An African Slaving Port and the Atlantic World – CANDIDO (Topoi)

CANDIDO, Mariana P. An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and Its Hinterland, (2013). ., Nova York: Cambridge University Press, 2015. Resenha de: ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão. Uma história de Benguela na economia do Atlântico Sul. Topoi v.18 n.34 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017.

Este é um livro pioneiro: trata-se do primeiro trabalho exaustivo sobre um importante território angolano ao sul do rio Kwanza: Benguela, hoje uma das principais províncias do jovem país1 e, historicamente, durante mais de duzentos anos, o terceiro maior porto de embarque de escravos do Atlântico. O recorte temporal é abrangente, desde a primeira expedição portuguesa à localidade que ficou conhecida como “Benguela Velha”, no início do século XVI, até meados do século XIX, quando Benguela perde sua importância na economia atlântica devido à legislação que determina o fim do tráfico de escravos para o Brasil.

Mariana Candido, ao propor um diálogo assíduo com diversas correntes historiográficas, se insere em um conjunto de autores que abordam a história do continente africano a partir de uma perspectiva “afrocêntrica”, tributária dos caminhos abertos por uma historiografia que se voltou para o estudo dos portos de escravos na África, centra sua análise na agência africana.2 Dessa forma, ao escrever a primeira história detalhada sobre Benguela e o seu hinterland – e a formação de seu porto no centro da economia escravista do Atlântico Sul – a autora destaca o papel das “pessoas que construíram esses lugares e o inseriram na economia global” (p. 24). E, ainda que não negue a importância da participação dos oficiais portugueses e de comerciantes estrangeiros nessa história, sua narrativa privilegia as trajetórias dos africanos e, como veremos, com enfoque nas mulheres africanas.

O conjunto de fontes que compõe essa análise é vasto e advém de três continentes; são documentos coloniais produzidos por portugueses, brasileiros e africanos – relatórios, cartas, ofícios, censos, dados de exportação, registros paroquiais, crônicas, relatos de viagem provenientes dos arquivos de Angola, Portugal, Brasil, Canadá e Estados Unidos. Consciente da limitação dos documentos coloniais, por serem produto de uma visão europeia, a autora se esforça para reconstruir uma história social da região afirmando que mesmo nas lacunas e nos silêncios é possível encontrar indícios do que foi destruído, transformado e criado pelos atores envolvidos (p. 23). Embora tenha recorrido a entrevistas, registros de missionários e antropólogos do século XX para complementar os dados insuficientes das fontes escritas, privilegia as informações dos documentos que encontrou nos arquivos de Luanda e Benguela.3

Como debate historiográfico central, An African Slaving Port and the Atlantic World discute o impacto da economia Atlântica e do tráfico transatlântico de escravos nas sociedades da África Centro-Ocidental. Ao contrário do que defendem Thornton e Miller,4 Candido busca comprovar que as transformações provocadas na organização social, política, cultural e econômica dos Ndombe – um dos povos que primeiro estabeleceu contato com os portugueses na região – e de outros grupos vizinhos deixaram marcas devastadoras, pois levaram à expansão do colonialismo, à dependência africana da economia Atlântica, à instabilidade e perda de autonomia política e à violência incitadas pelos constantes (e, ao longo do tempo, cada vez maiores e mais frequentes) conflitos que tinham por objetivo o apresamento de escravos. Para a autora, esses fatos não podem ser desvinculados da situação de declínio econômico e político enfrentada pelos africanos no final do século XIX.

De maneira eloquente, vemos surgir a emergência de uma sociedade escravista na África e os efeitos do colonialismo português na desarticulação dos estados africanos. Embora estudos quantitativos já tenham informado sobre os impactos do tráfico transatlântico5 – número de cativos exportados, a relevância da reprodução natural, os números da produção alimentícia -, eles negligenciam as transformações sociais, tal como a dependência local do trabalho escravo (p. 14). A escravidão se tornou em Benguela, como em outras colônias, o elemento fundante da ordem econômica e social, e foi por meio da ação de seus agentes (traficantes, oficiais coloniais, entre outros) que a colonização se instaurou: a língua portuguesa, a religião católica, novos padrões de alimentação e consumo, mudanças nas relações de gênero.

A estrutura do livro se divide em dois capítulos introdutórios que cobrem a história de Benguela até 1850 e três capítulos temáticos em que a autora aborda com mais detalhes algumas questões. An African Slaving Port and the Atlantic World traz a descrição dos estágios da colonização portuguesa em Benguela dos primeiros contatos, que foram atraídos pelas notícias da abundância de cobre na região e de uma grande densidade populacional, em fins do século XVI, até quando todo um esforço de colonização teria conferido uma maior estabilidade à presença portuguesa, ao longo do século XVIII. Logo que o acesso às minas de cobre foi dificultado pelas chefias africanas, o tráfico de pessoas foi eleito como o comércio mais rentável.

O porto de Benguela se tornou o centro do colonialismo português e do tráfico de escravos ao sul do rio Kwanza. Uma das questões defendidas neste trabalho é a centralidade deste porto para o tráfico transatlântico já no século XVII, explicada tanto pelos dados demográficos do tráfico quanto pela invasão holandesa de 1641-1648: “Se a exportação de escravos não era importante em Benguela, por volta de 1640, como podemos explicar a invasão e ocupação holandesas”? (p. 69). Para além da costa e mesmo ao longo dela, a colonização portuguesa não se fazia forte ou impenetrável. Os poucos homens nas guarnições já reduzidas, espalhadas pelos presídios e feiras que foram surgindo, estavam debaixo da constante ameaça dos africanos e de outros europeus.

Muitas chefias que desafiaram a presença portuguesa nas primeiras décadas do século XVIII desaparecem nos relatos dos anos seguintes. Isso é interpretado como um indício de como o tráfico transatlântico levou ao colapso antigos domínios centro-africanos e, por conseguinte, à sua fragmentação política e a ciclos de violência que traziam fome, insegurança e possibilitavam a captura massiva de cativos. Essas premissas são comprovadas no estudo da reconfiguração política dos estados de Wambu, Mbailundu e Viye. As próprias identidades que assumiam as vítimas do tráfico de Benguela ao chegarem nos portos de destino (em sua maioria, eram enviados para o Brasil) – Kitata, Kalukembe, Kitete, Mbailundu e Wammbu – eram resultado de um processo fluido de migração: em busca de proteção e segurança contra os mecanismos de escravização, as pessoas se anexavam a uma ou a outra chefia local. Assim, a identidade étnica hoje conhecida como Ovimbundu, um grupo coeso do interior de Angola, não existia na era do tráfico transatlântico; essa singularidade foi construída posteriormente (p. 292 e ss.).

No seu compromisso de dar nome e rosto aos números da demografia da escravidão, Mariana Candido segue os esparsos registros que a documentação oficial deixou para reconstruir as trajetórias de homens e mulheres que foram escravizados. Os processos e mecanismos de escravização – guerra justa, razias, sequestros, condenação judicial, escravidão por dívida, punição por crime – são analisados à luz da luta de Quitéria, Juliana, Albano, Katete, Vitória, Nbena, José Manuel e outras pessoas que, enquanto agentes históricos, utilizaram todos os seus recursos à procura de alguma segurança, equilibrando-se na linha tênue que determinava as formas legais e ilegais de escravização. Essas histórias mostram que a escravidão era uma ameaça a todos: tanto os que moravam ao longo da costa e que, sendo vassalos da Coroa, eram cristãos, dominavam o português, e, portanto, estariam protegidos pela legislação portuguesa, quanto os gentios que habitavam o interior. Candido contesta nesse ponto a tese de Joseph Miller segundo a qual a fronteira da escravidão se moveria cronológica e progressivamente para o interior do continente africano, criando uma margem de proteção para os moradores do litoral.6

A noção de crioulização sustenta muitos argumentos da presente obra. Apoiando-se sobretudo nos apontamentos de James Sweet,7 a autora defende que só é possível compreender a crioulização em sua relação íntima com o tráfico de escravos e o colonialismo, como uma transformação sociocultural; não uma ocidentalização ou aculturação, pois as resistências aos elementos da cultura europeia eram evidentes – tais como o sincretismo religioso e a persistência da poligamia (p. 12). O conceito é visto como uma via de mão dupla, em que tanto as instituições portuguesas tinham de se ajustar às mudanças provocadas por elementos africanos, quanto os estados africanos se viam obrigados a ceder espaço na violenta negociação com as forças coloniais.8

Os autos de vassalagem colonial, tratados em que as autoridades centro-africanas – os sobas – oficializavam sua sujeição à Coroa portuguesa, mediante o estabelecimento de obrigações e direitos definidos para os dois lados, se misturavam com as cerimônias de undamento locais. Ao undar, deitar pó ou farinha no corpo de um novo chefe, os mais velhos da comunidade confirmavam sua autoridade e poder. O mesmo procedimento foi adotado pelos portugueses, que, ao ratificarem suas alianças, undavam o soba que passava a lhes ser sujeito.

O conceito de crioulização também é desenvolvido ao analisar a participação de portugueses, brasileiros, filhos da terra (nascidos na colônia) na formação das sociedades Luso-Africanas em Benguela e seu interior; trata-se de grupos de uma nova elite intrinsecamente ligada ao estado colonial. A presença de brasileiros é realçada devido, entre outras razões, ao intenso tráfico de escravos que a colônia americana demandava e, assim, ao constante trânsito de traficantes ou degredados brasileiros que iam se instalando na margem africana do Atlântico Sul.

Se o papel das mulheres é abordado de forma transversal em An African Slaving Port and the Atlantic World, é ao descrever o papel econômico e cultural das mulheres africanas que a temática ganha peso. As donas, mulheres que se envolviam com portugueses ou brasileiros e que acumulavam riquezas, eram responsáveis por um grande número de dependentes, pelo funcionamento do tráfico de escravos, o cultivo de alimentos e a comercialização de mercadorias. Além disso, “elas assumiam a responsabilidade que reproduzir hierarquias sociais, enfatizando sua aliança com a Igreja Católica e com o comércio Atlântico (p. 135) ”.

No decorrer do livro, Candido se lança a um esforço de comparação com outras realidades coloniais, assim, aparecem ligações com a África Ocidental, a América Hispânica, com os imperialismos britânico e francês. Do mesmo modo, dialoga com a historiografia brasileira em temas fulcrais como a polissemia dos termos que aparecem nas fontes coloniais, que ora determinariam a cor da tez, ora a condição social. Contudo, ao descrever os mecanismos de escravização de africanos e luso-africanos, uma maior aproximação dos estudos sobre o aprisionamento e a escravização de indígenas no Brasil poderia lançar novas questões, além de renovar algumas interpretações.9 Entretanto, a forma eloquente e balanceada como os argumentos são construídos em torno do problema histórico do colonialismo é precisa. Trata-se de um estudo de fôlego com vasta pesquisa histórica e densa reflexão, incontornável aos que se dedicam à análise da História da África e dos africanos, da escravidão e da formação do império português.

1Embora Benguela apareça como objeto de alguns estudos anteriores, é a primeira vez que lhe dedicam uma análise extensa, com vasta pesquisa arquivística e novas interpretações. Exemplos de outros estudos sobre a temática são aqueles de Ralph Delgado que, escritos enquanto Angola ainda era colônia portuguesa, trazem muito do ponto de vista colonial: DELGADO, Ralph. A famosa e histórica Benguela: catálogo dos governadores, 1779 a 1940. Lisboa: Cosmos, 1944 e O reino de Benguela. Do descobrimento à criação do governo subalterno. Lisboa: Imprensa Beleza, 1945.

2Alguns exemplos dessa historiografia: HEYWOOD, Linda M.; THORNTON, John. Central Africans, Atlantic Creoles and the Making of the Foundation of the Americas, 1585-1660. Nova York: Cambridge University Press, 2007; SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill: University of North Caroline Press, 2003; LOVEJOY Paul E.; TROTMAN, David V. Enslaved Africans and their Expectations of Slave Life in the Americas: Towards a Reconsideration of Models of “Creolisation”. In: SHEPHERD, Verene; RICHARDS, Glen L. (Ed.). Questioning Creole: Creolisation Discourses in Caribbean Culture. Kingston: Ian Randle, 2002, p. 67-91.

3Vale lembrar que a guerra foi um fator desarticulador da reconstrução de alguns aspectos da tradição oral, da memória das gerações passadas na África Central.

4THORNTON, John. The slave trade in eighteenth century Angola: effects of demographic structure. Canadian Journal of African Studies, v. 14, n. 3,p. 417-427, 1980; MILLER, Joseph C. The significance of drought, disease and famine in the agriculturally marginal zones of West-Central Africa. Journal of African History, v. 23, n. 1, p. 17-61, 1982; MILLER, Joseph C. Way of death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison: University of Wisconsin Press, 1988.

5Exemplos de estudos quantitativos sobre o tráfico transatlântico: CURTIN, Philip.The Atlantic Slave Trade: A Census. Madison: University of Wisconsin Press, 1969; ELTIS, David. Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade. Nova York: Oxford University Press, 1987; ELTIS, David; RICHARDSON, David (Org.).Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database. New Haven e Londres: Yale University Press, 2008.

6MILLER, Joseph C. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, op. cit., p. 140-169.

7SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770, op. cit.

8Seguindo a interpretação de Hawthorne, para os africanos, a crioulização era um exemplo de uma criatividade cultural sob opressão. HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: Culture, Identity and an Atlantic Slave Trade, 1600-1800. Nova York: Cambridge University Press, 2010.

