en otro. En cualquiera de las dos alternativas, es la exuberancia intelectual y la intuición holística de los grandes problemas humanos, que pugnaban en la mente de Leibniz, la que ha quedado ahí para sus lectores, como uno de los retos más fascinantes del pensamiento de todos los tiempos.

La traducción de los escritos de Leibniz al español, como la de otros muchos filósofos, ha tenido entre nosotros una trayectoria dispersa, asistemática y a veces caótica. El trabajo más importante y en alguna medida ordenado a pesar de sus inevitables limitaciones lo realizó Patricio de Azcárate en los excelentes cinco volúmenes de su Obras de Leibniz (Madrid, Casa Editorial de Medina, 1878). Las sucesivas entregas de la Edición de la Academia en los últimos treinta años y el creciente interés por la obra de Leibniz propició en los años ochenta del pasado siglo la fundación de la Sociedad Leibniz de España para estudios del Barroco, auspiciada por el querido y malogrado Quintín Racionero y un pequeño grupo de leibnizianos. Varios congresos, seminarios, debates y presentación de libros, han ido jalonando la producción de estudios, tesis doctorales y documentos diversos sobre el filósofo. Pero había que dar un paso más. Con la inapreciable e insólita garantía de la Editorial Comares, de Granada, el prof. Juan A. Nicolás, catedrático de filosofía de la universidad de dicha ciudad, presentó el arriesgado proyecto “Leibniz en español” para la traducción sistemática, lo más amplia y completa posible, de los escritos de Leibniz, siguiendo las pautas de la Academia. Teniendo en cuenta que el filósofo se repite incansablemente y, al mismo tiempo, modifica sus perspectivas caleidoscópicas casi al infinito, a ningún entendido en estas lides se le oculta la enorme dificultad de seleccionar lo más representativo de su pensamiento. Además del apoyo institucional y editorial, han colaborado desinteresadamente en el empeño una cohorte de traductores, correctores y editores en el magno proyecto coordinado por el Prof. Nicolás, que constará en torno a veinte o veintidós volúmenes que van apareciendo conforme los traductores y editores los tienen a punto. Paso a reseñar brevemente los publicados hasta ahora y me detendré un poco más en presentar el último volumen, el de Escritos Matemáticos, aparecido en los años 2014 y 2015, puesto que consta de dos tomos.

En 2007 apareció el volumen 14, Correspondencia I, que contiene las Correspondencias con Antoine Arnauld y con Bartolomé Des Bosses, con traducción y edición a cargo de Juan A. Nicolás y María Ramón Cubells respectivamente.

Dos correspondencias esenciales en la trayectoria de Leibniz; la primera, en su momento álgido cuando el filósofo trataba de asentar definitivamente la noción de sustancia simple (1688-1690); y la segunda (1706-1716), en el momento en que Leibniz se ve sorprendido ante las últimas dificultades acerca de la unidad metafísica vs orgánica de la sustancia.

En 2009 se publicó el volumen 8 con diversos traductores y edición a cargo de Juan Arana. Son los Escritos Científicos. Como he sugerido más atrás, Leibniz entendía por “ciencia” algo mucho más ancho que la mayoría de sus contemporáneos: su ciencia era a la vez matemática y metafísica. El lector encontrará aquí los escritos esenciales acerca de la Dinámica y sus fundamentos, así como, por ejemplo, la bellísima “Protogaea” (de 1692) y variados discursos, desde la invención del fósforo, la máquina aritmética, la construcción de relojes, el barómetro, etc

En 2010 le tocó el turno al volumen 2, Metafísica, con diversos traductores y edición de Ángel Luis González. Ocurre con la metafísica lo mismo que con los escritos científicos: una y otros se desbordan a sí mismos. El volumen trata de los conceptos metafísicos esenciales para Leibniz: la noción de ente, los principios de contradicción y de razón suficiente, la necesidad y la contingencia, y los textos fundamentales, desde el principio de individuación y la reforma de la filosofía primera hasta el discurso de Metafísica y el origen radical de las cosas, etc.

Siguió en 2011 el volumen 16A+16B, Correspondencia III, las Correspondencias con Burcher de Volder y con Johann Bernoulli, traducción y edición de Bernardino Orio de Miguel. Así como los intercambios con Arnauld y Des Bosses se centraban en la metafísica, estos últimos (1693-1716) tienen como objeto central la dinámica y la matemática respectivamente. De Volder forzó a Leibniz a apurar sus más recónditos conceptos de la ciencia dinámica. Johann Bernoulli colaboró con él en el desarrollo del cálculo infinitesimal y su aplicación a las ecuaciones transcendentes, que Descartes había excluido de la Geometría. Johann Bernoulli fue, quizás, el primer leibniziano.

En 2013 vio la luz el volumen 5, Lengua Universal, Característica y Lógica, con diversos traductores y edición a cargo de Julián Velarde y Leticia Cabañas.

Después de todo lo dicho hasta aquí, habrá que añadir que Leibniz fue, ante todo, un epistemólogo, un semiólogo genial y obsesivo. El lector encontrará aquí los escritos esenciales y técnicos acerca de la Lógica formal, desde la aristotélica a la ampliación leibniziana, sus mecanismos y sus fundamentos, la construcción de un lenguaje racional y universal. Todo ello en el contexto de los volúmenes 1 y 3-4, donde Leibniz explicará largamente el subsuelo gnoseológico de todo el saber humano en la que él llamaba la Ciencia General.

En 2014 se publicó el volumen 10, Ensayos de Teodicea, con traducción y edición de Tomás Guillén Vera. Una de las obras más extensas, más conocidas y más problemáticas de Leibniz, la Teodicea plantea, en polémica con el escepticismo de Pierre Bayle, la justificación de la bondad, de la sabiduría y de la voluntad de Dios en la contingencia de los hechos de este mundo a la luz de su principio de lo óptimo y de los otros principios que vertebran toda su metafísica y su ciencia de la naturaleza, sin los que la obra corre el peligro de no ser bien entendida.

Bernardino Orio de. Miguel – Madrid.

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Obras Filosóficas y Científicas. Vol, 7: Escritos Matemáticos- LEIBNIZ- D

LEIBNIZ G. W. Obras Filosóficas y Científicas.Vol, 7: Escritos Matemáticos. Ed. Marisol de Mora. Granada: Editorial Comares, 2014-15. Resenha de: MIGUEL, Bernardino Orio de. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

Le toca el turno finalmente al volumen 7A+7B, Escritos Matemáticos, 2014-15, que acaba de salir de las prensas en el momento en que se redacta esta recensión. Con diversos traductores y edición de Mary Sol de Mora, presenta en dos entregas los textos esenciales del inmenso e imaginativo quehacer matemático de Leibniz desde su primera juventud hasta el final de su vida, una febril actividad inventiva que abarca todo el espectro matemático de la época: el cálculo binario, las primeras intuiciones sobre el uso de determinantes en las ecuaciones lineales, el arte combinatorio, la teoría de números, desarrollos en serie, el cálculo infinitesimal, la característica aplicada a la geometría más allá de la analítica cartesiana, la probabilidad, los juegos de azar y la estadística, etc, a lo que me referiré luego con un poco más de detalle. Pero antes conviene hacer algunas breves precisiones.

A diferencia de los grandes matemáticos más o menos coetáneos del filósofo (Galileo, Cavalieri, Vallis, Barrow, Descartes, Fermat, los Gregory, los Bernoulli, Huygens, Newton, etc), Leibniz entendió siempre la matemática como un instrumento, un instrumento autónomo sin duda y autosuficiente en el universo inteligible e, incluso, necesario y aplicable a todo razonamiento humano, pero al servicio de una visión orgánica de lo real que trasciende todo cálculo, pues lo real, o sea, lo singular, cada mónada, cada suceso del mundo, a diferencia del infinito ideal del cálculo, es un infinito actual irrepetible en la serie sin límite de los hechos (AA VI 4, p. 1515ss; OFC 2, p. 151ss). La matemática, la geometría – la geometría analítica cartesiana, la mathesis universalis –, una geometría sometida todavía al trazado sensible de figuras en el plano, fue en el siglo XVII el paradigma de toda demostración científica. Y así lo entendió Leibniz desde sus años jóvenes. “Yo veía – le dice a Arnauld en 1671, antes de su viaje a París (1672-76) – que la geometría o filosofía del lugar da acceso a la filosofía del movimiento o cuerpo, y la filosofía del movimiento a la ciencia de la mente” (AA II,1, p. 278). Y al duque Johann Friedrich por las mismas fechas: “Tengo intención de escribir unos Elementos acerca de la mente lo mismo que Euclides hizo acerca de la magnitud y la figura, y Hobbes acerca del cuerpo o movimiento” (AA II,1, p. 182). De manera que – añadirá en febrero de 1676, tras el descubrimiento del cálculo diferencial – “sólo la geometría puede proporcionarnos el hilo para salir del laberinto de la composición del continuo y resolver los problemas acerca de máximos y mínimos, acerca de lo inasignable e infinito, de modo que nadie llegará a una sólida metafísica si no ha pasado por la geometría” (AA VI, 3, p. 449). Mas pronto descubrió, precisamente en el cálculo según él, que el continuo funcional siempre interminado de nuestras ecuaciones y de nuestras medidas y requiere para su completa inteligibilidad asumir la existencia de cosas discontinuas, únicas, no extensas, no medibles, verdaderas unidades, que den sentido y realidad a la idealidad de los fenómenos que observamos. Resultó así que la geometría – “la geometría más profunda” – se convertía para él en el método dialéctico-platónico de ascenso a lo verdaderamente real, las sustancias simples (ibídem). “Comprendemos así – dirá en 1685 – que unas son las proposiciones que pertenecen a las esencias y otras las que pertenecen a las existencias de las cosas” (AA VI 4, p. 1517; OFC 2, p.153). Y al final de su vida, pocos meses antes de morir, en un comentario a ciertas críticas que John Toland había hecho a su cálculo y a su sistema de las mónadas, respondía así: “A pesar de mi cálculo infinitesimal, yo no admito un número verdaderamente infinito, aunque confieso que la multitud de las cosas supera todo número finito, incluso todo número (…). El cálculo infinitesimal es útil cuando se trata de aplicar la matemática a la física; y sin embargo, no es mediante él como yo doy cuenta de la naturaleza de las cosas, y considero las cantidades infinitesimales como ficciones útiles” (GP VI, p. 629).

Paradójicamente, es precisamente la imperfección actual de las criaturas, frente a la perfección ideal del cálculo, la marca de su singularidad, de su completud interna, de su irrepetibilidad, que se muestra en la materia medible. (GP VII 563s). O si fuera lícito el anacronismo y pudiéramos evocar la actual física de partículas, entenderíamos a Leibniz afirmando, frente al mecanicismo entonces reinante, que el universo es radical y originariamente pura energía existencial, sólo expresable en las infinitas partículas de materia, crecientemente menores sin fin, como los neutrinos u otras partículas que quizás la naturaleza todavía esconde. Y la matemática y demás estrategias del cálculo sería el instrumento imprescindible de acceso a ella, pero corremos el riesgo de quedarnos en el cálculo cuando lo que buscamos es lo real, “como les ocurre a los ‘materiales’, que confunden las condiciones y los instrumentos con la causa verdadera” (GP III, p. 55; GM VI, p. 134; OFC 8, p. 223). “Quien aprehendiera absolutamente tan sólo una única parte de la materia – le decía a Des Bosses en 1710 –, ese tal comprendería absolutamente el universo entero” (GP II p. 412; OFC 14, p. 327).

Sirva, quizás, esta precipitada síntesis para sugerir el lugar que la matemática ocupó siempre en la cosmovisión de Leibniz. Cuando el año 1702 los matemáticos franceses – salvo el Marqués de L’Hôpital – ponían en duda – y con razón – el rigor lógico de los infinitésimos leibnizianos, el filósofo tuvo que tranquilizar a su corresponsal Varignon con estas palabras: “No es necesario hacer depender el análisis matemático de las controversias metafísicas ni afirmar que en rigor haya en la naturaleza líneas infinitamente pequeñas en comparación con las nuestras; nos basta explicar lo infinito por lo incomparable, es decir, concebir cantidades más grandes o más pequeñas que las nuestras, de modo que nos contentemos con grados de incomparabilidad” (GM IV, p. 91) y admitamos pragmáticamente la ley de los homogéneos: la suma ; y también el producto =xdy+ydx+[dxdy]=xdy+ydx. etc. pues los infinitésimos no son magnitudes reales sino relaciones ficticias de cocientes que se conservan constantes en su creciente pequeñez y son por ello “prescindibles”: aquello que es incomparablemente más pequeño es irrelevante introducirlo en el mismo cómputo con aquello que es incomparablemente más grande y hacer en la práctica la operación conmensurable; de esta manera, el error de cálculo será siempre “menor que cualquier error dado”, o sea, error nulo (Leibniz en Studia Leibniziana, Sonderheft 14, 1986, p. 97-102). Así que pueden y deben los matemáticos “en su oficio” seguir investigando. Y así lo hizo Leibniz en los maravillosos textos que contienen los dos tomos de este volumen “cuando oficiaba de matemático”.

Aunque Leibniz no fue el primer “inventor” del cálculo de base dos o Cálculo Binario, fue sin duda, tras conocer el I Chin por cartas de los Jesuitas en China, el principal impulsor en Occidente de lo que más tarde sería el Algebra de Boole, como base lógica de los circuitos electrónicos y de la fantástica aplicación a lo que ahora llamamos universo on line. Pues conviene recordar que el Cálculo Binario, lo mismo que el cálculo infinitesimal, eran, para él, sólo pequeñas aplicaciones de aquel magno proyecto de una Analítica y una Combinatoria Universal como instrumentos de la Ciencia General. Ya en 1675, cuando andaba enredado con el nuevo algoritmo, vaticinaba lo siguiente: “A medida que vaya progresando poco a poco el género humano, podrá ocurrir al cabo de muchos siglos que nadie merecerá ya alabanza por la exactitud de su juicio; pues, universalizado el arte analítico, que ahora apenas si se usa sólo de forma correcta y general en las matemáticas, y extendido a toda clase de materias con la ayuda de caracteres filosóficos, tal como yo pretendo, ocurrirá que, dado un tiempo suficiente para la meditación, razonar rectamente no será más meritorio que calcular secuencialmente grandes números” (AA VI 3, p. 429). [Textos I, i-1, i-2].

Siempre insatisfecho con la imperfección de la geometría analítica cartesiana, Leibniz ensayó, por una parte, la sustitución de las letras por números combinatorios en sistemas de dos o tres ecuaciones lineales, a fin de eliminar más fácilmente las incógnitas y dar unidad aritmética al sistema; fue ésta una primera intuición, todavía confusa y poco elaborada, de lo que más tarde serían los determinantes de las ecuaciones [Introducción, p. XVII-XX, y Textos II, ii-1 – ii-10]. Por otra parte, y a fin de evitar igualmente el “extensionalismo físico y los rodeos inútiles” que las ecuaciones algebraicas requerían, Leibniz pensó una vez más en su combinatoria para construir una nueva geometría abstracta que definiera numéricamente los lugares y sus relaciones, sus semejanzas, los puntos, los espacios, etc, a lo que llamó Característica Geométrica o Analysis situs. De esta manera, podría describirse cualquier objeto en el espacio “sin emplear figuras ni palabras, sino números”. A lo largo de toda su vida fue ésta quizás una de sus principales obsesiones matemáticas, que la editora de este volumen nos ofrece en su introducción [p. XXVIII-XXXIV] y en una amplia muestra de textos imprescindibles [Textos IV]. He aquí, una vez más, a Leibniz intuyendo lo que más tarde en el siglo XX sería, ya perfeccionada, la topología. Y no han faltado agudos intérpretes del filósofo que han visto en esta teoría abstracta del espacio uno de los fundamentos científicos de su metafísica, como se mostró al fin en la disputa con Clarke-Newton.

Dada su transcendencia científica e histórica, un capítulo especial merece el descubrimiento del cálculo infinitesimal, al que ya hemos hecho referencia más atrás a propósito de la cosmovisión de Leibniz. Este volumen recoge, entre otras muchas, varias piezas importantes, complicadas sin duda pero fundamentales, que aún no se conocían en versión española. El largo texto de la Cuadratura aritmética del círculo, de la elipse y de la hipérbola, del año 1675/76, donde el filósofo expone de manera sistemática su nuevo descubrimiento; y las cuatro cartas, la Epistola Prior y la Epistola Posterior de Newton con sus correspondientes respuestas de Leibniz, de las mismas fechas que la Cuadratura: todo un festín para amantes de la historia del cálculo; y para los menos valientes, el resto de los textos [Textos III. iii-1 – iii-15].

Desde los babilonios y los pitagóricos, la teoría de números y sus fascinantes aplicaciones habían subyugado a los matemáticos de todos los tiempos. El filósofo de Hannover no podía ser una excepción, como él mismo cuenta en numerosas ocasiones [Textos, V]. Fue precisamente en la contemplación de los números primos en su proyecto combinatorio donde Leibniz experimentó por primera vez en su adolescencia la manera de ampliar la lógica aristotélica de proposiciones a los términos simples del conocimiento y redactó su juvenil Dissertatio de arte combinatoria, que se traduce aquí íntegramente [Textos, VI]. Y fue también en el estudio de los números triangulares que, según él, Pascal no había explotado, donde se inició su camino hacia el cálculo infinitesimal [Textos III, iii-14]. A su vez, el estudio de las cónicas, desde Apolonio y Arquímedes, constituyó así mismo una de las fuentes más importantes para la solución de las cuadraturas, que Leibniz resolvió en su análisis. Etc.

Finalmente, la editora nos obsequia en la segunda entrega, volumen 7B (Textos VII-IX), con una serie de textos, si bien menos conocidos no por ello menos importantes, acerca de la enorme variedad de intereses matemáticoprácticos de Leibniz en torno a juegos de azar, análisis de la probabilidad, estadística y Seguros, materias todas ellas en las que Mary Sol de Mora es una de nuestras más excelentes expertas (Introducción, p. XXXIX-LXI).

La publicación de este volumen de Escritos Matemáticos de Leibniz debería constituir un hito en la historiografía española acerca de uno de los talentos más geniales y visionarios de nuestra cultura.

Durante los próximos años irán apareciendo otros volúmenes sobre Filosofía del Conocimiento-la Ciencia General-la Enciclopedia, Escritos Teológicos y Religiosos, Escritos Médico-Filosóficos, Escritos Éticos y Políticos, los Nuevos Ensayos, las Correspondencias II, IV, V, VI, para terminar en el último volumen con los Índices de toda la serie de Obras Filosóficas y Científicas de Leibniz.

Bernardino Orio de. Miguel – Madrid.

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Teoría de La definición de Leibniz – VELARDE LOMBRAÑA (D)

VELARDE LOMBRAÑA, J. Teoría de La definición de Leibniz. Granada: Comares, 2015.Resenha de: ESCRIBANO, Miguel. Dissertatio, Pelotas, v. 47, p. 333-336, 20018, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

La colección Nova Leibniz (http://leibniz.es/novaleibniz.htm) es fruto de la colaboración entre el proyecto de investigación “Leibniz en español” (www.leibniz.es) y la Editorial Comares. El proyecto “Leibniz en español”, coordinado por el catedrático de Filosofía de la Universidad de Granada, Juan Antonio Nicolás, lleva ocho años implicado en la edición en esta misma editorial de una selección sistemática de las obras de G.W. Leibniz. Entre los éxitos del proyecto cabe destacar además la constitución de la Red Iberoamericana Leibniz, cuyo principal objetivo es coordinar, visibilizar y potenciar el trabajo realizado por los investigadores de habla española y portuguesa, y la creación de la Biblioteca Hispánica Leibniz (www.bibliotecahispanicaleibniz.es), donde se está reuniendo todo lo publicado de y sobre Leibniz en el ámbito cultural de las lenguas española y portuguesa.

El objetivo de la colección Nova Leibniz es publicar trabajos de investigación novedosos relativos al pensamiento y la obra de G.W. Leibniz. Se presenta como una colección dirigida a la comunidad investigadora internacional, aceptando trabajos originales e inéditos escritos en alguno de los idiomas siguientes: español, portugués, inglés, francés, alemán o italiano. Entre sus últimas novedades cabe destacar: Deo volente. El estatus de la voluntad divina en la Teodicea de Leibniz, de M. Griselda Gaiada y Curvas y espejos. El carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz, de Laura Herrera.

El profesor Julián Velarde Lombraña, catedrático de Filosofía en la Universidad de Oviedo, ha dedicado su larga y fructífera trayectoria al estudio de la lógica y su historia, la teoría del conocimiento y la teoría del lenguaje.

Ocupa un lugar destacado sus traducciones y trabajos sobre Platón, Aristóteles, Tomás de Aquino, Caramuel, Leibniz y Peano. Es precisamente su labor de investigación sobre el pensamiento del filósofo de Hanover la que ahora nos gustaría reseñar.

Además de su magnífica edición en castellano de la Monadología (Madrid: Biblioteca Nueva, 2001) y la publicación de numerosos y reconocidos artículos, su entrega a la obra y el pensamiento de Leibniz ha dado en los últimos años dos frutos destacados. En el año 2013 la Editorial Comares publicaba el volumen que para la edición de las Obras filosóficas y científicas de G.W. Leibniz había preparado junto a Leticia Cabañas, dedicado a los textos sobre Lengua Universal, Característica y Lógica (Granada: Comares, 2013, 528 págs.).

Paralelamente a la preparación de esta edición, el profesor Julián Velarde ha ido desarrollando una complementaria labor de investigación e interpretación sobre el pensamiento leibniziano que fue apareciendo en una serie de trabajos y ponencias en congresos. Toda esta labor culminó con la publicación del libro que aquí presentamos, Teoría de la definición de Leibniz (Granada: Comares, 2015), que recomendamos leer acompañado de la obra anterior, pues la mayoría de los textos sobre los que Velarde construye su interpretación están recogidos en esa edición.

La teoría de la definición es un elemento nuclear del pensamiento leibniziano dedicado a la búsqueda progresiva de un orden y una sistematización de todos los conocimientos, proyecto al que el filósofo dio el nombre de Ciencia General. Este método de sistematización se funda en el principio leibniziano de la ligazón universal de todas las cosas, que conecta con una concepción de la razón donde la inserción y el análisis de cada concepto o noción obedece a leyes generales que nos permiten, y obligan, a transitar analógicamente a largo de los distintos ámbitos del conocimiento.

La idea de Leibniz es que si conseguimos establecer el conocimiento sobre la base de unas nociones primitivas podremos formalizar y describir todos los reinos del saber. Todas las derivas que dio este proyecto se pueden sintetizar en torno a la problemática naturaleza de estas nociones primitivas, desde sus comienzos con la Combinatoria y la Característica hasta sus últimos logros a partir del descubrimiento del Cálculo.

