História da América Latina / Maria Ligia Prado

O espaço reservado à história da América Latina em editoras de livros didáticos e acadêmicos – assim como da África – tem se ampliado no decorrer dos últimos anos. Parte do resultado deve-se ao empenho de professores-pesquisadores dessa área, que têm empreendido inúmeros esforços para que os brasileiros conheçam melhor os fatos, personagens e processos que compõem a rica narrativa histórica dessa região tão complexa e diversificada em termos tanto geográficos quanto culturais. Embora essa realidade esteja se configurando, ainda é perceptível a ausência de trabalhos que sejam, além de acessíveis a públicos distintos, também, confiáveis, sob o ponto de vista histórico, teórico e metodológico.

A obra História da América Latina é parte integrante da Coleção “História na Universidade”. A larga experiência de pesquisa e de ensino na área de História da América de suas autoras, Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares, ambas, docentes-pesquisadoras da Universidade de São Paulo, confere legitimidade ao trabalho. Dividido em doze capítulos a publicação é composta por um panorama amplo de temas, privilegiando aqueles mais recorrentes nos cursos de graduação de História, na disciplina de América Latina.

Respeitando os protocolos próprios do ofício do historiador – leitura crítica das fontes, conhecimento sólido da bibliografia e emprego das ferramentas teóricas e metodológicas (p.9) –, as pesquisadoras demonstram cautelas necessárias na análise das conjunturas históricas e ações dos múltiplos sujeitos ali tratados. Distanciam-se, por exemplo, de armadilhas traiçoeiras, como dividir personagens em dois campos opostos e simplistas, que oscilam entre a “heroicização” e a “demonização”.

O leitor não encontrará análises e discussões metodológicas sobre as múltiplas fontes citadas – não é a proposta. Contudo, ao tratarem sobre os temas, fazem frequentes referências a romances, textos de imprensa, filmes, ensaios, memórias, cartas, imagens (pinturas, fotos), músicas e filmes que foram explorados – de forma crítica e aprofundada – por elas e/ou outros historiadores, noutros trabalhos nos quais se debruçaram sobre grandes questões da América Latina, analisando tais documentações. Algumas dessas pesquisas são relacionadas, no fim da obra, como indicações de leituras.

Prado e Soares fazem questão de ressaltar a dificuldade e, ao mesmo tempo, a urgência da ênfase às especificidades no trato das histórias dos países latino-americanos. Dessa forma, ao tratarem das temáticas, embora busquem estabelecer conexões entre os respectivos contextos históricos, contemplando experiências que transcenderam fronteiras nacionais, demonstram sérias preocupações em marcar as diferenças que caracterizaram a história de cada Estado nacional. Frente à impossibilidade de abordarem todos os temas e países de forma equânime, optaram por alguns enfoques com o formato “box”, de modo que certos temas e trajetórias biográficas foram analisados separadamente. Alguns deles: as independências do Haiti, do México e de Cuba; Reforma Universitária de Córdoba, de 1918; escravidão na América Espanhola; os conflitos políticos na região do Rio da Prata; a guerra entre México e Estados Unidos, a Guerra no Pacífico e suas implicações e um recorte biográfico de Eva Perón.

Sobre o Brasil, “parte da América Latina” – como gostam de sublinhar –, pode-se afirmar que não foi tomado como alvo de reflexões específicas. No entanto, as pesquisadoras traçaram uma narrativa paralela, travando aproximações com os demais países, desde o processo de colonização ibérica, as lutas por independências políticas, a formação dos Estados nacionais, chegando até o século XX, com assuntos ligados às Ditaduras Civis-Militares.