9MONTEIRO, John. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Crislayne Gloss Marão Alfagali –Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP, Brasil.

Slavery and forced migration in the antebellum south – PARGAS (Tempo)

PARGAS, Damian Alan. Slavery and forced migration in the antebellum south. New York: Cambridge University Press, 2015. 281p. Resenha de: OLIVEIRA, Joice. Vidas desfeitas e vidas refeitas: novas reflexões sobre a experiência escrava no comércio interno de cativos. Tempo v.22 no.41 Niterói set./dez. 2016.

A migração interna e forçada de escravos não é novidade nos estudos dedicados à escravidão. Há algumas décadas, os historiadores têm movido esforços com o intuito de compreender os aspectos, sobretudo políticos, econômicos e demográficos, concernentes ao comércio interno de escravos. Nessa empreitada, temas como o número e o perfil dos indivíduos negociados, as formas e os envolvidos na organização comercial, os determinantes da oferta e demanda de mão de obra cativa e os debates em torno da legalidade daquele comércio figuram como centrais em pesquisas recentes. No entanto, a perspectiva dos escravos em relação à experiência vivida nesse comércio e a posterior reconstrução de suas vidas ainda permanecem lacunares na produção acadêmica.

No que concerne à historiografia norte-americana, é notável que historiadores como Michael Tadman (1989), Walter Johson (1999), Steven Deyle (2005) e Robert Gudmestad (2003) tenham se concentrado no comércio interno de escravos no sul dos Estados Unidos no período anterior à Guerra Civil. Essa historiografia perscrutou a extensão e a organização do comércio interno, bem como seus efeitos, sobre os proprietários, negociantes e escravos. Ela indagou sobre o cotidiano daqueles que aguardavam a venda nos mercados de cativos e sobre o impacto daquela atividade na formação da jovem nação norte-americana. E, mais ainda, inquiriu sobre como os negociantes, o comércio interno e a própria escravidão foram vistos pela sociedade ao longo do tempo. Contudo, tais estudos não tinham por propósito privilegiar a percepção escrava diante da violência de serem comercializados. A exceção ocorre com Heather Andrea Williams (2012), que, por meio de uma proposta analítica distinta, investiga os sentimentos e as ações de escravos que foram separados de seus familiares pelo comércio interno e passaram parte de suas vidas tentando reencontrá-los.

É justamente a partir desse cenário historiográfico que o historiador holandês Damian Alan Pargas circunscreve seu objeto de pesquisa: Slavery and forced migration in the antebellum south é o resultado de uma minuciosa investigação realizada nos arquivos norte-americanos e tem o objetivo de trazer à tona a experiência dos indivíduos subjugados ao comércio interno. Pargas revela as percepções escravas diante de cada etapa do processo de comercialização de suas vidas, incluindo o período de adaptação do forasteiro à nova realidade. Para tanto, o autor se debruça sobre uma vasta série documental, focando tanto as narrativas cativas quanto as entrevistas de ex-escravos e refugiados nos estados do norte estadunidense e no Canadá. A pesquisa recorre, ainda, aos registros e memórias de senhores de escravos, aos diálogos entre cativos e viajantes, aos anúncios de escravos fugidos e a registros oficiais referentes à população escrava.

Nesse intento, a advertência metodológica inicial de Pargas é notável. Apesar de a historiografia comumente sinonimizar comércio interno e comércio interestadual, é necessário, segundo o autor, diferenciar três tipos de migração forçada: a de longa distância (interestadual), a local e a urbana. Essa classificação se sustenta na justificativa de que a quantidade de milhas percorridas impactava diretamente as reações e as possibilidades futuras dos escravos. Exatamente apoiado nessa distinção, o historiador engendra uma análise comparativa da experiência de cativos nascidos nos Estados Unidos, contrastando e assemelhando a trajetória daqueles que enfrentaram o comércio de longa distância com a de outros, que vivenciaram o comércio local e urbano.

Como os escravos vivenciaram as diversas formas de migração forçada ao longo do século XIX? O que eles sabiam sobre esse comércio e como tentaram resistir ou negociar os termos de sua remoção? Em que medida esses escravos foram capazes de se adaptar às novas comunidades, ao novo regime de trabalho e à nova relação senhor-escravo? Como se caracterizava a relação dos forasteiros com outros cativos? Em que medida o comércio interno contribui para o desenvolvimento de identidades escravas mais amplas? Essas são algumas das perguntas elaboradas por Pargas, que, concomitantemente, compõem a estratégia metodológica e narrativa do livro, bem como fomentam novas reflexões compatíveis não apenas com o contexto norte-americano, mas também com outros lugares, nos quais o comércio interno de seres humanos foi uma realidade.

O livro está dividido em duas partes, “Migração” e “Assimilação”. A primeira, como sugere o título, acompanha as várias etapas do movimento migratório de pessoas pertencentes à chamada “migration generations” – cativos americanos que viveram entre a Guerra Revolucionária (1775-1783) e a Guerra Civil (1861-1865). Esse movimento obrigou milhares de escravos a cruzarem as fronteiras do Upper South em direção ao Lower South, bem como o deslocamento de outros numerosos cativos dentro de um mesmo estado. Por vezes ainda, a sina foi dupla, uma vez que, em alguns casos, os escravos foram submetidos a ambos os percursos.

É precisamente ao exame das causas dessa onda migratória e à avaliação das diferentes formas de organização do comércio que o primeiro capítulo do livro se dedica. No que se refere ao comércio interestadual, Pargas observa que parte das negociações no período entre 1820-1860 pode ser explicada por fatores relacionados com o declínio e a ascensão produtiva de culturas distintas no país. Mais especificamente, o comércio de pelo menos 875 mil escravos estaria relacionado com o declínio na produção de tabaco em estados como Maryland e Virginia (Upper South) e o vertiginoso crescimento da produção de algodão e açúcar em estados como Texas, Alabama, Mississipi e Louisiana (Lower South) – que, juntos, importaram 75% dos escravos. O aumento da demanda pela mão de obra escrava e a consequente elevação dos preços nas áreas em expansão econômica atraíram o interesse de senhores das regiões em decadência, que enxergavam na venda de seus cativos uma possível solução para seus problemas. Por sua vez, no que concerne às migrações locais, Pargas as classifica como permanentes ou temporárias. No primeiro caso, elas eram decorrentes da imprevisível situação financeira dos senhores, que podiam rapidamente enriquecer e migrar em busca de novas terras – carregando consigo seus escravos – ou falir e negociar seus cativos para pagar as dívidas. Já as migrações temporárias eram o resultado da locação de escravos para trabalharem em propriedades agrícolas no interior do estado ou nos centros urbanos por determinado período.

Diante da iminência da comercialização, os escravos lutaram para preservar, acima de tudo, a unidade familiar. Para isso, negociaram os termos de sua remoção, apelaram para a consciência de seus senhores e, quando nada funcionou, cometeram atos como fuga, ataque contra senhores, automutilação, infanticídio e suicídio. Esse protagonismo é o tema do segundo capítulo, cujo argumento central versa sobre o modo como as reações escravas variavam conforme o tipo de comércio, o conhecimento sobre o local de destino e, principalmente, o impacto da migração sobre as famílias. À vista disso, Pargas afirma que se, por um lado, havia poucas chances de evitar as separações familiares no comércio interestadual, por outro os escravos comercializados no mercado local e urbano podiam ser mais bem-sucedidos, principalmente quando se encarregaram de encontrar seus próprios compradores na vizinhança ou negociaram diretamente com os compradores nos leilões e nos mercados.

A venda era o primeiro passo rumo a uma jornada que poderia se estender de acordo com o destino e a organização do comércio. Segundo essas circunstâncias, Pargas perscruta, ao longo do terceiro capítulo, o modo como os escravos viveram e sentiram cada etapa do processo de remoção. Para o autor, a experiência mais difícil foi a dos escravos do comércio interestadual, que, privados de comida e descanso, acorrentados e maltratados pelos negociantes, eram obrigados a marchar durante semanas pelos rincões do Lower South até chegarem aos mercados, onde eram confinados em celas e dali só saíam para uma nova e penosa caminhada, dessa vez em direção à sua futura morada. Apesar de o percurso geralmente ser mais curto para os comercializados no mercado local e urbano, Pargas ressalta que eles também sofriam as humilhações de serem tratados como mercadorias, principalmente durante a avaliação física realizada pelos potenciais compradores, momento que era particularmente cruel para as mulheres, frequentemente abusadas sexualmente.

Terminada a remoção, uma complicada fase começava na vida daqueles indivíduos: a assimilação. Assim que adentravam a nova propriedade, os escravos se tornavam forasteiros e eram compelidos a se adaptar à nova realidade, dentro da qual o trabalho tinha importância primordial. Ciente disso, Pargas se indaga no quarto capítulo sobre como a mudança de ocupação promoveu dificuldades e/ou oportunidades para os recém-chegados. Segundo o historiador, os escravos oriundos de outros estados encaravam as maiores adversidades, uma vez que o processo de aprendizado do trabalho poderia ser extremamente penoso, especialmente se ocorria durante a colheita do algodão ou do corte da cana-de-açúcar. Pargas acrescenta ainda que, tanto na esfera doméstica quanto nos centros urbanos, os escravos podiam usufruir de algumas vantagens, como melhor alimentação e vestuário, no caso dos que viviam na casa-grande, e maior mobilidade e menor vigilância, para os que viviam nas cidades. No entanto, Pargas salienta que, apesar do entusiasmo de muitos escravos, que enxergavam na vida fora da lavoura a oportunidade de uma vida melhor, dividir o teto com seus senhores ou trabalhar nas indústriass podia ser ainda mais degradante.

No capítulo seguinte, o autor examina em que medida a relação com os senhores/feitores e as condições materiais dos escravos foram alteradas com a migração forçada. Segundo ele, apesar de o tratamento recebido pelos recém-chegados às lavouras no Lower South variar conforme o tamanho da propriedade e com a presença ou o absenteísmo dos senhores, as reclamações referentes à falta de alimentação, vestuário e moradia adequada eram comuns. Além da precariedade material, os recém-chegados eram mais suscetíveis às punições. Nas lavouras, eram castigados principalmente por erros relacionados com o trabalho, e nos centros urbanos sofriam por infringir códigos de comportamento com os quais não estavam familiarizados.

Após acompanhar a experiência dos escravos durante a remoção e a adaptação à nova realidade, Pargas finaliza seu livro estudando o esforço empreendido pelos forasteiros para se integrarem à nova comunidade e reconstruírem suas vidas. Nesse intento, o autor problematiza a noção de comunidade escrava monolítica e a existência de uma coesão entre os escravos capaz de garantir a fácil interação (Berlin, 2003). Para o autor, as diferenças de idioma, sotaque, religião, costumes e, até mesmo, o chauvinismo regional eram obstáculos significativos à integração entre os recém-chegados e os antigos moradores. De acordo com o historiador, os escravos submetidos ao comércio interestadual manifestaram a chamada dupla orientação, fenômeno que combinava o desejo de voltar para seus antigos lares com a necessidade de se integrar à nova condição de sobrevivência. Diante desse imbróglio, encontraram na criação de laços familiares uma chance para o recomeço e nas histórias contadas a seus filhos uma esperança de manter viva a memória de um lar e tempo pretérito.

Por meio de uma escrita fluida e cativante, Damian Alan Pargas tece uma consistente análise historiográfica alinhavada às fontes históricas, que, além do mérito de investigar a experiência dos escravos em cada etapa da migração forçada, vai ainda mais longe, ao perscrutar o processo de adaptação e integração dos recém-chegados às novas comunidades, e isso narrado, cuidadosamente, a partir da percepção escrava. No entanto, algumas ressalvas são necessárias.

Apesar de insistir nas distinções entre os tipos de comércio interno, Pargas dedica a maior parte de sua pesquisa à experiência dos que viveram o comércio interestadual, tornando a narrativa, por vezes, um pouco repetitiva. E, em alguns momentos, as diferenças entre a vivência no comércio local e urbano parecem muito tênues. Ademais, ao considerar a família como parte essencial do processo de adaptação e integração dos escravos, o autor se concentra, basicamente, no casamento, negligenciando a importância da família extensa (Malone, 1992). Ainda sobre o aspecto familiar, o autor não avalia que a integração dos escravos poderia ocorrer de maneira diferente em propriedades recém-formadas e em propriedades estabelecidas de longa data, ou seja, naquelas em que a comunidade escrava tinha alto grau de consolidação das redes de parentesco e solidariedade. Nesse segundo caso, as chances de inserção do forasteiro poderiam ser limitadas. E, no que diz respeito às propriedades de formação recente, em que havia poucos núcleos familiares e a maioria dos escravos era composta por homens adultos e solteiros, as possibilidades de constituir famílias e criar uma rede de parentesco poderiam ser ainda menores.