Al igual que en su física Leibniz rechazó el atomismo en cuanto comprendió que en la naturaleza todo cuerpo está actualmente dividido al infinito, en su teoría de la definición Leibniz terminó por desechar la idea de encontrar una noción que una vez bien definida actuara como un átomo, dado que, como pronto comprendió, el análisis de una noción es inagotable.

Este “percance” relativo a la naturaleza de las nociones primitivas hizo por otra parte avanzar al proyecto leibniziano. En un primer momento Leibniz desdobló su metodología, bien estemos tratando con verdades necesarias (de análisis finito), bien con verdades contingentes (donde el análisis es infinito). En la metafísica leibniziana esta distinción entre necesidad y contingencia opera ligada a la distinción entre posible y existente, relación donde queda trabada la diferencia y la articulación entre los principios de la razón: principios lógicos y principios ontológicos. De todo ello deriva la distinción que Leibniz hace entre definición nominal y definición genética. Una muestra de cómo opera en su distinción y articulación este desdoble del análisis lo encontramos en la posición leibniziana con respecto a la prueba de la existencia de Dios, a la que Velarde dedica el tercer capítulo del libro. Leibniz se desmarca tanto de la definición cartesiana de Dios como causa sui como de la definición genética de Spinoza por el mismo motivo: confundir razón y causa. Leibniz reinterpreta esta distinción desde su teoría de los requisitos, sobre la que Velarde se extiende en el primer capítulo.

El análisis de términos, si se lleva a cabo adecuadamente bajo lo guía de los principios de no contradicción y de identidad, nos ha de conducir a la definición nominal, que nos permite enumerar las notas o requisitos suficientes para distinguir una cosa de todas las demás. Aunque en la definición nominal esté cifrada la constitución de la cosa (sus requisitos internos) lo más útil, afirma Leibniz, es si sus requisitos incluyen además la generación de la cosa, y nos  ofrecen una definición genética. La primera, la definición nominal, es capaz de denotar la esencia de la cosa y la segunda, la definición genética, además demostrar que de ésta (de la esencia) se sigue la existencia: la definición genética, afirma Leibniz, envuelve una causa próxima de algo. Leibniz divide la definición en nominal y genética en función de que los constituyentes de la definición, esto es, los requisitos, sean o bien internos, y entonces representen la razón suficiente de la posibilidad de una cosa, o bien externos, y entonces incluyan además su causa. El éxito de la teoría de la definición radica en conseguir mostrarnos cómo se correlacionan los requisitos internos y los requisitos externos, sin confundirlos, como según Leibniz hacían Descartes y Spinoza. Para avanzar en ello Leibniz insertará ingredientes procedentes del Cálculo y la Dinámica.

A partir de aquí se abren varias opciones. La tomada por Julián Velarde en su libro es quizás una de las más interesantes, dado que permite abarcar más aspectos del pensamiento leibniziano. Se trata de saltar de la teoría de la definición a la teoría de la sustancia. Leibniz nos facilita ese paso, dada la relación intrínseca que establece entre los principios lógicos y los ontológicos. Como nos muestra Velarde, para comprender el sustrato que nutre la concepción leibniziana de la sustancia como noción completa o como ley de la serie hay que continuar el tratamiento leibniziano de las relaciones entre posibilidad-necesidad y esencia-existencia.

La distinción entre definición nominal y genética nos lleva a un doble tratamiento sobre lo posible. Por un lado, nos dice Velarde, nos encontramos , con la esfera de las esencia posibles, que son eternas y necesarias y que existen desde la eternidad en el entendimiento divino. Lo posible-esencial constituye el objeto interno del entendimiento divino desde el que Dios produce, actualiza, crea o da existencia a las cosas o verdades contingentes. En tanto verdades eternas, los posibles-esencias son independientes de la acción divina y sólo obedecen al principio de no contradicción. Nos dice así Velarde que la posibilidad de lo absolutamente posible y la verdad de las verdades eternas están más allá, y son independientes de, la voluntad, el poder y el entendimiento de Dios, lo que vincula a Leibniz con la tradición platónica. Ilustra Velarde esta posición de Leibniz con los comentarios que el filósofo de Hanover escribió sobre el Leptotatos de Caramuel.

Por otro lado, distinguimos un segundo tipo de posibles: los posibles realizados o existentes, sobre los que rige otra serie de principios.

(1) El principio de perfección o de máxima esencia nos define lo posible como categoría ontológica: lo posible demanda existencia en función de su grado de perfección o esencia. La existencia no es por tanto un complemento de la esencia sino que está contenido y determinado por ella. Nos conduce este principio hasta la teoría de la composibilidad (que enfrenta a Leibniz con la tesis spinozista de que todos los posibles existen) y a una lógica posibilista, cuya origen, nos muestra Velarde, lo podemos remontar hasta Aristóteles.

(2) El segundo principio es el de razón suficiente. Como el anterior, este principio atañe a la existencia o no existencia de todo ente, pero además, a su forma de ser, esto es, al conjunto de los atributos que lo definen como existente, para los cuales ha de haber una razón determinante que no es necesitante: todo ente se encuentra necesariamente en la serie de lo existente según alguna razón, pero no es necesario el que tenga está razón u otra. Enlaza Velarde desde este principio con la teoría de la sustancia como noción completa (unidad que incluye o envuelve todos sus atributos como existente) y con la interpretación de la naturaleza de la sustancia como ley de la serie (razón de la serie de esos atributos).

A la concepción de la naturaleza de la sustancia como ley de la serie están dedicados los dos últimos capítulos del libro, el cuarto, centrado en la sustancia finita, y el quinto capítulo sobre Dios. En esta última parte del libro es donde la interpretación de Velarde se muestra más original. Primero, en el modo como articula las ideas del Cálculo y la Dinámica para pensar la naturaleza activa de la sustancia en términos de la razón o forma que da unidad y orden al desarrollo de una serie. Resulta iluminador respecto a la concepción leibniziana de la sustancia el modo como Velarde aplica el modelo serial para comprender caracteres fundamentales de su naturaleza, como son la unidad y la actividad.

Destacar aquí la complicidad de Velarde con la investigación de Laura Herrera sobre el funcionalismo leibniziano (publicada en esta misma colección). Velarde va más allá de Herrera al extender el modelo de la serie a la explicación de la arquitectónica subyacente a la visión del mundo de Leibniz, desde el mínimo al máximo orden de perfección, desde las simples mónadas desnudas a los espíritus, o desde la naturaleza representativa de los sujetos al entendimiento infinito de Dios. Velarde nos muestra además cómo se correlacionan todos los principios leibnizianos en esta arquitectónica visión del mundo y cuál es el papel de Dios en todo ello.

Partiendo de la distinción que hace Leibniz entre homogeneidad y homogonía (por ejemplo, para explicar la relación entre el punto y la línea y la conversión entre ambos), Velarde nos dice que Leibniz se habilita una vía para explicar lo continuo desde lo discontinuo, como un caso de progresión que permite que una cosa llegue a ser (o se desvanezca en) una cosa de un género distinto, sin perder por ello los caracteres que la caracterizan (lo que explica, por ejemplo, que la línea esté compuesta de puntos). Esta interpretación de la ley de la continuidad leibniziana en términos de homogonía nos muestra como el mundo de los posibles existentes, mediante una progresión serial continua de más a más posibilidad, en el límite, esto es, en el máximo de posibilidad, se desvanece en el ser necesario, en Dios. En el infinito, nos dice Velarde, la posibilidad o la esencia máxima viene a equivaler a la necesidad o la perfección máxima, esto es, a Dios, definido como límite de la serie infinita de los posibles.

Miguel Escribano – Universidad de Granada.

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Curvas y espejos.el carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz – HERRERA (D)

HERRERA, Laura E. Curvas y espejos.el carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz. Granada: Editorial Comares, 2015. Resenha de: HURTADO, Ricardo Rodríguez. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

Curvas y Espejos ofrece un riguroso análisis del concepto de función en la obra de Gottfried Wilhelm Leibniz. El texto de este libro se extrae de la tesis doctoral que la investigadora Laura E. Herrera realizó en la Universidad de Granada bajo la dirección del profesor Juan Antonio Nicolás Marín. El libro está publicado por la Editorial Comares en Nova Leibniz, una serie de estudios dedicados al pensamiento de este filósofo alemán, colección realizada en colaboración con el grupo de investigación Leibniz en español.

En este estudio una conclusión se impone rápidamente sobre el resto: el concepto de función presente en la obra de G.W. Leibniz no se asimila al actual concepto matemático de función ni tampoco se reduce al concepto geométricomatemático que el propio autor elabora en sus trabajos. Aunque pueden encontrarse relaciones entre estos dos métodos de análisis matemático y el concepto de función leibniziano, es un anacronismo buscar el actual concepto matemático de función en la obra de este filósofo del siglo XVII y un reduccionismo querer otorgar a este concepto un significado únicamente geométrico-matemático dentro de sus trabajos. Laura defiende que en el pensamiento de Leibniz encontramos una idea de funcionalidad definida por tres “elementos”: legalidad, reciprocidad y serialidad. Este “carácter funcional” está presente en toda su obra, motivo por el que acuña el termino de funcionalidad expandida, también el de funcionalidad desnuda (de matematicidad). Así expresa la idea en la página 151; “A partir de allí se llegó a tres características definitorias para la función: la variación conforme a ley; la asignación recíproca entre magnitudes, que hemos denominado como correspondencia o interdependencia; y la serialidad, pues el término se usa siempre en relación con la idea de series infinitas y aplicado a términos de tales series. Hemos caracterizado estos tres elementos como los rasgos de una funcionalidad desnuda del contexto matemático en el que la hemos encontrado, o una funcionalidad expandida a otros campos”.

Los principales desarrollos teóricos de esta idea de funcionalidad se identifican prestando atención a la división del libro en tres capítulos. El primer capítulo, titulado Del concepto matemático de función a la idea de funcionalidad en G. W.

Leibniz, se centra en el análisis de la construcción matemática del concepto de función leibniziano. En él, tras analizar los diversos usos que Leibniz hace del término functio, Laura extrae de ese análisis de la construcción matemática del concepto su idea de funcionalidad expandida. El segundo capítulo, titulado La metáfora del espejo y el carácter funcional de la expresión, relaciona la idea de funcionalidad expandida con la teoría expresiva del conocimiento de Leibniz. Tras una primera discusión sobre cómo debe entenderse el carácter analógico de la relación de expresión para percibir su carácter funcional, Laura pasa a analizar la metáfora del espejo viviente. Esta reflexión, tan precisa en la reconstrucción lexicográfica como sugerente en la evaluación teórica, afianza y especifica la relación entre el concepto de expresión y el de función. El tercer y último capítulo, Acción y fuerza: la funcionalidad en el doble carácter de la actividad monádica, defiende que los elementos de la funcionalidad expandida se encuentran también en el aparecer fenoménico de la mónada en tanto que fuerza actuante en la naturaleza. De manera similar al segundo capítulo, en el que se establecía la determinación representativa de la mónada a través del concepto de expresión, este tercer capítulo determina la realidad efectiva de la mónada, su corporalidad fenoménica, por el concepto de fuerza activa. Estas dos formas de determinación monádica, aunque inseparables, son independientes la una de la otra. Laura expresa esta idea, en la página 208, de la siguiente manera: “No puede explicarse fenoménicamente al fenómeno en cuanto sustancia, como tampoco puede comprenderse sustancialmente a la sustancia en cuanto fenómeno; la dinámica aporta las herramientas para comprender los fenómenos dentro de su lógica y conforme a sus propias leyes. Si la acción puede manifestarse en ambos lenguajes es porque, en rigor metafísico, la fuerza es expresión y, en su manifestación fenoménica, la expresión es fuerza”. Por el lado metafísico de la expresión están el carácter representativo y apetitivo de la acción; por el lado fenoménico de la fuerza, el carácter mecánico y orgánico de la misma. El último paso argumentativo es encontrar la legalidad, la reciprocidad y la serialidad de la funcionalidad expandida en la hipótesis de la armonía preestablecida con la finalidad de relacionar estas dos dimensiones.

Las tres grandes líneas de argumentación que se acaban de exponer se defienden con un estricto rigor bibliográfico y una valiosa contextualización.

Estos dos valores metodológicos son muy relevantes para comprender la profundidad filosófica y la exhaustividad académica de este estudio. Caracterizaré brevemente estas dos características.

Merece la pena mencionar los textos leibnizianos en los que Laura se apoya para defender tanto su idea de la funcionalidad expandida como las aplicaciones de esta idea a los conceptos de expresión y de fuerza. Artículos de geometría de la década de 1670 a 1680, como son Triangulum characteristica ellipsis y De functionibus plagulae quattour, y de la década de 1690 a 1700, publicados en el Acta eroditorum y el Journal de Sçavans son referencias fundamentales en el primer capítulo. También son importante algunos fragmentos de la correspondencia que Leibniz mantuvo con el matemático Bernoulli, a los cuales se les dedica un apartado. Las obras Quit sit idea (1677) y el Discours de métaphysique (1686), junto con algunas partes de la correspondencia con Antoine Arnauld (1686-1690), son referencias importantes del segundo capítulo. Sin embargo, es especialmente relevante en este capítulo el análisis bibliográfico y la reconstrucción lexicográfica que Laura hace de la metáfora del espejo viviente. Fragmentos de la correspondencia con De Volder en torno a 1700 constituyen el principal soporte bibliográfico del tercer capítulo. Aunque también son relevantes las referencias al Specimen dynamicum (1695), del De Ipsa Natura (1698) y del Eclairssement des difficultés que Monsieur Bayle a trouvées dans le systeme nouveau de l’union de l’ame et du corps.

El otro elemento que define la rigurosa profundidad filosófica y el excelente nivel académico de este estudio es la caracterización de los contextos polémicos a los que la obra refiere; tanto el debate científico y filosófico de la época de Leibniz como la discusión académica actual sobre la interpretación del concepto de función en la filosofía del autor alemán están muy bien retratados.

La distinción entre el cálculo diferencial de Leibniz y el de fluxiones de Newton del primer capítulo es un buen ejemplo del primer nivel de contextualización. Una distinción que, además, aparece acompañada por el rastreo del origen histórico que ambos tipos de cálculo tienen en los problemas científico-geométricos de la Edad Media. También se caracterizan debates filosóficos del siglo XVII como el protagonizado por el ocasionalismo y la teoría del conocimiento de Leibniz o la discusión entre el mecanicismo y la dinámica acerca de la naturaleza del fundamento racional de la explicación científica. Cada uno de estos debates está relacionado con el principal objeto de estudio: la idea de función leibniziana.

El segundo nivel de contextualización polémica está compuesto por las diferentes posiciones que mantienen los investigadores de la filosofía de Leibniz que se han ocupado del estudio del concepto de función. Aquí encontramos los trabajos tanto de emblemáticos historiadores de la filosofía, Ernst Cassirer quizá sea el más importante dentro de este apartado, como de investigadores actuales de la filosofía de Leibniz, entre los que cabe destacar a Juan A. Nicolás o Laerke.

No obstante la cantidad de diferentes posiciones que aparecen en estos debates a lo largo de todo libro, Laura consigue expresar cada una de estas posturas con claridad y definir el detalle filosófico que diferencia su posición de la del resto de estudiosos que han investigado esta cuestión.

Una posible deficiencia de este estudio es la lectura que hace de la metáfora de las proyecciones en perspectiva. La idea de perspectiva se trata en diferentes momentos en el libro, el análisis más relevante sin embargo es el que se realiza en el capítulo segundo. En él se encuentra la discusión de Laura con Kulstad y Swoyer acerca de la forma en que interpretar el carácter funcional de la relación de expresión. En este contexto aparece la metáfora de las proyecciones geométricas en perspectiva. Al final de la discusión, en la página 166, Laura concluye: “Esto muestra también por qué el ejemplo de la perspectiva, interpretando la perspectiva en la línea matemática como proyecciones geométricas, no es un ejemplo suficiente para recoger la riqueza del concepto de expresión”. Esta conclusión depende en exceso de la interpretación que sus adversarios hacen de la metáfora como función. Aunque es cierto que como defiende Swoyer, la preservación de la estructura está presente en la metáfora como elemento geométrico, aún así la conclusión sigue pareciendo bastante acelerada.

Pues las proyecciones geométricas, sobre las que se realizan las construcciones en perspectiva, no son un discurso exclusivamente matemático sino que también constituyen el estudio científico de la representación. Leibniz, quien estudió algunas de las principales obras de esta disciplina en el sentido apenas expresado, también tiene en cuenta esto al hablar de las proyecciones geométricas en perspectiva. Las cuales no son para él un modelo exclusivamente geométrico para pensar la expresión (a través de funcionalidad; como asumen Kulstad, Swoyer y Laura), sino que también sirven para pensar la representación; las leyes constitutivas de este fenómeno gnoseológico. En este punto se le podría exigir al estudio un mayor desarrollo y puntualización, pues Laura yerra únicamente al circunscribir y aislar un sentido de perspectiva, las proyecciones geométricas, del resto de las posibles acepciones de este concepto. De la misma forma que no se puede anticipar que pueda aislarse este sentido del resto de usos que Leibniz hace de la perspectiva, tampoco puede anticiparse que la autora no pudiera hacerse cargo del resto de posibles sentidos de que Leibniz adscribe a este concepto; ésta es por lo tanto una apreciación crítica de menor calado. La investigación que se ofrece en este trabajo no pierdo por ello ni una pizca de profundidad, constituye un estudio muy recomendable para estudiosos de Leibniz y prácticamente obligatorio para aquellos que quieran estudiar el concepto de función en el sistema filosófico del autor alemán.

Ricardo Rodríguez Hurtado – Universidad de Granada.

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Semântica formal: uma breve introdução – PIRES OLIVEIRA (D)

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas: Mercado de Letras, 2012. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Semantics for philosophers. Dissertatio, Pelotas, v.39, 2014.

Semântica para filósofos

Quem trabalha com filosofia analítica na graduação e na pósgraduação já deve ter se deparado diversas vezes com a dificuldade dos alunos de entenderem as noções de significado, sentido, referência, extensão, intensão, dêixis, anáfora, quantificação e modalidades, além de muitas outras relacionadas. Estas são noções técnicas que precisam ser dominadas pelos alunos que exploram os textos de ou sobre Frege, Davidson, Putnam e muitos outros. Esse problema requer uma solução que capacite os estudantes sem ocupar muito tempo dos cursos, e isto pode ser feito através da semântica formal.

Semântica formal, de Roberta Pires de Oliveira, é uma ótima introdução às ferramentas típicas da abordagem verifuncional do significado.O capítulo 1 faz uma cuidadosa distinção entre aquilo que é pesquisa do significado (a semântica) e aquilo que é pesquisa do ser (a metafísica), detalhando as principais diferenças da semântica verifuncional em relação a outras abordagens, como por exemplo a semântica cognitiva de Lakoff.

Como é típico dos principais manuais de semântica formal – como Knowledge of meaning, de Richard K. Larson e Gabriel Segal (Cambridge, USA: The MIT Press, 1995); Semantics in generative grammar, de Irene Heim e Angelika Kratzer (Oxford: Blackwell, 1998) e a Semântica de Gennaro Chierchia (Campinas: Unicamp, 2003) –, o capítulo estabelece os vínculos entre as ferramentas da linguística gerativa de Chomsky com o cálculo de predicados da lógica do século 20, estabelecendo uma ponte entre as pesquisas filosóficas e as abordagens empíricas da linguagem através da teoria da verdade de Tarski.

O capítulo 2 trata do clássico problema da criatividade dos falantes. Somos capazes de proferir e de reconhecer frases inéditas, o que só pode ser © Dissertatio [39] 283 – 285 inverno de 2014 César Schirmer dos Santos 284 explicado economicamente pela hipótese de que empregamos um conjunto finito de regras recursivas na fala e na escuta, o que nos leva à imagem da linguagem como um conjunto de regras acompanhada de um léxico. Quanto à significação, isto abre espaço para a distinção entre a referencialidade a objetos dos elementos subsentenciais, como os sintagmas nominais e verbais, e a referencialidade a valores de verdade das sentenças. O capítulo também discute as visões holista e atomista do significado.

O capítulo 3 trata da distinção fregueana entre sentido e referência, a qual é fundamental para a análise semântica dos contextos intensionais ou opacos, nos quais não se pode trocar sinônimos sem correr o risco de mudar o valor de verdade das sentenças. Nos contextos extensionais, o significado está ancorado no mundo atual, mas o mesmo não se dá nos contextos intensionais, nos quais a “referencialidade” está ancorada em outros mundos.

No caso específico do pensamento, a distinção fregueana permite que se dê conta daquilo que um outro compreende a partir da sua perspectiva, o que é fundamental para que se possa tratar do significado sem sofrer os embaraços típicos de uma teoria referencialista muito crua.

Os capítulos 4 e 5 mostram, de maneira direta e concisa, pra não dizer exemplar, como as ferramentas do cálculo de predicados são úteis para a investigação do significado. Através desses capítulos, estudantes de filosofia da linguagem e filosofia da mente podem se capacitar para ler textos já clássicos da filosofia analítica dos últimos cinquenta anos. No capítulo 4 se mostra como lidar com predicados e com nomes próprios. No capítulo 5 se mostra como este modelo é incapaz de lidar com pronomes dêiticos ou anafóricos, os quais são usados para explicar o papel dos quantificadores.

Através dessas ferramentas, a autora apresenta os fundamentos da teoria das descrições definidas de Russell e alguns elementos da polêmica entre este autor e P. F. Strawson.

Por fim, o capítulo 6 apresenta os fundamentos da semântica dos mundos possíveis, mostrando como as ferramentas da semântica extensional pode ser usadas em semântica intensional para dar conta das noções modais de necessidade/possibilidade, dever/poder e saber/crer.

Além do conteúdo, cada capítulo traz um conjunto de exercícios. O ponto baixo do livro são os exemplos datados. “A presidente do Brasil” quiçá soasse esquisito em 2001, mas hoje é uma descrição definida com referência. Há também uma série de erros tipográficos que, apesar dos méritos da publicação, é ponto contra a editora Mercado de Letras, que deveria ter feito um trabalho mais cuidadoso de editoração. Mesmo assim, trata-se de um livro de primeira importância para a pesquisa e o ensino acadêmicos em filosofia analítica no Brasil.

César Schirmer dos Santos – Universidade Federal de Santa Maria.

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Razão e Emoção em Kant – BORGES (D)

BORGES, M. de L. Razão e Emoção em Kant. Coleção Dissertatio de Filosofia. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2012. Resenha de: SANTOS, Robinson dos. Dissertatio, Pelotas, v.38, 2013.

Qual é o lugar das emoções e dos sentimentos na filosofia prática kantiana? Sentimentos, afetos, paixões e emoções são uma e mesma coisa? Podem ser cultivados enquanto tais? De que modo podem obstruir ou facilitar o aperfeiçoamento moral do homem? Para estas e outras questões em torno da relação entre razão e emoção, o livro de Maria de Lourdes Borges, professora e pesquisadora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, oferece algumas respostas e perspectivas que merecem ser consideradas quando se pretende analisar o tema.

