Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso – MOERBECK (Topoi)

MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. Resenha de: SILVA, Uiran Gebara. Conflito social, política e culto na Atenas de Eurípedes. Topoi v.20 n.41 Rio de Janeiro May/Aug. 2019.

O livro Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso é um importante trabalho sobre a relação da tragédia com a dimensão política e religiosa da sociedade ateniense do V a.C. Há no Brasil uma grande quantidade de estudos dedicados à poética da tragédia, mas poucos voltados para a investigação histórica por meio das tragédias, não sendo incomum que muitos dos estudantes só possam recorrer ao clássico conjunto de estudos sobre essa intersecção de Jean Pierre Venant e Pierre Vidal-Naquet.1 O autor do livro, Guilherme Moerbeck, já tem um conjunto respeitável de estudos que lida com a intersecção entre política e tragédia na Grécia Antiga. Esse conjunto de investigações se expressa em vários artigos e no livro Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica.2 Enquanto no trabalho anterior o propósito foi perseguir a hipótese de que a relação entre política, guerra e a tragédia seria mais bem compreendida por meio da noção de “gerações”, nesta nova obra há um estudo mais interessado em Eurípedes, que põe no centro de suas preocupações a hipótese de que a dinâmica da participação política em Atenas no século V a.C. pode ser entendida como a configuração de um campo político, noção tomada de Pierre Bourdieu.

Para desenvolver essa ideia, na primeira parte do livro Moerbeck articula de maneira bastante competente uma série de questões teóricas. No primeiro capítulo, “Poder simbólico e habitus: aproximações teóricas para a análise das tragédias nas Grandes Dioni síacas”, o autor apresenta e delimita o emprego que faz da teoria dos campos (pensando a distribuição de bens simbólicos, distinções sociais e poder simbólico) e da noção de habitus (produção e reprodução e práticas no interior dos campos), ambas de Bourdieu. Seu ponto de partida é o teatro ateniense como uma prática engastada ou incrustada (seguindo a terminologia de Moses Finley), isto é, uma prática social integrada em outras práticas sociais. Como o teatro está incrustrado tanto na política quanto na religião, no segundo capítulo, “Espaço, ritual e performance na cidade das Grandes Dionisíacas”, o autor busca, por um lado, compreender a dimensão ritual do teatro em sua espacialidade na cidade de Atenas na sua relação com o festival das Grandes Dionisíacas, e, por outro, apreender as conexões com o desenvolvimento das práticas políticas atenienses entre a sua constituição democrática e sua vocação imperial. Isso resulta em intuições significativas no que diz respeito à hipótese da formação de um campo político (e talvez até mesmo de um campo artístico, associado) na Atenas do século V a.C. e ao papel do conflito social como elemento constitutivo da formação desse campo. A contraparte dessa perspectiva atenta à existência integrada das práticas sociais está nas dificuldades oferecidas pelas práticas religiosas na Antiguidade para com as interpretações modernas. O instrumental intelectual desencantado da modernidade3 tem muita dificuldade em compreender adequadamente o lugar do conflito dentro das práticas religiosas (em geral pensadas como homogeneizantes), em lidar com o grau de integração da religião com outras práticas sociais, e em pensar a força do religioso em relação ao político.

Na segunda parte do livro, Moerbeck analisa de modo sistemático duas tragédias de Eurípedes, As suplicantes e As fenícias. Aqui, ao se observar a relação do teatro ora com o campo político, ora com as práticas religiosas (um campo? O autor não o articula nesses termos), aquelas dificuldades se fazem presentes. No terceiro capítulo, “Política, posição social e guerra em As suplicantes de Eurípedes”, o autor demonstra como a recriação de Eurípedes do episódio mítico em que Teseu interfere no ciclo tebano se articula com temáticas políticas e religiosas prementes para a Atenas do V a.C. Do ponto de vista das relações da tragédia com a política, a interferência remete ao próprio debate ateniense sobre a guerra contra a Liga do Peloponeso, ainda em sua primeira fase. Aqui Moerbeck dá destaque aos significados da representação dramática do caráter democrático do governo de Teseu, com especial destaque para a configuração de um discurso de oposição à tirania e para a elaboração da voz do camponês como o representante do bom senso do conjunto dos cidadãos. Já ao observar a relação da tragédia com as práticas religiosas, a análise de Moerbeck adentra o território dos costumes enraizados em um passado distante, o pressuposto religioso por trás do tabu desrespeitado por Creonte ao não permitir o sepultamento devido dos invasores mortos no conflito entre Etéocles e Polinices. Há um conflito de contornos religiosos servindo de motivação para a ação de Atenas em Tebas, uma vez que o estatuto de Atenas e seu rei como responsáveis por zelar por esse costume na Ática é um dos elementos que entram no debate na assembleia presente na tragédia