Não obstante tais considerações, por fim cabe enfatizar que as contribuições promovidas por Pargas extrapolam a historiografia americana e podem encorajar novas pesquisas sobre o comércio interno de escravos em outras localidades, inclusive no Brasil. Embora a historiografia brasileira se dedique a essa temática desde 1970 e já tenha realizado importantes avanços na compreensão da dinâmica daquela atividade,1 pouco se sabe sobre seu impacto na vida dos cerca de 400 mil escravos comercializados no império brasileiro após o fim definitivo do tráfico atlântico de africanos. Diante dessa lacuna, alguns historiadores e historiadoras têm direcionado suas atenções para os locais de saída do comércio interestadual com o objetivo de compreender o modo como eles reagiram à ameaça da venda e da provável dissolução familiar.2 Mas, ainda assim, os estudos dedicados à experiência durante a migração, adaptação e integração dos cativos nos locais de chegada são muito escassos.3 Nesse cenário historiográfico, as questões investigadas por Pargas podem incentivar novas buscas nos arquivos brasileiros, que se, por um lado, não guardam dezenas de biografias de escravos, por outro estão abarrotados de registros de batismo e de casamentos, processos-crimes, registros de meia-siza, procurações e tantos outros documentos que, uma vez correlacionados, podem contar sobre como viveram, sentiram e reagiram aqueles que foram submetidos à violência do comércio interno.

Referências

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1Para citar alguns: Neves (2000), Slenes (2004), Motta, (2012) e Scheffer (2012).

2Para citar alguns: Mattos (1998), Pires (2009) e Ferreira Sobrinho (2011).

3Algumas exceções são: Machado (1987), Rocha (2004) e Oliveira (2013).

Joice OliveiraDoutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Campinas – Campinas, Brasil. E-mail: [email protected].

Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity – KELLY (H-Unesp)

KELLY, Christopher (org.). Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity. Cambridge/UK: Cambridge University Press, 2013. eBook. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel de. História [Unesp] v.34 no.2 Franca July/Dec. 2015.

Teodósio II governou o Império Romano do Oriente, já separado administrativamente da porção ocidental, por longos quarenta e dois anos (408-450 d.C.). Um dos primeiros registros que se dispõe da sua personalidade é fornecido pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla que o descreveu, no livro VII da sua História Eclesiástica, como “extremamente doce em comparação a todos os homens que estão sobre a terra”. Relatos dessa natureza, dentre outros do período, que chegaram até nós, certamente contribuíram para a construção, pela historiografia antiga e moderna, de uma imagem de desaprovação desse imperador. Nesses relatos, Teodósio II é associado a um governante ineficiente, fraco e suscetível de ser manipulado pelas redes de influências de poderosos cortesãos e bispos da hierarquia eclesiástica em construção.

Essa perspectiva negativa das ações de Teodósio II frente aos desafios que lhes foram apresentados foi, em grande medida, realçada pelos intermináveis conflitos teológicos protagonizados por diferentes facções episcopais que buscavam se afirmar como referência em ortodoxia a ser seguida. A sensação de caos que teria caracterizado aquele contexto, de acordo com algumas análises historiográficas, projetava uma falta de autoridade das ações imperiais na condução desses conflitos. Isso poderia, inclusive, ameaçar a sua posição de governante. Contudo, esse viés de análise tem sido reavaliado por pesquisas mais recentes que buscam encarar a documentação textual do período como artefatos discursivos retóricos de alta carga subjetiva. Como já alertava Jean-Michel Carrié (1999) – na introdução da obra conjunta com Aline Rousselle, L’Empire Romain en Mutation: des Sévères à Constantin – 192-337 – muitas vezes produzida em momentos de conflitos, a documentação do período, à primeira leitura, pode induzir o historiador a interpretar os acontecimentos em conformidade com as paixões partidárias das facções em confronto. Não podemos deixar de perceber, ainda, o interesse propagandístico que norteou a preservação e a transmissão desses documentos que, certamente, pode ter contribuído para enaltecer a imagem de aliados ou destruir a reputação de desafetos.

A proposta dessa obra ora resenhada, Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity (2013), conforme indica o seu organizador Christopher Kelly, não se trata de uma tentativa revisionista em ampla escala da reputação desse imperador. Trata-se, acima de tudo, de reavaliar os aspectos chave da política administrativa por ele conduzida, em conjunto com seus auxiliares mais próximos. As estratégias implementadas a partir dessa colaboração possibilitou a sua permanência como o governante que por mais tempo administrou o império, a despeito das deficiências que lhes são atribuídas. Além de trazer importantes considerações sobre o governo de Teodósio II, na sua apresentação da obra, Kelly faz uma abrangente revisão historiográfica acerca do período teodosiano e estabelece um rico diálogo com e entre os capítulos subsequentes, assinados por historiadores de destaque no tema.

Esse objetivo de releitura do governo teodosiano muito vem a contribuir para o entendimento mais amplo do período que se convencionou chamar de Antiguidade Tardia. Essa periodização, atualmente melhor estabelecida entre meados do século III até o século VIII d.C., busca observar as transformações pelas quais passou a sociedade romana nas diferentes esferas da vida social, política, econômica e cultural. Desse modo, ao até então propalado “declínio e queda” do império descortina-se novos modos de enxergar o período como num momento rico em possibilidades de análises e singular em relação ao período clássico precedente e ao medievo que o sucedeu. A presente obra contribui para esse novo olhar a partir de uma leitura enriquecedora da documentação explorada, que em muito pode contribuir para as reflexões dos pesquisadores que trabalham com diferentes tipos de textos produzidos no período. Como exemplo de documentos trabalhados na presente obra citamos o Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum, as Histórias Eclesiásticas, asNovellae (novas leis emitidas entre 438 e 441), os Acta Conciliorum Oecumenicorum,Panegíricos, dentre outros.

Nesse sentido, além do Capítulo 1 introdutório, que compõe toda a Parte I do livro, de autoria do organizador, Christopher Kelly, seguem-se mais dez capítulos, divididos em três diferentes áreas de interesses. A Parte II, intitulada Arcana imperii (Capítulos de 2 a 5), busca analisar os problemas de se construir um relato satisfatório da complexa dinâmica política do império e, em particular, o papel e a influência dos grupos que competiam na Corte em Constantinopla. Na Parte III,Past and present (Capítulos de 6 a 8), são expostas algumas preocupações contemporâneas dos autores teodosianos no sentido de apresentar uma retórica de unidade do império que, de fato, já se encontrava dividido política e administrativamente. A Parte IV, Pius princeps (Capítulos de 9 a 11), explora as dificuldades de apresentar, louvar e relembrar uma imagem de Teodósio II como um pio governante cristão.

Afunilando as três áreas de interesses acima citadas, no Capítulo 2 intituladoMen without women: Theodoisus’ consistory and the business of government, Jill Herries indica sua percepção, a partir da análise do Código Teodosiano, da forma colegiada com que as decisões eram tomadas na Corte imperial em Constantinopla. Ao estabelecer diálogo com a obra de Kenneth Holum,Theodosian Empresses: Women and Imperial Dominion in Late Antiquity, de 1982, a autora minimiza a ascendência atribuída àAugusta Pulquéria, irmã mais velha de Teodósio II, como canal de influência poderoso nas decisões tomadas na Corte. Para ela, a dinâmica dos grupos de interesses em uma Corte multipolar, cujos membros eram prestigiados pelo imperador, é uma resposta à estabilidade do governo teodosiano. No Capítulo 3, Theodosius and his generals, Doug Lee percebe a mesma estratégia imperial de privilegiar a diversidade no campo militar em consonância com o que indicou Harries na sua análise sobre o Consistorium. Lee observa que a inexistência de tentativas a usurpações pode estar relacionada à escolha de generais portadores de diferentes visões político-religiosas. A análise prosopográfica por ele empreendida identificou generais não cristãos, arianos e de outras tantas formas de cristianismos que interagiam na sociedade romana do período. Essa estratégia dinástica teodosiana teria tido o efeito de dissuadir as ambições de ascensão de qualquer desses generais ao comando do poder imperial.

No capítulo 4, Theodosius II and the politics of the first Council of Ephesus, Thomas Graumann analisa duas comunicações oficiais do imperador (sacrae) e uma carta dirigida ao bispo Cirilo de Alexandria. Nesses documentos, Graumann indica como, na perspectiva imperial, o primeiro Concílio de Éfeso, reunido em 431, foi conduzido por funcionários imperiais no sentido de dar uma percepção de unidade à Igreja a despeito do relacionamento tenso entre os vários grupos de interesse, de modo que nenhuma facção emergisse dominante. Encerrando essa segunda parte, no Capítulo 5, Olympiodorus of Thebes and eastern triumphalism, Peter Van Nuffelen destaca como o cronista não cristão Olimpiodoro, cuja obra foi perdida, mas resumida por cronistas posteriores, oferece um valioso relato dos eventos ocorridos no Ocidente entre 407 e 425. Ao buscar descrever sua percepção de instabilidade reinante na porção ocidental, Olimpiodoro o faz em contraste com a construção de uma imagem de um império oriental estável. Nesse sentido, Nuffelen inova ao mostrar como Olimpiodoro, ao escrever sua história do Ocidente tendo como espelho o Oriente, contribuiu para difundir uma ideologia triunfalista e integradora do império oriental teodosiano.

No Capítulo 6, Mapping the world under Theodosius II, Giusto Traina percebe como além do Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum – documento que elenca a estrutura administrativa civil e militar tanto do Oriente quanto do Ocidente – serviu a propósitos propagandísticos como expressão da importância que o regime teodosiano dava a uma ideia de Império Romano como estrutura unitária, embora tal unidade fosse apenas virtual. No contexto da sua elaboração (datada em torno de 401 para a parte oriental e atualizada na década de 420 no Ocidente), a Notitiabuscava oferecer uma visualização ideológica do poder imperial em termos geográficos. No Capítulo 7, “The insanity of heretics must be restrained”: Heresiology in the Theodosian Code, Richard Flower explora os tratados de heresiologia como oDe haeresibus, de Agostinho de Hipona, e oPanarion, de Epifânio de Salamina, e os compara com um pronunciamento de Teodósio II, emitido em 428, e preservado na forma de lei com o títuloDe haereticis no Código Teodosiano 16.5.65. De acordo com Flower, embora esses tratados de literatura técnica, para ele fonte de conhecimento mais seguro e confiável, tenham em alguma medida inspirado a lei de repressão aos heréticos inscrita no Código Teodosiano 16.5.65, essa legislação deve ser lida no contexto da sua aplicação. Esse cuidado decorre da prevalecente tendência de condenação de oponentes teológicos visando à criação de uma autoridade religiosa durante o governo de Teodósio II. Ou seja, o autor busca demonstrar uma seletividade no momento da aplicação da lei.

Finalizando a terceira parte do livro, no Capítulo 8, Classicism and compilation, interaction and tranformation, Mary Whitby nos fornece uma interessante análise de como os textos da literatura grega do século V d.C. estabeleceram interação com os gêneros clássicos. Para ela, essa tendência estava associada a crescente importância do cristianismo na sociedade romana. Whitby analisa uma pletora de gêneros literários como as Vidas, orações fúnebres, a História Lausíaca, osflorilegia, diálogos, enciclopedismos, paráfrases bíblicas e histórias eclesiásticas. Tais análises buscam observar a riqueza da produção literária durante o governo de Teodósio II, bem como a forma flexível e criativa com que os autores cristãos estabeleceram diálogo com as formas literárias do passado no sentido de dar autoridade aos seus escritos através uma retórica refinada.

No Capítulo 9, Stooping to conquer: the Power of imperial humility, Christopher Kelly novamente trás sua contribuição através da análise das cerimônias de humildade imperial (como ex. transferência de relíquias de mártires, longas procissões lideradas pelo imperador com pés descalços). Na sua leitura, tais acontecimentos estavam relacionados a estratégias orquestradas em que cerimônia religiosa e ideologia imperial se uniam tanto para dar sensação de proximidade com os cidadãos como para promover a piedade imperial. Estabelecendo um diálogo entre os panegíricos escritos no período com o Panegírico a Trajano, de Plínio o Jovem, Kelly demonstra como essas atitudes de humildade paradoxalmente aproximavam a família imperial de seus súditos e, ao mesmo tempo, acentuava a distância entre governante e governados com o intuito de justificar e legitimar a autocracia imperial. No Capítulo 10, The imperial subject: Theodosius II and panegyric in Socrates’ Church History, Luke Gardiner considera os problemas encarados pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla na sua escrita sobre o regime teodosiano, ao qual era contemporâneo, particularmente em termos da reivindicação pública de piedade imperial. Gardiner observa uma estratégia similar adotada por Sócrates de Constantinopla, em sua História Eclesiástica, àquela adotada por Eusébio de Cesareia quando escreveu sobre o imperador Constantino. Os destaques e as habilidades atribuídas ao imperador, nesses panegíricos, serviam como estratégia para nuançar julgamentos de reprovação das decisões imperiais, em vista do risco de se criticar um imperador que ainda se encontrava no poder.

Encerrando essa quarta parte e finalizando a obra, o Capítulo 11, sob o títuloTheodosius II and his legacy in anti-Chalcedonian communal memory, Edward Watts analisa a forma como o governo de Teodósio II foi avaliado em quatro textos egípcios escritos entre os séculos V e VIII d.C.: o Plerophories, de João Rufus, a História de Dióscoro, do Pseudo-Theopistus, asCrônicas, de João de Nikiu e o Synaxary – um catálogo que lista os santos comemorados em cada dia do calendário egípcio. Watts observa que a tendência desses textos em realçar aspectos positivos do governo de Teodósio II, descrevendo aquele momento como o auge do império cristão e o paraíso da ortodoxia, tinha por estratégia estabelecer um contraste com o governo do imperador Marciano (450-457). No Concílio de Calcedônia, em 451, cujas decisões foram respaldadas por Marciano, ficou definido a natureza dual do corpo do Cristo encarnado, decisão essa que colidia com a doutrina que apregoava a união dessas naturezas, bastante popular na tradição egípcia e inspirada nos ensinamentos do bispo Cirilo de Alexandria.