Quanto à estrutura, o livro está dividido em duas partes. A primeira parte, intitulada razão, é composta por três capítulos, a saber, I. A obtenção e validade do princípio moral; II. Teoria da ação em Kant e III. Psicologia empírica, antropologia e metafísica dos costumes em Kant. A segunda parte, intitula-se emoções e moralidade e reúne os outros cinco capítulos do livro: IV. Simpatia e móbeis morais; V. Simpatia e outras formas de amor; VI. A estetização da moralidade; VII. As emoções no mapa kantiano da alma; VIII.

Fisiologia e controle dos afetos. Além destes capítulos, um texto breve fecha o livro, a título de conclusão. Embora a quantidade de tópicos ou capítulos da segunda parte possa sugerir um desequilíbrio no tratamento dado à primeira e segunda partes, tal impressão é desfeita quando se comparam as partes pelo respectivo número de páginas a elas dedicadas.

A autora trata, na primeira parte, de questões relacionadas à fundamentação da filosofia prática kantiana, abordando particularmente no primeiro texto o tema da fundamentação do princípio supremo da moralidade. As etapas mais importantes e os respectivos conceitos fundamentais da Fundamentação da Metafísica dos Costumes são revisitados e a análise culmina com uma abordagem de alguns problemas relacionados com a terceira Seção da Fundamentação e com a doutrina do fato da razão apresentada por Kant na segunda crítica. Borges, para além das polêmicas em torno do problema da dedução na Fundamentação e sua relação com a segunda crítica, parece inclinada a uma leitura que não privilegia a suposta contradição entre as obras.

A teoria kantiana da ação é o tema abordado no segundo capítulo. A pertinência da análise da mesma reside, segundo a autora, no fato de que sua compreensão é fundamental para entendermos a relação entre a razão prática e os sentimentos e emoções. Partindo da caracterização e respectiva distinção entre espontaneidade, liberdade prática e liberdade transcendental, bem como da definição de termos como arbitrium brutum e arbitrium liberum, Borges aproxima-se progressivamente do seu tema fundamental (as emoções) na parte central deste capítulo, que trata dos motivos e móbeis e do tema da fraqueza da vontade. Trata-se aí de estabelecer a relação das inclinações (móbeis sensíveis) com o valor moral da ação. Kant é enfático tanto na Fundamentação, quanto na segunda Crítica sobre as ações motivadas por inclinações. De fato, na KpV1 afirma ele que “O essencial de todo o valor moral das ações depende de que a lei determine a vontade imediatamente” (p.114). Destaca-se, outrossim, neste contexto, a apreciação da chamada “tese da incorporação” estabelecida por Henry Allison e as objeções levantadas a ele por Marcia Baron. A autora finaliza este capítulo com a análise do conceito de máximas considerando as interpretações de Onora O’Neill e Henry Allison. As interpretações de Christine Korsgaard e Barbara Hermann são retomadas para fazer frente às críticas quanto ao aspecto da universalização/contradição de máximas por um lado e, por outro, para rejeitar a crítica de cegueira moral da ética de Kant e sua suposta incapacidade para o julgamento de situações particulares.

A passagem da filosofia prática ancorada em princípios a priori para a Metafísica dos Costumes e para a Antropologia prática é a questão debatida no terceiro capítulo. Borges quer mostrar nesta parte do trabalho três momentos da relação entre psicologia empírica, antropologia e metafísica dos costumes na obra de Kant. O primeiro momento destaca a posição de Kant seguindo Baumgarten quando admite a psicologia empírica como parte da metafísica. O segundo momento diz respeito ao total isolamento da psicologia empírica e da antropologia no caso da Fundamentação. No terceiro momento é destacado que, a partir da Antropologia de um ponto de vista pragmático e da Metafísica dos Costumes, uma concepção de natureza humana faz parte da metafísica da moral. O fito de tal abordagem consiste em demonstrar que a despeito de Kant separar claramente o âmbito empírico do racional, o plano da fundamentação do plano da aplicação, ele não ignora e tampouco exclui de suas considerações os problemas e peculiaridades postos pela antropologia. Com efeito, nota a autora que “uma teoria moral, ainda que possa obter seu princípio moral supremo sem considerações sobre a natureza humana, não pode deixar de indagar sobre a aplicabilidade destes princípios aos seres racionais sensíveis” (p. 69). Assumindo a tese, postulada de modo mais explícito por Robert Louden em Kant’s Impure Ethics (2000) de que a teoria moral de Kant está assentada sobre uma parte pura e uma parte impura, Borges procura identificar as obras em que sobretudo a parte impura é apresentada, na qual os elementos particulares da natureza humana são tematizados e relacionados por Kant. Esta análise visa colher informações que possam lançar luz sobre a questão das emoções e dos sentimentos. “Na parte impura da ética, portanto, alguns sentimentos que não possuíam valor moral na Fundamentação, passam a tê-lo” (p. 86). Ainda neste contexto, a autora considera que, “A parte pura da ética deve, portanto, ser complementada pelas condições de validade desta para seres humanos, as quais só podem ser encontradas numa doutrina da sensibilidade moral” (p.90). Isso não significa aceitar que Kant estaria mais próximo dos empiristas do que gostaria. Pelo contrário, observa a autora, mesmo reconhecendo a pertinência do sensível, a instância que permite identificar o moralmente correto é a razão e não o sentimento.

A segunda parte é dedicada à análise da relação entre as emoções e a parte pura da filosofia prática de Kant. Os sentimentos são objeto de investigação, assim como a questão de se eles desempenham algum papel no âmbito da moralidade. Na abertura do capítulo IV a autora lança a pergunta: “Pode a simpatia cumprir algum papel na moralidade kantiana?” (p. 93). Para responder a esta questão ela analisa o percurso de Kant desde a Fundamentação até a Doutrina da Virtude e, na verdade, este tema é tratado também no capítulo V. Sentimentos como a simpatia podem auxiliar na realização de fins de virtudes. Incluem-se nesta análise também as definições que Kant apresentou sobre o amor. Na Doutrina da Virtude Kant refere-se ao dever de amor aos seres humanos quando aborda, nos deveres de virtude,  nossos deveres em relação aos outros. Beneficência, gratidão e simpatia são deveres que concorrem para a efetivação da virtude e são sentimentos que devem ser cultivados. A simpatia é tomada como exemplo para explicitar a possibilidade de tal cultivo. “A simpatia, que não é um afeto, mas um sentimento que pode ser modificado e cultivado pela razão, relaciona-se com o amor que pode ser um efeito da prática de boas ações. Ela será, assim, efetiva e útil na realização de beneficência, ao invés de ser uma mera condição de prazer ou dor, que afeta as pessoas cegamente, como uma doença contagiosa” (p. 120).

Os sentimentos são analisados em seguida, na perspectiva de condições estéticas para a receptividade do dever (cap. VI). Para tal, Borges toma o sentimento de prazer e desprazer em sua relação com a moralidade, considerando o §59 da terceira crítica (Crítica da Faculdade do Juízo) e a relação entre bondade e beleza. Em seguida, examina o sentimento moral na Metafísica dos Costumes e as considerações feitas por Kant acerca da relação entre o domínio do gosto e o domínio da virtude na Antropologia. A autora visa, com isso, demonstrar que existem aspectos estéticos na moralidade que efetivamente contrastam com o suposto formalismo da Fundamentação e da segunda crítica. Teria Kant mudado de rota nos seus textos tardios ou trata-se apenas de considerações diferentes de acordo com o conteúdo das respectivas obras? Para esta pergunta uma resposta definitiva ou categórica não é possível, admite a autora. No entanto, é digno de nota que se nos escritos dos anos oitenta havia uma espécie de rejeição ou condenação dos sentimentos de prazer e desprazer no campo moral, o quadro se modifica nos escritos dos anos noventa, na medida em que a autora observa que para Kant, se não os tivéssemos “estaríamos mortos moralmente” (p. 138).

No capítulo VII a autora apresenta o que considera um modelo para as emoções em Kant. Na medida em que um controle absoluto por parte da razão sobre as inclinações não é concebível, “as paixões e afetos são considerados doenças da mente (Krankheit des Gemüts)(…), excluem a soberania da razão; os afetos tornam a reflexão impossível, enquanto as paixões são ditas tumores malignos para a razão pura prática” (p. 139).

Tomando posição diante de outros intérpretes do tema das emoções na filosofia de Kant, Borges advoga que “o erro dos comentadores (…) é considerar que a emoção em Kant possui apenas um modelo e um fenômeno referente, quando de fato refere-se a uma multiplicidade de diferentes fenômenos, que devem ser explicados de formas diversas” (p. 153).

O capítulo VIII tem como objeto a possibilidade de controle dos afetos, dentro da teoria kantiana das emoções. A autora pretende demonstrar que o objetivo kantiano assemelha-se fundamentalmente ao dos estoicos no sentido de extirpar as paixões em busca da apathia. Este ideal, todavia, está diretamente relacionado com o dom natural das paixões moderadas e não é possível meramente por meio de uma decisão racional. Sua hipótese é de que “a teoria kantiana dos afetos está relacionada com a ideia de estados excitados presentes na fisiologia dos séculos XVII e XVIII, os quais tornariam os afetos difíceis de serem controlados pelo poder da vontade” (p. 156). A simpatia parece desempenhar neste contexto também um papel. No entanto Borges admite que a possibilidade de cultivo da simpatia não pode ser superestimada como possibilidade de controle das emoções em geral. “Ainda que seja verdade que Kant, na Religião, afirme que por si só as inclinações não sejam ruins, a Antropologia nos fornece uma visão negativa dos afetos e paixões, como doenças da mente, o que torna temerário afirmar que devemos celebrálas” (p. 167).

O tema das emoções em Kant inspira cuidados. Se, por um lado, a simpatia é destacada como elemento importante da vida moral, é preciso lembrar que isso é feito por Kant na Doutrina da Virtude, especificamente com vistas ao processo de aperfeiçoamento moral do homem sensível. Isso não pode ser considerado ou aplicado ao mesmo tempo para todo e qualquer tipo de afeto. As emoções não são uma fonte de conhecimento moral e não servem de critério para a tomada de decisões sobre o que é o correto a ser feito. Isso se aplica inclusive à própria simpatia. Borges reconhece que não se pode negar que “o aspecto fisiológico dos afetos e os efeitos perniciosos das paixões realmente instalam um abismo entre a razão prática e as emoções” (p.

169). Isso não elimina, todavia, a permanente tensão que ambos exercem um sobre o outro. Ao fim e ao cabo, um controle das emoções meramente por meio da razão, embora também seja útil e necessário, não é, contudo, suficiente. Cabe ressaltar que devem ser tomadas outras precauções, corporais e fisiológicas para o abrandamento dos afetos intensos. Como a autora lembra, o próprio Kant era mais favorável a um emprego de “altas doses” de um poderoso calmante “do que confiar no poder da razão” (p. 170).

O texto que Borges traz ao público permite uma incursão qualificada sobre o tema em Kant e mostra todas as credenciais de uma investigação que foi desenvolvida ao longo de mais de uma década de estudos e por meio de conferências, de debates e interlocuções com os pares. Isso evidencia a relevância e a pertinência de uma obra que explora um tema, em suas diversas facetas, que sem dúvida colabora para o preenchimento de uma lacuna significativa nas pesquisas sobre Kant no cenário brasileiro.

Notas

1 Sigo aqui a tradução da Kritik der praktischen Vernunft (KpV) de Valério Rohden, publicada pela Martins Fontes (3ª edição), de 2011.

Referências

BORGES, M. de L. Razão e Emoção em Kant. Coleção Dissertatio de Filosofia. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2012. (184 p.)

KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

Robinson dos Santos – Universidade Federal de Pelotas.

Acessar publicação original

The infamous boundary: seven decades of heresy in quantum physics – WICK (D)

WICK, D. The infamous boundary: seven decades of heresy in quantum physics. New York: Copernicus, 1996. Resenha de: ARENHART, Jonas Rafael Becker; SCHINAIDER, Jaison. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

Talvez um dos únicos pontos não controversos acerca da mecânica quântica seja o fato de que a teoria é um sucesso em matéria de predições. Por outro lado, a interpretação desta teoria, juntamente com uma explicação coerente sobre como ela ‘descreve’ a realidade, é questão de pura controvérsia.

Com efeito, um dos principais aspectos desta disputa se refere ao modo como devemos entender (ou seja, interpretar) aquilo de que a teoria trata. Esta é uma querela que começa com o próprio nascimento da chamada “nova” mecânica quântica nos anos de 1925 e 1926 e se alonga até os dias de hoje. O livro de que tratamos aqui, The Infamous Boundary: Seven Decades of Heresy in Quantum Mechanics, de autoria de David Wick, é mais uma testemunha de que a questão sobre a interpretação que pode ser considerada a mais adequada para a mecânica quântica (se alguma houver) ainda é um problema que desperta o interesse tanto de cientistas quanto de filósofos e que, com certeza, não se esgotou no tempo dos criadores desta teoria (que inclui figuras como Heisenberg, Schrödinger, Bohr, Einstein, Dirac entre outros).

Trata-se de um livro destinado ao grande público, mas também a especialistas que desejam uma abordagem que abranja quase todos os aspectos que são comuns à discussão em torno do desenvolvimento e interpretação da mecânica quântica. A exposição de Wick é em geral clara e precisa, entremeando história, exemplos ilustrativos, muitas anedotas (algumas vezes beirando o exagero) e divulgação científica de qualidade. Apesar de deixar a desejar no que se refere a uma explicação mais detalhada de algumas passagens mais obscuras de algumas das propostas tratadas, pode-se dizer que o resultado final é, como dito, um livro de interesse geral que não pede ao leitor o domínio de muitos pré-requisitos e que também não se utiliza de uma sofisticação matemática comum em exposições padrão desta teoria. Para os que desejam tal sofisticação, o livro inclui um apêndice matemático de cerca de cinqüenta páginas, escrito por W. Farris, trazendo uma formulação geral da mecânica quântica em bases um pouco mais matemáticas e abordando temas como o tratamento da probabilidade no contexto quântico e as desigualdades (ou teoremas) de Bell (primeiro e segundo). Trata-se assim de um excelente livro para filósofos da ciência que estão começando a tomar contato com a teoria quântica e suas controvérsias, um livro que aponta diretamente para as dificuldades da teoria. No entanto deve ficar claro desde o início: não se trata de um livro de caráter meramente expositivo, pois, como mencionaremos adiante, Wick pretende defender uma posição realista, contra posições positivistas e anti-realistas. Parte de sua argumentação, deste modo, se volta contra a ortodoxia de Copenhague e sua aparentemente injustificada divisão do mundo em dois domínios, um clássico e um quântico, regidos por leis distintas e entendidos de modo completamente distintos. Wick busca argumentar que esta divisão (a Infamous Boundary – termo que dá título à obra e que foi, diga-se de passagem, retirado de um artigo de J. S. Bell – BELL, 1987, p. 35) não se justifica de modo algum e que podemos ter sim uma compreensão realista da mecânica quântica.

Interessante notar que, neste contexto, os realistas tornam-se os céticos que assumem a posição de duvidar da ortodoxia (principalmente da chamada interpretação de Copenhague), enquanto os positivistas são rotulados como dogmáticos defensores do status quo.

Assim, a proposta de Wick é clara desde o início de seu livro: pretende questionar a ortodoxia da interpretação de Copenhague e defender (ou pelo menos argumentar a favor da plausibilidade de) uma interpretação realista da mecânica quântica, na qual os objetos tratados pela teoria possuem propriedades independentes do observador. Admite-se, porém, que, em alguns casos, uma mensuração possa sim afetar o objeto mensurado (por exemplo, no caso da medição da temperatura de uma pequena quantidade de água com um termômetro: a temperatura do termômetro irá interferir na temperatura dessa pequena quantidade de água e resultar em um valor ‘incorreto’. Todavia, essa diferença pode ser explicada e/ou compensada – cf.p. 172). Uma das perguntas que Wick coloca é que, já que existem alternativas realistas à interpretação de Copenhague, como, por exemplo, a interpretação de David Bohm (apresentada em um capítulo de seu livro), por que ainda se trata este tipo de opção como uma heresia? Segundo Wick, as propostas de tipo realista também merecem ser levadas a sério, e um dos objetivos deste autor é exatamente mostrar que este tipo de interpretação consegue resistir às principais objeções levantadas contra ela. Para tanto, o autor argumenta que será preciso primeiramente separar teoria e ideologia e mostrar o que a teoria implica e o que a autoridade de figuras como Niels Bohr (um dos pais da mecânica quântica e um dos principais proponentes da interpretação de  Copenhague, segundo Wick) introduziu – muitas vezes sem justificações adequadas – no imaginário coletivo. De fato, um tema recorrente no livro é a afirmação de que a ortodoxia da interpretação de Copenhague, com seu tom altamente positivista está fundamentada, segundo o autor, muito mais em dogmas, obscuridades e em uma sutil ideologia, do que em argumentos aceitáveis (cf. p. xiii). Desse modo, será preciso abrir caminho por estas vias para mostrar que, ao contrário do que se argumenta usualmente, uma interpretação realista, longe de ser apenas uma curiosidade ou uma mera possibilidade conceitual, é altamente recomendável.

A partir de agora, trataremos mais detidamente de alguns pontos específicos discutidos no livro. Nos primeiros capítulos, Wick apresenta uma breve história do início dos desenvolvimentos da teoria quântica desde o final do século XIX e começo do XX. Esta recapitulação se inicia com o positivismo de Mach, que duvidava da existência de átomos e restringia o que podemos conhecer àquilo que fosse observável (um princípio metodológico que será retomado por Heisenberg no desenvolvimento da mecânica de matrizes), passando pelas contribuições de Einstein com sua teoria sobre o efeito fotoelétrico e pelo átomo de Bohr até os desenvolvimentos da mecânica de matrizes de Heisenberg, da mecânica ondulatória de Schrödinger e do Princípio de Complementaridade de Bohr. A exposição de Wick segue a ordem cronológica dos eventos, reservando grande espaço para anedotas e aspectos centrais da biografia dos protagonistas do desenvolvimento da teoria quântica (o que é, diga-se de passagem, um grande atrativo para leitores que não estão acostumados com a carga teórica do assunto). Wick chama a atenção principalmente para o papel de Bohr nesta etapa do desenvolvimento da teoria. Segundo ele, foi Bohr o responsável por se criar uma espécie de hegemonia positivista no que diz respeito à interpretação da teoria quântica.

Um dos conceitos-chave na interpretação proposta por Bohr, posteriormente adotada por vários dentre os principais físicos envolvidos no desenvolvimento da teoria quântica (com as notáveis exceções de Broglie, Einstein e Schrödinger), foi a noção de complementaridade. Este, como Wick enfatiza (até demais), é um dos conceitos mais vagos e difíceis de serem compreendidos na literatura sobre a mecânica quântica. A prosa de Bohr, em geral confusa e por vezes ambígua, dificulta ainda mais a compreensão desta noção-chave da interpretação de Copenhague. Eventos complementares, falando por alto, são aqueles que são mutuamente excludentes e conjuntamente exaustivos, ou seja, não ocorrem simultaneamente, mas são ambos imprescindíveis para se explicar completamente o fenômeno. Deste modo, por exemplo, a famosa dualidade onda-partícula é um exemplo paradigmático em que a noção de complementaridade deve ser empregada.

Realmente, nada pode ser onda e partícula ao mesmo tempo. Porém, se tomarmos o famoso experimento das duas fendas e tentarmos explicar o padrão de interferência registrado em um anteparo quando as duas fendas estão abertas, só podemos fazê-lo se utilizarmos a noção de onda e os conceitos de interferência construtiva e destrutiva; por outro lado, quando apenas uma das fendas está aberta, o padrão formado pela chegada dos ‘objetos’ no anteparo atrás da fenda é outro, o qual só pode agora ser explicado se passarmos a utilizar a noção de partícula (e com isso também podemos assumir o fato de que aparentemente, neste caso, podemos falar de uma trajetória bem definida para essas partículas – cf. p. 45-46). Assim, um elétron, por exemplo, é onda e é partícula, mas isto não significa que possua as duas características ao mesmo tempo: estes dois conceitos, com relação ao elétron, são complementares. Outra versão do princípio da complementaridade (que Wick simplesmente rejeita como muito confusa) diz respeito aos modos de descrição dos sistemas quânticos. Por um lado, um sistema quântico quando considerado apenas em si mesmo, não perturbado por aparatos de mensuração, não poderá ser conhecido. Por outro lado, se quisermos conhecer algo desse sistema devemos efetuar uma medição sobre ele. Podemos então conhecer os valores de determinadas grandezas (aquelas sendo medidas), mas não podemos atribuir os valores assim obtidos ao sistema físico em si (como acontece na mecânica clássica), haja vista que ao realizarmos esta medição interferimos de modo essencial com o sistema quântico. De certo modo, em uma medição quântica, é impossível dissociar o sistema do aparato de medição para podermos distinguir o que é realmente uma propriedade do sistema e o que é na verdade resultado de interferência do aparato: aparato e sistema tornam-se um só e são complementares.

A complementaridade também é utilizada para se interpretar as relações de incerteza de Heisenberg. Estas relações, derivadas por Heisenberg para pares de observáveis que não comutam, sendo os mais famosos deles os pares posição-momento e energia-tempo (tempo não é, estritamente falando, um observável), despertam muita controvérsia sobre o modo como devem ser entendidas, tendo sido responsáveis até mesmo por um pequeno atrito entre Heisenberg e Bohr com respeito a isto. Como Wick argumenta (p. 73-74), a leitura das relações como nos dizendo que não podemos conhecer os valores para estas duas grandezas simultaneamente não se justifica, pois, permitindo a possibilidade de retrodição, em muitos casos podemos conhecer sim os dois valores (como o momento e posição, por exemplo) com bastante precisão; só não podemos é prever estes valores, com um grau se precisão arbitrária, antes do experimento ser feito (de qualquer forma para Heisenberg era, na verdade, “matéria de crença pessoal se um cálculo desse tipo, concernindo a história passada [da partícula], pode designar qualquer realidade física ou não [ao ‘caminho’ da partícula]” – p. 74). Heisenberg também havia proposto que podemos ilustrar as relações de incerteza através da famosa experiência mental do microscópio, na qual observamos um elétron com um microscópio. Para determinarmos, por exemplo, a posição do elétron com grande precisão, devemos iluminá-lo com bastante luz, o que resulta que os fótons do feixe luminoso ao, atingirem o elétron, perturbam seu momento.

Para determinarmos, por sua vez, seu momento com alta precisão, devemos fazer o elétron colidir com outra partícula, de modo que sua posição se alterará e não poderemos mais determiná-la precisamente. Segundo Bohr, esta forma de se motivar as relações de incerteza gera grandes dificuldades, e o modo correto de as entendermos, na verdade, consiste em percebermos que elas expressam o fato de que para medir grandezas como momento e posição, que figuram na formulação mais famosa das relações de incerteza, precisamos de aparatos de medição complementares que não podem ser utilizados simultaneamente (p. 43-44).