Já no quarto capítulo, “Ambição, poder e política em As fenícias”, a tragédia que é analisada tem como conteúdo mítico episódios cronologicamente anteriores, mas foi composta posteriormente a As suplicantes. Aqui, Moerbeck reflete sobre como o conflito aristocrático entre Polinices e Etéocles, nela representado, também pode ser articulado com temáticas políticas e religiosas associadas a uma fase tardia da Guerra do Peloponeso. Por um lado, o das conexões com as temáticas políticas, o debate sobre a rotatividade de governantes e a invasão de Tebas por estrangeiros é remetido aos conflitos entre os legisladores e estrategos atenienses da última década do século V, com um papel de destaque para Alcebíades. Essa operação ilumina a dimensão sofística e demagógica dos discursos de Etéocles em favor da tirania na tragédia. Por outro, no que diz respeito às relações da tragédia com as práticas religiosas, o contexto de guerra e o imperialismo ateniense colocam em relevo os vários juramentos quebrados em As fenícias, que Moerbeck remete à problemática da recente destruição de Melos pelos atenienses e a justificativa do poder pelo poder.

Ao abordar nesses dois últimos capítulos a articulação entre esses três conjuntos de práticas sociais, Moerbeck se preocupa em não reduzir uma coisa à outra, buscando integrar da melhor maneira possível tanto as posições de Julian Gallego4 quanto as de Christiane Sorvinou-Inwood.5 O resultado da sua investigação não é transformar a tragédia em metáfora da política, nem reduzi-la a uma forma racionalizada de rituais dionisíacos, mas mostrar como essa tríplice articulação permite ver a formação do campo político em Atenas. E, por isso, o conflito social tem um papel muito importante na sua economia argumentativa. É, porém, exatamente essa centralidade do conflito social que nos reenvia às previamente mencionadas dificuldades da interpretação moderna no que tange às práticas religiosas.

Quando se trata de analisar o conflito social em termos políticos, as ciências humanas têm um instrumental teórico bastante apurado. A História, em particular, uma vez que a observação do conflito social sempre está associada às temáticas da permanência e da transformação de uma sociedade. Na investigação de Guilherme Moerbeck o conflito social com contornos políticos é, sem nenhuma surpresa, definido de várias maneiras em relação às cidades, à polis: há conflito dentro das cidades, fora das cidades, entre cidades. Nesse sentido, na análise de Moerbeck das relações entre o teatro e o campo político em formação, adentra-se numa esfera de observações que a hermenêutica moderna tende a ver como mais dinâmico no que diz respeito à observação dos conflitos sociais. Enquanto o autor busca resguardar a autonomia relativa da prática dramática, há também um esforço de interpretação da relação e do desvelamento das conexões com o conflito. Há uma dificuldade de fundo que se apresenta a interpretações desse tipo, que é o estatuto do mito recriado em cada tragédia específica, de modo que a investigação pode resultar em leituras redutoras que tratam o mito como metáfora ou alegoria do conflito social, da história. A solução de Moerbeck é pensar a própria historicidade da produção do mito (recusando tacitamente visões unitaristas do mito), preocupando-se em incluir na sua análise a diversidade de interpretações concorrentes e as reescritas do mito. Isto é feito por meio da análise tanto intra quanto extradiscursiva das duas tragédias de Eurípedes, principalmente no que diz respeito à observação dos contextos de encenação e as ambiguidades do conceito de performance (e suas implicações em termos de reprodução e criação do mito e das próprias tragédias). Assim, o conflito não é encontrado na metáfora, mas no contrapelo do texto.

A relação do teatro com as práticas religiosas cria dificuldades diferentes, pois, como já dissemos, aquela hermenêutica moderna configura o religioso como um campo mais estático: os ritos são primariamente pensados como tradição e permanência (uma derivação teórica persistente da atenção durkheimiana para com a coesão social). Aqui o risco é a redução do teatro à alegoria moral do costume tradicional, agora como rito que encena o costume. Nesse contexto interpretativo, a associação das tragédias de Eurípedes com uma moralidade pan-helênica pode levar a uma visão a-histórica dessa moralidade, ou tornar certas passagens incompreensíveis, como é o caso da nossa dificuldade em decifrar o sentido do ritual que leva ao sacrifício de Meneceu. A solução de Moerbeck é novamente pensar a produção histórica dos fenômenos, isto é, historicizar o rito.6 O tratamento dado pelo autor à dimensão espacial da produção e reprodução das relações sociais das Grandes Dionisíacas na Atenas do século V a.C. tem como resultado explicitar a interpenetração do político, do econômico e do religioso nos festivais. Outro importante resultado é que aquela moralidade pan-helênica com a qual as tragédias dialogam é vista como algo que é criado, transformado, que se consolida ou se enfraquece, isto é, em termos propriamente históricos. As tragédias de Eurípedes se revelam como um território de observação da contestação constante que se ofereceu a essa moralidade no contexto da Guerra do Peloponeso.