Em vista da riqueza das temáticas analisadas, bem como a originalidade com que a documentação textual é trabalhada nos diferentes capítulos, consideramos que a presente obra passa a se constituir referência para os estudiosos dispostos a enfrentar os desafios de melhor entender o governo de Teodósio II. A grande quantidade de documentos remanescentes desse período encontra-se a espera de outras tantas abordagens instigantes como as que foram oferecidas nessa coletânea. Esse livro certamente trará, também, valiosas contribuições a todos os pesquisadores que se debruçam sobre o recorte cronológico denominado de Antiguidade Tardia, assim como aos historiadores em geral por seu caráter inovador na leitura da documentação.

Daniel de Figueiredo – Doutorando em História Antiga. Programa de Pós-graduação em História da Faculdade Ciências Humanas e Sociais. UNESP – Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca – Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, n. 900, CEP: 14409-160, Franca, São Paulo, Brasil. Bolsista FAPESP.

Being a Historian: An Introduction to the Professional World of History – BANNER JR (Topoi)

BANNER JÚNIOR, James M. Being a Historian. An Introduction to the Professional World of History. Nova York: Cambridge University Press, 2012. Resenha de: PAIANI, Flavia Renata Machado. Os desafios profissionais do historiador. Topoi v.16 n.30 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

Ser historiador significa, certamente, algo mais que estudar o passado e pesquisar em bibliotecas e arquivos. No livro Being a Historian: an Introduction to the Professional World of History, o historiador estadunidense James M. Banner Jr. preocupa-se em mostrar que os historiadores não devem estar circunscritos à carreira acadêmica (preocupação que se explicita, sobretudo, no terceiro e no quinto capítulos). Embora ele analise a realidade profissional do historiador nos Estados Unidos, suas indagações também são pertinentes à realidade brasileira na medida em que compartilhamos muitas das inquietações sobre o futuro de nosso ofício.

Em um primeiro momento, o autor busca diferenciar a disciplina “história” da profissão que se debruça sobre ela. Para ele, a profissão diz respeito à “direção e à maneira com que é utilizado um cabedal de conhecimento, e não ao cabedal de conhecimento em si” (p. 4). Ele destaca que a profissão requer uma educação mais ou menos uniforme no conjunto de conhecimento e protocolos de prática de pesquisa – ou seja, é a formação acadêmica que diferenciará o “historiador profissional” do “historiador amador”. Nesse sentido, o autor assinala que os historiadores profissionais não ficam restritos a uma única profissão, podendo atuar como acadêmicos, editores, consultores, escritores independentes, curadores em museus etc.

O leitor brasileiro talvez estranhe algumas profissões sugeridas por Banner Jr., pois, em linhas gerais, o historiador no Brasil segue majoritariamente a docência – seja na educação básica, seja na educação superior. Ainda nos é recente a luta em torno do projeto de lei (PL) sobre a regulamentação de nossa profissão para que possamos repensar nossos espaços de atuação. Ademais, ainda nos é pouco conhecida a noção de “história pública” – discutida entre os historiadores estadunidenses desde a década de 1970 – que nos permite, do mesmo modo, ampliar nosso leque de atuação e nosso papel na sociedade.

Assim, dividido em oito capítulos, o cerne do livro não é pautado apenas no debate sobre história acadêmica e história pública: seu foco é a redefinição do lugar (profissional e, em certa medida, social) ocupado pelo historiador. Todavia, essa redefinição perpassa os rumos tomados pela disciplina de história, bem como o monopólio que a universidade tende a exercer sobre ela. Ainda assim, o autor ressalta que as mudanças mais significativas pelas quais a disciplina passou nos últimos anos desenvolveram-se precisamente fora do meio acadêmico. Ele destaca, em especial, o papel da American Historical Association (AHA) – “hoje em dia, a maior e mais antiga organização de historiadores profissionais nos Estados Unidos e, indiscutivelmente, a organização histórica mais importante do mundo” – que pode ser igualada a um departamento acadêmico no que concerne à sua influência sobre o modo como a história é ensinada e praticada nos Estados Unidos (p. 42). No caso brasileiro, caberia nos questionarmos o papel historicamente desempenhado pela Associação Nacional de História, cuja sigla – ANPUH – originalmente remete não a uma associação de historiadores, mas a uma associação de professores universitários de história. A ampliação do número de associados, bem como sua relativa heterogeneidade (não são mais os professores universitários exclusivamente), desemboca também na pressão pela regulamentação da profissão de historiador, de que trata o PL 4.699/2012.

Em realidade, o ideal acadêmico impregna a disciplina desde o século XIX, quando de sua profissionalização na Alemanha. Desde então, “aqueles que preparam outros historiadores (…) são eles próprios membros do corpo acadêmico”, tornando-se a aspiração profissional dos jovens ingressantes. Para o autor, “o desafio não é libertar alguém dessa aspiração, mas, antes, libertá-lo de uma resposta automática a essa aspiração”. Nesse sentido, ele também destaca que a quantidade de vagas para docentes nas universidades não comporta o número de doutores em História: em outras palavras, “as carreiras acadêmicas não podem e não irão absorver todos os historiadores disponíveis” (p. 64). De modo semelhante, temos assistido no Brasil ao expressivo aumento do número de recém-titulados em decorrência da expansão dos programas de pós-graduação em História: temos atualmente 69 programas, sendo que 37 contemplam o doutorado.1

Dessa forma, o terceiro capítulo (A ­Multitude of Opportunites: Sites, Forms, Kinds, and Users of History) nos é interessante à medida que enfoca e problematiza as possibilidades de atuação do historiador fora do meio acadêmico, bem como os públicos que se interessam por história. Banner Jr. assinala o papel que um vasto grupo formado por editores, designers e especialistas em marketing e venda desempenha na circulação do conhecimento histórico, assim como os curadores em mostras de temática histórica, que lidam diretamente com o grande público.

Para além de editoras e museus (para citar apenas dois exemplos), o autor destaca a possibilidade de um historiador atuar de modo independente. Ele aponta para o pequeno número de historiadores que foram bem-sucedidos como escritores de livros de história, em que pesem os desafios enfrentados pela ausência de vínculo institucional. Novamente, se remontarmos ao nosso caso, percebemos uma diferença entre os Estados Unidos e o Brasil: contrariamente aos colegas de lá, nossos principais escritores de livros de história são, em sua maioria, jornalistas (como Laurentino Gomes, Eduardo Bueno e Leandro Narloch) sem formação acadêmica em História. Esse fenômeno, o da “narrativa jornalística da história”, requer um debate mais aprofundado no meio acadêmico brasileiro, embora o pontapé inicial já tenha sido dado pelo historiador Rodrigo Bragio Bonaldo em dissertação defendida em 2010.2

É certo, porém, que existe uma relativa dificuldade em escrever para o grande público, pois essa habilidade requer um treinamento que o historiador, em geral, não tem (seja no Brasil, seja nos Estados Unidos). Banner Jr. percebe que os programas de pós-graduação, assim como a maioria dos departamentos, tendiam (até há pouco tempo) a priorizar o preparo convencional. Mesmo quando havia treinamento e prática formais para desenvolver um repertório mais diversificado de habilidades, “a ausência de incentivos e de reconhecimento para atingir círculos extra-acadêmicos continuava a inibir a disseminação do treinamento na escrita para um público mais amplo” (p. 74).

Ainda assim, o autor reitera que o conhecimento produzido na academia não pode mais ter como único destinatário seus pares acadêmicos, mas deve também abarcar os “cidadãos bem informados”, os “curiosos”, os “aficionados” por determinados temas do passado, o “governo” e outras corporações. Essa constatação não implica, contudo, desconsiderar a importância da academia na produção e legitimidade do conhecimento histórico.

Sem as monografias e os artigos de periódicos escritos por acadêmicos para acadêmicos, sem a especialização e a confiança na obra de outros acadêmicos (que se tornaram visíveis pelo uso da tão ridicularizada nota de rodapé), o conhecimento histórico teria permanecido parte do mundo da especulação amadorística, e não teria se tornado uma parte constitutiva da compreensão humana, baseada na evidência bem fundamentada, na interpretação sujeita à avaliação e à revisão, e nos acréscimos em aberto. Ademais, sem a erudição monográfica, os popularizadores da história – escritores não acadêmicos e cineastas especialmente – não teriam tido à sua disposição o conhecimento que empresta à sua obra a credibilidade que ela possui. (p. 72)

Apesar deste reconhecimento no que concerne ao papel desempenhado pela academia, Banner Jr. insiste nos círculos extra-acadêmicos (em especial, nos diferentes públicos que reivindicam o acesso ao conhecimento histórico), bem como na capacidade de adaptação e de inovação do historiador em atender a essas demandas. Indo além, o autor também critica, no quinto capítulo, a tímida atuação dos departamentos de história no preparo de professores para a própria academia, uma vez que a formação recai sobre a prática da pesquisa, e não sobre a prática do ensino.

A partir do quinto capítulo (History outside the Academy), Banner Jr. desdobra a noção de história pública, destacando que a crise de emprego na década de 1970 entre os novos doutores impulsionou o desenvolvimento da história pública nos Estados Unidos. Nesse contexto, ele explica que “o desejo de permanecer historiador profissional por parte daqueles que se frustraram na procura de uma colocação acadêmica explica muito do crescimento da história pública” (p. 135). Ao mesmo tempo, o autor acrescenta que o aumento da demanda por conhecimento histórico criou não apenas novas práticas e oportunidades para os historiadores, mas também renovou o modo de conceber o significado desse conhecimento. No entanto, ele percebe que a história pública não goza de grande estima no que se refere ao seu nível de autoridade intelectual. Diferentemente da história acadêmica, as práticas históricas públicas são ainda recentes, e sua baixa estima incide no (não) recrutamento das mentes jovens mais brilhantes.

Assim, Banner Jr. ressalta duas diferenças primordiais entre a história acadêmica e a história pública a partir da caracterização desta última. A primeira diferença refere-se à “utilidade direta, mais que a aplicabilidade difusa, do conhecimento histórico aos assuntos humanos” (p. 144). A “utilidade direta” da história pública consiste na resposta aos interesses específicos do público não acadêmico sobre questões do passado, afetando sua compreensão do mundo. Já a segunda diferença relaciona-se, em certa medida, à primeira apontada. A história acadêmica procura, principalmente, avançar o conhecimento humano e integrar o conhecimento novo ao mais antigo em benefício, em sua maioria, dos acadêmicos e dos estudantes” (p. 144). Por seu turno, a história pública procura avançar a compreensão sobre o passado entre o público não acadêmico, fazendo com que a reflexão histórica aconteça fora da sala de aula ao encorajar as pessoas a interpretarem esse passado. Ademais, os materiais e os meios de pesquisa da história pública não se limitam aos livros e aos manuscritos, mas englobam, sobretudo, a comunidade – “seus prédios, seus bairros, seus produtos industriais e outras dimensões de seu passado” (p. 148).

É verdade que o autor torna-se repetitivo em certos pontos do livro em decorrência, em parte, de seu próprio didatismo. Ao mesmo tempo, ele evidencia uma realidade do historiador nos Estados Unidos que suscita questionamentos interessantes também à nossa realidade. Ao apenas tangenciar questões epistemológicas da disciplina, ele enfoca, principalmente, os profissionais que fazem uso dela e que contribuem para a produção e a disseminação do conhecimento histórico dentro da universidade ou fora dela. Desse modo, os públicos da história também entram em pauta no livro, porque eles não são apenas os destinatários do conhecimento produzido, mas são, especialmente, aqueles que demandam e interpretam esse tipo de conhecimento.

Em suma, o livro pode ser o ponto de partida para que o historiador brasileiro reflita sobre diferenças e semelhanças relativas ao exercício de nossa profissão nos dois países. O intento comparativo pode, então, desdobrar-se em uma abordagem mais ampla, que preze pela articulação de novos espaços de atuação profissional com a redefinição de nosso papel na sociedade. Logo, ser historiador no Brasil nos dias de hoje requer o aprofundamento da reflexão acerca do futuro de nosso ofício.

1De acordo com a Relação de Cursos Recomendados e Reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

2BONALDO, Rodrigo Bragio. Presentismo e presentifiação do passado: a narrativa jornalística da história na Coleção Terra Brasilis de Eduardo Bueno. Porto Alegre: UFRGS, 2010. 169 p. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofi e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

Flavia Renata Machado Paiani – Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

Penance in Medieval Europe 600-1200 – MEENS (Tempo)

MEENS, Rob.. Penance in Medieval Europe 600-1200. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. Resenha de: FARRELL, Elaine Cristine dos Santos Pereira. As diferentes facetas da Penitência. Tempo v.21 no.37 Niterói jan./jun. 2015.

Penitência é um tópico popular atualmente entre os medievalistas. Isso não é surpresa, já que penitência tem sido um aspecto importante da religiosidade Cristã desde a Antiguidade tardia e um tema presente na maioria dos gêneros literários medievais. Ao contrário, o que deveria estarrecer é a falta de interesse no tema.