Optaram por iniciar o texto historicizando a denominação “América Latina”. Ali, já fica evidenciado o quanto a origem e difusão do termo trouxeram, no seu bojo, variados interesses – externos e internos – que estiveram presentes no tabuleiro das pelejas políticas e ideológicas. São colocadas em discussão as apropriações e manipulações do conceito bem como as disputas envolvendo interesses expansionistas, considerando os campos de atuação e influência por parte da Europa – naquele momento, França, em especial. Merece atenção a vertente mais recente, que considera que “[…] a denominação não foi imposta, mas cunhada e adotada conscientemente pelos latino-americanos, a partir de suas próprias reivindicações […].” (p. 9)

Ao abrirem o livro com o tema das identidades, tão caro aos pesquisadores da área, a América Latina é apresentada como um cenário marcado por complexas estratégias da parte de atores e interesses em disputa que se travaram (e se travam) no cenário geopolítico e cultural. Textos ensaísticos clássicos, bastante conhecidos por estudiosos da área são mencionados, com o intuito de dar uma dimensão do quanto a região tem uma história vibrante, além de mostrar os embates identitários em jogo. Entre outros, Nuestra América, do cubano José Martí, Carta de Jamaica, do venezuelano Simon Bolívar ou Ariel, do uruguaio Enrique Rodó.

As Independências Latino-americanas, um dos “grandes temas” de América, mereceu destaque e a análise considerou as dificuldades inerentes à difícil arte da conciliação de interesses, as disputas e visões divergentes de líderes políticos e grupos sociais que compuseram a trama que marcou o longo e complexo trajeto de luta. Não foi omitido o registro dos sentimentos díspares de líderes que, como Simón Bolívar ou Bernardo de Monteagudo conviveram com esperanças e desencantos ao longo do processo.

A “guerra” de símbolos, a construção de representações e discursos identitários, em disputa pelos sujeitos históricos, também estiveram presentes no momento da formação dos Estados nacionais, processo longo, marcado por inúmeros avanços e recuos na história de cada um dos povos da região. Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares deixam evidenciado, na escrita, o quanto o processo envolveu embates de forças antagônicas que evidenciaram dissensos regionais articulados em torno de duas forças principais: Liberais e Conservadores ou, no caso argentino, “Unitários” e “Federalistas”. Cada um dos grupos é bem examinado, de forma que o leitor possa entender os seus horizontes políticos e as razões de suas disputas.

O tema da “Modernidade” perpassa alguns capítulos, sendo entrelaçado, especialmente, com a temática da identidade nacional. Ao abordarem-no, não negligenciam as necessárias distinções entre conceitos relacionados (modernização e modernismos). No campo da Educação, enfatizam projetos culturais colocados em prática pelos governantes, em associação com artistas e intelectuais. Com campanhas de alfabetização e outras ações, eles buscavam “elevar” o nível cultural e técnico de grupos subalternos, preparando-os para as necessidades e exigências da “modernidade”. A leitura de artistas e intelectuais frente aos esforços de governantes e elites econômicas para engendrarem a modernização, não passou ao largo da análise. Seja quando esses artistas se referiam às mudanças, dando conotações positivas ou quando se manifestaram, denunciando os custos sociais e humanos que as inovações técnicas, o “desenvolvimento” alteraram as relações de grupos com a terra e com o trabalho.

Sobre o papel da Igreja Católica no imbricado jogo das questões políticas, em vez de simplesmente reforçarem a atuação da instituição ao lado de grupos conservadores que desejaram, desde a Colonização, a manutenção do status quo de grupos dominantes, bem como de antigos privilégios e prerrogativas assegurados a ela (educação, posse de terras), Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino exploraram as complexidades do papel desempenhado pela instituição, no contexto latino-americano. Ressaltam, claro, que sendo a Igreja altamente hierarquizada esteve, em inúmeros contextos, ao lado de grupos dominantes, usando de ideologias religiosas para dissuadir os rebeldes. No entanto, lembram que figuras atreladas ao universo religioso nem sempre estiveram do lado conservador, mas se destacaram em momentos importantes, como nas lutas pela Independência, atuando ao lado dos “rebeldes”, abraçando causas sociais de movimentos populares. Casos emblemáticos foram os curas Miguel Hidalgo e José María Morelos, que lideraram o primeiro movimento pró-emancipação do México em relação à Espanha, em 1810. A rebelião alimentou esperanças, ao proclamar o fim da escravidão negra, o fim do pagamento de tributos indígenas e propor a distribuição de terras – inclusive da Igreja –, contando, assim, com a adesão de indígenas e camponeses. Pela radicalidade contida no movimento, nessa fase inicial, logo foi sufocado e seus líderes executados.

