Educação e sociedade na ditadura civil-militar: adesões, acomodações e resistência | Nadia Gaiafatto Gonçalves e Suzete de Paula Bornatto

O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, ao investigar sobre as culturas políticas durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), levanta reflexões sobre a existência de adesões, acomodações e resistências que permite compreendermos com maior densidade sobre esse período histórico e identificar novas configurações e rupturas ao longo do tempo. Como destaca Motta (2018, p. 132), “[…] mesmo que sejam estruturalmente arraigadas, as culturas políticas podem mudar”.

Nesse sentido, o livro Educação e sociedade na ditadura civil-militar: adesões, acomodações e resistência, organizado por Nadia Gaiafatto Gonçalves, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná e Suzete de Paula Bornatto, docente da mesma instituição, reúne textos que exploram diferentes debates no campo do ensino e suas relações com as culturas políticas da época (Gonçalves & Bornatto, 2019). Dividido em doze capítulos, os trabalhos reunidos são resultados de investigações levantadas em teses e dissertações e permitem preencher diferentes lacunas na história da educação. Leia Mais

Alteridades em tempos de (in)certezas / Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

A história imediata nos ajuda a pensar algumas razões do estado atual das coisas. Tenho pesquisado, desde dezembro de 2019, o fenômeno da emergência e organização de policiais organizados em um movimento antifascismo, acompanhando debates públicos e realizando entrevistas com os sujeitos envolvidos. Para executar essa tarefa é preciso uma postura sensível aos anseios desses profissionais da segurança pública (policiais militares, civis e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes penitenciários, peritos, etc.), expressos nos seus posicionamentos públicos sobre os rumos das polícias e das políticas de segurança pública no Brasil e sobre o avanço de estruturas políticas que favorecem a disseminação de práticas fascistas. Refletir sobre o tempo presente e sobre as dinâmicas que contribuíram para a configuração política do presente, disso que Wendy Brown (2019) chamou de Frankenstein gerido pelo neoliberalismo, é uma tarefa que demanda uma escuta sensível, um olhar sensível, uma atenção com o mundo. Escutar o outro em tempos dissonantes e incertos como o nosso, demanda um trabalho de reconfiguração das nossas certezas e de nossas incertezas epistemológicas.

É exatamente este o convite dos organizadores do livro Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis, Miram Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore, na introdução à coletânea. Os autores são, respectivamente, coordenadora e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) e são pesquisadores de temas caros ao tempo presente: sindicalismo industrial, políticas públicas para a juventude, teatro e arte no período da ditadura civil-militar. A organização do livro se deu pela participação dos autores na comissão local do XII Encontro Regional Sudeste de História Oral – Alteridade em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis, em Belo Horizonte, no ano de 2017, ocasião em que foram responsáveis pelo planejamento da programação das mesas redondas, conferências e atividades ao longo do evento.

A coletânea é a reunião dessas falas pronunciadas por pesquisadores, de formação múltipla, nos auditórios da UFMG, mas também em outros espaços públicos, como o Museu de Arte da Pampulha e a Casa de Referência da Mulher Tina Martins. A história oral e, especialmente, o problema da escuta sensível, nos são apresentados de modos distintos nesse livro: reflexão sobre acervos, memória e identidade, alteridade e espaço urbano, a entrevista como prática social e coletiva, as estratégias de organização individuais e coletivas, o oral e o audiovisual na construção de sentidos, a urgência da participação da história e das(os) historiadoras (es) no debate público, a publicização de experiências de vidas que demandam cuidado e atenção e a reflexão sobre percursos biográficos ligados à própria história da pesquisa em história oral.

Na introdução, o livro é dividido em três grandes conjuntos de textos: alteridade como marcador das possibilidades da entrevista de história oral; “problematizações de identidades de minorias políticas”; e “escutas sensíveis diante das diferenças”. Ana Maria Mauad abre o primeiro grupo de texto com um artigo que analisa a questão indígena na obra fotográfica de Claudia Andujar, analisando seu trabalho a partir da categoria de fotografia pública, associando-a com “uma dimensão crítica e (…) dialética” (p. 25). O engajamento público de Andujar na causa indígena se deu, também, pelo movimento de inclusão da comunidade Yanomami como parte desse público e também como partícipe da narrativa pública sobre os sentidos das imagens. A confiança é a base dessa relação pública com a questão indígena, assim como a relação entrevistador-entrevistado.