Felizmente, vários pesquisadores distintos têm devotado atenção a esse assunto nas últimas décadas. A penitência tem sido investigada sob diferentes perspectivas como a sua teologia, mas, talvez, ainda mais importante, a sua prática2. O recente interesse de acadêmicos na literatura penitencial está intrinsicamente relacionado a esse tema. Depois das publicações de John McNeill e Thomas Oakley nas décadas de 1920 e 1930, esse gênero foi relativamente negligenciado por algum tempo, até que nas décadas de 1970 e 1980, pesquisadores reavaliaram a importância dos penitenciais para os estudos históricos (McNeill, 1923Oakley, 1923).

O reavivamento do interesse em arrependimento, confissão e penitência é concorrente com o crescimento da popularidade da história das mentalidades e história cultural, que trouxe para o seio dos debates históricos aspectos da vida que não eram frequentemente visitados por historiadores anteriormente (Meens, 1997, p.74; Vainfas, 1997, p.127-162). Ainda mais recente, o estudo da penitência tem sido reconectado ao campo da história do poder e ideias políticas, mas de uma forma diferenciada. A penitência tem sido investigada sob o ângulo da negociação de conflitos e disputas, um campo de estudo que tem ganhado atenção recentemente (Meens, 2014, p. 6, 10). A troca de ângulo e de perspectiva igualmente não deveria causar surpresa, visto que a maneira a qual os historiadores compreendem o poder e o estudam, também tem mudado.

Como Marcelo Cândido bem apresentou, “essa ‘Nova História Política’ não enxerga o poder apenas como uma forma de controle sobre homens ou sobre estruturas” (Silva, 2013, p. 101), mas esta também se ocupa das relações sociais e das relações entre pessoas e coisas, ou em outras palavras, como as pessoas se apropriam das coisas. A história do poder é hoje em dia feita em aproximação à história da cultura e da antropologia.

Penitência é um assunto que está relacionado a diversos aspectos da vida. Ela é relacionada à religião, e, portanto, à cultura, ao poder, pois está ligada a instituições e, algumas vezes, também à economia, pois, por exemplo, indivíduos são recomendados a cumprir penitência por roubo. Entretanto, foi no contexto dos estudos do conflito e com uma abordagem sociocultural que Rob Meens escreveu sobre penitência. Trabalhos anteriores, tais como The Penitential State da Mayke de Jong, já mesclaram história das religiões com política e demonstraram que penitência pode ser um instrumento útil na negociação de conflitos. A obra de Meens aborda principalmente esse aspecto da penitência, analisando a sua prática desde a Antiguidade tardia até o século XII, levando em consideração os distintos centros e contextos da produção penitencial.

A introdução do livro de Meens familiariza o leitor com os principais debates sobre a prática da penitência e argumenta pela centralidade da prática da confissão e penitência à natureza da religiosidade medieval (Meens, 2014, p. 1-11). O capítulo dois inicia na virada do século VI. Este evidencia que importantes escritores religiosos medievais contribuíram para gerar a ideia de que penitência é um instrumento essencial para a expiação de pecados. Indivíduos como João Cassiano, Tertuliano, Dionísio Exíguo e Sozomeno, dentre outros, foram agentes centrais nesse processo (Meens, 2014, p. 15-25). Meens também demonstra que a Gália no século VI não era uma terra infértil para penitência; ao contrário, pecado era considerado um problema grave e a importância da penitência enfrentada com seriedade nos concílios gauleses (Meens, 2014, p. 26-34).

A transição entre os capítulos dois e três levanta um dos argumentos centrais do livro: o fato de que não há diferenças essenciais entre os modos gaulês e irlandês de praticar penitência. Isso contribui para desconstruir um argumento que foi mantido por várias décadas, o de que o Cristianismo irlandês desenvolveu uma forma de penitência privada, que estaria oposta à penitência pública.

Todos os pesquisadores desenvolvendo a dita “nova história da penitência” como Meens, Jong e Sarah Hamilton, têm argumentado que o conceito de penitência secreta não existia na Alta Idade Média, e, que é, portanto, uma construção historiográfica (Hamilton, 2001, p. 3-25; Jong, 1997, p. 894-902). É um fato que o gênero de livros penitenciais é produto do mundo insular do século VI, mas as formas de expiar os pecados e praticar penitência descritas nestes são bastante próximas às praticadas na Gália do século VI ou pelos pais da Igreja (Meens, 2014, p. 38-69). Nesse capítulo, Meens apresentou o argumento de que os cânones penitenciais irlandeses indicam que os clérigos tiveram um papel importante na resolução de disputas, pois eles agiram como árbitros nos casos de “pecados sociais”, tais como infrações sexuais e casos de violência. Frequentemente, a penitência em si em adição de pagamento em espécie, contrato matrimonial e retribuição em trabalho funcionaram como formas de satisfação às partes ofendidas em conflitos. Adicionalmente, ele enfatiza que as hagiografias podem contribuir para lançar luz sobre como a penitência teria, talvez, sido praticada na vida real. A Vitae Columbae, por exemplo, fornece histórias sobre pecadores que buscaram uma vida de penitência debaixo da instrução do São Columba em Iona, uma ilha nas margens da Escócia, mas que, naquela época, era conectada ao mundo irlandês. Os pecados sendo extirpados nessas anedotas ilustram circunstâncias mencionadas nos cânones penitenciais, tais como incesto e assassinato, por exemplo (Meens, 2014, p. 64-69).

O capítulo quarto trata do impacto da literatura penitencial insular no reino Franco e na Inglaterra. Columbano, o peregrino irlandês, contribuiu para popularizar o gênero no continente e a vida escrita sobre Fursa, outro peregrino irlandês que também discute penitência e a purgação de pecados (Meens, 2014, p. 70-81). Nesse mesmo capítulo, a íntima relação entre penitenciais e a literatura canônica é demonstrada. No mundo gaulês, a Collectio Vetus Gallica, ao mesmo tempo, foi influenciada e influenciou os livros penitenciais (Meens, 2014, p. 71, 96), e, no mundo anglo-saxão, a compilação dos ensinamentos de Teodoro de Canterbury reflete a simbiose entre esses dois gêneros (Meens, 2014, p. 88-96).

O capítulo seguinte está fortemente ligado ao anterior, visto que este discute penitência dentro do mundo carolíngio no contexto das ditas reformas. Wilibrordo e Bonifácio tiveram um importante papel nas reformas religiosas e nas empreitadas evangelísticas em processo na borda norte do reino. Portanto, Meens mantém que Wilibrordo e Bonifácio talvez estivessem envolvidos na produção de textos penitenciais, tais como o Paenitentiale Oxoniense II e o Excarpsus Cummeani, respectivamente. Bonifácio tinha fortes conexões com Corbie, de onde a Collectio Vetus Gallica é proveniente (Meens, 2014, p. 102-111). Meens destaca, ainda, que este foi um período de intensa produção de novos livros penitenciais e cópia de anteriores (Meens, 2014, p. 102, 139). De fato, é graças aos esforços carolíngios que a literatura penitencial sobreviveu. Meens argumenta que os compiladores dos penitenciais carolíngios expandiram consideravelmente o número de cânones que lidam exclusivamente com ofensas laicas, ampliando, assim, o caráter pastoral desses textos (Meens, 2014, p. 104).

No capítulo sexto, há uma mudança de cenário. Livros penitenciais estavam sendo produzidos também fora do mundo insular e carolíngio, em lugares como Espanha e Itália, mas como Meens frisa, as circunstancias políticas sob as quais a literatura penitencial floresceu nesses lugares eram diferentes (Meens, 2014, p. 164).

Três dos penitenciais espanhóis têm, dentre outras fontes, textos carolíngios como base, tais como o Excarpsus Cummeani. Entretanto, os penitenciais espanhóis são encontrados em manuscritos ricamente iluminados, indicando que eles não foram redigidos com fins pastorais (Meens, 2014, p. 164-70). Esses textos e sua relevância não foram exaustivamente estudados e ainda há penitenciais espanhóis que não foram estudados (Meens, 2014, p. 171-172). Além de explorar as abordagens espanholas e italianas quanto à penitência, Meens discute nesse capítulo o impacto dos trabalhos de Regino de Prum e Burcardo de Worms, e examina a prática da penitência entre as aristocracias (Meens, 2014, p. 141-154). Essa é outra parte chave do livro na qual exemplos de penitência funcionando como forma de instrumento de reconciliação de conflitos políticos são exibidos. Um dos exemplos fornecidos é o caso de Henry VI, a quem o papa Gregório VII havia excomungado. Devido à situação política instável da Itália, Gregório sentiu-se ameaçado pelos oponentes de Henry e decidiu restaurá-lo como membro da comunidade cristã através do cumprimento de penitência (Meens, 2014, p. 182-185).

O último capítulo lida com o século XII. Neste, o impacto dos trabalhos de indivíduos como Pedro Abelardo e Bartolomeu de Exeter são considerados (Meens, 2014, p. 119-213). Meens justifica bem a decisão de limitar seu estudo ao século XII, baseado em dois argumentos: o primeiro é o fato de que, após o século XII, os livros de penitência deixaram de ser copiados; segundo, porque o surgimento das escolas catedráticas e das universidades propiciou avanços nas discussões sobre os melhores mecanismos para corrigir comportamentos considerados pecaminosos e, como consequência desse processo, estudiosos buscaram distinguir entre direito canônico e literatura pastoral (Meens, 2014, p. 191-192). Pessoas como Burcardo de Worms, por exemplo, não pensava nesse tipo de distinção, portanto, esta foi uma mudança produzida no século XII (Meens, 2014, p. 191).

Penance in Medieval Europe de Meens é uma esperada contribuição ao campo. A obra traz um olhar novo sobre a penitência na Idade Média, através da análise desta sob o ângulo dos estudos de conflito. Ao mesmo tempo, este é um livro didático que dialoga e resume o conhecimento produzido nas últimas décadas sobre penitência tanto por Meens quanto por outros pesquisadores.

Essa obra é, portanto, uma leitura indispensável tanto para os especialistas em penitência quanto para os iniciantes nesse campo de estudo. A obra não apenas discute penitência nos livros penitenciais, mas em uma rica variedade de gêneros literários, em diferentes séculos e em contextos diversos da Europa Ocidental. Desse modo, a obra evidencia a multiplicidade de maneiras possíveis para se extirpar pecados na Idade Média e a centralidade da penitência nos discursos cristãos. Esse belo trabalho é fruto de anos de pesquisa no campo e de muita erudição.

Referências

HAMILTON, Sarah. The Practice of Penance, 900−1050. London: The Boydell Press, 2001. [ Links ]

JONG, Mayke de. What was Public about Public Penance? Paenitentia Publica and Justice in the Caroligian World, Settimane, vol. 44, nº 2, p. 894-902, 1997. [ Links ]

MCNEILL, John T. The Celtic Penitentials and their Influence on Continental Christianity. Paris: Édourad Champion, 1923. [ Links ]

MEENS, Rob. Penance in Medieval Europe 600-1200. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. [ Links ]

MEENS, Rob. The Historiography of Early Medieval Penance, in Abigail Firey (ed.) A New History of Penance. Leiden and Boston: Bril, 2008. [ Links ]

OAKLEY, Thomas P. English Penitential Discipline and Anglo-Saxon Law and their Joint Influence. New York: Longmans, Green & Co., 1923. [ Links ]

SILVA, Marcelo Cândido da. A Idade Média e a Nova História Política, Signum, v. 14, nº 1, p.91-102, 2013. [ Links ]

VAINFAS, Ronaldo. História Das Mentalidades e História Cultural In: Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia, Ciro F. Cardoso and Ronaldo Vainfas (eds.), Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997. p.127-162. [ Links ]

Para uma revisão detalhada da historiografia, ver Meens, 2008.

Elaine Cristine dos Santos Pereira Farrell – Professora do Departamento de História da Universidade de Utrecht e University College Dublin – Utrecht- Holanda. E-mail: [email protected].

Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave Trade – FERREIRA (VH)

FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave TradeNova York: Cambridge University Press, 2012, 282 p. CORRÊA, Carolina Perpétuo. Varia História, Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.

No início do século XIX, uma mulher negra livre chamada Francisca da Silva foi escravizada em Benguela depois de ser acusada de ter se utilizado de feitiçaria para assassinar Diniz Vieira de Lima, comerciante de escravos que, apesar de ser natural daquela cidade, falecera no Rio de Janeiro. Assim se inicia o livro de Roquinaldo Ferreira, que integra a prestigiosa série African Studies, publicada, desde 1968, pela Cambridge University Press.

Biografias de pessoas comuns, como Francisca da Silva, elaboradas a partir de documentos oficiais da época, associadas à análise de memórias e relatos de viagem, formam a base da obra, fruto de uma abordagem micro-histórica. Aliando profundo domínio dos estudos históricos recentes sobre o tema, lúcida reflexão metodológica e extensa pesquisa documental realizada em arquivos angolanos, brasileiros e portugueses, o historiador brasileiro radicado nos Estados Unidos tece um rico panorama do mundo atlântico nos séculos XVIII e XIX. O maior desafio metodológico, a feitura de generalizações a partir de exemplos reveladores – estudos de caso de indivíduos cujas vidas foram registradas para a posteridade justamente por serem, de algum modo, atípicas – é solucionado por meio da descrição densa e da atenção ao contexto. O historiador, atento, procura conectar sempre os eventos que se desenrolam no nível micro com o processo maior do qual fazem parte.

Além disso, a adoção de um recorte espacial inspirado na História Atlântica, constructo analítico segundo o qual os acontecimentos da era moderna são organizados a partir do entendimento da Bacia Atlântica como um lugar onde ocorriam intercâmbios demográficos, econômicos, sociais e culturais entre os continentes por ela banhados, permite dar ênfase a aspectos dinâmicos que transcendem as fronteiras administrativas ou nacionais.1 Essa combinação de redução da escala de análise e ampliação do recorte geográfico traz contribuições importantes tanto para a História do Brasil quanto para a História da África Centro-Ocidental.