O lugar do religioso em meio às guerras contra os persas e à Guerra do Peloponeso remete necessariamente às regras de comportamento entre as cidades gregas nesse contexto belicoso. Do mesmo modo, a efetividade dessas regras conecta-se à efetividade da dimensão religiosa que lhes dá suporte. A análise de Moerbeck demonstra que tanto as tragédias de Eurípedes quanto a narrativa histórica tucidideana (como no caso de Mitilene e Melos) denunciam a falha sistemática em se cumprir tais regras. E, nesse sentido, uma das poucas lacunas que se pode apontar ao trabalho de Moerbeck é a de não ter explorado mais o quanto sua abordagem de historicizar essa moralidade permite colocar em questão a homogeneidade da identidade pan-helênica, uma homogeneidade que até pouco tempo era tida como consolidada nesse momento da história das cidades da Grécia. Ainda assim, seu estudo é um excelente ponto de partida para os futuros pesquisadores interessados em desenvolver essa linha de investigação.

1 VERNANT, Jean-Pierre, & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005.

2 MOERBECK, GuilhermeGuerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

3Cf. PIERUCCI, Antônio FlávioO desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013.

4 GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005.

5 SOURVINOU-INWOOD. ChristianeTragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003.

6Para uma colocação precisa destes problemas, cf. VERSNELL, H. S.Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994.

Referências

GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005. [ Links ]

MOERBECK, Guilherme. Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. [ Links ]

MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. [ Links ]

PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013. [ Links ]

SOURVINOU-INWOOD. Christiane. Tragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003. [ Links ]

VERNANT, Jean-Pierre, & VIDALNAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005. [ Links ]

VERSNELL, H. S. Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994. [ Links ]

Uiran Gebara da Silva – Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco/Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História, Recife/PE – Brasil. E-mail: [email protected].

The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens | Kate Gilhuly

The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens é o primeiro livro solo de Kate Gilhuly e resultado de uma pesquisa intitulada Landscapes of Desire: The Erotics of Place in Classical Athens, desenvolvida no Radcliffe Institute for the Advancement of the Humanities entre 2007 e 2008. A autora é professora assistente do Departamento de Estudos Clássicos do Wellesley College e especialista em gênero e história da sexualidade na Grécia Antiga, tendo como publicações como publicações prévias mais importantes os artigos The Phallic Lesbian: Philosophy, Comedy, and Social Inversion in Lucian’s “Dialogues of the Courtesans” (2006) e Bronze for Gold: Subjectivity in Lucian’s “Dialogues of the Courtesans” (2008).

O capítulo introdutório, que podemos considerar como o ápice da obra, apresenta as bases teóricas – da matriz feminina do título – que nortearão as análises de textos antigos ao longo do livro – e que fornecem um novo leque de possibilidades a futuros estudos acerca das temáticas de gênero e sexualidade na Atenas Clássica. Leia Mais

Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania – CORTINA (C)

CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. Resenha de: RIZZON, Gisele. sociedades de cunho capitalista: o conceito de cidadania e o de economia. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 223-227, set/dez, 2009.

O livro Cidadão do mundo: para uma teoria da cidadania é, basicamente, uma análise que considera, excepcionalmente, os aspectos: sociais, econômicos, civis e interculturais de um princípio que se destacou, substancialmente, nos últimos tempos: a cidadania. A referida obra foi escrita por Adela Cortina, doutora em Filosofia e Professora de Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência, Espanha. Seus trabalhos, no âmbito da fundamentação da moral e em ética aplicada, gozam de ampla projeção na Espanha e em outros países, especialmente, na América Latina.

A obra está organizada em sete capítulos. O primeiro trata de uma teoria da cidadania. Os capítulos, compreendidos entre o segundo e o sexto, abordam pontos relevantes da cidadania nos âmbitos político, social, econômico, civil e intercultural, sendo que, para cada um desses aspectos, é designado um capítulo em especial. No sétimo capítulo, a temática envolve o processo de educar, sendo esse, segundo a autora, imprescindível para a constituição da cidadania. A obra consta, também, de um capítulo introdutório e um epílogo.

