A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (RBH)

ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. 204p. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.

A publicação de A experiência do tempo, de Valdei Lopes de Araujo, deve ser vivamente aproveitada. Trata-se de um livro rico, digno de se encontrar nas estantes dos interessados em história política e intelectual do Brasil no século XIX, mas também nas bibliotecas dos estudiosos da história da historiografia e – por que não? – da filosofia da história. Melhor ainda: pode despertar no estudioso de vocação empírica o interesse pelas questões filosóficas mais abstratas, bem como mostrar à mente mais especulativa e reflexiva que os conceitos podem encontrar correspondência na realidade histórica mutável.

Valdei Lopes de Araujo é professor na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), onde integra o Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM). O livro é fruto de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, resultante de pesquisa orientada por Luiz Costa Lima. A refinada abordagem feita por Valdei Araujo se explica, sem nenhum demérito para a originalidade da obra, em parte pela formação obtida sob orientação de um intelectual que sempre estimulou a reflexão teórica e foi um dos responsáveis pela difusão da hermenêutica literária no Brasil, e que resulta na grande contribuição do livro de Valdei Araujo para o debate teórico e historiográfico. Seu mérito, portanto, consiste na sofisticada incorporação de discussões teóricas desenvolvidas na Alemanha na segunda metade do século XX, sobretudo aquelas herdeiras e críticas da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, autor que influenciaria tanto o historiador Reinhart Koselleck como um teórico e crítico literário do porte de Hans-Ulrich Gumbrecht. Sente-se a influência de Koselleck e Gumbrecht no texto de Valdei Araujo: do primeiro, a preocupação com a história conceitual, gênero no qual o autor se sai extremamente bem, dando bom exemplo de como os conceitos não são reflexos polidos da vida histórica, mas a própria forma pela qual esta se torna inteligível. Destarte, o conceito é lugar de experiência, e não de distanciada e desinteressada cognição por parte de intelectuais diletantes. Nada melhor que uma boa obra de história dos conceitos para que o estudioso da história do Brasil e da historiografia brasileira tenha a chance de manchar a imagem homogênea do intelectual brasileiro retórico e desocupado, que se preocupava com o mundo das letras somente por distração e ornamento. Mas o conceito – e aqui se percebe a influência de Gumbrecht – é também fruto de uma radical presença histórica, situada circunstancialmente. O livro, portanto, é profundamente feliz em se apropriar de textos teóricos como os de Koselleck e Gumbrecht sem, em momento algum, cair no erro de fazer de sua pesquisa uma exposição de conceitos importados, uma aplicação que viria meramente a confirmar o já sabido. Assim, embora a obra lide com fontes em grande parte já analisadas por outros historiadores, a maneira de lidar com elas é bastante original e criativa.

O livro inicia-se com uma questão fundamental para se pensar não somente a independência do Brasil, mas o que ela representa categorialmente como experiência moderna. Como diz Valdei Araujo em suas considerações finais: “A relação com o tempo e com o passado estava ainda condicionada, de um lado, por elementos clássicos da imitação e do exemplo e, de outro, por um entendimento geral do universo como a repetição de leis eternas e eventos cíclicos” (p.185).

A primeira parte de A experiência do tempo, denominada “A História do Sistema”, basicamente descreve e analisa a trajetória um tanto trágica de José Bonifácio de Andrada e Silva, o qual, tomando por base ainda uma visão cíclica de história, concebia o sentido da história do Brasil a partir da regeneração. Regeneração é possível somente se for entendida como a etapa subsequente à decadência, termo fundamental para a compreensão morfológica das ciências naturais. A propósito, é instigante perceber a semelhança do debate intelectual brasileiro sobre a modernização com a discussão travada no espaço alemão no último quarto do século XVIII, como demonstram as pesquisas de Peter Hans Reill.1 Porém, “regeneração”, para Bonifácio, se implicava a recuperação da essência de ser português, ainda que transplantada para o Brasil, não significava um retorno. Para usar os termos do autor, ao “espelhar” a história de Portugal, a história do Brasil abria uma possibilidade em sua busca de consciência, a de ser “uma outra história que já não podia mais ser de Portugal” (p.63). É esta a dialética delineada por Valdei Araujo, a do “tempo como repetição” (título do primeiro capítulo) para o “tempo como problema” (título do segundo capítulo). A tentativa da natural superação da decadência abria, portanto, a fresta para o projeto moderno. Afinal, a regeneração dar-se-ia em uma natureza virgem, pura, plenamente visível em seus princípios criadores, a qual teria sua potencialidade moldada pela ciência.2 O dilema da singularidade da história brasileira, posto pelo autor desde Bonifácio, é detidamente desdobrado no exame da possibilidade da existência histórica da língua e da literatura brasileiras, que deveriam ser construídas tendo por base o eixo clássico greco-latino, mas sem fazer dessa base um modelo a ser meramente copiado.

A segunda parte do livro (“O Sistema da História”), que compreende um excurso e dois capítulos adicionais, trata justamente da maneira pela qual os intelectuais brasileiros enfrentaram o incômodo gerado pela necessidade incontornável de se afirmar a singularidade nacional. Incômodo? Necessidade? Sim. O autor afirma-os muito precisamente: “As teorias disponíveis que poderiam explicar a constituição de novas formas, sejam animais, sejam políticas, estavam muitas vezes fundadas na ideia de degeneração” (p.126), e conclui, demonstrando a dimensão do problema, que, sendo verdadeiro o modelo organicista, “a mudança só poderia ser entendida como aperfeiçoamento, regeneração ou degeneração. O mesmo não seria válido então para as nações? Como entender o surgimento de uma nova nação?” (p.126).