Apesar do impacto do comércio de escravos para o Brasil, a historiografia pátria guardou silêncio quase absoluto até a década de 1990 sobre as relações entre as duas regiões. A África foi frequentemente encarada como um continente primitivo, homogêneo, estático no tempo e destituído de história, e os africanos, associados automaticamente aos escravos. Por essa razão, o trabalho de Ferreira aparece àqueles familiarizados com a produção historiográfica nacional sobre a escravidão e o tráfico de escravos como a peça faltante para que o quebra-cabeça adquira seu pleno sentido. Vem, portanto, ao revelar a face africana do negócio negreiro, somar novos conhecimentos aos importantes trabalhos que pensam o tráfico do ponto de vista do Brasil, como os de Manolo Florentino e Jaime Rodrigues.

Entretanto, só teremos uma percepção adequada do alcance da obra, se a analisarmos sua contribuição para a História da África Centro-Ocidental. Em 2004, Boilley e Thioub2 argumentavam que, durante o século XX, a escrita da história da África, influenciada, por um lado, pelos combates anticoloniais e, por outro, por modelos eurocêntricos, tendeu a considerar que, depois do contato com o ocidente, a África e os africanos se tornaram vítimas de um sistema que, rompendo com o curso normal da história, constitui a causa principal, senão exclusiva, do lugar subalterno que o continente ocupa nos negócios contemporâneos do mundo. Pensando em como a produção acadêmica sobre o comércio de cativos poderia superar essas limitações, os autores sugeriam que era preciso compreender as implicações dos africanos nos processos históricos, analisando a arquitetura social, bem como os sistemas locais de produção, de troca, de dominação e de exploração da força de trabalho. A chave seria explorar as dinâmicas internas sem silenciar quanto aos interesses e ao envolvimento de atores autóctones no negócio negreiro.

Ferreira desempenha tal tarefa com maestria, mergulhando na sociedade centro-africana durante o período do comércio de escravos. Filia-se, assim, a uma tradição historiográfica inaugurada na década de 1970 por estudiosos como Jill Dias, Beatrix Heintze, Isabel Castro Henriques e Joseph Millerque procura superar o caráter etnocêntrico das análises sobre as regiões africanas engajadas no comércio atlântico e abordar a política, a economia e a sociedade locais em sua historicidade e em sua complexidade.

Esses autores pioneiros, muitas vezes mesclando métodos e abordagens próprios da história, da antropologia e da etnografia, abriram novas possibilidades para o estudo da África Centro-Ocidental, desenvolvendo trabalhos com fontes inéditas encontradas em arquivos angolanos e portugueses. Ademais, elaboraram sofisticadas reflexões teóricas sobre o lugar da África na História Mundial, o papel do historiador ao se relacionar com fontes de natureza diversa (tradição oral, achados arqueológicos, documentos escritos) e os métodos para lidar com os filtros por meio dos quais estrangeiros (os autores da documentação consultada e os próprios pesquisadores) apreenderam a realidade africana. Inovaram ao abordar temas que, durante o período colonial, eram tabus difíceis de serem rompidos, como a fragilidade da dominação portuguesa na região e a participação dos africanos no comércio de escravos, atribuindo a eles um protagonismo em sua história que lhes foi frequentemente negado.

Na contemporaneidade, uma nova geração de historiadores veio se juntar a esses pesquisadores já consagrados, desvendando novos aspectos da sociedade centro-africana no contexto do comércio atlântico. Um bom exemplo é Mariana Cândido3 que empreendeu um estudo sobre Benguela entre 1780 e 1850, argumentando que o tráfico negreiro ajudou a fundar ali uma sociedade crioula, na qual pessoas oriundas de culturas diversas acabaram forjando uma identidade comum.

Em sua dissertação de mestrado, Ferreira já havia se ocupado de Angola, mas investigando os impactos econômicos da proibição do tráfico negreiro para o Brasil entre 1830 e 1860. Em Cross Cultural Exchange in the Atlantic World, o historiador recua no tempo, analisando aquela sociedade durante o auge do comércio atlântico, tecendo para Angola uma análise em muitos sentidos equivalente a que Law e Mann dedicaram à Costa dos Escravos.4 Como esses autores, chega a conclusões abrangentes a partir de histórias individuais, enfatizando as conexões culturais e sociais transatlânticas.

A primeira seção se inicia com a narrativa de uma expedição comandada pelo ex-capitão de navios negreiros Francisco Roque Souto, em 1739, ao Reino de Holo, cujo intento era proporcionar à administração portuguesa contatos comerciais diretos com essa região fornecedora de escravos. A análise do episódio possibilita o exame da intensificação do comércio itinerante no interior de Angola, no contexto do aumento da demanda por cativos no Brasil no século XVIII, decorrência das descobertas de ouro na região das Minas. Tal comércio, conduzido nos sertões africanos por intermediários conhecidos como pumbeiros e sertanejos, consistia na troca de mercadorias importadas por escravos, que eram então conduzidos até os portos de embarque no litoral.

São os impactos do incremento dessa atividade comercial nas estruturas sociais e econômicas de Angola que o autor se propõe a desvendar, e o faz narrando vários casos retirados das fontes, como o de três africanos que tinham chegado a Benguela em 1789, fugidos após todos os outros 25 carregadores da caravana na qual trabalhavam terem sido embebedados e posteriormente escravizados pelo sertanejo Jerônimo Corrêa Dias. Partindo desses estudos de caso, o autor analisa o aumento de formas de escravização não militar, decorrentes de endividamento ou de acusações de feitiçaria, o desvirtuamento de formas de dependência temporária tradicionais e a ampliação progressiva da esfera de atuação dos Tribunais de Mucanos, cortes competentes para conhecer casos de escravização injusta, oriundas das práticas legais Mbundu.

A segunda seção é dedicada ao panorama cultural, religioso e político de Angola durante o período estudado. O historiador explora a demografia e a economia de Luanda, expondo uma sociedade dinâmica, na qual eram fluidas as fronteiras entre escravidão e liberdade e frequentes as oportunidades de convivência entre indivíduos de condições sociais e origens diversas. Nesse mundo cosmopolita, no qual a administração portuguesa tinha dificuldades de se impor, europeus e outros forasteiros acabavam aculturados pelos locais, conforme atestam a prevalência do quimbundo sobre o idioma português.

Especial atenção é dada à religião e à cultura africanas, exploradas a partir da fascinante história de Mariana Fernandes, uma mulher negra livre acusada de feitiçaria e presa em Luanda em 1726. O estudo do processo movido contra Mariana pela Inquisição revela uma mulher dotada de grande autonomia, poder e influência, decorrentes de sua atuação como ganga, autoridade religiosa de Angola. Da leitura emerge a força da religiosidade africana, que perpassava todas as camadas sociais, unindo indivíduos oriundos de realidades muito diversas.

O autor analisa, a seguir, a vida social de Luanda e de Benguela tomando como ponto de partida a história do escravo Manoel da Salvador, que, criança, fora enviado ao Rio de Janeiro, retornando, já adulto, a Luanda, onde, em 1771, é acusado de assaltar a casa de um taberneiro. Para rebater a acusação, Salvador alega que a elevada soma de dinheiro encontrada em sua posse não era produto do roubo, mas fruto da venda de mercadorias enviadas a ele pelo irmão, que continuava a residir no Brasil. Embora boa parte da versão de Salvador pareça ter sido uma mentira, o crédito dado às suas alegações, em um primeiro momento, pelas autoridades, ajuda

a revelar a grande mobilidade geográfica no mundo Atlântico. O estudo de dezenas de outros casos mostra que pessoas livres e escravas atravessavam o oceano em razão de punições por crimes e comportamentos inadequados, mas também para aprender uma profissão, buscar instrução, conduzir negócios e visitar parentes.

Os laços culturais, políticos e comerciais que uniam essas regiões africanas ao Brasil eram tão robustos, que, em 1824, prósperos comerciantes de Benguela, liderados por um homem negro nascido no Rio de Janeiro, de nome Francisco Ferreira Gomes, iniciaram um movimento rebelde que pretendia romper os laços com Portugal e anexar a província ao Brasil recém-independente. A tentativa de secessão, longe de ser uma empreitada fantasiosa, era coerente com a conjuntura da época, sendo mesmo esperada pelas autoridades portuguesas.

Ao enfatizar a organicidade entre as possessões portuguesas, o autor evidencia a esterilidade dos embates em torno dos conceitos “crioulo” e “crioulização”, rótulos estáticos que, segundo ele, dificilmente são capazes de abarcar toda a complexidade dessas mutáveis sociedades, nas quais os indivíduos manipulavam as diferentes esferas culturais, religiosas e jurídicas existentes de acordo com suas necessidades momentâneas.

A obra, inspirador exercício de erudição e imaginação histórica, adiciona mais uma peça ao intrincado quebra-cabeças do Atlântico Português, dando rara ênfase à dimensão humana das sociedades africanas setecentistas e oitocentistas, contribuindo, como sugere Miller, para que “a história atlântica se apoie solidamente em três pernas”,5 e que os africanos, como os outros, assumam o seu lugar como “atores inteligíveis” na trama do passado.

1 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História, São Paulo, v.28, n.1, p.17-70, 2009.         [ Links ] 2 BOILLEY, Pierre; THIOUB, Ibrahima. Pour une histoire africaine de la complexité. In AWENENGO, Séverine; BARTHÉLÉMY, Pascale; TSHIMANGA, Charles (eds.). Écrire l’histoire de l’Afrique autrement?. Paris: L’Harmattan, 2004, p.23-45.
3 CÂNDIDO, Marina P. Enslaving frontier: slavery, trade and identity in Benguela, 1780-1850. Toronto: York University, 2006 (História, Tese de Doutorado).         [ Links ] 4 LAW, Robin; MANN, Kristin. West Africa in the atlantic community: the case of the Slave Coast. The William and Mary Quarterly,Third Series, v. 56, n.2, p.307-334, apr. 1999.         [ Links ] 5 MILLER, Joseph. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v.104, n.1, p.1-32, feb. 1999.         [ Links ]

Carolina Perpétuo Corrêa – Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil, e-mail: [email protected].

The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589 – GEEN (VH)

GREEN, Toby. The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. 323 p. SCHLICKMANN, Mariana. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 51, Set./ Dez. 2013.

Os estudos acerca do tráfico de escravos em África já realizaram avanços primorosos, contudo, ainda há diversas lacunas em seus anos iniciais, sobretudo no oeste africano. Neste sentido, o livro The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589, publicado em 2012 e ainda sem tradução para o português, é uma imensa contribuição que o historiador britânico Toby Green – conhecido no Brasil por sua obra Inquisição: o reinado do medo – realiza para a história desta região pouco estudada.

Green se dedica, como o próprio título do livro indica, a estudar a ascensão do tráfico atlântico de escravos, do século XIV ao XVI. A área pesquisada é o oeste africano, termo utilizado primeiramente por George Brooks1 para se referir à área da Alta Guiné (que vai do Rio Senegal até Serra Leoa) e Cabo Verde. O objetivo desta obra é mostrar a importância da região para a consolidação do tráfico atlântico de escravos e para o surgimento de culturas e identidades criadas a partir da experiência da diáspora.

Utilizando fontes orais e documentos escritos por árabes e europeus, o autor defende que, no início do século XIV, o poderio do Império do Mali passa a se estender por toda a região da Alta Guiné, ao mesmo tempo em que o comércio transaariano de escravos aumenta e se afirma na área. A prática do comércio de escravos pelo deserto vem junto com uma cultura de violência, que se insere no cotidiano das sociedades que conviviam com os processos de captura, comércio e utilização de escravos.

Para o autor, as populações locais, ao passarem pelo processo de malinkização (apropriação de elementos culturais e religiosos do Império do Mali), ajustaram-se rapidamente à nova cultura de violência imposta pelo comércio de escravos. Esta capacidade de rápida adaptação a uma nova conjuntura cultural, política, religiosa e comercial; a flexibilidade e tolerância com novos povos deram ares cosmopolitas à região; fato que foi fundamental para o surgimento e depois consolidação do comércio com os europeus.

A ideia central deste livro é de que o oeste africano teve um papel chave não só no tráfico, mas na própria criação do mundo atlântico e no surgimento de identidades diaspóricas em todo o planeta, pois ali ocorrem as primeiras trocas comerciais, culturais e sociais que serviram inicialmente como um padrão. Por isso, uma perspectiva global permeia todo o livro, no intuito de mostrar as múltiplas conexões e as relações interdependentes entre o local e o global. O conceito de “mundo atlântico” auxilia metodologicamente Green neste sentido, que o utiliza em congruência com Russel-Wood: um espaço além de fronteiras políticas ou nacionais, onde intercâmbios sociais, culturais, comerciais e demográficos ocorreram de forma intensa entre os continentes europeu, africano e americano.2

O livro está dividido em duas partes. Na primeira – cujo recorte temporal é de 1300 até 1550 -, é traçada uma história regional antes do contato com os europeus, mostrando como as relações entre os mandingas e os guineenses influenciaram a conjuntura social que propiciou o comércio internacional, uma vez que moldou as populações de forma a se tornarem flexíveis e receptíveis em relação a novas culturas. É com esta sociedade cosmopolita, que não impõe barreiras para a realização de negócios com estrangeiros, que os europeus fizeram os contatos iniciais, conseguiram estabelecer e consolidar trocas comerciais.