“Para uma teoria da cidadania” é o título do primeiro capítulo. Nesse, a autora, de maneira bastante relevante e consciente, afirma que “entende-se que a realidade da cidadania, o fato de se saber e de se sentir cidadão de uma comunidade, pode motivar os indivíduos a trabalhar por ela”. (p. 27). O sentir-se cidadão está diretamente relacionado com o processo de conhecer os princípios relevantes que regem o conceito de cidadania. Cortina expõe como sendo um desses princípios o sentimento  de pertença, por parte dos membros de uma determinada comunidade.

Nesse mesmo capítulo, ela trabalha uma dimensão histórica do conceito de cidadania, conceito esse excepcionalmente antigo, mas que, no fim no século XX, ressurge com vigor deslumbrante, principalmente, em virtude do aumento de sentido da concepção de justiça social.

No segundo capítulo, “Cidadania política: do homem político ao homem legal”, a temática está centrada na “origem da noção ocidental de cidadania, a essa dupla raiz grega e romana do tempo que o acompanha ao longo de sua história, criando não poucas confusões”. (p. 30). Assim, os conceitos de cidadão e de cidadania são buscados nos tempos remotos e clássicos de Atenas dos séculos V e IV a.C. e de Roma do século III a.

  1. até o século I da Era Cristã. Cortina, no decorrer desse capítulo, explicita a influência que esses conceitos tiveram na percepção e na definição do conceito de cidadão, em âmbitos teóricos e práticos, o que faz com que melhor se compreenda a conceituação em vigor na contemporaneidade.

A autora, nesse capítulo, compõe o texto por meio de estratégias de escrita, que se utilizam de uma ordem temporal, auxiliando, dessa forma, a construção de um pensamento ordenado, em nível de compreensão, das sucessivas mudanças conceituais ocorridas no decorrer dos diferentes tempos históricos.

O Capítulo 3, “Cidadania Social: do Estado do Bem-Estar Social ao Estado de Justiça”, tem como foco de discussão central o nascimento e o desenvolvimento histórico do Estado do Bem-Estar Social, assim como a crítica à solidariedade institucionalizada, por esse Estado instituída. Segundo Cortina, o que haveria de se institucionalizar é um mínimo de justiça e não o bem-estar, pois esse promove um “Estado paternalista [que] gerou um cidadão dependente, ‘critiqueiro’ e não crítico, passivo, apático e medíocre”.

(p. 64). Nesse sentido, uma proposta que prime por uma cidadania, consciente e efetiva, não se constitui de forma plena. O conceito de liberdade também está em pauta nesse capítulo, e ele é colocado em direta contraposição com a postura paternalista do Estado do Bem-Estar Social, principalmente em âmbito político, uma vez que nesse Estado são os “governantes [que] decidem em que consiste o bem do povo sem contar com ele”. (p. 67).

“Cidadania Econômica: a transformação da economia” é o título do quarto capítulo da obra Cidadãos do mundo. O enunciado da primeira seção desse capítulo: “O que significa ser um cidadão econômico?” traz um questionamento que, de maneira sucinta e direta, põe em pauta dois conceitos dicotômicos, porém convergentes, que se apresentam nas sociedades de cunho capitalista: o conceito de cidadania e o de economia.

Também, nesse capítulo, a autora lembra que as organizações econômicas precisam ser vistas como um grupo de pessoas que se unem, também, para fins dotados de cultura, não somente tendo em vista bens materiais e lucro financeiro. Assim, “a empresa não é entendida como um tipo de máquina, orientada exclusivamente para a obtenção do benefício material, mas como um grupo humano, que se propõe a satisfazer necessidades humanas com qualidade”. (p. 82). Cortina tece uma argumentação que coloca o recurso humano como elemento de fundamental importância dentro de um cenário de ordem econômica. O conceito de ética também transita neste campo de estudo, uma vez que esse é um conceito que se relaciona, diretamente, com processos de intercâmbio entre relacionamentos humanos.