Valdei Araujo apresenta, então, os esforços dos intelectuais envolvidos com a revista Nitheroy (como Domingos José Gonçalves de Magalhães) e com a própria fundação do IHGB. Se na primeira se percebia a tonalidade romântica com a qual se coloriria a singularidade nacional em fase de afirmação (mas na qual a história pertencia a um grupo amplo das “letras”), no documento fundador do IHGB, de 16 de agosto de 1838, percebe-se a presença de traços marcantes daquilo que – lembra muito bem o autor – Arnaldo Momigliano considerou fundamental para a caracterização da historiografia moderna, a saber, a conjunção da tradição antiquária e erudita, a preocupação com o sentido filosófico da história, e, por fim, a narrativa. Para Valdei Araujo, o primeiro traço é muito mais visível que os dois subsequentes, principalmente o terceiro, ainda muito discreto.

Outra faceta da modernidade ressaltada pelo autor, tão importante quanto o estabelecimento das bases da pesquisa histórica (mas dela decorrente), reside na abertura da possibilidade da experiência no lugar da imitação. O fato, assim, não é a recapitulação de um exemplo já feito, registrado, ensinado e conhecido, mas, sobretudo, a expressão da individualidade de uma época. O fato, portanto, é impensável dentro do modelo cosmológico ou exemplar, mas torna-se cognoscível em sua assimilação pela pesquisa antiquária e erudita no escopo da tentativa de afirmação da singularidade nacional.

A singularidade, de alguma forma, operava uma interessante transformação semântica: a degeneração deixava lugar para a consciência da finitude, para a consciência de uma experiência tipicamente moderna – a sensação da transitoriedade de todas as experiências. O projeto inicial do IHGB era, mostra muito bem Valdei Araujo, marcado por uma ambiguidade essencial: distante do organicismo que animara um José Bonifácio, o mundo letrado que girava em torno ao Instituto não respirava ainda o ar do pensamento evolucionista, naquele momento o único capaz de, para me apropriar de uma expressão de Henry James, ser o fio capaz de unir todas as pérolas. Como diferenciar as épocas da história do Brasil? Como organizar os fatos?

O livro de Valdei Araujo cumpre papel importante no ambiente atual de discussões teóricas e historiográficas, bastante marcadas pelo embate entre o ceticismo quase cínico dos ditos “pós-modernos” e os racionalistas. Afinal, Experiência do tempo mostra que a historiografia brasileira dá uma guinada fundamental em um momento de crise de orientação – para usar um termo de Jörn Rüsen. Portanto, não há problema algum em se escrever história em tempos de incerteza. De alguma maneira, sempre foi assim e esse foi o desafio sempre respondido, ainda que de muitas maneiras diferentes, pelos historiadores.

Notas

1 Cf. REILL, Peter Hans. Vitalizing nature in the Enlightenment. Berkeley: University of California Press, 2005;         [ Links ] ______. Die Historisierung von Natur und Mensch. Der Zusammenhang von Naturwissenschaften und historischem Denken im Entstehungsprozess der modernen Naturwissenschaften. In: KÜTTLER, Wolfgang; RÜSEN, Jörn; SCHULIN, Ernst. Geschichtsdiskurs Band 2: Anfänge modernen historischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer, 1994.         [ Links ]

2 Nesse sentido, permito-me uma comparação. José Bonifácio lembra muito o Goethe que viaja pela Itália. Na península, encontra a serenidade juvenil e a naturalidade de cuja falta tanto se ressentia em Weimar, onde já era um grande nome intelectual, sufocado pelas formalidades cortesãs. Vale lembrar que ambos – Bonifácio e Goethe – dedicavam-se largamente à ciência natural. Para uma visão da concepção de natureza em Goethe, ver MOLDER, Maria Filomena. O Pensamento morfológico de Goethe. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995.         [ Links ]

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto II do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2121, Bloco H, sala 1H42. 38400-902. Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: [email protected].

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A atualidade do acontecer: o projeto dialógico de mediação na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer – ARAÚJO (HH)

ARAÚJO, André de Melo. A atualidade do acontecer: o projeto dialógico de mediação na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. São Paulo: Humanitas, 2008, 240pp. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Hans-Georg Gadamer e a tradição. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.299-305, março 2010.

O livro A atualidade do acontecer, de André de Melo Araújo, originado de uma dissertação de mestrado defendida na USP, é, sem dúvida, uma contribuição relevante para as reflexões teóricas sobre história e historiografia no Brasil.

Seu principal valor se encontra no esforço do autor em compreender a obra de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), sobretudo Verdade e Método, de 1960, para a hermenêutica histórica. Dentre os historiadores brasileiros, ou bem estou bastante desatualizado na bibliografia especializada, ou creio que nenhum se ocupou em escrever um livro inteiramente dedicado a Gadamer.

Isto, por si só, já recomenda a leitura de A atualidade do acontecer,[1] publicado pela editora Humanitas, com apoio da FAPESP.

Mas não é só uma questão de haver-se preenchido uma lacuna. O fato de se publicar, no Brasil, um livro sobre Gadamer escrito por um historiador é uma oportunidade para que se debata intensamente a relação entre a teoria da história e a filosofia, algo tão difícil quanto raro. E, suspeito, a razão desta ausência de debate se deve à forma como nós, brasileiros, e, no caso específico, historiadores brasileiros, herdamos as peculiaridades do contexto intelectual alemão. Mais especificamente, como os historiadores brasileiros, em geral (há sempre as exceções de praxe), reagem ao nome de Martin Heidegger. Somese a isto ao fato de se evitar, mesmo na Alemanha, cautelosamente o confronto entre a teoria da história com o projeto de uma ontologia fundamental de procedência fenomenológica. Jörn Rüsen, por exemplo, um dos grandes nomes da teoria da história na atualidade, talvez ainda nos deva tal embate. [2]Gadamer paga, portanto, um preço alto por ser vinculado a Heidegger. Corrigindo: os historiadores brasileiros é que exigem tal preço, mas que se explica pelo fato de um dos filósofos mais importantes do século XX ser lembrando pela comunidade historiográfica nacional, sobretudo, em duas ocasiões: como um dos precursores filosóficos do linguistic turn e como alguém que não escondeu suas simpatias pelo nacional-socialismo.

Portanto, repito: que um jovem historiador tenha trazido Gadamer para o debate, em forma de livro, é, em si, uma oportunidade a ser aproveitada.

Uma chance para enriquecer o debate na área de teoria da história.