A preocupação central do autor é expor que os comerciantes locais daquela área ditaram inicialmente o ritmo das negociações, pois as mercadorias e rotas traçadas eram as mesmas do comércio interno. Neste primeiro momento ele também mostra como as interações e trocas culturais entre europeus e africanos foram mudando ao longo do século XV, e como a chegada dos cristãos novos de ascendência ibérica na região no século XVI acarretou em mudanças na dinâmica do comércio, do tráfico e do jogo político de alianças locais.

Mudanças ocorreram também com a chegada de judeus, que exercem um papel importante no contexto e também na formação do mundo atlântico, ressalta Green, e também José da Silva Horta e Peter Mark.3 Os judeus formaram uma comunidade comercial muito importante no final do século XVI, que causou grande impacto na região. Uma delas foi a reorganização das redes de poder, uma vez que os estrangeiros procuravam se inserir através de casamentos com mulheres das elites locais, como aponta Havik,4 e dependiam destas para o sucesso comercial. Green procura também desconstruir a visão da dominação das mulheres pelos homens ao mostrar o importante papel ocupado por elas nestas sociedades atlânticas do oeste africano.

A segunda parte abarca de 1492 até 1589, e procura integrar a história regional até então traçada com o mundo atlântico, mostrando como um mundo afetou o outro e vice-versa. É apresentada a explosão do contrabando e a extensão da rede do tráfico de escravos, que se expandiu rapidamente no século XVI. Também é apontado que a criação de sociedades crioulas nesse contexto só foi possível através das conexões entre forças locais e globais em ambos os lados do Atlântico, uma vez que para o estabelecimento de relações, os comerciantes tinham de adotar os costumes dominantes do local, ao invés de propagar ou preservar suas diferenças culturais, o que propiciou a criação de redes e identidades diaspóricas e do fenômeno da crioulização.

Para compor este livro, o historiador britânico fez uso de história oral, com o objetivo de entender as práticas culturais locais das áreas pesquisadas e também de vasto material do Arquivo de História Oral da Gâmbia. Também fez observações etnográficas em Casamansa, Guiné Bissau e Cabo Verde entre 1995 e 2011. Como fontes escritas, utilizou relatos de viajantes, documentação oriunda de arquivos sobre escravidão, tráfico, história atlântica e o Santo Ofício da Colômbia, Portugal, Espanha e do Vaticano e uma vasta bibliografia sobre o tema.

Ele defende que apesar de grande parte do seu trabalho estar pautado em fontes externas – principalmente as produzidas por europeus – isso não torna seu trabalho eurocêntrico, uma vez que ele é capaz de interpretar as fontes sabendo dos limites impostos pelo contexto e mentalidade da época. Acredita que as fontes orais utilizadas, pertencentes ao Arquivo de História Oral da Gâmbia, permitem a integração de perspectivas africanas em sua análise, além de uma perspectiva diferente sobre um mesmo episódio. Cabe observar que o autor procura durante todo o texto analisar os documentos de forma crítica, sem forçar os limites impostos pelos mesmos e pautando todos os seus argumentos em diversos tipos de fontes.

No texto, Green critica a tendência de se estudar a história do tráfico por um viés quantitativo, pois se corre o risco de subestimar o número de africanos deportados nos primórdios deste tipo de comércio. Contudo, ele não ignora as importantes contribuições oferecidas por bancos de dados como o Trans-Atlantic Slave Trade Database, apesar de preferir seguir uma perspectiva não quantitativa, que ressalta os aspectos e impactos sociais, culturais e políticos do comércio de escravos, tendo para isso um arcabouço conceitual pautado principalmente no conceito de crioulização.

A crioulização, ou creolisation5, mostra a corrente historiográfica adotada pelo autor, o qual entende que o contato entre as diferentes culturas e costumes fez surgir algo novo: as culturas e identidades crioulas ao redor do mundo, que mesmo novas podem preservar características dos povos que a originaram. Roquinaldo Ferreira também partilha desta mesma visão, mas alerta que ela “está longe de ser consensual”.6 Green deixa claro que sua perspectiva tem o caráter linguístico como ponto de partida para observar as transformações sociais e culturais que decorrem do contato entre europeus e africanos, pois “o desenvolvimento de uma nova língua pode refletir novas forças sociais. Onde as interações sociais e as trocas são intensas, as mudanças linguísticas seguem” (p.12).7

Ao colocar esta região no centro do mundo, o livro de Toby Green passa a interessar não só os especialistas em História da África, mas a todos que se interessam pelo tema do tráfico, da escravidão, da diáspora africana e da História Atlântica.

1 BROOKS, George E. Landlords and strangers: ecology, society and trade in Western Africa, 1000 – 1630. Boulder: Westview Press, 1993.
2 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História, v.28, n.1, p.20, 2009.
3 HORTA, Jose da Silva; MARK, Peter. Judeus e muçulmanos na Petite Cotê senegalesa do início do século XVII: iconoclastia anti-católica, aproximação religiosa, parceria comercial. Cadernos de Estudos Sefarditas, n.5, p.29-51, 2005.
4 HAVIK, Philip. A dinâmica das relações de gênero e parentesco num contexto comercial: um balanço comparativo da produção histórica sobre a região da Guiné-Bissau – séculos XVII e XIX. Afro-Ásia, n.27, p.79-120, 2002.
5 Toby Green utiliza diversos referenciais para a utilização deste conceito, entre eles: MINTZ, Sidney W.; PRICE, Richard Price. The birth of African-American culture: an anthropological approach. Boston: Beacon Press, 1992; BERLIN, Ira. From Creole to African: Atlantic Creoles and the origins of African-American society in Mainland North America. The William and Mary Quarterly, 3rd Ser., v.53, n.2, p.251-288, April 1996; HEYWOOD, Linda; THORNTON, John K. Central Africans, Atlantic Creoles, and the foundation of the Americas, 1585-1660. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2007.
6 FERREIRA, Roquinaldo. Ilhas crioulas: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. Revista de História, São Paulo, n.155, p.19, 2006.
7 Tradução da autora. “The development of a new language may reflect new social forces. Where social interactions and exchanges are intense, linguistic change follows”.

Mariana Schlickmann – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte (MG). Brasil. Mestranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: [email protected].

Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions: the luso-brazilian world, c. 1770-1850 – PAQUETTE (H-Unesp)

PAQUETTE, Gabriel. Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions: the luso-brazilian world, c. 1770-1850. United Kingdom, Cambridge University Press, 2013, 463 p. Resenha de: MOURA, Denise Aparecida Soares de. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Na historiografia de nações de herança colonial, certos temas, como o da independência política, por exemplo, são alvo de grandes controvérsias e chegam mesmo a formar escolas interpretativas (GARRIDO, 2009). Na historiografia das antigas metrópoles, o tema nada prestigioso da independência de sua suas colônias é, de um modo geral, apagado da memória.

Porém, tendo em vista a longa vida dos impérios europeus coloniais da época moderna, como imaginar que a separação política de suas colônias tenha desconectado imediatamente suas histórias? O caso do império português é um dos mais expressivos deste tipo de indagação, e o paradigma da “era das revoluções”, cuja ideia chave é a da ruptura, algo aparentemente mais próximo de situações, como as vividas pelos Impérios britânico ou hispânico, não é aplicável a sua história.

Essa é a tese defendida por Gabriel Paquette, professor da Johns Hopkins University, em seu recém-publicado “Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions”. O tema do colonialismo e das independências em perspectiva atlântica é algo que há certo tempo vem fazendo parte das reflexões deste historiador, que escreveu ainda “Enlightenment, governance and reform in Spain and its Empire, 1759-1808” (2008) e também dirigiu a coletânea “Connections after colonialism: Europe and Latin America in the 1820s” (2013).

“Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions” conta com uma consistente pesquisa empírica realizada em arquivos e bibliotecas do Brasil, de Portugal, dos Estados Unidos e da Inglaterra. O livro é formado por cinco capítulos distribuídos ao longo de quase 450 páginas. O autor faz uma análise global do processo histórico do mundo luso-brasileiro no período 1770-1850, focalizando suas transformações políticas, mas levando em consideração fatores de mútua influência e continuidades nas suas histórias, especialmente a partir de 1822, quando ocorreu a formalização da separação política entre Brasil e Portugal.

O tipo de abordagem da obra permite situá-la, do ponto de vista da historiografia brasileira, no âmbito de ensaios seminais como “Herança colonial – sua desagregação” (HOLANDA, 1962) e “A Interiorização da Metrópole” (DIAS, 1972), que contribuíram para modernizar a intepretação do processo da independência do Brasil. Ao negar fatores de ruptura neste processo e mesmo identificar seu caráter de conflito doméstico, que opôs portugueses do Reino e da velha Corte – como faz especialmente o segundo ensaio -, estes autores lançaram as bases, posteriormente desdobradas pela historiografia, para que a compreensão da história do Brasil pudesse ser feita fora das perspectivas de análise polarizadoras.

O primeiro capítulo do livro analisa o período 1777-1808 e mostra a mobilização da elite de letrados e funcionários luso-brasileiros, patrocinada pelo Estado português, sob a liderança de ministros como Sebastião José ou D. Rodrigo de Souza Coutinho, em torno do projeto de remodelação das estruturas políticas, econômicas e administrativas do Império. Esta foi uma conjuntura de recalibragem das estruturas do Império, como considera o autor, que conclui ser o período colonial tardio do Brasil um tempo de consolidação de seu status e posição de precedência política e de maior integração com Portugal.

A ocupação de Lisboa pelas tropas francesas, contudo, estabeleceu as bases da crise política do Império entre os anos de 1807-1822, conforme é discutido no segundo capítulo. A instalação da Corte no Rio de Janeiro, em 1808, e a elevação do Brasil a Reino Unido, em 1815, ponto alto da sua precedência política, contribuiu para estabelecer um divisor de águas no projeto luso-brasileiro de modernização do Império.

A transformação do Brasil em sede da Monarquia colocou para a velha Corte que permaneceu no reino alguns desafios, como o de expulsar o invasor francês, enfrentando ao mesmo tempo um agudo déficit econômico e a tarefa de assegurar a sobrevivência política de Portugal perante as outras nações da Europa. Para tanto, grupos políticos da península se articularam em torno de um projeto monárquico conservador, cujo objetivo era recuperar a antiga conformação do Império Luso-brasileiro, com Lisboa como cabeça das instituições políticas e da Coroa.

Como fazer, contudo, para que a nova Corte estabelecida no Rio de Janeiro perdesse o status político-institucional alcançado desde 1808? É neste ambiente político que o autor propõe a compreensão do desenvolvimento de uma cultura intelectual constitucional no atlântico ibérico, como parte de um movimento mais amplo que envolvia também outras nações, como Espanha, França e Inglaterra.

Os processos de independência do século XVIII e início do XIX levaram antigas metrópoles a reformular suas constituições e as antigas colônias a elaborar suas próprias cartas de leis. Dada a natureza de conflito doméstico da separação política do Brasil com a permanência, inclusive, da mesma linhagem dinástica que governava Portugal, a cultura constitucionalista do atlântico ibérico foi caracterizada pela expectativa portuguesa de reabilitar o antigo Império, tanto do ponto de vista das Cortes Constituintes de Lisboa, de 1821, como do projeto final da Carta constitucional outorgada por D. Pedro, em 1824.

Conforme pode ser acompanhado nos capítulos 3 e 4, nos intervalos cronológicos entre 1822-1826 e 1828-1834 a vida política nas duas pontas do atlântico português continuou ligada pela persistência desta expectativa das forças políticas em Portugal, algo que somente desapareceria com a morte de D. Pedro, em 1834, e com o surgimento das discussões públicas em torno de temas comuns como legitimidade e direitos dos Bragança, o aparecimento de modelos de sistema monárquico e a emergência de personagens – como o próprio D. Pedro, D. Miguel, D. Maria e seus conselheiros.

Mais especialmente no quarto capítulo são apresentados e discutidos os meandros nacionais e internacionais da guerra civil ocorrida em Portugal, que opôs correntes de Miguelistas, adeptos de D. Miguel e Cartistas, e defensores do direito de D. Pedro à Coroa portuguesa e da carta constitucional portuguesa de 1826, que influenciaram a movimentação política de todo o atlântico português, incluindo-se os Açores, que abrigou a resistência dos defensores da legitimidade de d. Maria contra as pretensões de D. Miguel de permanecer no trono português.

O capítulo 5 analisa o esforço português de converter a África em seu novo Império nos trópicos, após a perda do Brasil. O intervalo 1820-1850, tradicionalmente visto como um hiato na história portuguesa em relação ao colonialismo, na realidade foi caracterizado pela ação intensa, especialmente após 1834, de escritores de textos políticos e econômicos, jornalistas e funcionários públicos que produziram memórias, ensaios e relatórios que refletiam sobre os erros do colonialismo português e sobre um novo modelo de colonização a partir da África.

Assim como na fase dos confrontos entre miguelistas e cartistas, este outro momento da história portuguesa – de reinvenção do colonialismo e da utopia portuguesa de voltar a ser um poderoso Império – retoma o espírito de diagnóstico dos letrados do final do século XVIII identificando os erros cometidos na colonização do Brasil para corrigi-los na África.