Ao contemplarem numerosos temas, explorando um amplo recorte cronológico que foi do século XVI – marco do processo colonizador – até o século XX, incluíram múltiplos atores sociais que participaram dos eventos citados e narrados. Além dos “grandes vultos”, que se tornaram conhecidos pela liderança exercida nos movimentos políticos, outros sujeitos e suas formas de ações foram contempladas pelas autoras: soldados anônimos, intelectuais, negros, mulheres, indígenas, camponeses e operários. Vale ressaltar que não foram esquecidas as diversas formas com as quais aqueles que ocuparam o poder – no plano interno e externo –, em fases distintas da História, lidaram com as demandas dos grupos reivindicantes. Assim como em determinados momentos esses grupos não se privaram de usar a força para reprimirem duramente as demandas, em outras circunstâncias, viram-se obrigados a ceder, fazendo uso do diálogo e das negociações, desenhando, assim, novas configurações nas relações de poder.

Conceitos como “caudilhos” e “populismo”, usualmente utilizados erroneamente em determinados textos e contextos relacionados à América Latina, não compõem o repertório da escrita da obra. Este último, por exemplo, tão recorrente em segmentos da imprensa quando se referem a algumas lideranças latino-americanas, foi evitado pelas autoras, por entenderem-no “demasiadamente genérico, eclipsando as particularidades nacionais” (p. 131). Em vez disso, optaram por tratar de “políticas de massas”, discutindo ações de lideranças carismáticas de alguns países latino-americanos (anos 1940 e 1950), que se mostraram capazes de manter a ordem, num período em que as classes populares lutavam por ganhar espaço no cenário político e exigiam reformas. Sob a égide do Estado, uma série de mudanças ocorreram e as formas de ações desses governantes variaram entre reformas que concederam direitos sociais, propaganda, cooptação e, também, repressões.

Dois movimentos revolucionários ocorridos na América Latina, no século XX, mereceram maior atenção em História da América Latina: a Revolução Mexicana e a Cubana. Em comum, o fato de imprimirem novos contornos na ordem estabelecida, tanto no plano interno, quanto externo. A do México, por ter sido a primeira do século, antes mesmo que a Russa, ocorrida em 1917, quase uma década após a da América. Também, por seus desdobramentos políticos, culturais e sociais, envolvendo novas configurações nas relações de gênero, leis de reforma agrária, nacionalizações de bancos e empresas estrangeiras. A de Cuba, além de alguns desses aspectos, pelas consequências produzidas no cenário latino-americano. Uma delas e a mais crítica, por tornar-se símbolo de luta contra o imperialismo norte-americano. Sob o temor de que outras nações latino-americanas seguissem o “mau” exemplo cubano, redundou no apoio do “irmão do Norte”, os Estados Unidos, na implantação das ditaduras.

A partir dos anos 1960, tempos de “Guerra Fria”, quando duas ideologias dominantes provocavam polarizações no globo, os países da América Latina coincidiram no compartilhamento de experiências políticas de regimes autoritários. Com intervalos maiores ou menores e com distintos graus de repressão, guardam feridas abertas em diversos países, inclusive no Brasil. Não mais são denominadas simplesmente como “militares”, mas “civis-militares”, posto que, sabidamente, contaram com o apoio da parte significativa de forças conservadoras da sociedade civil – empresários, imprensa, Igreja, cidadãos comuns. São apresentadas, na obra, como resposta ao alto grau de mobilização de alguns setores em países latino-americanos naquele momento: sindicatos, partidos de esquerda, ligas camponesas, guerrilhas indígenas ou movimentos estudantis. Chile, Nicarágua, Peru, Paraguai, Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia, El Salvador são contemplados nessa questão, ressaltando-se as especificidades de cada caso.