Para além disto, como aborda o autor o tema? Hermeneuticamente, respondo. E o que isto significa? Nas palavras do autor: “(…) este trabalho não consegue escapar de uma apresentação circular. Aqui não se trata de uma exposição sistemática dotada de um começo e de um fim claros, já que o desenvolvimento interpretativo pressupõe a totalidade dos esforços mediadores

Há mais de dez anos estudando teoria e filosofia da história e historiografia alemã, eu mesmo também não posso oferecer uma boa razão por ainda não ter pensando na possibilidade de um confronto entre Heidegger e a teoria da história.

do pensamento” (ARAÚJO 2009, p.19). Um texto hermenêutico é (ou pode ser), portanto, circular. Sua forma de apresentação não é um molde exterior ao conteúdo, mesmo porque, se formos coerentes com o princípio hermenêutico, não há sentido que seja definitivo. Não se trata de relativismo, mas sim de constantemente fazer o esforço de construir o sentido, recuando, deixando-se sempre e novamente ser atingido pelo passado, e jamais tomá-lo como pronto, dado e dito: o processo interpretativo se faz na escrita, não sendo, pois, uma operação exclusivamente mental passada ao papel.

E é a partir deste critério que precisamos compreender também o esforço de André de Melo Araújo, a saber: entre outras possibilidades dadas no pensamento gadameriano, trata-se de entender a historicidade do método, perceber a marca de sua finitude de modo a evitar o que nele se apresenta de meramente instrumental, como algo dado fora de um mundo. É possível, portanto, estabelecer o diálogo entre teoria da história e hermenêutica filosófica tendo, como termo comum, o método. Por inúmeras vezes, o autor mostra o quanto Gadamer critica a redução de uma concepção de história à epistemologia, isto é, a uma noção dicotômica entre sujeito e objeto. Logo no princípio do livro, lê-se: “O fenômeno da história, portanto, não é puro objeto adaptável aos padrões métricos da ciência nem à sua aferição linear e contínua do tempo, mas é refratário à denominação exteriorizante de objeto, de instância alheia à temporalidade que o constitui” (ARAÚJO 2009, p.33).

Aliás, permita-me o leitor a digressão, talvez poucos exercícios hoje fossem mais ricos, na área de teoria da história, do que comparar, por exemplo, a concepção de unidade do método histórico, exposta por Jörn Rüsen em Reconstrução do Passado, com Verdade e Método, de Gadamer. Portanto, uma reflexão de fôlego, como a feita por André Araújo, vem em boa hora. Mais ainda, e sigo com a digressão, pensar linguagem e história a partir de Gadamer implica discutir o problema em bases outras, para além das contribuições de Hayden White e divulgadores. O livro indica que a questão é mais profunda: basta lembrar que Gadamer jamais dispensa a dialética de Hegel, autor tratado pelos “pós-modernos” como se fosse um vírus letal a ser isolado – o que implica dizer que nunca é lido. Dialética, linguagem e história estão juntas em um Gadamer leitor de Hegel, e, felizmente, também no livro de André Araújo.

E, de fato, este é um dos assuntos centrais do livro. Nas palavras do autor: “O caminho de leitura aqui apresentado é balizado pela proposta teórica de validação de um projeto de verdade próprio às reflexões das ciências humanas, cuja possibilidade de compreensão é tecida pela mediação da linguagem” (ARAÚJO 2009, p.17). Verdade e linguagem, portanto, não se excluem.

Todo o argumento do autor se desenvolve em três partes. Cada uma delas abre veredas para muitas discussões. Dentre estas, destaco algumas, pois considero impossível tratar de tudo que suscita discussão e interesse. Espero que o corte não seja arbitrário e caprichoso.

A primeira parte, denominada “A Deformação especular do foco da subjetividade”, talvez tenha o seu eixo na indicação de como o humanismo científico encobriu como pôde “o amargo sabor da finitude” (ARAÚJO 2009, p.26). Na contramão da marcha vitoriosa da ciência, haveria, então, a hermenêutica compreensiva, na qual a finitude se mostra em um horizonte que a torna evidente. E esta finitude, afirma-nos o autor, se mostra em inúmeras experiências: do não entendimento, do reconhecimento de que o outro pode ter razão e de que já estamos inseridos em uma estrutura do tempo e em uma pré-compreensão do mundo. Em uma tradição.

Ainda nesta primeira parte, é digno de elogios, embora eu seja suspeito em fazê-lo dado o meu interesse pelo tema, que o autor dedique tantas páginas ao conceito de Bildung, a partir do qual o embate com o humanismo clássico é feito.3 Segundo André Araújo, o conceito hegeliano de Bildung se faz presente na obra de Gadamer na medida em que “(…) nos remete tanto para a finitude da operação do juízo, para os limites da capacidade de julgar, quanto para a capacidade de cumprir as obrigações para com o outro. Justamente aqui reside, acreditamos, o ponto máximo do interesse gadameriano, cuja hermenêutica se volta para a possibilidade de que o outro tenha razão” (ARAÚJO 2009, p.

43). Some-se a isto o fato do homem culto, para Hegel, ser aquele que conhece do ponto de vista universal – aliás, além de passagens da Propedêutica filosófica, o autor poderia também usar passagens semelhantes da Razão na História, algo que permitiria, inclusive, um debate interessante entre os conceitos de tradição, em Gadamer, e de Espírito, em Hegel. Fica apenas aqui dada a sugestão.