No quinto capítulo: “Cidadania civil: universalizar a aristocracia”, a autora faz uma reflexão a partir do pressuposto de que toda pessoa pertence a uma sociedade civil. Afirma, ainda, que somente haverá uma cidadania civil, se houver a integração dessas mesmas pessoas a uma sociedade. Para elucidar esse pressuposto, Cortina toma, como um dos princípios essenciais, a qualificação do trabalhador. Para isso levanta a ideia de (Reich/Reino) e afirma que “a principal fonte de riqueza dos povos é a qualificação dos que neles trabalham, é a qualidade dos seus recursos humanos”, (p. 114); assim, a existência de profissões precisa ser caracterizada por atividades sociais de caráter ocupacional, que zelem por uma postura ética e de cooperação entre os envolvidos. Nesse capítulo, um ponto bastante “delicado” é colocado em pauta pela autora, que é a questão da qualificação dos trabalhadores. Para ela os trabalhadores precisam ser considerados uma fonte de riqueza e não somente a mais-valia que eles produzem às organizações, principalmente as de cunho capitalista.

O conceito de cultura é o ponto-chave do capítulo seis, intitulado “Cidadania intercultural: miséria do etnocentrismo”. Nesse, a autora explica como sendo fundamental o processo de entendimento do multiculturalismo, e que, “para respeitar uma posição não é preciso estar de acordo com ela, e sim, compreender que ela reflete um ponto de vista moral com o qual não compartilho, mas respeito em outro”. (p. 146). Por meio dessa concepção, outras situações são conflitantes, como, por exemplo, a caracterização de cultura, a identificação de diferentes tipos de cultura, assim como a construção da identidade social, uma vez que há essa necessidade, por parte do homem, para se sentir pertencente a  determinado grupo. O estudo construído passa pela percepção da importância necessária que deve ser dada ao processo identitário de cada sujeito, seja ele cultural, político, seja ele econômico, geográfico, principalmente, aqueles que atuam em meios nos quais o processo de respeito ao outro é imprescindível.

Revelando como sendo fundamental pensar sobre a cidadania por vias históricas, sociais, civis, econômicas e interculturais, como propôs Cortina nos capítulos anteriores, no sétimo “Educar na cidadania: aprender a construir um mundo juntos”, ela disserta sobre a necessidade da presença do educar para a constituição da cidadania. Educação, aqui apresentada, não tem apenas uma conotação formal, mas é estendida a todo processo que tenha como propósito o progresso dos modos de percepção do “capital axiológico”. (p. 181). Dentre os valores que a autora elenca como sendo os componentes da ética cívica estão presentes: a liberdade, a igualdade, o respeito ativo, a solidariedade e o diálogo. Tais valores explicitam que todo cidadão precisa ver-se como sujeito participante do contexto social, sendo que, por participante, ela entende aquele que atua ativamente e age ante a situações sociais apresentadas.

Para concluir, no epílogo, intitulado “O ideal da cidadania cosmopolita”, a autora afirma que há um ideal cosmopolita, que, de alguma maneira, está nas entranhas da natureza humana, que projeta esse humano na criação de uma cidadania, também cosmopolita, na qual todos os cidadãos se sintam como verdadeiros cidadãos. Para a efetivação dessa cidadania cosmopolita, Cortina explicita algumas teorias como sendo insustentáveis para o alcance desse fim, dentre elas, o “individualismo possessivo”. (p. 205). Em oposição, apresenta algumas situações que promovem a cidadania: a “lúcida e sábia solidariedade” (p. 205), a promoção da “Aldeia Global (por uma globalização econômica e ética)” (p. 206), e o “interculturalismo universal” (p. 207). É com essa perspectiva, qual seja a de uma construção para a cidadania, que Cortina encerra sua obra. Numa palavra: não é só o Estado ou um grupo de cidadãos que a efetiva, mas o conjunto de toda a sociedade, incluindo cada um dos seus componentes.

A relevância da obra pode ser representada pela seguinte afirmação: “O reconhecimento da cidadania social é conditio sine qua non na construção de uma cidadania cosmopolita que, por ser justa, faça com que todos os homens se sintam e se saibam cidadãos do mundo.” (p. 210). Faz-se a proposição ancorada na explicitação que Cortina efetiva no decorrer da obra, e que, de forma substancial, aborda a necessária promoção de uma teoria à cidadania, para que todos os cidadãos realmente se sintam Cidadãos do mundo. Por fim, faz-se uma relação entre um processo de real cidadania e a promoção de uma cultura para a paz, pois ambos têm por finalidade a valorização de cada sujeito social, assim como o seu contexto. O sentir-se presente, atuante e construtor de um espaço é a pedra fundamental de todo processo que visa à efetiva autovalorização social e, consequentemente, de respeito ao outro.

Referências

CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. p. 210.

Gisele Rizzon – Graduada em Pedagogia pela Universidade de Caxias do Sul e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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