Mas a utilização mais importante da complementaridade, e que ocupa um papel central no livro de Wick, consiste em seu uso para mostrar que o famoso argumento de Einstein-Podolski-Rosen contra a alegada completude da mecânica quântica estava equivocado. Este é, segundo o autor, um dos principais golpes que deslanchou o crescente sucesso da interpretação de Copenhague e a crença de que interpretações realistas não teriam sucesso.

Einstein, desde os primórdios da teoria quântica, não escondia que estava insatisfeito com o seu caráter eminentemente probabilístico. Segundo ele, a mecânica quântica deveria ser parte de uma teoria mais completa da realidade, na qual a probabilidade representasse no máximo o grau de ignorância acerca das informações que temos disponíveis em determinado momento e não uma característica intrínseca da realidade. Sustentou esta crença até o fim de sua vida, tentando construir uma teoria de campo unificado em que os postulados quânticos se tornassem ‘casos particulares’ dos axiomas desta teoria unificada. Sua busca foi infrutífera, mas muitos dos princípios filosóficos que o motivaram despertam interesse até hoje.

O primeiro grande encontro de Einstein e Bohr e o consequente debate que daí resultou (que ficou famoso como sendo um dos maiores debates intelectuais da história), iniciou nas Conferências Solvay de 1927, na qual os grande nomes da mecânica quântica (que acabara de aparecer) discutiam seu significado e sua interpretação. Entre eles estavam Heisenberg e Born (que propunham, seguindo uma linha positivista, que a teoria era completa e não admitia extensões), e Einstein, que concordava que de Broglie estava no caminho certo ao propor uma interpretação dualista, aceitando tanto ondas quanto partículas em seu quadro conceitual, mas buscando uma interpretação mais próxima da física clássica para os fenômenos quânticos (cf. p. xi). O próprio de Broglie, no entanto, foi depois temporariamente persuadido de que sua posição não se sustentava (devido essencialmente à críticas feitas a ele neste mesmo congresso, principalmente aquelas apresentadas por Wolfgang Pauli, que era outro simpatizante das idéias de Bohr). Foi também nesse congresso que Bohr apresentou seu Princípio de Complementaridade pela segunda vez; a primeira com Einstein na platéia (Bohr já havia apresentado o seu Princípio de Complementaridade meses antes em um congresso em Como, na Itália, mas Einstein estava ausente).

Segundo Bohr, a complementaridade engloba um dos principais aspectos da nova teoria, a chave para se resolver muitas das dificuldades apresentadas por ela. Em seus vários textos tratando do assunto, diversas formulações são propostas com o objetivo de se atingir uma versão rigorosa deste princípio, aparentemente, sem muito sucesso (muitas vezes devido, como dito, à própria obscuridade da prosa de Bohr). Com efeito, Wick, em sua exposição, enfatiza a vagueza e falta de precisão desse cientista ao formular este princípio, e levanta a questão sobre como um princípio tão vagamente enunciado possa ter tido tanto sucesso e agregado tantos partidários.

A princípio, o alvo das críticas de Einstein nessas conferências são as relações de incerteza de Heisenberg. A famosa disputa com Bohr, que começava geralmente pela manhã durante o café, com Einstein propondo alguma experiência mental (as famosas Gedankenexperimente), e terminavam no final da tarde, com Bohr apontando algum equívoco ou dificuldade na experiência, entraram para a história (vale a pena enfatizar que todas as críticas ou experimentos mentais propostos por Einstein durante as conferências, no intuito de mostrar que a mecânica quântica estava errada ou era incompleta, foram respondidas ou mostradas que estavam equivocadas por Bohr, como se costuma aceitar). Posteriormente, em 1935, Einstein, com seus colegas Boris Podolski e Nathan Rosen, passou a atacar não mais o princípio de incerteza, mas a própria ideia de que a teoria realmente nos fornece uma descrição completa da realidade, entendida grosso modo como uma descrição que não admite extensões adicionais, ou seja, que captaria todos os aspectos relevantes da realidade. Seu argumento – que ficou conhecido pela sigla dos nomes de seus autores, EPR – propunha que existiam “elementos da realidade” que não eram captados pela teoria quântica e, logo, esta seria incompleta. O argumento começa com uma caracterização do que conta como um elemento da realidade (p. 70): “Se, sem perturbar o sistema de qualquer modo, podemos predizer com certeza (i.e., com probabilidade igual à unidade), o valor de uma quantidade física, então existe um elemento da realidade física correspondendo a esta quantidade física”.

Em linhas gerais, o argumento começa propondo que tomemos um sistema composto de dois subsistemas a e b que interagiram previamente, e estão localizados em laboratórios bastante afastados. O argumento começa deixando claro que a mecânica quântica, apesar de limitar nosso conhecimento de grandezas que não comutam, como posição e momento, nos permite definir a partir delas duas grandezas que podem ser medidas simultaneamente: a distância entre a e b, denotada d(a,b) = qa – qb, e a soma dos momentos de a e b, denotada s(a,b) = pa + pb. Estas duas grandezas podem ser medidas com certeza, ou seja, com probabilidade igual a 1. Com uma medição da posição qa podemos atribuir com certeza um valor para a posição de b a partir da relação qb = qa – d(a,b), sem para isso perturbar a partícula b. Além disso, podemos arranjar as coisas de modo que a soma dos momentos seja 0, e assim, atribuir um valor preciso para o momento de b.

Deste modo, b terá tanto uma posição quanto um momento bem determinado, e ambos são elementos da realidade. Isto contraria o que diz a mecânica quântica, a saber, que esta partícula estaria sujeita às limitações impostas pelas relações de incerteza e, portanto, não seria possível conhecer a sua posição e o seu momento ao mesmo tempo. Se há algo na realidade que não possui nenhum correspondente na teoria e mesmo assim é um elemento da realidade então, conclui o argumento EPR, a teoria é incompleta.

Devemos notar que, mesmo fazendo uso das relações de incerteza, este não é um argumento contra elas, mas antes contra a completude da teoria.

Bohr resolve esta dificuldade apelando para a complementaridade: medir cada uma das distintas grandezas envolveria a utilização de diferentes aparatos que são complementares (ou seja, estão numa mesma descrição teórica) e que não podem ser utilizados simultaneamente. No momento em que medimos uma das grandezas, utilizamos um aparato, e isto impede que se possa medir a outra grandeza. Assim, não faz sentido atribuir valores a posição e momento ao mesmo tempo, pois a medição de um deles exclui a medição da outra. Esta explicação sucinta, escrita no confuso estilo de Bohr, segundo Wick, deveria ter levantado suspeitas pelo menos entre os físicos (p.

72-74). Além disso, o argumento foi formulado precisamente para evitar este tipo de objeção, de modo que, segundo Wick, Bohr não acertou no alvo (“and he begged the question”, p. 75). No entanto, a maioria dos físicos não pensou assim. A história que se conta geralmente é a de que Bohr ‘derrotou’ Einstein e que mostrou assim que a interpretação de Copenhague parecia estar no rumo certo. Mas, como esta pretensa vitória pode se basear em fundamentos tão frágeis? A princípio, tratava-se de uma disputa epistemológica (p. 74), que não parecia ter nenhuma possibilidade de ser travada no campo experimental. Porém, a situação começou a mudar depois que os dois principais protagonistas do grande debate já estavam mortos.

Durante o período em que viveram Einstein e Bohr, as tentativas de se completar a mecânica quântica com novas variáveis, e assim obter uma formulação mais adequada para os gostos realistas, foram praticamente banidas por alguns teoremas proibitivos, os no-go theorems. Estes teoremas são resultados matemáticos que limitam certas versões da teoria, como, por exemplo, aquelas que admitem variáveis ocultas (que é o caso das teorias realistas). Seguindo o tom geral do livro de Wick, qual seja, de desmistificar afirmações que se sustentam principalmente no peso da autoridade de quem as propôs, grande importância é atribuída ao fato de que o primeiro destes teoremas (demonstrado por John von Neumann, em 1932), que supostamente demonstrava a impossibilidade de se ‘completar’ a mecânica quântica com variáveis ocultas, continha hipóteses demasiado restritivas.

Durante muito tempo este assunto foi considerado como tendo sido encerrado por von Neumann, baseando-se principalmente em sua autoridade como matemático. No entanto, com a percepção de que este teorema proibia somente uma classe muito limitada de teorias de variáveis ocultas (classes essas que se percebeu não valerem em um contexto quântico que interpreta fenômenos da realidade física, mas apenas em um contexto matemático abstrato), uma nova onda de interesse no assunto teve impulso.

O próximo passo nessa controvérsia foi dado por John Bell, um físico irlandês, em 1964. Bell, além de ser um dos que contribuíram para apontar o equívoco de Von Neumann, ainda derivou um conjunto de desigualdades que deveriam ser respeitadas por qualquer teoria realista local, e sugeriu que estas desigualdades poderiam ser testadas experimentalmente. Falando por alto, uma teoria é realista local se assume que um sistema físico possui valores determinados para todos os observáveis antes de efetuarmos uma medição (realismo), e se a medição em um sistema A afastado espacialmente de um sistema B não afeta B instantaneamente. Com o advento das desigualdades de Bell surgia uma possibilidade de se por à prova o cerne da disputa entre Bohr e Einstein; algo impensado talvez até mesmo para estes dois grandes físicos que ficaram sempre restritos ao campo das experiências de pensamento. A possibilidade de se realizar esses testes era a chance que se tinha de mostrar se a possibilidade vislumbrada por Einstein era ou não exeqüível. Wick discute com vagar as preparações para esses testes, detalhando os bastidores dos experimentos e como os primeiros resultados colaborativos foram alcançados. Desde que os testes começaram a ser realizados, os resultados se mostraram favoráveis à mecânica quântica (e à interpretação de Copenhagen), violando as desigualdades. Isso mostra que uma teoria realista não é possível? Não, segundo Wick. Os próprios experimentos envolvem hipóteses às quais não se prestou a devida atenção, mas que podem ser questionadas se desejamos fornecer uma interpretação realista da teoria (cf. p.135-136) e é, segundo Wick, este o caminho que devemos trilhar se quisermos obter uma teoria realista. Além disso, as dificuldades técnicas inerentes a estes experimentos não podem deixar de ser mencionadas. Fica em aberto como esta interpretação deve ser formulada, mas, pelo menos existem razões para se pensar que não estão completamente descartadas.

O livro de Wick ainda contém discussões interessantes, mesmo que breves, de alguns dos principais ‘paradoxos’ da mecânica quântica, como o efeito Zenão quântico, o gato de Schrödinger, o problema da medição, entre outros. Encontramos também uma concisa discussão acerca de algumas interpretações alternativas da mecânica quântica, como a interpretação dos muitos mundos, a lógica quântica e a probabilidade quântica. Como estas propostas não atraem Wick, são discutidas de modo resumido. Em particular, a teoria dos muitos mundos é descartada por ser difícil de aceitar, filosoficamente, que uma pluralidade de mundos que não interagem entre si existe realmente (trata-se de “ficção científica”, segundo Wick, p. 196). As lógicas quânticas, por sua vez, são abandonadas por desistirem de se entender que a validade dos argumentos deve ser independente das circunstâncias e do assunto tratado, e ainda por não prestarem a devida atenção ao aparato de medição (cf. p. 196).

Apesar de tratar de modo bastante claro e acessível vários temas já clássicos na literatura sobre os fundamentos da mecânica quântica e filosofia da física, achamos que o livro de Wick possui alguns pontos fracos. O debate entre Einstein e Bohr, por exemplo, é um tema amplamente estudado, sendo muito discutido entre filósofos da ciência. Sentimos falta, na exposição de Wick, de uma aproximação dos estudos mais recentes que estão sendo feitos sobre o assunto, tanto por especialistas em Einstein quanto em Bohr, que resgatam o debate trazendo-o a uma nova luz. A velha imagem de um Einstein derrotado, levado a trabalhar no isolamento em uma teoria unificadora, e de um Bohr triunfante, dogmático, que impunha seu ponto de vista aos físicos mais jovens que o visitavam no seu Instituto em Copenhague, já foi revista, e não é mais levada tão a sério: há bons argumentos para se mostrar que se trata, na verdade, de uma caricatura.

Assim, por exemplo, o fato de o Princípio de Complementaridade apresentarse tão vago dá margem a diversas interpretações e formulações, várias delas já explorados pelos estudiosos da filosofia de Bohr, algumas mais plausíveis no corpo de sua obra, outras nem tanto. Claro, isto não significa que o princípio em questão tenha deixado de ser controverso ou que deva ser aceito ‘por definição’, mas Wick sequer discute ou menciona o fato de que existem diversas formulações diferentes deste princípio, limitando-se simplesmente a desqualificá-lo como vago e não compreensível. A alegação de Bohr de que somente podemos comunicar resultados de experimentos com a linguagem da física clássica (idéia conhecida como Princípio da Correspondência), e de que este é um requisito para a objetividade dos mesmos, é rapidamente discutida e rejeitada por Wick sem nem ao menos relacioná-la com a complementaridade.

Do mesmo modo, no que diz respeito a Einstein e seu papel no debate, também há uma enorme literatura que surge para fazer justiça à plausibilidade de sua posição e mostrar que há uma interessante filosofia por trás dela. Wick se esquece de mencionar, por exemplo, que o próprio Einstein não ficou satisfeito com o argumento apresentado no artigo EPR (que fora escrito por Podolski) e posteriormente reformulou sua objeção, deixando claro, sem utilizar critérios de realidade e nada deste tipo, qual era seu principal ponto. Todavia, as idéias de Einstein apresentadas nesses artigos não afetaram os desenvolvimentos subseqüentes da mecânica quântica e é duvidoso que alguma vez possam fazê-lo (PAIS, 1995, p. 542). Como enfatiza Howard (HOWARD, 2010), Einstein estava interessado em argumentar a favor da separabilidade de sistemas físicos, ou seja, sistemas físicos separados espaço-temporalmente deveriam contar como sistemas distintos, como distintos indivíduos que podem ser estudados separadamente. Ele continuava trabalhando no assunto ainda depois de 1935. No entanto, ambos, Einstein e Bohr, perceberam que no centro dessas discussões estava o emaranhamento (entanglement), fenômeno que perpassa a mecânica quântica e dá a ela grande parte de seu mistério. Este ponto é pouco explorado por Wick, e renderia mais justiça ao debate conforme ele é entendido atualmente.

Outro ponto que poderia ter sido explorado com mais afinco diz respeito à própria interpretação de Copenhague. Muito se argumenta de que se trata da ortodoxia corrente e de que Bohr é o principal responsável por sua formulação e defesa (e o livro de Wick, como dito, contribui para reforçar esta imagem). Todavia, como foi enfatizado anteriormente, dificilmente encontramos uma formulação precisa do que afinal de contas consiste a interpretação de Copenhagen, de seus princípios e teses fundamentais. Em geral, além do Princípio de Complementaridade de Bohr, ainda está envolvida em sua formulação alguma forma de interpretação do postulado do colapso, na qual os resultados de uma medição passam do reino das probabilidades para um resultado efetivo, ou porque a “natureza faz uma escolha” (como defendia Dirac), ou ainda por força de um observador (como queria Heisenberg). No entanto, o próprio Bohr não aceitava essas interpretações. É claro que Bohr e os físicos que são comumente associados com a interpretação de Copenhague partilhavam de muitos pressupostos e pontos de vista, mas de modo algum podemos dizer que havia uma única interpretação de Copenhagen e que esta fosse defendida por todos aqueles que são usualmente vistos como seus aderentes. Seria interessante que este tipo de discussão fosse apresentada e que Bohr e Heisenberg, apesar de todas suas semelhanças, tivessem seus pontos de vista mais nitidamente distinguidos no que diz respeito à interpretação da mecânica quântica (ver, por exemplo, HOWARD, 2010a e as referências ali contidas).

Em resumo, pode-se dizer que se trata de um livro interessante, útil para se tomar contato com algumas das principais ‘heresias’ no campo da mecânica quântica sem entrar em detalhes técnicos. Algumas vezes, o interesse do autor em defender essas heresias e denegrir a ortodoxia acabam por prejudicar a clareza da exposição (como, por exemplo, no caso da derivação das desigualdades de Bell), principalmente quando se trata de trazer ao leitor do modo mais claro o possível a doutrina de seus adversários, soando um pouco preconceituoso em alguns pontos. Em alguns momentos do livro, as próprias heresias recebem apenas um tratamento superficial, que poderia ser mais aprofundado em um livro como este. Um exemplo desta situação diz respeito à interpretação de Bohm que, apesar de receber bastante destaque no livro, ainda assim não é apresentada com o grau de detalhes suficiente para se propiciar ao leitor uma impressão nítida daquilo que está por trás de seus principais aspectos. Estes, no entanto, são defeitos que podemos relevar, já que existem outros lugares nos quais podemos procurar este tipo de informação e haja visto que, não obstante, o resultado da leitura do livro como um todo é positivo.

Referências

BELL, J. S. “Introduction to the Hidden-variable Question”. In: BELL, J. S., Speakable and Unspeakable in Quantum Mechanics. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 29-39.

HOWARD, D. “Revisiting the Einstein-Bohr Dialogue.” Disponível em http://www.nd.edu/~dhoward1/Revisiting%20the%20Einstein- Bohr%20Dialogue.pdf _________. Who Invented the “Copenhagen Interpretation? A Study in Mythology. Disponível em http://www.nd.edu/~dhoward1/Copenhagen%20 Myth%20A.pdf Jonas Rafael Becker Arenhart – Jaison Schinaider 210 PAIS, A. “Sútil é o senhor…”: a ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

WICK, D. The infamous boundary: seven decades of heresy in quantum physics. New York: Copernicus, 1996.

Jonas Rafael Becker Arenhart – Universidade Federal da Fronteira Sul.

Jaison Schinaider – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness – NOË (D)

NOË, A. Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness. Nova York: Hill and Wang, 2010.Resenha de: HOLLANDA, Gabriel Jucá de. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

Cognitive neuroscience is the discipline that merges two influential ideas: 1) The mind is an information-processing engine that builds representations of the world and 2) The brain is the locus of all mental activity. Scientists in this field expect to obtain a comprehensive account of our cognitive capacities through the use of imaging techniques such as PET (positron emission tomography) and fMRI (functional magnetic resonance imaging). The idea is to take advantage of such resources in order to understand how the brain implements mental functions. It is thought that each cognitive ability, understood abstractly or psychologically, has a correlate in neurophysiology. Philosophers of mind tend to be especially interested in the so-called NCCs (neural correlates of consciousness) and their potential to shed light on the nature of conscious phenomena, such as sensory perception and voluntary action. Fortunately for its proponents, among whom one finds many scientifically-minded philosophers, the search for NCCs has led to testable and predictive theories of phenomena such as visual perception, and this seems to vindicate the framework within which the issues are defined and dealt with.

Philosopher Alva Noë, a professor at UC Berkeley, says the whole conception described above is, despite all its apparent success, overhyped. Indeed, he says it is overhyped to the point of being presented to audiences worldwide as a stunning novelty, when it has in fact held educated people in thrall for decades.

In his latest book, Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness, Noë claims mainstream cognitive neuroscience has not and cannot achieve its goals, for it rests on false assumptions, some of which are philosophical in nature (p. 5-7; 98-99). He argues firstly that it is misleading to see biological minds as information processors; secondly (and most importantly), that our minds are not located within our bodies, as the search for NCCs implies. Mental activity is rather a holistic process that extends to the organism’s environment. Higher animals are not intelligent due to the possession of a map that passively and intellectually represents the world. Their consciousness, like most of their mental faculties, interacts dynamically with the world. This brings us to Noë’s main point: People cannot be identified with their brains (p. 24). Brain activity can only give rise to a mind when situated in a biological and cultural context of action and skills. It is high time we gave up the idea that neurological activity per se is sufficient for consciousness, which seems to imply the absurdity of consciousness in a petri dish (p. 12).

So let us look first at the negative arguments Noë advances. Those whose sympathies lie with mainstream cognitive neuroscience might think brain scan technology gives us a clear-cut picture of cognitive activities in the brain. Not quite, says Noë. The definition of a baseline relative to which one can detect neural correlates of cognition is problematic. For starters, the brain is never at rest, and comparing the baseline with the target activity involves the assumption that there are no feedback mechanisms from the latter to the former. Given the fact that there are indeed such loops in certain brain systems, one must not jump to conclusions about brain imaging data (p. 20-22). Furthermore, brain scans cannot at present tell us how metabolic activity relates to the mental goings-on of patients in persistent vegetative state. One might think that reduced brain metabolism explains impaired mental functions in vegetative patients; astonishingly, though, “it would appear that global metabolic levels remain low even after full recovery” (p.18). The upshot is that we ought not to get carried away with alleged discoveries of NCCs by cognitive neuroscientists. It is just not about looking and observing what is going on.

Another point against the identification of conscious phenomena with NCCs has to do with neural plasticity. The view that the mind is a set of dedicated information-processing modules predicts the existence of specialized systems for each sensory modality, and is supported by the apparent discovery of an area that represents faces specifically (p. 110-117).

Nonetheless, Noë mentions (p. 53-56) experiments with ferrets where the animals’ eyes are wired up to brain structures normally used in hearing. If there were something in the visual cortex that made experiences visual, and something else in the auditory parts making experiences auditory, the ferrets would “hear with their eyes” (p. 55). But this is not the case. The ferrets see with their supposed auditory brains. This implies a malleable connection between brain structures and the qualitative character of experiences. For this reason, it is ill-advised to equate a given conscious phenomenon with activity in this or that part of the brain. The structure of the “auditory brain” is not the key here; what explains its role in the experience is its connection to a certain source of information. Moreover, it has been shown that depriving cats of sight during a given period in their infancy destroys their ability to see. Experimental data strongly suggests, then, that “sensory stimulation produces the very connectedness and function that in turn make normal consciousness possible” (p. 49). Here is a good reason for considering the possibility that the visual character of experience is determined by interaction with the environment, and not just by activity in this or that brain structure.

So how does Noë convert the insights above into a theory that actually explains the data? In a nutshell, he claims that perceptual experience happens when organisms apply their mastery of the laws of sensorimotor contingencies (p.47-65). Put another way, conscious beings have subjectivity in virtue of their use of special skills which constitute a kind of non-propositional knowledge. They can skillfully exploit certain potentialities to get information from the environment. Creatures that are capable of seeing, for example, have mastered the lawful dependence relation between their actions and visual input, a relation determined by the character of their visual apparatus. As Noë says, “how things look depends, in subtle and fine-grained ways, on what you do. Approach an object and it looms in your visual field. Now turn away: it leaves your field of view” (p. 60). Furthermore, conscious animals tacitly understand the sensorimotor contingencies determined by visible objects and attributes such as shape, color and size. The visual character of a shape, for example, is the set of all potential distortions that occur when a given object is moved relative to the subject, and vice-versa. Similarly, the sensation of color is determined by the way a surface changes the light when it moves relative to the observer or light sources.