Lamento, apenas, que o autor, no momento em que marca a diferença entre a acepção clássica e a compreensão gadameriana de Bildung, faça-o com demasiada rapidez. Afinal, qual seria a conotação clássica? A de Goethe, Wilhelm von Humboldt, Schiller, e, claro, de Hegel? Se Hegel é um dos representantes eminentes da visão clássica da Bildung, o que Gadamer aproveitaria e o que ele descartaria do projeto hegeliano de formação? Como leitor, fiquei na dúvida se o autor assume a visão de Gadamer exposta em Verdade e Método (cf. GADAMER 1990, p.15-24), ou se a amplia, utilizando outros textos da mesma tradição. Se já dei uma sugestão, agora faço uma pequena provocação: como compreender a obra de Gadamer a partir da idéia de tradição. O ponto é: e se os humanistas estiverem com a razão? Neste sentido, me parece que o autor adota uma postura excessivamente empática com seu autor, como se ele não pudesse não ter razão – algo que, hermeneuticamente, é controverso, na medida em que, segundo o próprio Gadamer em passagem citada por André Araújo, “a interpretação se torna necessária onde o sentido de um texto não se deixa compreender imediatamente” 3 Apenas discordo do autor quando ele afirma, já nas páginas conclusivas, que “a política é exatamente o componente fundamental que se encontra enfraquecido na formulação humanística da Bildung”.

Imagino que o autor tenha se atido à idéia difundida, entre outros, por Fritz Ringer, mas creio que a obra de Wilhelm von Humboldt, importante não somente para a lingüística e para a teoria da história, mas para a teoria política (é considerado uma das referências fundamentais do liberalismo clássico) poderia render pensamentos mais robustos sobre a concepção política de Bildung. De maneira menos direta, o próprio Hegel, de modo algum um liberal clássico, também, em sua Filosofia do Direito, não deixou de usar o termo Bildung.

(apud ARAÚJO 2009, p.168). Ora, não estou a dizer que André Araújo considera o texto de Gadamer “claro como água de riacho”, como diria Rubem Braga, mas que, mesmo adotando a estratégia – essa sim hermenêutica – de escrever de maneira mais elíptica, em que o sentido nunca está dado de antemão, pareceme que não há espaço para impasses e, portanto, incompreensões em Gadamer.

É bem verdade, por outro lado, que André Araújo afirma que Gadamer aproveita de Hegel a idéia de Bildung como superação do imediato, mas sem a dissolução da finitude que ocorreria em Hegel (cf. ARAÚJO 2009, p.53).

Ainda na primeira parte, o autor discute outro ponto fundamental: a crítica gadameriana ao historicismo, ou melhor dizendo, ao tratamento metódico do acontecer histórico, que partiria, necessariamente, de uma separação entre sujeito e objeto. Aqui me parece que o autor poderia ter ido mais longe, e consultado, diretamente, os textos dos autores apresentados por Gadamer em “Geschichtliche Vorbereitung”, item I da segunda parte de Verdade e Método. É bem conhecida a intenção de Gadamer em mostrar que o esforço dos historiadores e teóricos da história do XIX foi em vão: ao tentarem construir outro modelo de ciência, exclusivo para as ciências humanas, Ranke, Droysen, Dilthey e outros ficaram presos também na rede que nega a finitude do conhecimento. Gadamer, sinceramente, me parece apressado neste assunto – ao menos no que diz respeito a Droysen, ele me parece errar o alvo (cf. GADAMER 1990, p.274-275). Basta ler um trecho da Historik, logo em seu início: Pois cada ponto no presente, cada coisa e cada pessoa, é um resultado histórico, contém em si uma infinidade de relações, que estão introjetadas e internalizadas. (…) O homem ilumina seu presente com um mundo de lembranças, que não são arbitrárias, caprichosas, mas que são o desdobramento (…) daquilo que ele tem em torno de si e em si como resultado dos tempos passados; ele tem esse momento, em uma primeira instância, imediatamente, sem reflexão, sem consciência; ele o tem, como se não o tivesse, e somente quando ele o observa e o traz à consciência, ele reconhece, o que ele tem de si neles, nomeadamente, a compreensão de si mesmo (DROYSEN 1977, p.10).

Claro que não pretendo dizer que Droysen é um precursor de Heidegger.

Isto seria absurdo, mesmo porque Droysen ainda aposta, como bom homem do século XIX, na consciência, no método e na reflexão controlada. Mas, de modo algum, consciência e reflexão operam uma separação entre sujeito e objeto como condição da ciência. Em heideggerianês: para Droysen, de alguma maneira o homem já se vê aberto para a estrutura na qual sempre já foi lançado.

Ele se vê como parte de uma tradição. A diferença, claro, é que, a partir daí, será possível ainda, para Droysen, propor uma metodologia.

Não vem tanto ao caso, nesta resenha, criticar Gadamer ou fazer a apologia de Droysen, mas de perguntar por que motivo Gadamer partiu de uma concepção de ciência algo redutora, como se todas as concepções de ciência do século XIX fossem uma vaga mistura de positivismo com iluminismo.

O autor mesmo afirma, em uma nota ao pé da página, na última parte do livro, que não lhe cabia verificar se a interpretação de Gadamer sobre o historicismo estava correta ou não, interessando-lhe apenas os desdobramentos da crítica de Gadamer à ciência (cf. ARAÚJO 2009, p.169). Não se trata de cobrar algo que o próprio autor não pretendeu trabalhar, mas de se indagar se não se ganharia de fato se tal confronto tivesse sido feito. Neste aspecto, André de Melo Araújo me parece, mais uma vez, ter aderido excessivamente às teses de Gadamer: Eis o abalo que o pensamento gadameriano promove no cerne da razão, que se deve descolar do mais puro plano da idealidade transcendente, em que a apreensão totalizada, acabada e absoluta da realidade seria possível, para reconhecer o horizonte temporal de sua própria conformação histórica.

A idéia gadameriana de razão se configura como histórica, e o jogo em meio ao qual ela se encontra é marcado pelo vigor presente da história (ARAÚJO 2009, p.61).

Pergunto: seria a configuração histórica da razão efetivamente um abalo causado pelo pensamento de Gadamer? Em Johann Gottfried Herder isto já não aparece, quando ele mesmo, ao escrever sua breve e irônica filosofia da história em 1774, afirma que, ao tentar escrever generalidades, reconhece sua própria finitude? Cito um breve trecho: Ninguém no mundo reconhece mais do que eu as fraquezas da caracterização geral. Pinta-se o quadro de todo um povo, de toda uma época, de toda uma região. Quem foi assim que pintamos? Que imperfeito o instrumento da representação (…) Quem terá notado o que há de indizível na tarefa de dizer qual a propriedade específica de um homem e de assim dizer distintivamente aquilo que o distingue? (cf. HERDER 1995, p.34).