“Imperial Portugal…” está inserido no horizonte teórico-metodológico da história atlântica, que, do ponto de vista acadêmico, ganhou força nos Estados Unidos entre as décadas de 70 e 80, a partir dos trabalhos impressos pela Johns Hopkins University Press e dos seminários organizados pela Harvard University.

Alguns adeptos desta corrente têm apontado como um de seus desafios a superação da circunscrição da sua análise aos limites de um Estado-nação específico (Games, 2006). Os trabalhos publicados nesta linha de abordagem, contudo, revelam que estes limites detêm também motivações metodológicas. Certamente serão necessárias mais pesquisas e organização mais funcional de acervos documentais para que se possa alcançar uma visão de síntese da civilização do atlântico.

Em virtude disto e seguindo na tradição dos trabalhos do historiador inglês John Russell-Wood, este é um livro que pode ser encaixado no âmbito de preocupações voltadas para a conceituação da especificidade do atlântico português. Para que esta especificidade ficasse mais clara, contudo, o autor deveria ter recorrido mais a uma das muitas metodologias utilizadas no estudo da história atlântica: a comparação. Se o paradigma da “era das revoluções” pode explicar a experiência do atlântico hispânico, mas não a do português, esta experiência poderia ter sido mais evocada, pelo menos na introdução do livro.

O autor atribui todo o peso do espírito reformista do Império português da segunda metade do século XVIII à ação do ministro Sebastião José, desconsiderando que o período anterior – o do reinado de D. João V – contém todas as forças reformistas que serão ampliadas ou remodeladas no período posterior. (Maxwell, 1996).

O tema do reformismo ilustrado português poderia ter sido mais bem conceituado se algumas abordagens tivessem sido mais acuradamente empregadas (Dias, 1968; Prado, 1999). Neste caso, o exemplo de Frei Veloso – que dependia de que agentes do exterior lhe enviassem obras para serem traduzidas – não é suficiente para endossar a tese de uma ilustração de enxerto, porque esta tipografia durou apenas dois anos.

Um aspecto positivo ao longo de toda a obra é o minucioso trabalho de micro-história sobre a interferência inglesa no processo de reconhecimento da independência do Brasil e da constituição de 1826, elaborada por D. Pedro para Portugal e inspirada na constituição do Brasil de 1824.

“Imperial Portugal…” é uma obra que também pode ser vista como uma análise do processo de descolonização do ponto de vista das suas influências e consequências para a metrópole. Para a historiografia de um país de herança colonial como o Brasil, o livro contribui para uma nova forma de abordar o processo de descolonização, ou seja, inverte a problematização para a metrópole.

O último capítulo do livro introduz, de fato, uma questão estimulante e que diz respeito à reinvenção do Império Português na África. Neste caso, entre a independência do Brasil e 1850 não teria ocorrido um intervalo, como diz Paquette, até o advento do neocolonialismo português neste continente.

O engajamento em torno desta questão estimulou jornalistas e intelectuais a produzir uma série de escritos, memórias e relatórios amparados nas referências da colonização do Brasil. O Estado, especialmente, esteve envolvido neste esforço de construção de um novo Império, ao incentivar portugueses residentes no Brasil a fundar colônias agrícolas na África. Para a historiografia brasileira, este capítulo abre uma frente de pesquisa que talvez possa conceituar este movimento do século XIX, quando Portugal enfrentou o desafio de se reinserir no atlântico sul.

“Imperial Portugal…”, portanto, é uma obra de reflexão sobre o tema maior da descolonização e dos novos modelos de colonização do século XIX na perspectiva do atlântico português. Para os historiadores, de um modo geral, este livro é um excelente exemplar de rigor metodológico na pesquisa histórica, pois o autor faz cortes precisos em um longo processo histórico, como os dos anos 1770-1850, documentando e analisando as questões próprias de cada momento. Para os pesquisadores do mundo luso-brasileiro ou que buscam construir uma visão de síntese sobre a civilização do atlântico entre o XVIII e o XIX, este é um livro inspirador de temáticas na área de história política e intelectual.

Referências

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da Metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822: dimensões. 2. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986, p. 160-186.         [ Links ]

MAXWELL, Kenneth. Marques de Pombal: paradoxo do iluminismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.         [ Links ]

GAMES, Alison. Atlantic History: definitions, challenges and opportunities. The American Historical Review. Bloomington, n. 3, v. 111, pp. 741-757, June 2006.         [ Links ]

HOLANDA, Sérgio Buarque. A herança colonial – sua desagregação. In: ____ (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Brasil Monárquico. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962, tomo II, vol. 1.         [ Links ]

PIMENTA, João Paulo Garrido. The Independence of Brazil: a review of the recente historiographic production. Providence, E-JPH, n. 1, vol. 7, pp. 1-21, Summer 2009.         [ Links ]

PRADO, Maria Emilia. O estado como vocação: ideias e práticas políticas no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Access, 1999.         [ Links ]

Denise Aparecida Soares de Moura – Professora de História do Brasil do Departamento de História da UNESP (Campus de Franca).

From Africa to Brazil: culture, identity, and an Atlantic slave trade, 1600-1830 – HAWTHORNE (VH)

HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: culture, identity, and an Atlantic slave trade, 1600-1830. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2010, 288 p. MARCUSSI, Alexandre Almeida. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012.

O Estado do Grão-Pará e Maranhão é uma região relativamente pouco estudada pelos historiadores que se debruçaram sobre a América Portuguesa, se o compararmos com as capitanias do Nordeste ou com a região de Minas Gerais, por exemplo. Da mesma forma, dentre as regiões da costa africana que participaram significativamente do comércio atlântico de escravos, o tre-cho localizado entre os rios Senegal e Serra Leoa – a costa conhecida como Alta Guiné – talvez seja um dos menos bem contemplados pelos estudiosos. É natural, portanto, que a obra de Walter Hawthorne, que aborda a conexão entre ambas as regiões, seja uma adição bem-vinda à historiografia que trata do período colonial.

Hawthorne, que atualmente leciona História da África na Universidade Estadual de Michigan, é autor de outra obra importante sobre a Alta Guiné, Planting rice and harveting slaves, na qual analisa a produção de arroz na região. Em From Africa to Brazil, ele alarga o escopo da pesquisa para com-preender a articulação dessa região com o Maranhão, outra importante área produtora de arroz do Atlântico que estabeleceu fortes vínculos com o comér-cio guineense de escravos – mais especificamente, com os portos portugueses de Cacheu e Bissau, ao sul do rio Gâmbia.

Como já sugere o subtítulo da obra, que poderia ser traduzido como “Cul-tura, identidade e um comércio atlântico de escravos, 1600-1830”, o objetivo do autor é compreender as influências da diáspora guineense sobre a experi-ência cultural das comunidades escravas no Maranhão, sobretudo no período que se estende de 1750 a 1830, quando houve predomínio numérico de cativos oriundos da Alta Guiné nas importações do porto de São Luís. Esse vínculo é explicado em parte pelo regime de ventos e correntes marítimas do Atlântico, que favorecia as viagens entre a costa norte do Brasil e os portos de Cacheu e Bissau, e em parte pelas políticas pombalinas de desenvolvimento econômico do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que tiveram como base a produção do arroz empregando mão-de-obra africana fornecida por esses portos.

O autor compara manifestações culturais dos povos da Alta Guiné com as das comunidades escravas do Maranhão para propor a tese de uma con-tinuidade cultural entre as duas realidades. Dessa forma, a perspectiva de Hawthorne alinha-se à de outros historiadores norte-americanos normalmente denominados “afrocêntricos”, tais como Paul Lovejoy, John Thornton e James Sweet, com os quais Hawthorne mantém intenso diálogo ao longo do livro.

É interessante notar, inclusive, que o plano de capítulos de From Africa to Brazilecoa a organização temática de A África e os africanos na formação do mundo atlântico, de John Thornton,1partindo da realidade africana para iluminar aspectos culturais das sociedades americanas, num projeto de com-preender o protagonismo dos africanos na configuração do mundo atlântico. O primeiro capítulo aborda a transição do regime de mão-de-obra indígena para o trabalho africano no Maranhão, na década de 1750, e analisa a origem geográfica dos escravos desembarcados. Na sequência, o autor empreende um estudo da organização do comércio escravista e da cultura da Alta Guiné, para depois passar à realidade americana, discutindo o regime de produção agríco-la do arroz, as estruturas matrimoniais e familiares vigentes na comunidade escrava e, por fim, as práticas religiosas dos africanos e seus descendentes.

A obra de Hawthorne partilha com a historiografia dita “afrocêntrica” muitos de seus pressupostos e métodos de análise – bem como alguns de seus limites interpretativos. Nota-se logo a importância capital da demografia na argumentação: o autor demonstra que o maior grupo dentre os escravos im-portados para o Maranhão proveio da Alta Guiné, correspondendo a 57% dos ca-tivos desembarcados entre 1751 e 1842. Mais que isso, a análise dos etnônimos nos inventários maranhenses e o profundo conhecimento que o autor tem do funcionamento do comércio escravista na África ainda permitem demonstrar que, dentre os escravos que vieram dessa região, houve claro predomínio das etnias habitantes da faixa costeira (balantas, bijagós, papel, floup, banyuns e brames), em detrimento dos fulas e mandinkas do interior, caracterizando um cenário em que o autor identifica um certo grau de homogeneidade cultural.

A partir daí, a obra busca os vínculos culturais entre as duas regiões. A análise está ancorada, em grande medida, no trinômio origem-etnia-identida-de. Trata-se de propor que os escravos guineenses puderam resgatar a etnia como critério de identidade no Maranhão, recriando na América elementos de sua cultura de origem. Contudo, o autor ressalta que eles não resgataram propriamente suas etnias particulares, mas uma espécie de cultura comum da Alta Guiné, baseada em pressupostos culturais largamente compartilhados, que foram enfatizados na diáspora.

Pode ser proveitoso pensar no argumento do autor à luz daquilo que Luis Nicolau Parés denomina “identidades metaétnicas”, agrupando vários etnô-nimos em denominações mais amplas a partir da interação entre africanos e europeus.2Hawthorne explica de várias maneiras a formação dessa identidade compartilhada: em alguns momentos, sugere que ela possa ter sido uma es-tratégia dos escravos para evitar conflitos étnicos no interior do grande grupo guineense. Predomina na obra, no entanto, a ideia de que essa identidade te-ria sido uma recriação mais ou menos “espontânea” baseada em similaridades culturais já existentes desde a África. Nesse sentido, ela seria de fato um res-gate de uma realidade cultural africana, e não propriamente uma recriação específica da sociedade colonial ou do mundo atlântico.

Observa-se que, em alguns casos, as supostas continuidades culturais com a Alta Guiné estão fundamentadas em fenômenos que também podem ser observados em outras regiões da África e no restante da América Portuguesa – por exemplo, as bolsas de mandinga3 – , enfraquecendo um pouco a argumen-tação do autor. Até por conta disso, a ênfase na costa da Alta Guiné como fon-te majoritária da cultura escrava maranhense soa um tanto exagerada, ainda mais se considerarmos que as etnias da costa nunca chegaram a compor mais de 32% da população escrava.

A despeito de seus limites interpretativos, em grande parte derivados da perspectiva teórica escolhida, a obra apresenta diversas contribuições re-levantes. Para além dos pouco conhecidos dados a respeito da comunidade africana maranhense, cabe destacar a abordagem do comércio de escravos na Guiné, que foge dos modelos clássicos ao mostrar que o tráfico não implicou centralização política naquela região. Vale ainda mencionar a sofisticada aná-lise a respeito da implantação da cultura do arroz no Maranhão, que articula vasta informação documental, um profundo conhecimento acerca do cultivo de arroz no Novo e no Velho Mundo e uma reflexão sobre o comércio atlântico colonial. O autor estabelece um diálogo com a chamada “tese do arroz ne-gro”, segundo a qual o conhecimento técnico para o plantio do arroz na Amé-

rica teria sido trazido pelos africanos da Alta Guiné. Comparando as técnicas de cultivo na África e no Maranhão, o autor demonstra definitivamente que essa tese não pode ser estendida para o Brasil. Para ele, a natureza mercantil da colonização determinou as características ambientalmente predatórias do plantio, enquanto o conhecimento africano pôde ser preservado e empregado apenas nas etapas do beneficiamento e do preparo culinário. Daí, portanto, a ideia de que o arroz maranhense não seria nem “branco” e nem “negro”, mas “marrom”.

Do ponto de vista metodológico, From Africa to Brazilfundamenta-se em uma extensiva e sólida pesquisa documental. Embora falte em alguns mo-mentos uma crítica mais rigorosa de algumas fontes, o autor demonstra am-plo conhecimento, contemplando uma documentação heterogênea que vai de inventários maranhenses até relatos de viajantes na costa africana, passando pelas fontes inquisitoriais.

From Africa to Brazilnão interessa apenas aos especialistas na história do Maranhão, mas também a todos os estudiosos das culturas afro-americanas e do comércio atlântico de escravos. A obra de Hawthorne preenche uma lacuna importante, trazendo à luz as especificidades de realidades históricas pouco conhecidas na historiografia. Esta é sem dúvida, sua maior contribuição.

1 THORNTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
2 PARÉS, Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p. 26.
3 Compare-se a perspectiva do autor com SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: século XVIII. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. 256 p. (Tese de doutorado – História Social); e SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Alexandre Almeida Marcussi – Doutorando em História Social Departamento de História da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP São Paulo – SP [email protected].