The structure of such changes is lawful, and integrating the activities that rely on knowledge of the relevant laws in planning, reasoning and speech is experiencing color. The remaining sensory modalities are individuated by sets of laws that are unique to each of them. Consider auditory sensorimotor contingencies: eye movements or blinks make no difference to them, whereas head rotations do (when we move our heads towards a sound source, we change the amplitude of the input)1. By the same token, tactile information is not obtained from a viewpoint, and is not dependent on light sources. The relevant transformations depend on contact with the objects, that is, a particular use of our bodies.

Touching allows us to perceive an object’s shape when we have a sense of the movements “allowed by the object’s contours” (p. 61).

What is the brain’s role in all this? According to Noë, the brain is a key element in consciousness because it “coordinates our dealings with the environment” (p. 65). Without an environment to ground such dealings, though, there is no interaction and therefore no experience. Perception is like dancing with a partner; when dancing, one moves this or that way because the partner has made a given movement. Brains are analogously connected to their environment. This implies the falsity of the neuroscientific account of a brain that generates consciousness through representational activity alone.

Indeed, it is misleading to see the mind as a set of representations. The world is its own model; we do not need a map of it inside our heads because the environment is accessible to those that have the sensory motor skills described above (p. 141). This claim is supported by change blindness data.

The relevant experiments show that we fail to perceive major changes in our visual environment when not attending to the fleeting elements themselves.

Noë concludes that “it is untrue that we enjoy detailed, stable internal depictions of the external world” (p. 142). Consequently, the search for NCCs pursued by cognitive neuroscientists is futile. The target representations are simply not there! It is about time we realized that instead of neural representations doing the job on their own, “it is the world itself, all around, that fixes the character of conscious experience” (p. 142).

Unfortunately, there are some gaps in Noë’s case on Out of our heads.

Those familiar with his earlier work2 will probably notice Noë fails to mention how his view can unify a range of phenomena from blindsight to visual agnosia to color vision (although prosthetic perception and perceptual stability are mentioned). This is a rather curious omission, since discussing the phenomena above would considerably strengthen the case for a sensorimotor approach.

Further weaknesses can be found in the negative arguments against the mainstream view. It is certainly interesting to learn about the shortcomings of brain scanning techniques, but is it not premature to criticize neuroscience for not being able to see directly what is going on? Science, after all, does not necessarily depend on direct observations. Cognitive neuroscientists can complement brain imaging evidence with new predictions, and this has been done3. Another weakness on the book is Noë’s portrayal of neuroscience as a science of picture-like representations (p. 140). The mainstream view does not need mental snapshots. It can use vector coding, for example, to explain representation in a more abstract way4. Some philosophers sympathetic to the mainstream view are also aware that mental activity needs a wider environment that provides a context. Christopher Hill’s account, for example, claims that representational content is determined by interaction with the environment in an evolutionary context.5 This means he is quite ready to concede that it is impossible to have consciousness in a petri dish (there is no straightforward supervenience of mental properties on neurological goings-on), while holding a view where internal representations are key.

What is the main lesson to be drawn here? The main point in favor of Noë’s view (as expressed in Out of our heads) is its concern with problems that are internal to the relevant science, but relevant to philosophy at the same time.

Notions such as qualia and zombies have often been used in a way that is hardly constructive; it is arguably futile to look for a positive role they can play in formulating theories. Noë manages to present an intriguing alternative to the mainstream theory that is built with materials outside the box of metaphysical thought experiments, qualia and zombies. The coming battle between mainstream neuroscience and the sensorimotor approach will be a rather interesting one.

Notas

1 See A sensorimotor account of vision and visual consciousness (O’REGAN e NOË 2001), p. 941.

2 See, for example, O’REGAN & NOË, 2001.

3 DEHAENE & NACACCHE, 2001, p. 18-22.

4 CHURCHLAND 2002, p. 290-302.

5 HILL, 2009, p. 148-153.

Referências

CHURCHLAND, P. S. Brain-wise: studies in neurophilosophy. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.

DEHAENE, S. & NACCACHE, L. “Towards a cognitive science of consciousness: basic evidence and a workspace framework”. In: DEHAENE, S. The cognitive neuroscience of consciousness. Cambridge, MA: MIT Press, 2001.

HILL, C. S. Consciousness. Nova York: Cambridge University Press, 2009.

NOË, A. Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness. Nova York: Hill and Wang, 2010.

O’REGAN, K. & NOË, A. “A sensorimotor account of vision and visual consciousness”. In: Behavioral and Brain Sciences (2001) 24:5, p. 939-1031

Gabriel Jucá de Hollanda – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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Stufen des Wir Gemeinschaft als Basis personalen Handelns – SEDDONE (D)

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Wien: Ed. Peter Lang, 2011. Resenha de:  COSTA, Danilo Vaz- Curado R. M. Níveis de nós- a comunidade como base da ação pessoal. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

No livro Níveis do Nós, Guido Seddone estabelece uma intrigante pesquisa para descortinar as diversas etapas de constituição da problemática da ação centrada na prioridade da perspectiva social e não no reducionismo do eu agente, já assumindo de entrada que é o social e não a estrutura transcendental do eu a base e o pressuposto da compreensão da cognição humana e da ação1.

Para Seddone (p. 9) a proposta de um projeto que vise reconstruir os níveis ou etapas do nós fincado na comunidade como base da ação pessoal, deve primeiramente levar em consideração as já diversas tentativas levadas a cabo por autores como Hegel e a perspectiva, por ele desenvolvida, do “eu que é um nós e do nós que é um eu” (Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist), Heidegger e seu “nós despedaçado” (das zerbrochene Wir), assim como filósofos contemporâneos tais como Robert Brandom e sua postura do “Dizer Nós” (das Wir sagen), Sellars, Searle, Tomasello e Tuomela e suas distintas perspectivas acerca da função normativa do nós, como a “intencionalidade do nós” (Wir-Intentionalität), a “autoridade do nós” (Autorität des Wir), entre outras.

Em última instância a introdução da obra nos lega a tese de que a proposta de Sedonne é a afirmação de que a natureza social do homem e da irredutibilidade da ação social tem de ser respondida em consonância com a pergunta, de corte kantiano, sobre o que é o homem? No seio da tentativa reconstrutiva proposta por Guido Seddone o leitor deve estar atento para assumir a importante advertência de Sedonne que tanto a ação social como a pergunta pelo homem, não resultam de uma justaposição mecânica ou de tipo numérico-quantitativo, pois, para o autor2, o indivíduo deve tanto ser considerado no contexto das relações interpessoais, como é preciso reconhecer que há uma autoridade do social na qual o eu se determina.

Nesta perspectiva, o Nós não é reduzido a uma mera soma de indivíduos ou ao grupo no qual um agente se insere, mas sim é algo do qual o eu não pode fugir totalmente. Claro que uma tese tal como a defendida no presente livro que se resenha tem de deparar-se com a crítica das teorias mentalistas e a perspectiva cartesiana e se colocar para além delas no nível de uma base prática capaz de relacionar cognição, linguagem e conhecimento3.

Para a consecução do seu desiderato, Sedonne divide sua obra em uma introdução e 04 (quatro) capítulos respectivamente intitulados, numa tradução livre, de: 1. Linguagem, contexto e intersubjetividade; 2. Hegel e a filosofia do nós; 3. A Ação do Nós no agente já formado; e 4. Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

Seguiremos a tessitura da obra de modo a buscar apresentar as linhas gerais que guiam os capítulos oportunizando ao leitor o percurso descritivo e reflexivo desenvolvido pelo autor.

1 – Linguagem, contexto e intersubjetividade

No primeiro capítulo4, Seddone busca demonstrar as bases para como uma Filosofia do nós pode tornar-se capaz de conquistar as competências cognitivas e lingüísticas hábeis aos contextos intersubjetivos. Neste intento, o primeiro ponto a ser superado é a tendência moderna de constituição do mental que ancora numa perspectiva individualista.

A proposta é mostrar os índices já presentes na contemporaneidade que apontam para a superação tanto do individualismo cognitivo como o que lhe é pressuposto, o individualismo metodológico.

Para a reconstrução e crítica da perspectiva metodológica e cognitiva centrado no indivíduo o autor remonta do empirismo lógico até o segundo Wittgenstein, apoiando-se na virada lingüística como prenúncio de que as competências lingüísticas esgotam uma ancoragem da compreensão do mental desde uma perspectiva individual.

Na continuidade do primeiro capítulo o autor serve-se das contribuições de Richard Rorty, especialmente as desenvolvidas em Filosofia e o espelho da natureza, e Robert Brandom, em seu monumental, Making it Explicit, para alicerçar sua tese da prioridade do Nós sobre o eu e a inconsistência5 de uma teoria do mental ancorada na perspectiva metodológica do eu.

2 – Hegel e a filosofia do nós

No segundo capítulo intitulado Hegel e a filosofia do nós (Hegel und die Philosophie des Wir)6, toda a problemática de apresentação da filosofia hegeliana7, enquanto percussora da socialidade como base das competências explicitadoras da ação, assenta-se na perspectiva de tomar o sujeito como estando sempre referido em relações reciprocamente universais, logo, intersubjetivas.

Um tal ponto de partida implica assumir que o nós é a atividade da unidade intencional do indivíduo no seio mesmo dos seus contextos de efetivação e em tensão com a tradição, formas de vida e a práxis.

Seddone (p. 45) em defesa de sua tese de uma socialidade do nós afirma que a proposição especulativa de Hegel é a retomada e desenvolvimento do juízo reflexivo kantiano e que esta assunção de Kant por Hegel é a base da compreensão de sua tese acerca do Espírito (Geist).

O eu como Espírito8 é a tese forte de partida de Seddone neste capítulo. Segundo o autor, a constituição do espírito dá-se na irredutibilidade do movimento histórico do Selbst, da relação entre pluralidade e unidade, eu e nós, e que sem a experiência da pluralidade o eu não pode se constituir.

O projeto da Fenomenologia do Espírito de assumir a totalidade das configurações históricas como médium capaz de explicitação do eu sempre em contextos práticos de interação suprassubjetivos é segundo Seddone9 a afirmação de que o eu apenas pode se reconhecer enquanto tal como parte do todo, em outros termos, para Seddone, Hegel afirma a irredutibilidade do eu a processos monológicos de constituição.

Para a explicitação da irredutibilidade do Selbst a processos de constituição monológica, Seddone (p. 55 e segs) desenvolve em toda a sua potencialidade a teoria do reconhecimento presente na Fenomenologia hegeliana e a amplia à Filosofia do Direito, colocando-se como problema central o processo de estranhamento (Entfremdung) e sua relação com a reconciliação (Versöhnung).

Neste percurso emerge a tese central da filosofia hegeliana do eu que é um nós e do nós que é um eu, em outros termos e na perspectiva da reconciliação, tal como desenvolvida por Hegel de que o eu apenas pode reconhecer-se como parte do Todo.

Neste contexto de interpretação, a filosofia hegeliana desenvolve a exposição do desenvolvimento da subjetividade no seio mesmo da pergunta pelo Nós, colocando assim as condições reais de tematização da intersubjetividade10 como pré-condição da subjetividade, da anterioridade do Nós sobre o Eu.

Na perspectiva aqui desenvolvida, Hegel já desenvolve as bases do que se pode designar pela comunidade da ação enquanto base para explicitação do sujeito cognoscente.

E é desde esta perspectiva hegeliana da compreensão especulativa da relação entre o eu e o nós, o indivíduo e a comunidade, capaz de esclarecer os pressupostos que orientam lógicas institucionais nas quais o sujeito é coerentemente compreendido à luz de uma identidade autônoma, mas não dualista ou solipsista, que Hegel se coloca como fonte perene na reflexão de Seddone11.

3A ação do Nós no agente já formado

O núcleo duro do capítulo concentra-se na tese de Robert Brandom, tal como exposta no primeiro capítulo de Making it Explicit e que pode se resumir na expressão Saying We, na tradução do autor para o alemão Das Wir-Sagen, que em português optamos por traduzir em o Dizer o Nós, que se caracteriza por demarcar o ato especificamente humano de expressão afirmativa do eu não na perspectiva da afirmação do mental por oposição ao não-mental, mas da primalidade do nexo comunitário como fonte das enunciações que explicitam o eu.

Afirmar e Dizer o nós implica delimitar o especificamente humano daquilo que não é humano, por uma distinção de primeira pessoa que tem por nota específica as várias comunidades nas quais os agentes são reciprocamente não delimitados pela individualidade epistemologicamente deslocada.

Este modo de compreensão assentado na primeira pessoa do plural, o nós, permite a conjugação dos aspectos pragmáticos12 e semânticos, pois as ações devem ser tomadas tanto como práticas sociais, assim como enquanto práticas lingüísticas.

A força da tese de Seddone é que ele prioriza um discurso centrado na primeira pessoa, todavia, a do plural como condição de expressão daquela do singular, por oposição a grande parte da tradição filosófica que partindo da primeira pessoa do singular atingia a primeira pessoa do plural.

O nexo desta relação se condensa na perspectiva de que o pragmatismo se interessa pelas regras que se estruturam no seio mesmo das práticas comunitárias e o aspecto semântico se foca no potencial normativo dos conceitos em explicitar estas mesmas práticas no jogo mesmo de dar e pedir razões.

Esta união entre pragmatismo e semântica autoriza no seio das práticas comunitárias a que cada membro seja obrigado a justificar as suas reivindicações e as suas ações, as quais por sua vez, determinam a natureza do pensamento, cuja validade se faz verificar no espaço da práxis intersubjetiva13.

Seddone neste capítulo esforça-se e com êxito na empreitada de exprimir a novidade do Wir-Sagen que é a articulação da pragmática normativa, da semântica inferencial e dos empenhos discursivos, momentos os quais são centrais para a compreensão do projeto de Brandom em Making it Explicit de  um Saying We, onde o Dizer o Nós rompe a barreira do prescritivo, inaugurando uma tensão na qual um estado intencional se identifica com um normativo, ou seja, o propósito se expressa na e mediante a ação.

No conjunto da filosofia de Brandom, Seddone acentua um aspecto importante e que lhe é fundamental na sua tese da delimitação das etapas do nós, que é a conclusão de que não é de uma propriedade natural do pensamento, uma espécie de a priori, que permite as normas explicitarem o sentido da ação, mas é do próprio caráter institucional da práxis14.

Importa ainda o acentuar que esta ideia não é um privilégio de Brandom mas a retomada de uma antiga tematização de Sellars em Empirismo e filosofia da mente no seio de uma perspectiva intersubjetiva do pensamento.

A proposta de Sedonne15 assume que o nós tal como desenvolvido no texto implica que os membros estejam reciprocamente obrigados a realizarem determinadas ações para atingir certos fins e determinados objetivos.

Uma tal obrigação ou dever posto pela perspectiva da primeira pessoa do plural – o nós – não resulta de um acordo ou união, mas do reconhecimento a autoridade dos grupos e da comunidade sobre a perspectiva particular.

O grupo e ou a comunidade é a modo através do qual e mediante a cooperação dos membros, as tarefas, deveres e direitos são institucionalizados, onde a prioridade do nós demarca o campo do eu.

Seddone assume o ponto de vista de que sempre os indivíduos estão em perspectiva relacional, sejam dos indivíduos entre si, sejam de suas intenções ou mesmo de seus usos. Tal ponto de vista já pode ser visualizado em Wittgenstein, mas é através de Raimo Tuomela que tal tese ganha força e é através dele que Seddone se nutre.

Em Raimo Tuomela16 ocorre uma extensão da tese de Sellars acerca da prioridade da comunidade sobre o indivíduo que ancorava na perspectiva da linguagem e agora se amplifica no sentido de que também as intenções são co-participadas antes de serem capazes de explicitação.

A posição do Wir-Sagen não se estrutura na perspectiva de um modo de dizer o nós que tem por substrato um sujeito ontológico, mas um sujeito intencional17. Ao modo de uma simples atitude que pode descrever os sujeitos particulares, mas não pode esclarecer de que modo o Nós é constitutiva para o eu18.

E é tal limitação da perspectiva do We-intentionality que incita a Guido Sedonne à passagem ao próximo capítulo da obra, através de uma reconstrução ontológica do nós19.

4 – Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

O presente capítulo inicia com a pergunta pela originariedade do nós e de sua natureza pré-reflexiva. E para tanto, Sedonne aduz que a harmonia não é a condição nem necessária, nem suficiente para uma análise do nós. Se o nós é tratado como a estrutura profunda da ação, por exemplo, como unidade original e intencionalmente constitutiva, é necessário, compreender a complexidade da ação partilhada.

Para se atingir a compreensão de uma estrutura pré-reflexiva do nós Sedonne aglutina à sua pesquisa a postura fenomenológica heideggeriana de Ser e Tempo ancorada no Miteinanderseins, ou, ser-com-o-outro.

O ingresso do Miteinanderseins se dá na medida em que tal conceito é pré-flexivo, pois não se configura nem como uma autorreferência cognitiva e, nem tampouco reflexiva, além de não ser ou estar desde já pré-determinada.

Interessante é que no intento de delimitar a estrutura profunda do nós, Seddone após se utilizar do conceito fenomenológico do Miteinanderseins de Heidegger, retoma a pesquisa de Hegel e se pergunta pelos conteúdos práticos e a problema da formação em Hegel .

O pensador idealista alemão é retomado, pois, para Seddone, é deveras importante a posição assumida por Hegel de que a verdade repousa no todo. Tal asserção é interpretada por ele no contexto de que toda a filosofia hegeliana é um projeto de explicação da multiplicidade dos fenômenos assumindo que a compreensão do todo (Das Ganze) é o único modo da compreensão da parte.

Tal postura repropõe a questão da normatividade fazendo a mesma sair da perspectiva kantiana de uma espontaneidade da razão, deslocando-se para o reconhecimento do jogo de dar e pedir razões, lingüístico, intencional e por isto social.

De Hegel à Wittgenstein, eis o percurso que Seddone constitui. Tal mudança de rumo se põe na medida mesmo em que Wittgenstein permite reconstruir a comunidade a partir dos jogos de linguagem e numa perspectiva prática e intersubjetivista.

Com Wittgenstein, Seddone transita de uma perspectiva meramente semântica, na qual o sujeito e sua interação com a linguagem se davam desde a perspectiva de um sujeito observado que era capaz de descrever o mundo, para uma outra, na qual o sujeito é parte dos jogos lingüísticos, que o mesmo já os encontrou operante por trabalho da tradição, e na qual o indivíduo enquanto membro é obrigado a interagir como sujeito que dá e pede razões, responsabilizando-se, gerando compromissos e assumindo responsabilidades.

Para Seddone, após as contribuições de Heidegger20, Hegel21 e Wittgenstein22 é fácil concluir que é a ontologia social o último nível de uma filosofia do Nós. Poder dizer e saber como membro de uma comunidade, ou “a pertença a um Nós é, por conseguinte o resultado de fenômenos complexos que não podem ser explicados pela mera aplicação do princípio da concordância e pelas teorias da promessa ou das obrigações”23.

A ontologia social como último nível do nós se pauta, para Seddone, ante o fato de que esta capacidade que nós temos de designar a Wir- Intentionalität realiza-se como pertença ontológica a determinadas formas da práxis que constituem a matriz de nossas razões subjacentes, por exemplo, de nossa exposição enquanto ser-com-os-outros24.

À guisa de conclusão

O livro de Guido Seddone coloca-se numa perspectiva inovadora e extremamente ousada, pois tem como alvo de sua pesquisa a busca das capacidades humanas para a compreensão da ação desde a perspectiva da anterioridade de uma pertença centrada no nós.

O nós enquanto estrutura profunda da práxis demonstra, na obra de Seddone, que a experiência, a eticidade e a relação cognitiva são coisas que não se reduzem a perspectivas ou padrões conceituais ancorados em noções individualísticas, pois o indivíduo apenas o é por lhe ser antes dado desde formas de ações comunitárias, intencionais e práticas.

A obra que se resenha com certeza se colocará ao lado dos textos obrigatórios para a compreensão da ação humana em contextos complexos.

Notas

1 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original “Diese Arbeit versucht, das Soziale als Voraussetzung der menschlichen Kognition und daher allen Handelns zu erläutern”.

2 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 10. “Dieser Arbeit verteidigt nicht nur de Idee, dass das Individuum im Kontext seiner zwischenmenschlichen Umgebung zu betrachten ist, sondern auch jene, dass es einer primitive Autorität des Sozialen gibt, durch dia das Ich bestimmt wird. In dieser Weise ist das Wir keine blosse Summe von Individuen und auch nicht die Gruppe der Mitmenschen zusammen mit mir, sondern es ist eher etwas, dem sich das Ich nicht völlig entziehen kann”.

3 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. “Eine solche Rekonstruktion erfordert, über die typischen individualistischen Aspekte der Theorien des Mentalen Hinauszugehen. Der cartesianische Ansatz versucht, die Erfahrung auf angeborene und individuelle Fähigkeiten zurück zu beziehen. Aber damit vernachlässigt er, dass sich Kognition, Sprache und Erkenntnis auf eine praktische Basis stützen.”

4 SPRACHE, Kontext und Intersubjektivität, p. 21-42.

5 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original: “Eine Philosophie des Wir erkennt hingegen, dass der Erwerb kognitiver und sprachlicher Fähigkeiten nur durch die Teilnahme an praktischen und intersubjektiven Kontexten möglich ist. Deswegen ist die Idee, dass der mensch angeborene kognitive Fähigkeiten besitz, durch eine Revision der individualistischen Auffassungen der Kognition zu überwinden”.

6 O capítulo estende-se da página 43 até a página 82.

7 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “In unserem Projekt einer Philosophie des Wir spielt die Philosophie Hegels eine wichtige Rolle, da er die Vernunft und das Normative als Tatsachen erklärt, die auf Interaktion basieren”.

8 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “Er beschreibt daher die Auseinendersetzung unter Subjekten, deren Verhältnisse eine Wir-Struktur der Erfahrung und des Handelns darstellen”.

9 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46, defende esta tese através de todo o subcapítulo “Fenomenologia do Espírito e a formação prática do Conceito através da interação” (Phänomenologie des Geistes und die praktische Bildung des Begriffs durch die Interaktion).

10 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 80: “Hegels Philosophie im Rahmen der Frage nach dem Wir stellt eine interessante Analyse der Entwicklung der Subjektivität in Richtung der Intersubjektivität durch den Erwerb sowohl der Sitten als auch der Pflichten dar”.

11 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 81: “Dennoch bleibt Hegel für unser Thema zentral, da sein spekulativer Ansatz zum Verhältnis zwischen Ich und Wir bzw. Individuum und Gemeinschaft vieles über die Logik der Gruppen erklärt und weil er als Erster dem allgemeinen Willen eine kohärente und selbständige Identität gibt”.

12 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Für eine Philosophie des Wir ist daher die Idee der Pragmatisten wichtig, nach der die Wahrheit eine gerechfertige Überzeugung und due Rechtfertigung nur in einer öffentlichen und normativen Dimension möglich sei”.