É verdade também que a solução teológica do protestante Herder não será imitada por Gadamer, mas, de alguma maneira, na história do romantismo hermenêutico, o reconhecimento do próprio limite, e, portanto, da alteridade, é algo que já se faz – talvez não com o refinamento de um Gadamer, e, muito menos, com o impacto de um Heidegger, mas, também, considero ainda que uma leitura de Gadamer há de ser feita tendo, ao lado, as obras por ele criticadas.

Por que não nos propormos a uma experiência própria de leitura dos textos da tradição, para que possamos nos apropriar delas, herdá-las? Afinal, se se afirma que o pensamento de Gadamer realizou um abalo, imagino que este abalo tenha sido dado no escopo de uma tradição. Daí lamentar a opção do autor em não averiguar a procedência das críticas de Gadamer.

Na segunda parte do livro, “O núcleo dialético do dialogismo lingüístico”, André Araújo se dedica a retomar a discussão sobre linguagem e verdade, anunciada, inclusive, como um dos eixos em torno do qual seu argumento gira.

Alçando o debate à devida complexidade, o autor afirma: É importante enfatizar que Gadamer não abandona radicalmente a idéia de razão [Vernunft], mas sim o revestimento instrumentalizado do conceito pela ciência, ou mesmo sua forma absolutizada pela filosofia hegeliana. A razão, desfeitos estes dois percalços, sustenta parte do esforço dialógico no encontro do outro e na determinação compreensiva da consciência de si (ARAÚJO 2009, p.101).

É este o momento em que André Araújo desenvolve alguns aspectos bastante ricos: falar em uma razão que não seja instrumental nem absoluta é falar de uma experiência em que a alteridade se torne incontornável e fundamental, algo que ocorre sempre que o mundo não se deixa converter em objeto (cf. ARAÚJO 2009, p.109).

Aqui vale a pergunta, suscitada pela leitura do livro: por que não ler a tradição criticada por Gadamer à luz da pergunta: por que o mundo se deixou objetivar? Por que se esqueceu do caráter constitutivo da linguagem? Uma coisa é dizer que iluminismo e romantismo acabaram, um e outro, objetivando a experiência, e, com isso, esqueceram-se de sua finitude essencial. Outra é mostrar como isso se deu. E como esta experiência também, não está, ela mesma, acabada, posto que, se o fizéssemos, também a estaríamos vendo como dado, como objeto. Ela também ainda vigora. Mas como? Feita a pergunta, cabe ver, portanto, o lugar central da arte no pensamento de Gadamer e como este lugar consegue pensar a razão de uma maneira diversa.

É fundamental lembrar, agora, da maneira como Gadamer lê a tradição grega. Cito Verdade e Método, a propósito da definição de theoria: nós nos comportamos teoricamente quando “(…) ante uma questão, podemos nos esquecer de nossos próprios objetivos” (GADAMER 2007, p.182). E o filósofo segue: “(…) em princípio a theoria não deve ser pensada como um comportamento da subjetividade, como uma autodeterminação do sujeito, mas a partir daquilo que o sujeito está olhando. A theoria é verdadeira participação, não é atividade; é um sofrer (pathos), isto é, um ser atraído e dominado pela visão (…)” (idem).

A experiência teórica é, portanto, a experiência do espectador, mais especificamente a experiência extática em que “se está fora de si”. Mas, para Gadamer, remetendo-se ao Fedro, de Platão, “o estar-fora-de-si é a possibilidade positiva de estar inteiramente em alguma coisa” (GADAMER 2007, p.183).

Pergunto-me se não poderíamos dizer que, em Gadamer, toda experiência estética é histórica. Creio que o livro de André Araújo nos permite pensar a partir desta vereda, porquanto ela inverte o que habitualmente se diz sobre história e arte, isto é, de que a experiência histórica é estética – como faz, por exemplo, um Frank Ankersmit (cf. ANKERSMIT 2004, 2005). Mais uma vez, esperava apenas que o autor se detivesse um pouco mais no conceito de simultaneidade como modo de ser da tradição, e, neste sentido, como o acontecer preserva a experiência da contingência, e, neste sentido, pode, aí sim, retirar das garras do historicismo (na definição de Gadamer) o objeto entendido como singularidade ocasional, recuperando-o em sua fundamentação ontológica. O modo de ser da tradição, portanto, revela a estrutura da temporalidade em que o mundo não deixa mais ser controlado como se fosse um objeto.

Trata-se da experiência da simultaneidade, analisada por Gadamer longamente no item “Temporalidade da estética”. A simultaneidade seria, portanto, o acontecer em sua atualização, o momento em que o ocasional e o decorativo desvelam sua fundamentação ontológica. O teatro é um bom exemplo dado por Gadamer: É por isso que o palco teatral é uma instituição política de natureza única, porque somente na execução faz transparecer aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, os ecos que desperta. Ninguém sabe de antemão qual será o resultado e o que irá se perder no vazio. Cada execução é um acontecimento, mas não um acontecimento que se oponha ou posicione ao lado da obra poética como algo autônomo; o que acontece no acontecimento da encenação é a própria obra (GADAMER 2007, p. 209).

Na terceira parte de seu estudo – “Do vigor extratextual da existência” – André Araújo apresenta, entre outras, uma questão das mais ricas, a saber, o embate sobre a concepção gadameriana da atividade da história. A partir de Jean Grondin, o autor elabora o significado do caráter decisivo da transcendência dentro de uma hermenêutica da finitude: “A transcendência é justamente o padrão da ultrapassagem da toda ‘experiência feita na vida’, no mesmo registro em que já percebíamos que a arte pode ser a correspondência humanamente finita do que se concebe por eterno” (ARAÚJO 2009, p.171-172).