“Cultura e Política”, além de ser abordagem presente durante todo o livro é, também, o título do último capítulo. A imagem da “Orquestra Sinfônica Simón Bolívar”, composta por 180 músicos venezuelanos que tocaram na Sala São Paulo, em 2013, foi a estratégia utilizada para encerrar a obra, focando a América Latina Contemporânea. O resultado visto na apresentação em São Paulo teve sua origem em 1975, por meio da iniciativa de um musicista-economista que, como outras iniciativas colocadas em prática na América Latina, ao longo do século XX, buscou difundir acesso gratuito à cultura – nesse caso, educação musical – promovendo inclusão social e cultural a jovens e crianças provenientes de meios populacionais carentes.

A música como intervenção social foi motivo para reflexões, colocando a ênfase do capítulo sobre a Nueva Canción, movimento artístico e político que articulou nomes da música de alguns países no engajamento de oposição aos governos militares, nos anos 1960 e 1970. O pano de fundo serviu para evidenciar o quanto, em diversos momentos e contextos, a circulação de ideias e o compartilhamento de experiências contribuíram para que latino-americanos se articulassem em utopias e perspectivas de transformações sociais e políticas.

O contexto latino-americano das últimas décadas, marcado por cenários de ascensão de mulheres ao andar mais alto da política; a chegada ao poder de governos “progressistas” em alguns países, avanços sociais e, por sua vez, numa perspectiva ainda mais recente, as reações de grupos conservadores às mudanças colocadas em prática; a apresentação de possibilidades de recomposição das relações de Cuba com os Estados Unidos são fatos que conferem à obra uma relevância ainda maior, já que os leitores terão condições de compreender melhor o diálogo entre passado e presente.

História da América Latina atende, portanto, às expectativas e necessidades de um público bastante amplo – acadêmico ou não. Aos “iniciantes”, o prazer da leitura de uma obra na qual poderão embarcar no horizonte histórico (político e cultural) latino-americano, conduzidos pela experiência de duas pesquisadoras sérias que decidiram compartilhar parte do seu fascínio por essa região do globo. Aos “iniciados”, a satisfação de terem contato com uma narrativa histórica livre de voluntarismos e anacronismos, comuns a algumas obras que, essencialmente comprometidas com o aspecto comercial, são lançadas no mercado editorial vendendo-se como “guias”, isto é, como promotoras de um suposto e ilusório contato com a “verdadeira” história da América Latina. Sem tais pretensões, a obra resenhada cumpre a função de atender a estudantes e professores que queiram e necessitem acesso a abordagens e interpretações fundamentadas, oferecendo importante contribuição no que concerne à construção do conhecimento histórico crítico.

Romilda Costa Motta – Doutora pela Universidade de São Paulo. Professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-SP). São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].


PRADO, Maria Ligia; SOARES, Gabriela Pellegrino. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. 206p. Resenha de: MOTTA, Romilda Costa. A História da América Latina sob perspectiva crítica. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.21, p.285-290, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – SOARES (VH)

SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP, 2007. Resenha de: MISKULIN, Sílvia Cezar. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, p. 639-642, jul./dez., 2007.

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 analisa com rigor o surgimento da literatura infantil no Brasil e na Argentina, na primeira metade do século XX. O trabalho que agora temos o prazer de ler é fruto da Tese de Doutorado de Gabriela Pellegrino Soares, defendida no Departamento de História da USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Ligia Coelho Prado.

A autora debruça-se sobre a formação da literatura infantil, destacando as semelhanças e diferenças entre os escritores argentinos e brasileiros. Diferenciando-se da literatura produzida para a escola, a literatura infantil constituiu-se em um campo próprio, no qual se buscava a ampliação do público leitor e a democratização do conhecimento por meio das produções e traduções de obras voltadas para o público infantil. O objetivo da pesquisa é compreender os esforços realizados no Brasil e na Argentina para promover a prática de leituras não escolares entre as crianças. As diferenças entre os dois países foram mostradas pelo panorama que Gabriela Pellegrino Soares traçou da rede de ensino primário e de bibliotecas escolares e populares presentes na Argentina desde fins do século XIX, enquanto no Brasil as políticas públicas voltadas à difusão da leitura foram bem mais restritas e efetivaram-se somente no século XX.