O segundo texto, de Mario Brum, aprofunda o problema da relação entre fatos e representações, abordado por Alessandro Portelli, ao analisar as representações sociais e as identidades em torno da construção da favela da Cidade Alta (e seus entornos) na cidade do Rio de Janeiro. O estigma dos “removidos” da região central para a Cidade Alta, marcou “toda a trajetória posterior do conjunto” habitacional, seja a partir do silenciamento, seja pela diferenciação social com outra categoria, a dos “inseridos”. Em seguida, Luciana Kine e Emilene Souza apresentam reflexões metodológicas para lidar com narrativas de vida ligadas a “tópicos sensíveis”, em especial jovens vivendo com HIV/aids. A multiplicidade das experiências de vida que giram em torno de “temas delicados”, remonta à ideia de calidoscópio narrativos e conduz a uma reflexão ética sobre a relação entrevistado-entrevistador e a condução partilhada do processo de narrar e da elaboração do produto final da pesquisa. No caso, as autoras exploraram uma metodologia de embaralhamento das histórias, “estratégia ética, estética e política” que possibilitou a discussão de “experiências do cotidiano” (p. 50) e criou uma alternativa para superar os limites do sigilo, e do constrangimento. Os diálogos possibilitados por essa metodologia reafirmam um posicionamento epistemológico da “pesquisa como prática social [e] ação coletiva” (p. 54).

Abrindo o segundo conjunto de textos, Valéria Barbosa de Magalhães e Luiz Morando, apresentam, respectivamente, duas reflexões sobre migração e sociabilidade da comunidade LGBT(QIA) em espaços e situações distintas. O primeiro texto apresenta pouca reflexão propriamente dita em relação às entrevistas, mas propõe uma indagação fundamental sobre a relação entre sexualidade e migrações em contextos políticos conturbados, como a eleição de um governo autoritário no Brasil. Magalhães apresenta, muito atenta aos anseios e às experiências de migrantes brasileiros LGBT na Flórida (EUA) na última década, a mudança das “estratégias de legalização no exterior” e a apreensão que o cenário político produziu nas expectativas de vidas desses sujeitos. Seu trabalho desloca o objeto da pesquisa sobre imigração e sexualidade do campo dos problemas de saúde e da exploração sexual, interrogando outros modos pelos quais a imigração relaciona-se com a sexualidade para além do negativo.

Já Morando, apresenta uma reflexão sobre identidade e diferença, analisando representações identitárias de homens gays em relação à memória e à suas experiências em espaços de sociabilidade LGBT em Belo Horizonte, entre 1960 e 1980. O texto faz uma divisão analítica de duas formas imbricadas de lidar com essa memória, percebidas pelo pesquisador em suas entrevistas: a romantização do passado e o ceticismo em relação à experiência dos clubes noturnos da capital mineira. O gozo e a descrença apresentaram-se como faces do mesmo problema: o prazer e o desconforto de lembrar as vivências do passado. Se o estabelecimento da diferença e da identidade implica em distanciamentos temporais, tricotar – “fazer um tricô”, ou seja, estabelecer um diálogo – figura como uma alternativa para o isolamento social de gerações mais novas em relação à vivência de gerações anteriores.

O historiador Amilcar Araújo Pereira, apresenta um belo estudo sobre a luta e a formação dos movimentos negros no Brasil, organizados durante a ditadura militar. Surgida a partir de reuniões em bairros, universidades, ou grupos de teatro, no Nordeste e no Sudeste, a militância negra brasileira se caracterizou pela pluralidade de perspectiva, pelas diferenças regionais, geracionais e ideológicas. Apesar dessas diferenças, Amílcar Pereira, buscou demonstrar a importância das redes estabelecidas pelos militantes, que criaram conexões e espaços de experiência compartilhadas por diferentes grupos. A proposição no final da década de 1970, de organização do movimento por rede, teve como norte o fortalecimento e o estímulo de formação de lideranças. Já o artigo de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e Roberto Carlos da Silva Borges aborda o problema do audiovisual como parte do projeto de construção narrativa sobre o passado e o imaginário da cultura negra, contribuindo para uma educação antirracista no Brasil. Os autores estão interessados em investigar o “estatuto de testemunho” em torno da produção audiovisual sobre e da cultura negra, no sentido de problematizar o “funcionamento da memória” que funda “imaginários individuais e coletivos” (p. 106). Os vídeos analisados, produzidos em diferentes instâncias, representam formas heterogêneas de “contraponto à ideologia da branquitude” que sustenta as relações étnico-raciais no Brasil (p. 118).

Finalmente, o terceiro grupo de artigos apresenta diferentes abordagens metodológicas da pesquisa com a alteridade. As demandas dos policiais militares contidas no acervo “Tropas em Protesto”, que reúne narrativas de policiais, tendo como ponto de partida o movimento das praças das polícias desde 1997, ficaram silenciadas na década de 2010, especialmente após o arquivamento da PEC 21/2005, que previa a desmilitarização das polícias estaduais. Juniele Almeida argumenta a necessidade urgente de retomar o debate público em torno da desmilitarização das polícias. As “tensões históricas”, que esse debate faz emergir, correspondem à ideia de pertencimento à corporação e, ao mesmo tempo, aos movimentos contestatórios da estrutura militarizada das polícias brasileiras. Até hoje, essas tensões podem ser representadas a partir de três grandes dimensões que norteiam a urgência da redefinição do papel da polícia em um estado democrático: “o discurso institucional militarista, os problemas em segurança pública [da sociedade brasileira] e as questões trabalhistas dos servidores públicos” da segurança (p. 122).