A costura da obra se apresenta aqui muito bem cosida: as discussões sobre a arte reaparecem aqui como lastro indispensável para se pensar a transcendência. Mas como se configura esta transcendência? Neste sentido, imagino, a recuperação do diálogo entre Gadamer e Reinhart Koselleck é bastante interessante. Afinal, há na historiografia alguma brecha para o vislumbre da transcendência? O que está em jogo é, de alguma maneira, a experiência fundamental da hermenêutica: se em Koselleck a ação histórica pode também aparecer como negação da alteridade (o poder-massacrar, o poder-matar, poder-aniquilar, Totschlagenkönnens), a obra de Gadamer enfatizará que o vigor da existência será sempre, nas palavras de André de Melo Araújo, o da “não-identidade de si para com o mundo” (ARAÚJO 2009, p.197). E isto é decisivo: (…) olhar unilateralmente para o sujeito – ora como produtor da matéria artística, ora como seu receptor –, ou direcionar a atenção apenas para a materialidade da obra é fazer surgir os pólos da falsa dicotomia objetivadora da ciência, que carrega como conseqüência a impossibilidade do reconhecimento da conformação artística como uma relação social, como uma prática social (ARAÚJO 2009, p.207).

As palavras do autor são bastante instigantes, na medida em que o problema do projeto da ciência moderna estaria em tentar reduzir toda experiência possível ao fim dos conflitos, algo a ser feito mediante a correta aplicação do princípio de identidade – do sujeito com o objeto, ou do objeto com o sujeito. A hermenêutica só mantém seu vigor quando houver uma discrepância, portanto, um resto que indique sempre a inesgotabilidade da história, e, portanto, a finitude de todo aquele que nela se vê inserido.

Apenas algumas breves notas para reflexão: como poderíamos descrever esta situação como “social”? Deveríamos retornar a Simmel para realizar tal descrição? E, mais uma sugestão, por que não comparar a situação hermenêutica da experiência fundamental da não-identidade (que chamo de discrepância) com a desenvolvida em Adorno? Não me parece impossível, pois se Heidegger e Marx separam Gadamer e Adorno, Hegel os une.

De toda forma, divagações de lado, é muito interessante o livro de André de Melo Araújo. Pensar a hermenêutica não somente como método, mas como estrutura na qual estamos sempre já lançados é algo digno de mérito; mais ainda, pensar linguagem e história em nível para além das (por vezes) requentadas querelas entre modernos e pós-modernos é um alento.

Referências

ANKERSMIT, Frank. Representación histórica. In: ______. Historia y Tropología: Ascenso y caída de le metáfora. México, D.F.: FCE, 2004.

______. Sublime historical experience. Palo Alto: Stanford University Press, 2005.

ARAÚJO, André de Melo. A Atualidade do acontecer: O projeto diálogico de mediação histórica na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. São Paulo: Humanitas, 2008.

DROYSEN, Johann Gustav. Historik. Stuttgart; Bad-Canstatt: Fromann- Holzboog, 1977.

GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr, 1990.

______. Verdade e Método. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes, Editora da Universidade de São Francisco, 2007.

HERDER, Johann Gottfried. Também uma filosofia da história para a formação da humanidade. Lisboa: Antígona, 1995.

 

[1] Sem querer cometer injustiças, vale lembrar as publicações, sob forma de artigos, da Profa. Norma Côrtes (UFRJ) sobre o filósofo alemão. CÔRTES, Norma. Descaminhos do método: Notas sobre história e tradição em Hans-Georg Gadamer. In: Varia História, v.22, n.36, 2006; ______. Desafios hermenêuticos: as noções de tempo e tradição em Hans-Georg Gadamer. In: BUSTAMANTE, Regina e LESSA, Fábio (orgs.) Dialogando com Clio. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

[2] Cf. BAMBACH, Charles R. Heidegger, Dilthey and the Crisis of Historicism. Ithaca; London: Cornell University Press, 1995, p.18.

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) [email protected] Av. Pasteur, 296 – Urca Rio de Janeiro – RJ 22290-240 Brasil,

Jacob Burckhardt´s social & political thought – SIGURDSON (HP)

SIGURDSON, Richard. Jacob Burckhardt´s social & political thought. Toronto: University of Toronto Press, 2004. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A crítica conservadora de Jacob Burkcardt: uma leitura política da História da cultura. Histórias & Perspectivas, Uberlândia, v.1 n.40 – jan./jun. 2009.    

É bem sabido que o percurso da história da historiografia é diferente das ciências exatas, porquanto não se deixa medir pela eficiência de seus resultados. Por outro lado, há uma marca deixada pelo tempo em cada página clássica da tradição historiográfica. Podemos considerar que o lugar da grande obra de história se situa entre as novas descobertas e a manutenção de questões ainda não esgotadas. É como disse certa vez um grande escritor italiano: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.2 Ao enfatizar a dimensão política e as concepções sociais inerentes à história cultural em seu momento de fundação, o notável estudo de Richard Sigurdson, Jacob Burckhardt´s social & political thought [“O pensamento social e político de Jacob Burckhardt”], interpreta a obra do grande historiador suíço a partir deste lugar ambíguo, entre seu tempo e para além dele, determinado e premido por questões de sua época (que em parte são as nossas questões) e ainda bastante provocador. O retrato que sai da obra é de um Burckhardt polêmico, arguto e atual, em que o fundador da hoje quase hegemônica história da cultura se funde com a do anti-semita. O livro de Sigurdson, portanto, contribui bastante para a história da historiografia, e pode ser aproveitado não somente pelos interessados na obra do grande historiador suíço e nas origens da história da cultura, mas, também, por todos que, porventura, tenham vontade de conhecer um pouco melhor as críticas da modernidade feitas no século XIX por autores de filiação conservadora – caso de Burckhardt – que, assim, pode ser visto como um sucessor de Edmund Burke e um perfeito contemporâneo de Dostoievski. Trata-se, pois, de um belo volume de história da historiografia, história intelectual e história política. Como diz seu autor, os temas clássicos de Burckhardt permanecem bastante atuais: “(…) a relação entre o indivíduo e as massas; a tensão entre os ideais de igualdade e de excelência humana; a qualidade e a natureza da cultura na sua era massificada; e o papel do intelectual no Estado moderno – tais temas têm sido calorosamente debatidos pelos teóricos da política”. (SIGURDSON, 2004, p.7) Professor na Universidade de Manitoba (Canadá), Richard Sigurdson dividiu seu livro em duas grandes partes, cada qual com três capítulos. Na primeira parte, “Burckhardt e o nascimento da história cultural”, Sigurdson demonstra que a prevalência dada por Burckhardt à cultura, em detrimento do Estado e da Religião (conforme ele deixaria claro em suas preleções de 1868 sobre o estudo da história), não significa que seus comentários políticos sejam frívolos ou irrelevantes. Reconstruindo a trajetória formativa de Burckhardt, Sigurdson demonstra que a busca pela cultura como objeto privilegiado da história explica-se por uma dupla renúncia, a saber: a desistência em obter uma formação teológica (iniciada entre 1837 e 1839 na Universidade da Basiléia) trocada pelos estudos de História em Berlim, onde aprendeu com o já eminente Leopold von Ranke o rigor do método. Mas as aulas de Ranke o levaram à segunda recusa: o estudo da história política, preterida em relação ao seu projeto de vida, a saber, dar os primeiros passos para construção da história cultural. A opção de Burckhardt é percebida com muita argúcia por Sigurdson: tratase mais do que fundar mais uma área de estudos, mas, sobretudo, de ver qual a função da história cultural. Para ele, ao contrário da tendência providencialista dos argumentos de Ranke, nos quais o Estado aparece como amálgama de ordem providencialmente estruturada, para Burckhardt a cultura, o Estado e a religião eram essencialmente heterogêneos e conflituosos (cf. SIGURDSON, p.77).