Além desta diferença de contexto, Gabriela soube muito bem enfocar o repertório nacional que compunha a literatura infantil em cada um dos países. Na Argentina, muitos escritores se dedicaram a temas nacionalistas e trabalharam em suas obras elementos da história da nação, do folclore e da natureza. Dentro deste grupo a autora apresenta as obras infantis de Ada María Elflein, Alvaro Yunke, Hugo Wast, Rafael Jijena Sánchez, Horacio Quiroga, Guillermo Enrique Hudson e Ana Maria Berry.

Entretanto, o trabalho destaca um outro horizonte na literatura infantil argentina, conformado pela revista Biliken e seu criador Constancio C. Vigil. O objetivo da publicação era a formação da bagagem cultural da criança, que se tornaria no futuro o homem moderno, self-made man. Na revista, ecoavam as idéias da escola nova, que buscava uma progressiva autonomia da criança. Além disso, Biliken era irreverente, jogava com o humor, a imaginação e a estética para valorizar o esforço e a inteligência como forma de ascensão social.

A morte de Constancio C. Vigil em 1954 encerrou uma época na literatura infantil argentina e marcou o recorte cronológico final da pesquisa. Já o recorte inicial do trabalho, 1915, refere-se ao ano de surgimento da coleção “Biblioteca Infantil”, da editora Melhoramentos, a pioneira no Brasil no campo da literatura infantil, que será estudada na segunda parte do livro.

Outro destaque dado por Gabriela Pellegrino Soares à literatura infantil argentina passou pela trajetória de Javier Villafañe, criador do teatro de títeres. Villafañe trabalhava com as dimensões lúdicas, imaginativas e poéticas através da narrativa oral, dialogando também com os princípios da renovação educacional da escola nova. Muitas de suas histórias também acabaram editadas.

No Brasil, o livro enfocou detalhadamente a produção dos escritores Monteiro Lobato e Tales de Andrade. As obras de Tales de Andrade tinham balizas ideológicas, cívicas e educacionais muito bem definidas. A maioria de suas histórias tinha como protagonista uma criança do campo que conseguia, graças aos estudos, tornar-se um “arauto das luzes” em seu meio. Neste caso, o saber letrado significava o progresso para a população rural.

Monteiro Lobato foi um marco no surgimento da literatura infantil brasileira. Ele primou pela elaboração artística nos livros infantis, pois seu objetivo era conquistar novos leitores. Gabriela relaciona as concepções educacionais de Monteiro Lobato com as idéias de Anísio Teixeira, já que Lobato via na escola uma parceira da literatura no projeto de modernização da sociedade brasileira. Anísio Teixeira, por sua vez, foi o introdutor da filosofia de John Dewey no Brasil, que propunha a integração da aprendizagem escolar com as experiências sociais.

Lobato e Teixeira acreditavam que a educação infantil deveria se dar em um “meio purificado”, em que se eliminariam os aspectos nocivos do ambiente social, sem nenhum tipo de violência física ou psicológica. O alvo era incentivar a busca pela melhoria de vida e a integração social das crianças. Em sua minuciosa pesquisa, Gabriela Pellegrino Soares mostrou como as obras de Monteiro Lobato criaram situações de aprendizagem em que se exemplificaram as práticas educacionais de Anísio Teixeira.

A autora também ressalta que os elementos críticos, ateus e irreverentes da obra de Monteiro Lobato encontraram resistências entre certos mediadores culturais, por exemplo, os censores católicos, as autoridades governamentais e até entre certos expoentes da escola nova, como Lourenço Filho e Cecília Meireles.