13 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Jedes mitglied ist verpflichtet, seine Behauptungen und seine Handlungen zu rechtfertigen, und dies wiederum bestimmt die Natur des Denkes, dessen Gültigkeit im Bereich der intersubjetiven Praxen überprüft wird”.

14 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Die Normen bekommen ihren Status nicht von einer natürlichen Eigenschaft des Überlegens, sondern vom institutionellen Charakter der Praxen, welche seitens der Teilnehmer bestimmte Pflichten forden”.

15 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 101: “Im Wir-Modus sind die Mitglieder gegenseitig verpflichtet, bestimmte Handlungen auszuführen und bestimmte Ziele zu erreichen. Diese Verpflichtung ist nicht das Ergebnis einer Vereinbarung, sondern der Anerkennung der Autorität, die Gruppe gegenüber den Einzeln ausübt”.

16 Sedonne cita abundantemente Raimo Tuomela, The philosophy of sociality, 2002.

17 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Es ist eher ein intentionales und nicht ontologisches Subjekt, das durch den Wir-Modus entsteht”.

18 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Aber der Wir-Modus, der eine Blosses Haltung ist, die den einzelnen Subjekten zugeschrieben werden kann, kann nicht erklären, auf welche Weise das Wir konstitutiv gegenüber dem Ich ist”.

19 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 106: “Deswegen erfordert das Wir eine ontologische Rekonstruktion, die das Thema des nächsten und letzten Kapitels ist”.

20 Com estrutura pré-reflexiva do Miteinanderseins e sua teoria das formas de vida contra a perspectiva solipsista.

21 E sua tese da verdade como o todo e a prioridade da reciprocidade do social sobre o individual.

22 E os avanços postos pelas perspectivas do pragmatismo lógico do seguir um regra, da reconstrução da comunidade e do significado de regra.

23 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 148: “Die Zugehörigkeit zu einem Wir ist folglich das Ergebnis von komplexen Phänomenen, welche nicht durch die blosse Anwendung des Prinzips des Einklangs und in den Theorien des Versprechens oder der Verpflichtung erläutert werden können”.

24 Cf. SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 149.

Referências

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main: Ed. Peter Lang, 2011. (Philosophie und Geschichte der Wissenschaften – Studien und Quellen)

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – Universidade Católica de Pernambuco

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Seguir regras. Uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgenstein – DALL’AGNO (D)

DALL’AGNOL, D. Seguir regras. Uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Pelotas: Ed. UFPel, 2011. Resenha de: FILHO, Eduardo Ferreira das Neves. Dall’agnol sobre Wittgenstein e seguir regras. Dissertatio, Pelotas, v.34, 2011.

No Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein adverte que os pensamentos ali expressos possivelmente só sejam entendidos por quem é capaz de pensar por si próprio. Ao mesmo tempo, destaca que as verdades dos respectivos pensamentos são irretocáveis e definitivas, pois resolvem os problemas filosóficos e mostram, ao bom entendedor, que em verdade não é importante resolvê-los. Essas ideias associadas à força perlocucionária do discurso tractariano anunciam um término à Filosofia (a um modo de fazer Filosofia, o que não deixa de ser o caso, em certo sentido), e criam a ilusão de que pouco se tem a fazer depois de Wittgenstein, podendo suscitar certo quietismo filosófico.

É interessante notar que parte dos leitores de Wittgenstein mantém postura quietista mesmo diante da insuficiência das ideias contidas no Tractatus, insuficiência essa reconhecida pelo próprio Wittgenstein, o que o levou a mudar pela segunda vez os rumos da filosofia contemporânea com a organização das Investigações Filosóficas, publicadas postumamente. Manterse em uma perspectiva quietista é, como eu gostaria de colocar a questão, discutir Wittgenstein, seja de que período e respectivo pensamento for, descrevendo os pensamentos desse autor, nada mais, nada menos, em um trabalho de exegese, ou seja, descrever aquilo que parece definitivo, e que pode, no máximo, necessitar de clareamento e organização.

Darlei Dall’Agnol, em seu livro Seguir Regras: Uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgenstein, recentemente publicado na Coleção Dissertatio de Filosofia, (Pelotas, 2011), nos apresenta uma coletânea de doze  trabalhos que publicou anteriormente. Neles desafia o tipo de quietismo filosófico que destaquei discutindo e esclarecendo bem questões importantes do pensamento de Wittgenstein (algumas vezes buscando pontos de partida às ideias wittgensteinianas, ainda que possamos criticar algumas interpretações que realizou, como é natural), pensando e escrevendo bem com, mas sobretudo a partir de Wittgenstein, servindo-se das reflexões deste filósofo para esclarecer e tentar resolver alguns problemas filosóficos recorrentes, na maior parte dos casos no campo da filosofia moral.

Aquele que se fixar em demasia no título poderá supor que o livro de Dall’Agnol se constitui em um manual, um esclarecimento inicial das Investigações pela via de um problema central que é sempre referido pela fortuna crítica: seguir regras. Não é o caso de que o livro seja introdutório.

No livro, o leitor não encontrará primeiros passos para compreender pensamentos de Wittgenstein. As reflexões de Dall’Agnol têm sentido diferente: elas remontam percursos intelectuais decorrentes de uma série de pesquisas que desenvolveu sobre Wittgenstein e que foram reorganizadas (como chama a atenção na Apresentação do livro) para que os trabalhos (já publicados) pudessem ser reunidos em formato de livro. Em todos os capítulos do livro Dall’Agnol revela seu modo de fazer filosofia: trabalhar com ‘problemas’, e não somente escrever sobre História da Filosofia.

Podemos suspeitar que haja certa dissonância entre o título do livro e o conteúdo de alguns dos capítulos. No entanto, em uma reflexão que realiza com Wittgenstein, tácita ou expressamente o pano de fundo argumentativo de Dall’Agnol (em todos os capítulos) se desenvolve sobre a convicção de que a linguagem é uma atividade guiada por regras, regras gramaticais no sentido profundo (o que não cabe esclarecer aqui), e essa é certamente uma característica marcante em todos os pensamentos do filósofo vienense bem registrados por Dall’Agnol para seus próprios propósitos de pesquisa em filosofia prática, de modo geral, e particular no campo ética.

Tomada desse modo a ‘arquitetura’ do livro, isto é, tendo como pano de fundo a questão de seguir regras (então por ora resolvida a questão do título), seria compreensível que o subtítulo indicasse ser o livro ‘uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgentein, ainda que uma introdução sui generis, isto é, como resultado do percurso intelectual ‘wittgensteiniano’ de Dall’Agnol e suas observações sobre seguir regras. No entanto, alguns capítulos não tratam diretamente das Investigações Filosóficas, mas estão relacionados ao Tractatus ou a outras obras de Wittgenstein posteriores às Investigações, por exemplo, ao Da Certeza, utilizado por Dall’Agnol para tentar dissolver o Paradoxo de Moore, dissolução que pretendo comentar adiante. Por que, então, um subtítulo que nos fala de uma introdução às ‘Investigações’ tão somente, visto que o problema de seguir regras tem eco na filosofia wittgensteiniana de modo geral? Dall’Agnol, na Apresentação, diz que o livro presta uma homenagem aos 60 anos de falecimento de Wittgenstein, e pretende fazê-lo discutindo temas de sua filosofia tardia, particularmente temas das Investigações Filosóficas. Isoladamente, essa afirmação não é elucidativa para se compreender o subtítulo, nem tampouco as razões para o compêndio, as quais são elencadas por Dall’Agnol logo a seguir.

Porém, adiante, no primeiro e segundo capítulos, por exemplo, Dall’Agnol mostra-se atento à discussão de como se deve compreender a filosofia de Wittgenstein: ou sustentando-se interpretações que separam realmente “dois” Wittgenstein, o do Tractatus e o das Investigações, ou se devese dar crédito (e a essa posição Dall’Agnol parece estar filiado) àqueles que sustentam ser o conjunto da obra de Wittgenstein uma continuidade. A questão não é rejeitar a existência de diferentes etapas no pensamento de Wittgenstein (inclusive, como se especula recentemente, há quem sustente a hipótese da existência de um ‘terceiro’ Wittgenstein, identificado nas anotações dos últimos anos de sua vida, particularmente no Da Certeza), mas sustentar que existem fios condutores que estão presentes em todo o percurso intelectual deste autor. Ao mesmo tempo em que identifica essa característica do pensamento wittgensteiniano, as próprias pesquisas de Dall’Agnol (as que estão contidas no livro) se apresentam como uma continuidade, como é observado no final do livro com a tese do cognitivismo prático (construído a partir da assunção do saber-como, importante para o Wittgenstein das Investigações).

Apesar de reconhecer, como fiz acima, que existe certa unidade no livro de Dall’Agnol construída sobre o leitmotiv seguir regras, acredito que seria improdutivo que eu tentasse encontrar uma (s) característica (s) marcante (s) das reflexões de Dall’Agnol que me permitissem dizer o ‘quanto’ ele defende posições genuinamente wittgensteinianas, ou mesmo o contrário.

Isto por vários motivos, entre eles pelo fato de que, como já me ative a dizer anteriormente, Dall’Agnol não tem postura filosófica quietista, pôde pensar com e a partir de Wittgenstein; por não ser natural pensar que exista uma ‘escola wittgensteiniana’ (e o próprio Wittgenstein tinha ojeriza a ter seguidores, como se comenta); e o que é evidente: pelas várias ideias discutidas que, apesar de envolverem o aspecto de seguir regras, são desenvolvidas em diferentes direções, o que necessitaria, por si só, de um exame de doze capítulos de certo modo independentes. Por isso, escolho dois capítulos apenas para apresentar ao leitor. Em ambos Dall’Agnol defende perspectivas originalíssimas. Uma delas me interessa em particular1.

Para Dall’Agnol, o tema que está entre os “principais pontos de continuidade no pensamento de Wittgenstein” (p. 12) é o sentido ético das obras de Wittgenstein. Assim, os capítulos em que se discute o Tractatus, particularmente o primeiro – “Sobre aquilo de que não se pode dizer, deve-se falar”-, servem como pontos de partida para sedimentar essa percepção sobre a obra de Wittgenstein.

No primeiro capítulo, Dall’Agnol pretende esclarecer alguns malentendidos correntes em interpretações do Tractatus, particularmente no que diz respeito à introdução do sentido completo da obra por meio de certa ‘lei ética’ encontrada em seu Prefácio: “o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. No capítulo resume reflexões que realizou e estão publicadas em seu livro “Ética e Linguagem”(nas edições de (1993; 1995 e 2005), bem como foram apresentadas em comunicação no vigésimo sétimo Simpósio Internacional sobre Wittgenstein (2004), com o título “What we cannot say, we can and must speak about”.

Levantando a pergunta “sobre o que se deve calar?” (realmente), tenta desfazer o seguinte paradoxo: normalmente a resposta a essa pergunta parece contraditória, visto que o próprio Wittgenstein em TLP 6.421 destaca que as proposições da ética não podem ser colocadas em palavras, mais ainda em TLP 7, onde nos diz que ‘Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. Ou seja, o Tractatus parece ter sentido ético, se tomamos como ponto de partida a ‘lei ética’ contida no Prefácio; e, parece haver uma lei ‘ética’, ao final, que rejeita a própria ética ou o próprio sentido ético da obra, aparentemente destacado no Prefácio. Deste modo, haveria, além de um paradoxo, uma contradição eminente na obra. Como essa tensão pretende ser resolvida, para Dall ‘Agnol? Retomando a distinção wittgensteiniana entre dizer e mostrar, Dall’Agnol ressalta que os limites daquilo que se pode dizer, de acordo com o Wittgenstein do Tractatus, com sentido, é dado pelo que se pode figurar; todas as sentenças que não podem ser figuradas, não serão nem verdadeiras, nem falsas, não corresponderão a nenhum estado de coisas possível. Quando se tenta dizer alguma coisa sem obedecer a ‘lei’ da representação linguística, constrói-se pseudoproposições. É o caso das proposições da ética, que só podem, a seu turno, ser mostradas e não podem ser ditas. Mas, podemos falar de proposições morais? Sim, é o que sustenta Dall’Agnol. Baseado na distinção entre dizer e mostrar, Dall’Agnol sugere uma distinção entre dizer e falar: Algo é ‘dito’ quando representa um estado de coisas possível, de acordo com a regra da figuração; algo é falado quando expressa alguma coisa sem cumprir as condições de sentido, ainda que construindo pseudoproposições. E justamente a proibição de falar sobre proposições dessa natureza, como proposições que dizemos morais, não cabe aqui. Elas não podem ser ditas, se dizer é compreendido com pretensões figurativas, mas podem ser faladas, pois pertencem, como Dall’Agnol sustenta, ao domínio do místico, a esfera das coisas que não dizem que o mundo é, mas que ele existe. Podemos, pois, falar do sentido da vida, mesmo que o sentido da vida não se constitua em um fato, não esteja sub judice das condições de verdade aplicadas às proposições empíricas.

O contraste apontado por Dall’Agnol entre juízos morais e éticos é elucidativo. Ambos não são genuínas proposições, não podem ser verdadeiros nem falsos, mas os primeiros são sem sentido, enquanto que os segundos contrasensos, pois tentam dizer aquilo que só pode ser mostrado, carregando uma pretensão, como destaca Dall’Agnol, metafísica. O ‘calar-se’ proposto por Wittgenstein requer, como compreende o autor do livro Seguir Regras, ser distinguido segundo suas pretensões de verdade: deve-se calar quando não se pode dizer, quando se tem pretensões cientificistas sobre as questões de natureza moral; se não há pretensão de verdade e fundamentação da moral, pode-se falar, e nos mantemos no domínio das expressões comuns da moralidade humana2. A implicação da análise faz Dall’Agnol sustentar a tese de que o Wittgenstein do Tractatus, assim, sustenta uma epistemologia moral não-cognitivista.

Conclui Dall’Agnol que o paradoxo apontado acima é só aparente. A tese 7 do Tractatus refere-se a uma proibição às filosofias da moral, não à moralidade cotidiana e seus ‘problemas’. Também a aparente contradição é dissipada, visto que Wittgenstein não parece abolir a moralidade, mas tenta limitar o discurso cientificista sobre a moral, realizado em teorias éticas.

Assim, o silêncio tractariano diz respeito a um calar-se em sentido lógico filosófico sobre questões que envolvem a moralidade; não é um calar-se em sentido trivial, devemos falar sobre muitas questões morais, denunciando calúnias, malfeitos de toda a natureza, sob a pena de, caso contrário, assumirmos um silêncio imoral3.

Mas, nem toda a análise de Dall’Agnol sobre seguir regras tem (aparentemente) repercussões imediatas sobre o campo da moral. No décimo primeiro capítulo do livro, propõe-se a esclarecer as regras de uso dos verbos epistêmicos crer e saber, com isso, oferecendo uma dissolução ao Paradoxo de Moore (PM). O que tem de ser explicado é o que há de absurdo em pensamentos e asserções de sentenças tais como a) ‘Está chovendo, mas não creio’ ou b) ‘Está chovendo, mas creio que não está’, cuja diferença lógica é ressaltada pela fortuna crítica, inclusive oferecendo-se, em muitos casos, explicações ou soluções diferentes para cada caso. Também, alguns autores tentam explicar por que esse ‘paradoxo’ acontece apenas qiando o verbo crer é conjugado na primeira pessoa do presente do indicativo, e não acontece quando o crer é conjugado em terceira pessoa, no passado ou no futuro.

Dall’Agnol, em sua análise, não discute esse ponto em particular, mas se concentra sobre a ‘absurdidade’ das sentenças Moore-paradoxais4.

Após sintetizar outras tentativas wittgensteinianas de dissolução do PM, a primeira observação importante para compreendermos como Dall’Agnol constrói a argumentação que leva à sua dissolução do PM é a de que o verbo ‘saber’ teria semelhanças de família, em Wittgenstein, com compreender, entender, cujo uso possível faria com que o austríaco não rejeitasse a definição tradicional de conhecimento para determinado jogo de linguagem (do conhecimento, desse modo compreendendo a importância dessa ‘definição’ em um dado contexto): ter conhecimento é ter crença, verdadeira e justificada5.

Wittgenstein, em seus últimos escritos, publicados após a sua morte com o título de Da Certeza, exatamente no parágrafo 177 afirma que “aquilo que sei, acredito” (WIIGENSTEIN, Da Certeza, s/d, Lisboa: Edições 70, p. 61). Para Dall’Agnol, essa frase mostra que Wittgenstein estava preocupado em estabelecer as regras desse uso particular do verbo saber, indicando a correta aplicação, em consequência, do verbo crer.

Sentenças Moore-paradoxais seriam absurdas, pois, se “Saber=df acreditar e ter evidências adequadas que justifiquem a crença; crer=df ter a pré-disposição de aceitar a verdade de uma proposição mesmo sem evidências suficientes” (p.165), então o primeiro conjunto seria a manifestação de que ‘sei que p’, e, no segundo conjunto, nego ter o conhecimento de p, pois nego a crença em p (no caso de 1), ou afirmo a crença no contrário (no caso de 2). Seria correto asserir, por exemplo, ‘Creio que está chovendo, embora não o saiba’, mas não ‘Sei que está chovendo, mas não creio’. Ou seja, tanto no caso de 1, como no caso de 2, não cumpri corretamente o uso dos verbos crer e saber; assim, “o Absurdo de Moore é simplesmente um mau uso de verbos epistêmicos” (p. 165).

Ora, a dificuldade maior na tentativa de dissolução ao PM oferecida por Dall’Agnol é justamente ter de mostrar que sempre, em uma asserção de sentença Moore-paradoxal, na primeira metade da conjunção há uma alegação de algo forte como conhecimento, ou seja, sempre ao asserir p alguém está asserindo ‘eu sei que p’, ainda que o contexto seja apropriado para uma pessoa (pretender) sustentar conhecimento, no sentido tradicional do termo. Sem esse passo, fica permitido imaginar uma série de situações em que as pessoas não alegam ‘saber’ uma dada proposição, mas apenas possuem crença sobre ela, ainda não têm condições de assegurar o conhecimento de p, apesar de sua asserção ocorrer, como já disse, em um cenário ‘epistêmico’. E, se esse for o caso, então voltamos ao princípio: ter de explicar a razão da absurdidade de asserções de sentenças Moore-paradoxais6. Em uma situação dessas, na ausência de condições para assegurar ‘conhecimento’ sobre uma dada proposição, ainda que o quisesse, a pessoa descumpriu alguma regra, isso é correto dizer, mas será importante dizer qual regra efetivamente ela descumpriu (então, algo mais sobre a lógica da asserção deve ser trazido ao debate).

Caso seja verdade que possamos construir cenários nos quais o PM se dissipa mediante diferentes recursos, por exemplo, em certas asserções que parecem ser ‘contradições disfarçadas’ (como o fizeram alguns dos autores que defenderam uma posição expressivista, tentando mostrar que sempre a asserção de ‘eu creio que p’ é idêntica a asserção pura e simples de p) – e também aqui, em Dall’Agnol, para o qual o problema deve ser respondido unicamente na esfera de um jogo de linguagem do saber, devemos sempre procurar explicar a situação que nos parece mais espinhosa, e que foge a cenários exclusivos: quando há uma tensão entre as crenças que declaro em primeira pessoa e das quais ‘duvido’ em terceira pessoa. Aqui está o ninho das vespas menos indolentes de Moore, parafraseando o Wittgenstein de Cultura e Valor7.

Como eu disse antes, não analisei o ‘quanto’ Dall’Agnol é mais ou menos ortodoxo no livro em suas interpretações wittgensteinianas dos problemas discutidos. Parece que no caso de sua dissolução wittgensteiniana do PM, a ortodoxia é o caso. Cabe ao leitor do livro tirar suas próprias conclusões a respeito disso, tanto na leitura desse capítulo, quanto dos demais capítulos nos quais Dall’Agnol se ocupa de outros problemas.

Certamente encontrará uma série de investigações que devem ser levadas adiante, pois, como eu mencionei acima, Dall’Agnol desafia qualquer quietismo filosófico e nos faz (re) pensar sobre muitas questões relevantes relativas a seguir regras na filosofia de Wittgenstein.

Notas

1 O chamado “Paradoxo de Moore” foi meu tema de investigação na pesquisa de mestrado e de doutorado, esse sob orientação de Darlei Dall’Agnol..

2 Recentemente, interpretando o Da Certeza, Daniéle Moyal-Sharrock, em Understanding Wittgenstein’s On Certainty (New York: Palgrave Macmillan, 2007), discutindo a não-proposicionalidade de algumas proposições, faz exatamente essa distinção, entre dizer e falar, anteriormente apontada por Dall’Agnol.

3 Chamando a atenção para esse tipo de regra, Dall’Agnol parece abrir terreno à discussão posterior sobre a interpretação de se o ‘segundo’ Wittgenstein, das Investigações Filosóficas, é cognitivista ou não-cognivista no que diz respeito à ética, o que parece ser sugerido ao final do capítulo e ao final do livro com a proposta do cognitivismo prático, que mencionei acima. Tratar dessa questão com cuidado foge às pretensões de análise aqui. Essa menção, no entanto, é oportuna para se notar que a pesquisa de Dall’Agnol, apesar de tratar de seguir regras em outras obras de Wittgenstein que não nas Investigações, tem o propósito de compreender a filosofia de Wittgenstein como continuidade, discutindo criticamente os resultados das mudanças de perspectiva realizadas pelo autor até a sua morte em 1951, particularmente com reflexos sobre as questões envolvendo a moralidade.

4 Dall’Agnol apresenta o problema e, após, reconstrói a análise que o PM recebeu de Moore para contrastála com sua dissolução wittgensteiniana do PM, apresentada adiante (Cf. as páginas 153 – 160).

5 De acordo com Dall”Agnol, Wittgenstein “não recusaria completamente a definição tradicional de conhecimento” (p. 164), mas a estaria relacionando a um uso do verbo saber, que tem semelhanças de família com compreender.

6 E, temos de lembrar que uma pessoa pode duvidar de que saiba sobre p apenas ‘pensando’, e não asserindo p. Desse modo uma solução ao PM deve ser simultânea a um ‘pensamento’ de proposição Moore-paradoxal e sua respectiva asserção (e a pessoa deve saber as razões pelas quais seu ‘pensamento’ é incorreto).

7 Por isso, é duvidoso que possamos construir cenários em que asserções de sentenças Moore paradoxais possam ter sentido e não ser absurdas. Por exemplo, se digo ‘(Sei que) Minha tia faleceu e não acredito’, como afirma Dall’Agnol, inconformado com sua morte. Nesse caso, pois dificilmente estamos em posição de saber a correta intenção de falantes em asserções. O problema está na conjunção. Se eu tivesse dito ‘Minha tia faleceu. Não acredito’, certamente não haveria aí qualquer absurdidade.