O grande mérito do estudo de Sigurdson reside, portanto, em mostrar que a motivação de um historiador do porte de Burckhardt ultrapassa a do mero especialista laboriosamente interessado em fazer pequenos avanços em um campo seguro e bem estabelecido. Na segunda parte (homônima ao título do livro), torna-se mais clara a intenção de Sigurdson, qual seja, a de demonstrar que a obra de Burckhardt é uma crítica cultural politicamente conservadora O argumento do autor se baseia no ceticismo de Burckhardt em relação à natureza humana, para ele essencialmente imperfeita no que diz respeito às ações e à capacidade de conhecimento. Sem tal ceticismo, não se compreendem as críticas à democracia igualitária, aos movimentos revolucionários da Europa e à massificação da cultura que, lamentava-se Burckhardt, destruiriam toda a tradição cultural sedimentada desde a Grécia antiga. A concepção de continuidade histórica é fundamental para o autor da Cultura do Renascimento na Itália: afinal, se é a continuidade que pauta a escrita da história, também ela há de ser norma política e social.

O desenho geral do livro de Sigurdson, porém, não deve esconder outros motivos que motivam o leitor a abri-lo. Identifico pelo menos três razões que justifiquem a dedicação proveitosa do tempo do estudioso interessado nos temas abordados na obra.

Uma primeira discussão de peso decorre justamente do conservadorismo de Burckhardt, aqui entendido como uma posição do historiador perante o fluxo do tempo, isto é, de sua situação hermenêutica. Assim como Friedrich Nietzsche, o historiador suíço pode ser considerado “extemporâneo”, ou seja, um autor fora do compasso de seu tempo. Não devemos confundir tal posição com a pretensão de isenção e neutralidade.

Burckhardt, por mais que tenha se decidido por uma vida pacata na sua Basiléia natal e se recusado a participar da azáfama de Berlim, em momento algum se encastelou em uma torre de marfim. Sua obra, desde “A Era de Constantino Magno” (1852), é uma incansável reflexão sobre as crises históricas. Como vivesse no meio de uma Europa conturbada, Burckhardt lamentava a massificação da cultura, a politização da vida por meio de grandes unificações nacionais (Alemanha e Itália, por exemplo), e procurava se situar no meio das turbulências e da crise de orientação instaurada.

Um dos grandes problemas de sua época convulsionada era justamente o excesso de “egoísmo”, termo bastante utilizado em suas Reflexões sobre a história universal (datadas inicialmente de 1868, porém publicadas postumamente em 1905). O egoísmo do homem moderno, para Burckhardt, se expressa tanto no excesso de paixão política, que tenta amoldar o mundo de acordo com seus dogmas revolucionários, bem como no excesso de utilitarismo, que tenta se servir do mundo de acordo com necessidades fugazes e cambiantes. A relação do historiador do mundo não há de ser utilitária nem dogmática, mas antes contemplativa. Entenda-se contemplação aqui como a visão desinteressada e estética que, por sê-la, é capaz de perceber as formas em sua mutação histórica. É um problema hermenêutico: ao interpretar o passado, devo assumir os pressupostos de meu presente, ou devo calçar os sapatos alheios e buscar a empatia com uma outra época? É interessantíssima a abordagem de Sigurdson, mais ampla que a de Thomas Albert Howard, por exemplo, que, em seu livro Religion and the rise of historicism (Religião e o advento do historicismo) entende o fascínio de Burckhardt como fruto do reflexo de crises pessoais e exclusivamente pela secularização do mundo contemporâneo.

O estudo de Sigurdson contribui, portanto, para as discussões hermenêuticas, sobretudo, quando lembramos que Hans-Georg Gadamer, em 1960, haverá de colocar a tradição como eixo de sua filosofia hermenêutica em “Verdade e Método”, sem, todavia, sequer citar Burckhardt entre outros historiadores por ele abordados, como Ranke e Johann Gustav Droysen. Mais ainda: ao destacar a postura contemplativa de Burckhardt, o historiador ganha a chance de compreender uma forma de interpretação histórica de cunho estético sem cair nas conseqüências apressadas e hipersubjetivas do pós-modernismo de nossos dias. Nas mãos de Sigurdson, a aparentemente mofada e anacrônica contemplação burckhardtiana torna-se, portanto, tema atual de discussão.