A segunda parte de Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil enfoca sobretudo as mediações e os mediadores culturais, ou seja, indivíduos e instituições que se dedicaram a criar, divulgar ou circular a literatura infantil. Duas mediadoras foram selecionadas pela autora: Gabriela Mistral, escritora chilena, mas com uma importante atuação no campo educacional argentino e mexicano e, no caso do Brasil, a escritora Cecília Meireles. Gabriela Mistral foi professora no ensino público do Chile por duas décadas e atuou nas reformas educacionais de José Vasconcelos no México. Difundiram-se na Argentina suas perspectivas de educação infantil, muito afinadas com as idéias da escola nova. Além disso, em suas obras criou poesias voltadas às crianças, trabalhando com elementos do folclore, do campo e da cultura popular.

Cecília Meireles participou do movimento escolanovista, além de assumir a direção do Instituto de Pesquisas Educacionais no Rio de Janeiro. Fundou a Biblioteca Popular Infantil em 1934, que se tornou o Centro de Cultura Infantil no Rio de Janeiro, com a promoção de inúmeras atividades culturais. Entretanto, em 1937, foi invadido e fechado por ordem do interventor sob o pretexto de possuir em seu acervo um livro de “conotação comunista”: As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain.

Gabriela Pellegrino Soares também nos presenteia com a apresentação das produções infantis de Cecília Meireles e aproxima sua obra daquela elaborada por Mistral: as duas escritoras valorizavam a sensibilidade e a vivacidade infantis, ao acreditarem que o amor, a alegria e a harmonia estariam no cerne das atitudes voltadas às crianças. O livro não deixa de apontar as diferenças entre elas, já que Cecília Meireles combatia o ensino religioso nas escolas brasileiras, enquanto que Gabriela Mistral tinha uma formação cristã.

Ao destacar instituições culturais que foram mediadoras das leituras infantis, Gabriela Pellegrino Soares elegeu duas bibliotecas modelares: a Biblioteca Nacional de Maestros, de Buenos Aires, cuja seção infantil foi fundada em 1916 por Leopoldo Lugones, e a Biblioteca Infantil de São Paulo, criada em 1935, durante a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, e dirigida por Lenyra Fracarolli.

Ao analisar o acervo, os funcionários e o ambiente das bibliotecas, além da freqüência das crianças às mesmas, o objetivo do trabalho foi constatar como as bibliotecas participaram da criação de repertórios culturais e da construção de atividades sociais junto ao público infantil, ao visar sua formação moral e intelectual e a democratização do acesso aos livros. Na visão da autora, as duas Bibliotecas foram formas de realização de ações de modernização cultural por parte do Estado, perante a sociedade da época, já que divulgaram um determinado repertório e também contribuíram para a internalização de atitudes e de princípios morais e estéticos nas crianças.

Por último, analisa as concepções editorais da Melhoramentos, cuja coleção “Biblioteca Infantil” foi dirigida por Lourenço Filho. Por meio da análise de seus pareceres, Gabriela Pellegrino Soares pode ricamente nos mostrar o papel de destaque que a literatura infantil ocupou nesta editora, já que Lourenço Filho acreditava que as obras infantis deveriam complementar o papel da escola. A autora destacou como o diretor da coleção tinha restrições aos contos de fadas e também as depurações que fazia com os contos da tradição oral popular. Como as obras infantis sempre passavam pela leitura de um educador antes de chegar nas mãos das crianças, o objetivo de Lourenço Filho era conquistar a confiança dos mediadores culturais, para finalmente chegar às crianças de forma criativa e recreativa.

Ao realizar uma extensa e exaustiva pesquisa em diferentes tipos de fontes raramente examinadas,1 o livro de Gabriela Pellegrino Soares proporciona aos leitores do início do século XXI um olhar esclarecedor das concepções intelectuais, educacionais e literárias que guiaram os diversos agentes e instituições que buscaram conformar um campo da literatura infantil no Brasil e na Argentina na primeira metade do século XX. Trata-se de uma contribuição fundamental para pensar as diferenças e semelhanças que certas vezes distanciaram e muitas outras aproximaram a história dos dois países vizinhos na América Latina.

Nota

1 Walter Benjamin dedicou-se em alguns trabalhos a analisar livros infantis. Veja: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004.

Sílvia Cezar Miskulin – Doutora em História pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutoranda em História/ Universidade de São Paulo/ bolsa FAPESP. E-mail:  [email protected]

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