Eduardo Ferreira das Neves Filho – Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

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Hegelianismo/ Republicanismo e Modernidade / Douglas Moggach

A obra Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade é a versão revisada de uma série de conferências realizadas na Universidade Federal da Bahia UFBA, no ano de 2004, pelo professor Douglas Moggach e que, posteriormente, foram lançadas em inglês com o título Hegelianism, Republicanism, and Modernity, e vertidas ao português pelo trabalho sempre competente do professor Roberto Hofmeister Pich (PUCRS), que, na tradução, que ora se resenha, permite ao leitor apreciá-la sem dar-se conta de que se trata de um texto traduzido.

O professor Douglas Moggach, atualmente, leciona na Universidade de Ottawa na School of Political Studies, sendo um reconhecido especialista no pensamento hegeliano desde a vazante interpretativa conhecida pela alcunha de esquerda hegeliana. As pesquisas do estudioso notabilizam-se no plano propriamente historiográfico pelo resgate do papel e da contribuição de Bruno Bauer para a compreensão, tanto de Hegel em específico, como de todo o idealismo alemão em geral, e, pela apresentação de um novo conceito de republicanismo, que está ligado, segundo suas pesquisas, a Hegel e à exegese que é feita de seu pensamento pela esquerda hegeliana.

O livro estrutura-se em três capítulos, respectivamente, intitulados de: (a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade, (b) republicanismo hegeliano e por fim (c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana.

Dividiremos a presente resenha em dois momentos, primeiramente, se fará (i) revelar a estrutura temático-argumentativa do autor, apresentando, segundo a ordem do discurso, os principais temas e problemas desenvolvidos nos três capítulos de seu livro e, após esta fase, (ii) analisaremos as conclusões do autor, de modo a avaliar o potencial de produtividade estabelecido pelo livro e por suas conclusões.

  1. Desvelando a estrutura argumentativa de Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade

O projeto de reconstrução e resgate de conceitos como republicanismo, modernidade e liberdade desde o pensamento de Hegel, mas, com foco na exegese da esquerda hegeliana [Hegelsche Linke], vem sendo desenvolvido com muita percuciência pelo prof. Douglas Moggach [1] ao longo da sua trajetória acadêmica e que, agora, conforme se demonstrará, se expõe em toda a sua maturidade. [2]

(a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade: Por um novo conceito de liberdade

A tese de Moggach, neste primeiro capítulo, é conectar o significado do idealismo alemão com a sua concepção de liberdade, de modo a articular liberdade, história e modernidade.

A constatação do renovado interesse na atualidade pelo instrumento hegeliano resume-se, basicamente, a três eixos de abordagens e retomadas, respectivamente postas em: a leitura de Hegel, desde o sinal transcendental do projeto kantiano, a mudança de sentido do projeto político hegeliano, exposto na Filosofia do Direito a partir da publicação das Vorlesungen por Karl Heinz-Ilting e a reavaliação da concepção política da escola hegeliana.

O primeiro modo de retomada do hegelianismo constitui-se a partir de uma leitura aproximativa entre Hegel e Kant, em que o primeiro passa a ser lido desde os limites do projeto transcendental do segundo, iluminando assim uma legítima compreensão hegeliana da constituição objetiva da intersubjetividade, [3] enquanto unidade imanente entre determinação conceitual e objetividade.

A segunda frente situa-se em reavaliar o status acerca do qual repousa o intento exposto na Filosofia do Direito, pondo em cheque a tradicional concepção política hegeliana de uma monarquia constitucional em favor de uma compreensão de justificação estatal desde o primado da soberania popular, tal como exposto nas Vorlesungen.

E o terceiro desenvolvimento, que se dirige em torno da escola hegeliana, sinaliza o sentido da inclusão do republicanismo como a chave de compreensão do legado de Hegel e da esquerda hegeliana, focada principalmente na sua crítica ao estado da restauração ao invés da sempre mencionada crítica à religião.

Como forma de dar conta e posicionar-se acerca destas três novas formas de abordagem do pensamento hegeliano, Douglas Moggach (p.12) retoma os motivos e os fundamentos da corrente denominada idealismo alemão, de modo a recuperar o fio histórico que conduz a Hegel e que lhe orienta, para assim poder conectar estes novos vieses interpretativos à compreensão da contemporaneidade. Para tanto, Moggach (p.12), interpreta o idealismo alemão como “[…] uma reflexão extensa sobre a idéia de liberdade e as perspectivas para a sua realização no mundo moderno”, ao mesmo tempo em que diferencia o idealismo que se estruturou como alemão dos demais idealismos, em síntese, pôr não estabelecer uma ordem transcendente perfeita em detrimento da imperfeição do real (Platão), nem reduzir o ser ao pensamento, negando a existência do mundo exterior (Berkeley).

Moggach (p.14) afirma que o problema filosófico central do idealismo alemão é a pergunta pela racionalidade da objetividade e como podemos nos determinar de modo igualmente racional face ao mundo e a nós mesmos. O autor declara que o idealismo alemão pode nos conceder um grande legado com a introdução do conceito de espontaneidade kantiano, que consiste em

Agemir Bavaresco, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa 322 uma necessidade definível, segundo Moggach (p.18), em “a habilidade da vontade de se determinar somente pelas causas que ela mesma admite ou permite que operem”, proporcionando um meio conceitual de adequação, sem subsunção, entre a autonomia e a heteronomia, entre se dar normas (subjetividade) e viver comunitariamente sob normas (intersubjetividade).

Porém, para que a espontaneidade unisse, sem dissolução, autonomia e heteronomia, era preciso superar a concepção racionalista de Leibniz de uma harmonia pré-estabelecida, posto que esta se constitua unicamente por determinações internas pré-existentes, impedindo qualquer modo de reflexão exterior e a heterodeterminação; novamente Moggach (p. 20) nos acena que Kant, com a categoria da relação, estabelecera as condições para pensar e compreender a internalização da causalidade e, logo, do papel central da espontaneidade como operador entre o eu teórico em face do eu prático.

O conceito espontaneidade, legado do idealismo, é que permite a passagem, na modernidade, para uma concepção de polis fundada moralmente e não como em Locke e Hobbes, alicerçada no cálculo e no interesse.

Deste novo componente legado por Kant, a espontaneidade, e apropriado por Hegel, nos apresenta Moggach (p.21) uma tríplice estruturação do conceito de vontade, ancorada em sua Ciência da Lógica hegeliana e que se baseia em uma tentativa de deduzir do eu teórico as condições de explicitação lógica do eu prático, coordenando a autoreferência interna da apercepção com a determinação externa da vontade que deseja e quer.

Neste percurso de tríplice constituição da vontade, Moggach (p.23) considera que Hegel estrutura os níveis de universalização e realização da vontade em: vontade formalmente universal, particular e individual. [4] A primeira esfera da vontade é a vontade universal, a qual se duplica em dois momentos, vontade como forma e um segundo, que pode ser designado de vontade universal, como conteúdo.

O primeiro estágio da vontade universal é aquele em que esta se figura como sendo imediatamente negativa, [5] não determinada por nada que não por si mesma, ponto de partida de Hegel da ideia de liberdade, tal como exposta na sua Filosofia do Direito e claramente insuficiente para os padrões contemporâneos. [6] O segundo momento do primeiro estágio de determinação da vontade universal hegeliana, consoante a leitura de Moggach (p.25), “[…] se refere à sua habilidade de assumir um conteúdo e fazer dele seu próprio” e é tematizada por Hegel na seção moralidade de sua Filosofia do Direito.

Neste estágio de determinação do eu prático pelo eu teórico, a vontade não é apenas abstração, negação formal, mas a capacidade negativa de discriminação e padronização da vontade como querer, historicamente situado e interacionalmente partilhado, e não como em Kant, atemporal, pois meramente formal A segunda esfera de autodeterminação da vontade é a particularidade, momento de determinação da vontade universal que possui forma e conteúdo, mas se depara em face de objetos (desejos, impulsos, outras vontades etc.) que lhe são exteriores e que, em face destes objetos, deve particularmente determinar-se.

Neste momento, de acordo com Moggach (p. 26), Hegel encontra-se com Fichte novamente, mas não com o Fichte que identifica o eu = eu, e, sim, com o Fichte que determina a autoconsciência como incisivamente sob o pálio do eu prático, logo, da intersubjetividade intrasubjetiva. Agora é o conteúdo empírico da autoconsciência que a obriga a se determinar, não exclusivamente de modo interno, mas prioritariamente sob o signo da alteridade e da diferença.

A universalidade da vontade percebe-se em relação com objetos e se objetualiza como um particular frente a outros particulares, passa-se da capacidade normativa da vontade à sua capacidade de determinação descritiva. Nesta figuração, Moggach (p. 27) demonstra como em Hegel encontra-se posta uma dura crítica tanto ao liberalismo como a Hobbes, consistente na incapacidade de sermos espontaneamente determinados apenas pela esfera da particularidade. Na esteira ainda desta crítica, Moggach (p. 27) afirma que “esse é o defeito de Hobbes e, muito também, do liberalismo subseqüente: ver a liberdade como a ausência de obstáculos entre os sujeitos e os objetos do seu desejo, mas em perguntar à luz de que padrões esses desejos são justificados”.

A terceira configuração ou esfera da vontade é a sua determinação como liberdade que decide ou da decisão, movimento de passagem na vontade do interior para o exterior, da liberação da forma no conteúdo, o decide [7], expressa a vontade focada em um objeto por exclusão dos demais, momento através do qual a vontade individualiza-se pelo movimento de universalização particular de seu conteúdo, em face do universo de objetos e possibilidade frente às quais teve de se decidir.

Este terceiro estágio da vontade é descrito por Moggach como “o universal adquire substância e concretude pela seleção e representação de si mesmo num conteúdo particular, o qual, por isso mesmo, cessa de ser meramente dado, e é ‘posto’ ou conscientemente aceito” (p. 28).

Neste projeto de tríplice determinação da vontade, sua expressão concreta é a liberdade que escolhe se autolimitar e que, por isso, reconcilia subjetividade e objetividade.

Moggach define o idealismo alemão como expressão da razão prática e acentua que Hegel, com a Fenomenologia do Espírito, estabelece a forma de compreensão de uma história da razão prática, ancorada nas diversas formas de relacionamento entre o eu e o mundo pelas figurações históricas experienciadas, que, por seu turno, permitem a constituição da personalidade como um ato de liberdade, onde a vontade é exercida como modo de determinação para-si de seus fins e atributos (cf. p. 29).

Contudo, nos adverte Moggach que “a teoria de Hegel não é simplesmente um endosso da ordem liberal, mas um modernismo crítico ou alternativo” (p.32), centrado na irredutível diferença entre sociedade civil e estado, estabelecendo as condições de efetivação de uma concepção de cidadania focada em um modelo de comunidade racionalmente ordenado.

Certamente é esta unidade entre (i) idealismo alemão, compreendido como a totalidade histórica das configurações do pensar, (ii) modernidade, expressão temporal de realização desta totalidade que é o idealismo alemão (iii) e hegelianismo, apreensão conceitual da temporalidade à luz do discurso filosófico, tendo como centro explicativo a ideia de liberdade, que conduz, na análise de Moggach, a uma diferenciada concepção de republicanismo que será desenvolvida no capítulo seguinte.

(b) republicanismo hegeliano

No primeiro capítulo do livro, Douglas Moggach (p.11) nos afirma que, em linhas gerais, o republicanismo no idealismo alemão pode ser compreendido como uma teoria da liberdade positiva ou da autotranscendência, que alterna, motivos éticos e estéticos derivados de Kant e Hegel, na constituição do status de cidadão.

No segundo capítulo, Moggach (p. 37) afirma ser o estudo do republicanismo uma importante nuance do pensamento político contemporâneo, mas que, paradoxalmente, o republicanismo de origem alemã não tem sido amplamente recepcionado, em razão de que ele tem suas raízes em Hegel e sob este paira uma ‘suspeita’ acerca de uma suposta submissão da liberdade à metafísica.

Assim, insere-se o intento do presente capítulo em esclarecer este flanco aberto, constituído pela tentativa de superação desta negação de aproximação da teoria contemporânea à concepção republicana hegeliana, através da demonstração do seu potencial de diagnose e da atualidade deste específico tipo de republicanismo.

Para situar-nos preliminarmente em face do republicanismo, informanos Mogach que: “A idéia republicana central é que as práticas e instituições de cidadania são integrais à experiência da liberdade; elas não são meramente instrumentais aos propósitos econômicos, como no liberalismo, nem são elas indispensáveis em favor da administração econômica” (p. 37).

O autor (p.38-39) nos apresenta duas concepções que balizam o debate dentro desta renaissance do republicanismo, em um corte que os divide em uma versão moderada de republicanismo, pautada no postulado da nãodominação e compatível com uma concepção republicana de raiz nitidamente jurídica, centrada na defesa dos direitos e na divisão da concepção de liberdade em liberdade positiva e liberdade negativa.

Uma segunda forma de republicanismo tachada de rigorosa, apresentase com os mesmos postulados anteriores, mas os agudiza no sentido de formulação e justificação de uma distinção entre moralidade e direito, no intento de estabelecer correspondências entre as motivações internas (morais) como determinantes das pautas políticas (direito) e, inversamente, estabelecendo exigências estritas sobre os sujeitos como cidadãos mediante o primordial interesse na questão social.

Mogach (cf. p.39) associa esta concepção rigorosa de republicanismo à esquerda hegeliana, mais especificamente a Bruno Bauer e os debates sobre o republicanismo no período do Vormärz e seu projeto de um modelo republicano que assuma a liberdade positiva de feição hegeliana como forma de reordenar as instituições sociais tradicionais, dilaceradas pela divisão do trabalho e pelo predomínio dos interesses privados.

Nesta concepção de republicanismo de feição alemã, o interesse privado é preservado, porém submetido a uma autotransformação pelo recurso à luta por instituições políticas racionais como modo eficiente de uma dúplice reordenação social que incida nos indivíduos e nas próprias instituições.

Nesta leitura do republicanismo de base hegeliana, as instituições são racionais na medida em que resultam da atividade autotélica [8] dos indivíduos e menos por realizarem um princípio metafísico ou fins substanciais prévios.

Moggach (p. 42), ao resgatar na esteira de Hegel, a concepção de Bruno Bauer, [9] a interpreta no sentido e marco das atuais correntes neohegelianas que se auto-intitulam de pós-metafísicas, [10] exatamente na medida em que assume as constatações da diagnose hegeliana, mas rompe a discursividade especulativa imanente que as desvelam como modo de evitar o compromisso discursivo com a integridade sistemática do pensamento hegeliano.

O republicanismo que Moggach (p.46-47) extrai da esquerda hegeliana, especificamente de Bruno Bauer, constitui-se pela dúplice raiz conceitual de Kant e Hegel. Em Kant, afirma Moggach (p.46), Bauer apropria-se da crítica transcendental às formas da heteronomia empírica e racional, mas se aproxima da heteronomia racional ancorada na ideia de perfecionismo, pois, mesmo sustentando que a subjetividade autodetermina-se quando repudia interesses privados e universais transcendentais, acredita Bauer que o papel da espontaneidade e da autonomia, quando assumidos conscientemente, devem conduzir ao progresso histórico.

Em Hegel, declara-nos Moggach (p.47), que Bauer encontra o diagnóstico da modernidade e o papel central atribuído a personalidade livre infinita, como os pilares restantes para a construção madura de seu republicanismo.

Dentro deste cenário, Bauer constrói sua concepção republicana adjudicando à modernidade a tarefa de incorporação na atuação dos sujeitos da autonomia e da razão como um esforço à construção racional da objetividade desde um regresso ao eu racional, ao contrário do propugnado por Hegel.

O republicanismo de Bauer propõe um modelo de estado laicizado, com intenso papel do indivíduo na vida pública, e dirige-se ferozmente em face da nascente sociedade de massas que obnubila o político, enclausurando os indivíduos na exclusividade de seus fins privados, impedindo a dupla reflexividade nascente com a modernidade e a percepção da racionalidade do curso histórico, tornando os indivíduos meros solipsistas práticos.

(c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana

Após as revoluções de 1848, a esquerda hegeliana conhece, através dos debates entre Bauer e Marx, em torno da questão judaica, uma cisão entre republicanismo e socialismo. Na esteira deste diálogo, Bauer enfatiza a crítica às concepções de liberdade constituídas desde a vaga pós-revolucionária, inclusive as de Marx e Hegel, e afirma a centralidade do projeto republicano na emancipação social e não somente na emancipação política, propugna a libertação do proletariado, o qual era por ele designado de helotas [11] da sociedade civil [bürgerlichen Heloten].

Nesta tarefa de posicionar seu republicanismo como antípoda do socialismo, Bauer, consoante Moggach (p. 58), defende um modelo de sociedade civil que repudie o primado da liberdade de escolha exercida sob o.jugo do mercado, apelando a uma participação política em prol de um certo perfeccionismo social, por imputar ao modelo liberal a pecha de, em sua base formativa, transformar os indivíduos em massa, ao identificar autonomia individual e asserção individualista resultante da posse protegida pelo direito privado, instituindo um anacrônico individualismo possessivo.

Contudo, se o republicanismo de Bauer é contra o liberalismo e a favor de uma reordenação recíproca de liberdade negativa e positiva como forma do ser livre da modernidade, o mesmo Bauer filia-se à crítica liberal quando de sua repulsa ao socialismo, taxando-o unicamente de buscar a satisfação imediata do proletariado. Para Bauer, o projeto socialista de emancipação e generalização da classe proletária seria apenas a universalização da necessidade e da pobreza.

Nesta tensão entre republicanismo e socialismo ou entre as divergências da esquerda hegeliana, mais especificamente entre Bauer e Marx, Moggach (p. 65 e s) quer estruturar a concepção republicana oriunda do hegelianismo. No seio deste debate entre Bauer e Marx, ou entre republicanismo e socialismo, Marx constitui sua concepção de socialismo na crítica e ao mesmo tempo retomada da concepção de trabalho hegeliana e de sua correspondência com as determinações lógicas da Ciência da Lógica, na seção teleologia. Aduz ainda Moggach (p. 66) que a concepção de trabalho de Marx permite-nos visualizar uma nova concepção de democracia, mesmo que não explicitado diretamente por Marx, que englobe os processo de trabalho e as relações sociais que lhe são condicionantes, como modos de efetivação das pautas modernas por liberdade, igualdade e fraternidade. Nesta nova concepção de democracia, que estaria contida em Marx derivada da sua concepção de trabalho, dois são os fundamentos operantes: a autoadministração e o planejamento.

Para Bauer, a teoria socialista fetichiza o trabalho e sobrevaloriza o proletariado; para Marx o republicanismo é um modo ideológico que mascara as contradições da vida real e é impotente em face do capital.

  1. Conclusões

O livro do Prof. Moggach inscreve-se no marco de leituras da filosofia política da atualidade que buscam extrair de autores, consagrados ou não, seu potencial de compreensão do passado como modo de explicitação das dinâmicas e aflições contemporâneas, só por este ponto, o texto, que ora se resenha, merece ser lido e meditado.

Contudo, há outro motivo que instiga a leitura e a análise das conclusões inferidas e que se refere ao resgate de uma tradição filosófica, outrora muito conhecida e, atualmente, pouco estudada e relegada a um injusto ostracismo. Trata-se da vazante de pensadores que, na esteira do idealismo alemão em geral, e de Hegel em particular, movimentaram intensamente o debate pós-revolucionário de 1848 e de um certo modo polarizaram, por décadas, todo o debate da filosofia política e que poderíamos resumi-los a: Kuno Fischer, Karl Rosenkranz, Eduard Gans, F.W. Carové, H. F. W. Hinrichs, Carl L. Michelet, H. B. Oppenheim, John Eduard Erdmann, Carl Rössler, os assim denominados da direita hegeliana [Hegelsche Rechte] e Heinrich Heine, Arnold Ruge, Moses Hess, Max Stirner, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Karl Marx, que, no passado, foram denominados da esquerda hegeliana [Hegelsche linke]. Claro que o resgate, aqui, mencionado resume-se a Bauer e a Marx, porém estudos como este do Prof. Moggach incitam os jovens pesquisadores na busca de alternativas teóricas aos lugares comuns da atual ortodoxia da filosofia política.

Por fim, espera-se que esta não seja a única das publicações do Professor Moggach vertidas à flor do lácio, mas apenas a primeira de tantas a nos brindar com suas análises atuais e lúcidas sobre os problemas contemporâneos do republicanismo, liberalismo e do Estado de direito.

Notas

1. Pensa-se, mais especificamente, nos desenvolvimentos constituídos em The Philosophy and Politics of Bruno Bauer, Cambridge: ed. Cambridge University Press, 2003, em Reason, Universality, and History, Ottawa, Legas Press, 2004, 303 pp.(com Michael Buhr) e no volume organizado pelo autor intitulado de The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

2. O professor Douglas Moggach expôs, sob a forma de intuições no texto introdutório ao livro The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, os conceitos que, posteriormente, se encontram aqui desenvolvidos. Não por mera coincidência, o texto de abertura do referido volume intitula-se: Introduction: Hegelianism, Republicanism, and Modernity, pp.1-24.

3. Moggach, 2010, p. 9.

4. É usualmente utilizado na bibliografia hegeliana, especialmente na brasileira, o terceiro momento da vontade hegeliana com a expressão singularidade, mas, como fora optado pelo autor e pelo tradutor o termo individualidade, dele nos serviremos.

5. Moggach (p.23) nos diz que a vontade universal é idêntica à tese fichteana do eu=eu da Doutrina da Ciência.

6. Moggach (p.24-25) indica que Hegel crítica tal concepção de vontade abstratamente universal, mediante o recurso à três experiências históricas que demonstraram sua fragilidade, (a) a concepção estóica de liberdade, (b) a bela alma romântica e (c) o terror jacobino.

7. Do Latim: decido, -is, -ère, decidi, -cisum. Sent. próprio: 1) Separar cortando, cortar, reduzir (Tac. G.10) in. Farias, Dicionário Latino-Português. p. 280.

8. Para não cair no teleologismo de base hegeliana, Moggach afirma que a ação é autotélica [que se dá fins] e não portadora de um telos, que, lhe sendo imanente, pré-ordena sua atividade, determinando-a.

9. Principalmente o Bruno Bauer das obras: Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Antichristen, Geschichte Deutschlands und der französischen Revolution unter der Herrschaft Napoleons e Hegels Lehre von der Religion und Kunst von dem Standpunkte des Glaubens aus beurteilt.

10. Pensa-se aqui em Axel Honneth, Jean-François Kervègan, Paul Ricoeur entre outros

11. Também chamados de Hilotas, na Grécia, eram servos e propriedade do estado. Não se deve confundir os Hilotas [servos] com os escravos, pois estes eram de outro estrato social

Agemir Bavaresco – PUCRS.

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – PPGFIL-UFRGS.


MOGGACH, Douglas. Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade.Trad. Roberto Hofmeister Pich. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. Resenha de: BAVARESCO, Agemir; COSTA, Danilo Vaz-Curado R. M. Dissertatio, Pelotas, v.32, 2010. Acessar publicação original.