E o autor tem razão ao considerar Burckhardt um historiador “extemporâneo”, porquanto praticamente irredutível às classificações habituais. É já conhecido o debate sobre a procedência em rotular Burckhardt como “historicista”, e o fato de trazê-lo a tona constitui uma segunda boa razão para ler a obra de Sigurdson, que faz um belo exercício ao tomar como parâmetro a definição de historicismo proposta por Pietro Rossi, segundo a qual o historicismo significa (a) a ênfase na individualidade das épocas históricas; (b) o caráter dinâmico da verdade, ao invés de estático e metafísico, e (c) a crítica a valores absolutos. Com tais parâmetros em tela, inserir Burckhardt no âmbito historicista é uma interpretação problemática, porquanto, de fato, ele destaca as individualidades, mas em momento algum (a) perde de vista a importância da continuidade histórica, (b) analisa as crises, mas elabora uma interessante teoria de relações estruturais entre Cultura, Estado e Religião, na qual estabelece constantes antropológicas, e (c) se de fato ele desconfiava das visões por vezes anti-históricas do iluminismo, Burckhardt preferia apresentar sua crítica de maneira cética, e jamais afirmativa.

Tal exame proposto por Sigurdson tem dois méritos. O primeiro deles consiste em ver aspectos historicistas na obra de Burckhardt, sem, todavia, deixar de ignorar as incongruências da obra do historiador suíço com tais parâmetros, e, assim, a posição ponderada de Sigurdson se destaca no debate em torno ao assunto. Não vemos nele a tentativa algo forçada de Jörn Rüsen3 em inserir Burckhardt, mesmo que marginalmente, na tradição historicista, uma vez que, diz Rüsen, a sensibilidade de Burckhardt pelas crises expressaria um sintoma clássico do historicismo. Mas também Sigurdson não pende para o outro lado, formado por autores como Alfred von Martin e Edgar Salins, para quem o apreço de Burckhardt pela cultura clássica4 e seu esforço em elaborar constantes antropológicas retirariam do cerne de seu pensamento a tendência historicista em equivaler as épocas e enfatizar as mudanças.

Neste sentido, o exame de Richard Sigurdson serve para solidificar uma hipótese que considero forte: o conceito de historicismo não explica a elaboração da consciência histórica no século XIX, sendo a idéia de Bildung (formação) bem mais eficaz. É digno da maior admiração o destaque dado por Sigurdson à idéia de formação, ou seja, de proporção e equilíbrio na construção da personalidade individual e nos contornos de uma cultura, virtudes ameaçadas em uma época de especialização crescente do trabalho industrial e intelectual. O mais notável é que tal idéia de Bildung não fica como valor abstrato e esfumaçado. Ela se fez presente no conceito de “estilo de época”, ou seja, nos traços uniformes identificáveis em realizações culturais de um determinado período, algo que Heinrich Wöllflin, discípulo de Burckhardt, realizou muito bem em obras como Conceitos fundamentais da história da arte5, na qual identificou os traços do Barroco e do Renascimento. Ao refletir através do conceito de Bildung sobre as possibilidades formativas da historiografia, toda a obra de Burckhardt mantém-se ainda interessante e digna de estudo. Mas tal faceta só se revela porque Sigurdson filia Burckhardt ao humanismo clássico alemão, dando aos estudos ao estudo da história da historiografia uma base mais ampla, que permite a interseção com outras áreas do conhecimento, sobretudo, a filosofia e a literatura.

Uma terceira razão para estudar atentamente a obra de Sigurdson provém justamente da anterior: uma análise da história da historiografia deverá ser feita em um campo interdisciplinar.

Desde finais do XVIII, o embate entre o saber empírico dos historiadores e o saber especulativo dos filósofos se trava com sutilezas e matizes. Se Kant criticara Herder por ser perder no mundo das aparências, e se Droysen tentava fundar filosoficamente a historiografia sem cair nas malhas da filosofia da história de Hegel, agora a situação se altera: Nietzsche era um grande admirador de Burckhardt, e este correspondia com reticências ao interesse demonstrado pelo autor de Zaratustra.

Mas a comparação entre estes dois grandes intelectuais do século XIX nos permite ir mais além. Ambos eram críticos da modernidade, conforme diz Sigurdson, o que indica algo bastante saudável em tempos “pós-modernos”: criticar a modernidade não implica abandoná-la ou enfrentá-la. Na base do confronto entre Burckhardt e Nietzsche encontra-se algo de mais substancial, a saber, os rumos da história da cultura, que oscila entre a necessidade de estabelecimento de sentido pela memória, de um lado, e pela crítica feroz aos rumos da cultura moderna, do outro. Portanto, até onde deve ir a reflexão do historiador sobre seu ofício e sua época? Ao tentar justificar sua tarefa, ele não se perderia na teia da epistemologia, da metafísica e da filosofia da história? O que pode somente ser explicado historicamente, e, mais ainda, o que adquire sentido somente a partir do texto historiográfico? O embate é antigo – pois vem desde Herder e Kant, tendo passado por Droysen, Marx e Hegel – e ainda precisa ser enfrentado. A questão é: no caso de Burckhardt, as reflexões são sempre sustentadas de um ponto de vista conservador, que procura, por um viés pessimista, estabelecer a continuidade na história.

A obra de Sigurdson, portanto, ao contribuir para o debate sobre a hermenêutica (o historiador como intérprete), sobre os limites do historicismo, e sobre a relação da teoria da história com a filosofia, torna-se uma referência importantíssima para os interessados em discussões de alto nível para os assuntos em tela.

Notas

2 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.11.

3 Cf. RÜSEN, Jörn. Der ästhetische Glanz der historischen Erinnerung – Jacob Burckhardt. In: ______. Konfigurationen des Historismus: Studien zur deutschen Wissenschaftskultur. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, p.282.

4 Cf. MARTIN, Alfred Von. Nietzsche und Burckhardt: Zwei Geistige Welten im Dialog. Basel: Ernst Reinhardt Verlag, 1945, 3a.ed., p.43; SALIN, Edgar. Vom deutschen Verhängnis: Gespräch an der Zeitwende: Burckhardt – Nietzsche. Hamburg: Rowohlt, 1959, p.50.

5 V. WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio.

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