Hegelianismo/ Republicanismo e Modernidade – MOGGACH (D)

MOGGACH, Douglas. Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade.Trad. Roberto Hofmeister Pich. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. Resenha de: BAVARESCO, Agemir; COSTA, Danilo Vaz-Curado R. M. Dissertatio, Pelotas, v.32, 2010.

A obra Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade é a versão revisada de uma série de conferências realizadas na Universidade Federal da Bahia UFBA, no ano de 2004, pelo professor Douglas Moggach e que, posteriormente, foram lançadas em inglês com o título Hegelianism, Republicanism, and Modernity, e vertidas ao português pelo trabalho sempre competente do professor Roberto Hofmeister Pich (PUCRS), que, na tradução, que ora se resenha, permite ao leitor apreciá-la sem dar-se conta de que se trata de um texto traduzido.

O professor Douglas Moggach, atualmente, leciona na Universidade de Ottawa na School of Political Studies, sendo um reconhecido especialista no pensamento hegeliano desde a vazante interpretativa conhecida pela alcunha de esquerda hegeliana. As pesquisas do estudioso notabilizam-se no plano propriamente historiográfico pelo resgate do papel e da contribuição de Bruno Bauer para a compreensão, tanto de Hegel em específico, como de todo o idealismo alemão em geral, e, pela apresentação de um novo conceito de republicanismo, que está ligado, segundo suas pesquisas, a Hegel e à exegese que é feita de seu pensamento pela esquerda hegeliana.

O livro estrutura-se em três capítulos, respectivamente, intitulados de: (a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade, (b) republicanismo hegeliano e por fim (c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana.

Dividiremos a presente resenha em dois momentos, primeiramente, se fará (i) revelar a estrutura temático-argumentativa do autor, apresentando, segundo a ordem do discurso, os principais temas e problemas desenvolvidos nos três capítulos de seu livro e, após esta fase, (ii) analisaremos as conclusões do autor, de modo a avaliar o potencial de produtividade estabelecido pelo livro e por suas conclusões.

  1. Desvelando a estrutura argumentativa de Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade

O projeto de reconstrução e resgate de conceitos como republicanismo, modernidade e liberdade desde o pensamento de Hegel, mas, com foco na exegese da esquerda hegeliana [Hegelsche Linke], vem sendo desenvolvido com muita percuciência pelo prof. Douglas Moggach1ao longo da sua trajetória acadêmica e que, agora, conforme se demonstrará, se expõe em toda a sua maturidade.2

(a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade: Por um novo conceito de liberdade

A tese de Moggach, neste primeiro capítulo, é conectar o significado do idealismo alemão com a sua concepção de liberdade, de modo a articular liberdade, história e modernidade.

A constatação do renovado interesse na atualidade pelo instrumento hegeliano resume-se, basicamente, a três eixos de abordagens e retomadas, respectivamente postas em: a leitura de Hegel, desde o sinal transcendental do projeto kantiano, a mudança de sentido do projeto político hegeliano, exposto na Filosofia do Direito a partir da publicação das Vorlesungen por Karl Heinz-Ilting e a reavaliação da concepção política da escola hegeliana.

O primeiro modo de retomada do hegelianismo constitui-se a partir de uma leitura aproximativa entre Hegel e Kant, em que o primeiro passa a ser lido desde os limites do projeto transcendental do segundo, iluminando assim uma legítima compreensão hegeliana da constituição objetiva da intersubjetividade,3enquanto unidade imanente entre determinação conceitual e objetividade.

A segunda frente situa-se em reavaliar o status acerca do qual repousa o intento exposto na Filosofia do Direito, pondo em cheque a tradicional concepção política hegeliana de uma monarquia constitucional em favor de uma compreensão de justificação estatal desde o primado da soberania popular, tal como exposto nas Vorlesungen.

E o terceiro desenvolvimento, que se dirige em torno da escola hegeliana, sinaliza o sentido da inclusão do republicanismo como a chave de compreensão do legado de Hegel e da esquerda hegeliana, focada principalmente na sua crítica ao estado da restauração ao invés da sempre mencionada crítica à religião.

Como forma de dar conta e posicionar-se acerca destas três novas formas de abordagem do pensamento hegeliano, Douglas Moggach (p.12) retoma os motivos e os fundamentos da corrente denominada idealismo alemão, de modo a recuperar o fio histórico que conduz a Hegel e que lhe orienta, para assim poder conectar estes novos vieses interpretativos à compreensão da contemporaneidade. Para tanto, Moggach (p.12), interpreta o idealismo alemão como “[…] uma reflexão extensa sobre a idéia de liberdade e as perspectivas para a sua realização no mundo moderno”, ao mesmo tempo em que diferencia o idealismo que se estruturou como alemão dos demais idealismos, em síntese, pôr não estabelecer uma ordem transcendente perfeita em detrimento da imperfeição do real (Platão), nem reduzir o ser ao pensamento, negando a existência do mundo exterior (Berkeley).

Moggach (p.14) afirma que o problema filosófico central do idealismo alemão é a pergunta pela racionalidade da objetividade e como podemos nos determinar de modo igualmente racional face ao mundo e a nós mesmos. O autor declara que o idealismo alemão pode nos conceder um grande legado com a introdução do conceito de espontaneidade kantiano, que consiste em

Agemir Bavaresco, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa 322 uma necessidade definível, segundo Moggach (p.18), em “a habilidade da vontade de se determinar somente pelas causas que ela mesma admite ou permite que operem”, proporcionando um meio conceitual de adequação, sem subsunção, entre a autonomia e a heteronomia, entre se dar normas (subjetividade) e viver comunitariamente sob normas (intersubjetividade).

Porém, para que a espontaneidade unisse, sem dissolução, autonomia e heteronomia, era preciso superar a concepção racionalista de Leibniz de uma harmonia pré-estabelecida, posto que esta se constitua unicamente por determinações internas pré-existentes, impedindo qualquer modo de reflexão exterior e a heterodeterminação; novamente Moggach (p. 20) nos acena que Kant, com a categoria da relação, estabelecera as condições para pensar e compreender a internalização da causalidade e, logo, do papel central da espontaneidade como operador entre o eu teórico em face do eu prático.

O conceito espontaneidade, legado do idealismo, é que permite a passagem, na modernidade, para uma concepção de polis fundada moralmente e não como em Locke e Hobbes, alicerçada no cálculo e no interesse.

Deste novo componente legado por Kant, a espontaneidade, e apropriado por Hegel, nos apresenta Moggach (p.21) uma tríplice estruturação do conceito de vontade, ancorada em sua Ciência da Lógica hegeliana e que se baseia em uma tentativa de deduzir do eu teórico as condições de explicitação lógica do eu prático, coordenando a autoreferência interna da apercepção com a determinação externa da vontade que deseja e quer.

Neste percurso de tríplice constituição da vontade, Moggach (p.23) considera que Hegel estrutura os níveis de universalização e realização da vontade em: vontade formalmente universal, particular e individual.4 A primeira esfera da vontade é a vontade universal, a qual se duplica em dois momentos, vontade como forma e um segundo, que pode ser designado de vontade universal, como conteúdo.

O primeiro estágio da vontade universal é aquele em que esta se figura como sendo imediatamente negativa,5 não determinada por nada que não por si mesma, ponto de partida de Hegel da ideia de liberdade, tal como exposta na sua Filosofia do Direito e claramente insuficiente para os padrões contemporâneos.6 O segundo momento do primeiro estágio de determinação da vontade universal hegeliana, consoante a leitura de Moggach (p.25), “[…] se refere à sua habilidade de assumir um conteúdo e fazer dele seu próprio” e é tematizada por Hegel na seção moralidade de sua Filosofia do Direito.

Neste estágio de determinação do eu prático pelo eu teórico, a vontade não é apenas abstração, negação formal, mas a capacidade negativa de discriminação e padronização da vontade como querer, historicamente situado e interacionalmente partilhado, e não como em Kant, atemporal, pois meramente formal A segunda esfera de autodeterminação da vontade é a particularidade, momento de determinação da vontade universal que possui forma e conteúdo, mas se depara em face de objetos (desejos, impulsos, outras vontades etc.) que lhe são exteriores e que, em face destes objetos, deve particularmente determinar-se.

Neste momento, de acordo com Moggach (p. 26), Hegel encontra-se com Fichte novamente, mas não com o Fichte que identifica o eu = eu, e, sim, com o Fichte que determina a autoconsciência como incisivamente sob o pálio do eu prático, logo, da intersubjetividade intrasubjetiva. Agora é o conteúdo empírico da autoconsciência que a obriga a se determinar, não exclusivamente de modo interno, mas prioritariamente sob o signo da alteridade e da diferença.

A universalidade da vontade percebe-se em relação com objetos e se objetualiza como um particular frente a outros particulares, passa-se da capacidade normativa da vontade à sua capacidade de determinação descritiva. Nesta figuração, Moggach (p. 27) demonstra como em Hegel encontra-se posta uma dura crítica tanto ao liberalismo como a Hobbes, consistente na incapacidade de sermos espontaneamente determinados apenas pela esfera da particularidade. Na esteira ainda desta crítica, Moggach (p. 27) afirma que “esse é o defeito de Hobbes e, muito também, do liberalismo subseqüente: ver a liberdade como a ausência de obstáculos entre os sujeitos e os objetos do seu desejo, mas em perguntar à luz de que padrões esses desejos são justificados”.

A terceira configuração ou esfera da vontade é a sua determinação como liberdade que decide ou da decisão, movimento de passagem na vontade do interior para o exterior, da liberação da forma no conteúdo, o decide7, expressa a vontade focada em um objeto por exclusão dos demais, momento através do qual a vontade individualiza-se pelo movimento de universalização particular de seu conteúdo, em face do universo de objetos e possibilidade frente às quais teve de se decidir.

Este terceiro estágio da vontade é descrito por Moggach como “o universal adquire substância e concretude pela seleção e representação de si mesmo num conteúdo particular, o qual, por isso mesmo, cessa de ser meramente dado, e é ‘posto’ ou conscientemente aceito” (p. 28).

Neste projeto de tríplice determinação da vontade, sua expressão concreta é a liberdade que escolhe se autolimitar e que, por isso, reconcilia subjetividade e objetividade.

Moggach define o idealismo alemão como expressão da razão prática e acentua que Hegel, com a Fenomenologia do Espírito, estabelece a forma de compreensão de uma história da razão prática, ancorada nas diversas formas de relacionamento entre o eu e o mundo pelas figurações históricas experienciadas, que, por seu turno, permitem a constituição da personalidade como um ato de liberdade, onde a vontade é exercida como modo de determinação para-si de seus fins e atributos (cf. p. 29).

Contudo, nos adverte Moggach que “a teoria de Hegel não é simplesmente um endosso da ordem liberal, mas um modernismo crítico ou alternativo” (p.32), centrado na irredutível diferença entre sociedade civil e estado, estabelecendo as condições de efetivação de uma concepção de cidadania focada em um modelo de comunidade racionalmente ordenado.

Certamente é esta unidade entre (i) idealismo alemão, compreendido como a totalidade histórica das configurações do pensar, (ii) modernidade, expressão temporal de realização desta totalidade que é o idealismo alemão (iii) e hegelianismo, apreensão conceitual da temporalidade à luz do discurso filosófico, tendo como centro explicativo a ideia de liberdade, que conduz, na análise de Moggach, a uma diferenciada concepção de republicanismo que será desenvolvida no capítulo seguinte.

(b) republicanismo hegeliano

No primeiro capítulo do livro, Douglas Moggach (p.11) nos afirma que, em linhas gerais, o republicanismo no idealismo alemão pode ser compreendido como uma teoria da liberdade positiva ou da autotranscendência, que alterna, motivos éticos e estéticos derivados de Kant e Hegel, na constituição do status de cidadão.

No segundo capítulo, Moggach (p. 37) afirma ser o estudo do republicanismo uma importante nuance do pensamento político contemporâneo, mas que, paradoxalmente, o republicanismo de origem alemã não tem sido amplamente recepcionado, em razão de que ele tem suas raízes em Hegel e sob este paira uma ‘suspeita’ acerca de uma suposta submissão da liberdade à metafísica.

Assim, insere-se o intento do presente capítulo em esclarecer este flanco aberto, constituído pela tentativa de superação desta negação de aproximação da teoria contemporânea à concepção republicana hegeliana, através da demonstração do seu potencial de diagnose e da atualidade deste específico tipo de republicanismo.

Para situar-nos preliminarmente em face do republicanismo, informanos Mogach que: “A idéia republicana central é que as práticas e instituições de cidadania são integrais à experiência da liberdade; elas não são meramente instrumentais aos propósitos econômicos, como no liberalismo, nem são elas indispensáveis em favor da administração econômica” (p. 37).

O autor (p.38-39) nos apresenta duas concepções que balizam o debate dentro desta renaissance do republicanismo, em um corte que os divide em uma versão moderada de republicanismo, pautada no postulado da nãodominação e compatível com uma concepção republicana de raiz nitidamente jurídica, centrada na defesa dos direitos e na divisão da concepção de liberdade em liberdade positiva e liberdade negativa.

Uma segunda forma de republicanismo tachada de rigorosa, apresentase com os mesmos postulados anteriores, mas os agudiza no sentido de formulação e justificação de uma distinção entre moralidade e direito, no intento de estabelecer correspondências entre as motivações internas (morais) como determinantes das pautas políticas (direito) e, inversamente, estabelecendo exigências estritas sobre os sujeitos como cidadãos mediante o primordial interesse na questão social.

Mogach (cf. p.39) associa esta concepção rigorosa de republicanismo à esquerda hegeliana, mais especificamente a Bruno Bauer e os debates sobre o republicanismo no período do Vormärz e seu projeto de um modelo republicano que assuma a liberdade positiva de feição hegeliana como forma de reordenar as instituições sociais tradicionais, dilaceradas pela divisão do trabalho e pelo predomínio dos interesses privados.

Nesta concepção de republicanismo de feição alemã, o interesse privado é preservado, porém submetido a uma autotransformação pelo recurso à luta por instituições políticas racionais como modo eficiente de uma dúplice reordenação social que incida nos indivíduos e nas próprias instituições.

Nesta leitura do republicanismo de base hegeliana, as instituições são racionais na medida em que resultam da atividade autotélica8 dos indivíduos e menos por realizarem um princípio metafísico ou fins substanciais prévios.

Moggach (p. 42), ao resgatar na esteira de Hegel, a concepção de Bruno Bauer,9a interpreta no sentido e marco das atuais correntes neohegelianas que se auto-intitulam de pós-metafísicas,10exatamente na medida em que assume as constatações da diagnose hegeliana, mas rompe a discursividade especulativa imanente que as desvelam como modo de evitar o compromisso discursivo com a integridade sistemática do pensamento hegeliano.

O republicanismo que Moggach (p.46-47) extrai da esquerda hegeliana, especificamente de Bruno Bauer, constitui-se pela dúplice raiz conceitual de Kant e Hegel. Em Kant, afirma Moggach (p.46), Bauer apropria-se da crítica transcendental às formas da heteronomia empírica e racional, mas se aproxima da heteronomia racional ancorada na ideia de perfecionismo, pois, mesmo sustentando que a subjetividade autodetermina-se quando repudia interesses privados e universais transcendentais, acredita Bauer que o papel da espontaneidade e da autonomia, quando assumidos conscientemente, devem conduzir ao progresso histórico.

Em Hegel, declara-nos Moggach (p.47), que Bauer encontra o diagnóstico da modernidade e o papel central atribuído a personalidade livre infinita, como os pilares restantes para a construção madura de seu republicanismo.

Dentro deste cenário, Bauer constrói sua concepção republicana adjudicando à modernidade a tarefa de incorporação na atuação dos sujeitos da autonomia e da razão como um esforço à construção racional da objetividade desde um regresso ao eu racional, ao contrário do propugnado por Hegel.

O republicanismo de Bauer propõe um modelo de estado laicizado, com intenso papel do indivíduo na vida pública, e dirige-se ferozmente em face da nascente sociedade de massas que obnubila o político, enclausurando os indivíduos na exclusividade de seus fins privados, impedindo a dupla reflexividade nascente com a modernidade e a percepção da racionalidade do curso histórico, tornando os indivíduos meros solipsistas práticos.

(c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana

Após as revoluções de 1848, a esquerda hegeliana conhece, através dos debates entre Bauer e Marx, em torno da questão judaica, uma cisão entre republicanismo e socialismo. Na esteira deste diálogo, Bauer enfatiza a crítica às concepções de liberdade constituídas desde a vaga pós-revolucionária, inclusive as de Marx e Hegel, e afirma a centralidade do projeto republicano na emancipação social e não somente na emancipação política, propugna a libertação do proletariado, o qual era por ele designado de helotas11 da sociedade civil [bürgerlichen Heloten].

Nesta tarefa de posicionar seu republicanismo como antípoda do socialismo, Bauer, consoante Moggach (p. 58), defende um modelo de sociedade civil que repudie o primado da liberdade de escolha exercida sob o.jugo do mercado, apelando a uma participação política em prol de um certo perfeccionismo social, por imputar ao modelo liberal a pecha de, em sua base formativa, transformar os indivíduos em massa, ao identificar autonomia individual e asserção individualista resultante da posse protegida pelo direito privado, instituindo um anacrônico individualismo possessivo.

Contudo, se o republicanismo de Bauer é contra o liberalismo e a favor de uma reordenação recíproca de liberdade negativa e positiva como forma do ser livre da modernidade, o mesmo Bauer filia-se à crítica liberal quando de sua repulsa ao socialismo, taxando-o unicamente de buscar a satisfação imediata do proletariado. Para Bauer, o projeto socialista de emancipação e generalização da classe proletária seria apenas a universalização da necessidade e da pobreza.

Nesta tensão entre republicanismo e socialismo ou entre as divergências da esquerda hegeliana, mais especificamente entre Bauer e Marx, Moggach (p. 65 e s) quer estruturar a concepção republicana oriunda do hegelianismo. No seio deste debate entre Bauer e Marx, ou entre republicanismo e socialismo, Marx constitui sua concepção de socialismo na crítica e ao mesmo tempo retomada da concepção de trabalho hegeliana e de sua correspondência com as determinações lógicas da Ciência da Lógica, na seção teleologia. Aduz ainda Moggach (p. 66) que a concepção de trabalho de Marx permite-nos visualizar uma nova concepção de democracia, mesmo que não explicitado diretamente por Marx, que englobe os processo de trabalho e as relações sociais que lhe são condicionantes, como modos de efetivação das pautas modernas por liberdade, igualdade e fraternidade. Nesta nova concepção de democracia, que estaria contida em Marx derivada da sua concepção de trabalho, dois são os fundamentos operantes: a autoadministração e o planejamento.

Para Bauer, a teoria socialista fetichiza o trabalho e sobrevaloriza o proletariado; para Marx o republicanismo é um modo ideológico que mascara as contradições da vida real e é impotente em face do capital.

  1. Conclusões

O livro do Prof. Moggach inscreve-se no marco de leituras da filosofia política da atualidade que buscam extrair de autores, consagrados ou não, seu potencial de compreensão do passado como modo de explicitação das dinâmicas e aflições contemporâneas, só por este ponto, o texto, que ora se resenha, merece ser lido e meditado.

Contudo, há outro motivo que instiga a leitura e a análise das conclusões inferidas e que se refere ao resgate de uma tradição filosófica, outrora muito conhecida e, atualmente, pouco estudada e relegada a um injusto ostracismo. Trata-se da vazante de pensadores que, na esteira do idealismo alemão em geral, e de Hegel em particular, movimentaram intensamente o debate pós-revolucionário de 1848 e de um certo modo polarizaram, por décadas, todo o debate da filosofia política e que poderíamos resumi-los a: Kuno Fischer, Karl Rosenkranz, Eduard Gans, F.W. Carové, H. F. W. Hinrichs, Carl L. Michelet, H. B. Oppenheim, John Eduard Erdmann, Carl Rössler, os assim denominados da direita hegeliana [Hegelsche Rechte] e Heinrich Heine, Arnold Ruge, Moses Hess, Max Stirner, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Karl Marx, que, no passado, foram denominados da esquerda hegeliana [Hegelsche linke]. Claro que o resgate, aqui, mencionado resume-se a Bauer e a Marx, porém estudos como este do Prof. Moggach incitam os jovens pesquisadores na busca de alternativas teóricas aos lugares comuns da atual ortodoxia da filosofia política.

Por fim, espera-se que esta não seja a única das publicações do Professor Moggach vertidas à flor do lácio, mas apenas a primeira de tantas a nos brindar com suas análises atuais e lúcidas sobre os problemas contemporâneos do republicanismo, liberalismo e do Estado de direito.

Notas

1 Pensa-se, mais especificamente, nos desenvolvimentos constituídos em The Philosophy and Politics of Bruno Bauer, Cambridge: ed. Cambridge University Press, 2003, em Reason, Universality, and History, Ottawa, Legas Press, 2004, 303 pp.(com Michael Buhr) e no volume organizado pelo autor intitulado de The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

2 O professor Douglas Moggach expôs, sob a forma de intuições no texto introdutório ao livro The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, os conceitos que, posteriormente, se encontram aqui desenvolvidos. Não por mera coincidência, o texto de abertura do referido volume intitula-se: Introduction: Hegelianism, Republicanism, and Modernity, pp.1-24.

3 Moggach, 2010, p. 9.

4 É usualmente utilizado na bibliografia hegeliana, especialmente na brasileira, o terceiro momento da vontade hegeliana com a expressão singularidade, mas, como fora optado pelo autor e pelo tradutor o termo individualidade, dele nos serviremos.

5 Moggach (p.23) nos diz que a vontade universal é idêntica à tese fichteana do eu=eu da Doutrina da Ciência.

6 Moggach (p.24-25) indica que Hegel crítica tal concepção de vontade abstratamente universal, mediante o recurso à três experiências históricas que demonstraram sua fragilidade, (a) a concepção estóica de liberdade, (b) a bela alma romântica e (c) o terror jacobino.

7 Do Latim: decido, -is, -ère, decidi, -cisum. Sent. próprio: 1) Separar cortando, cortar, reduzir (Tac. G.10) in. Farias, Dicionário Latino-Português. p. 280.

8 Para não cair no teleologismo de base hegeliana, Moggach afirma que a ação é autotélica [que se dá fins] e não portadora de um telos, que, lhe sendo imanente, pré-ordena sua atividade, determinando-a.

9 Principalmente o Bruno Bauer das obras: Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Antichristen, Geschichte Deutschlands und der französischen Revolution unter der Herrschaft Napoleons e Hegels Lehre von der Religion und Kunst von dem Standpunkte des Glaubens aus beurteilt.

10 Pensa-se aqui em Axel Honneth, Jean-François Kervègan, Paul Ricoeur entre outros

11 Também chamados de Hilotas, na Grécia, eram servos e propriedade do estado. Não se deve confundir os Hilotas [servos] com os escravos, pois estes eram de outro estrato social

Agemir Bavaresco – PUCRS.

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – PPGFIL-UFRGS.

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Dissertatio | UFPEL | 1995

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