A historiadora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, com sua sensibilidade ímpar, tece uma reflexão muito provocativa sobre um conjunto de memórias de mulheres que nos ensinam novas “formas de entrevistar e de registrar narrativas” (p. 141) e nos impulsionam para uma nova concepção de conhecimento histórico, compromissado com uma “escuta atenta” (p. 151). Em atenção às vidas que pedem cuidado e reparação, a autora propõe uma postura de amorosidade do pesquisador diante da “intolerância” e dos silenciamentos que atravessam as vidas de mulheres. A história oral como espaço de reinvenção da existência, como espaço de audiência – e não de análise – segue sendo uma possibilidade de compromisso ético do pesquisador, uma “escuta atenta” – e não promessa de remissão – capaz de intermediar outras possibilidades de construção de um mundo mais humano.

Rodrigo Patto Sá Motta nos brinda com uma reflexão sobre o uso de fontes orais em suas pesquisas sobre as universidades durante a ditadura e as surpresas advindas desse processo, contribuindo, inclusive, para incorporação do conceito de acomodação para leitura dos arranjos sócio-políticos no período (p. 158). A emoção do pesquisador ao entrevistar intelectuais importantes para o campo das ciências no Brasil, em especial na área de Ciências Humanas, e a emoção dos indivíduos ao receber informações pessoais por parte do pesquisador, contribuíram para mudanças dos sentidos da pesquisa. Proporcionando o redimensionamento dos problemas de pesquisa a partir do confronto entre diferentes documentos, por um lado, e a reapropriação e ressignificação dos objetivos da pesquisa por parte dos sujeitos entrevistados. O conceito de acomodação, como lembra Motta, não se pretendeu um modelo perfeito, mas visou apresentar uma explicação aos eventos da ditadura a partir de evidências que emergiram na pesquisa em história oral, aprofundando o debate e nos convidando para possibilidade de transformação, criando e mobilizando outros jogos que não o das acomodações (p. 162-163).

Encerrando o volume, o pesquisador Ricardo Santhiago apresenta uma reflexão sobre a trajetória biobibliográfica de Ecléa Bosi e sua contribuição para a formação do campo da história oral no Brasil. A trajetória intelectual de Bosi nos convida a uma reflexão sobre “a capacidade humana e humanizadora do exercício da escuta” como prática de formação dos jovens pesquisadores (p. 175). Os conselhos, as indicações e as sugestões de Ecléa Bosi emergem como elementos metodológicos. Ao invés da rigidez das normas, a atenção, a afetividade, a criatividade, a sensibilidade. A partir das reflexões iniciais em sua tese de doutorado, o autor argumenta a importância seminal do trabalho de Bosi para o campo da história oral brasileira, de onde se desabrocharam diferentes frutos, com pesquisas atentas “à memória, à linguagem”, a partir da “empatia, curiosidade e pluralismo” (p. 177).

Gostaria de ressaltar que há uma dissonância no ritmo de leitura do livro, pois cada capítulo corresponde a uma dimensão da pluralidade da pesquisa em história oral. Levando em consideração os itinerários formativos das(os) pesquisadoras(es), essa dissonância longe de significar um problema, torna-se potência para o contato do leitor com uma gama de leitura polissêmica sobre as possibilidades de escutar o outro de modo sensível sem abandonar o rigor metodológico. Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore nos brindam com um livro plural que retoma o antigo problema da relação pesquisador-entrevistado, apresentando contribuições proveitosas e polêmicas para a pesquisa em história oral (que por sua vez, é preciso dizer, não é metodologia, campo ou área exclusivos de historiadores).

A multiplicidade de abordagens e perspectivas dos artigos do livro, que se configura como um desafio para toda coletânea, funciona como uma postura necessária diante do desafio de se produzir conhecimento sobre o tempo presente. Mais do que mera alegoria, essa multiplicidade é, ao mesmo tempo, unidade em diferença e múltiplo nas identidades. As bases epistemológicas para imaginar outras formas de relação de poder, implicam em diálogos mais profundos e em escutas mais sinceras entre diferentes áreas do conhecimento. O livro em questão é resultado de um refinado trabalho de seleção e de enfrentamento de questões políticas e epistemológicas desse tempo imediato. De tudo ficam algumas questões: Estamos preparados para escutar o outro? Até que ponto conseguimos realizar a escuta do diferente? Em tempos de monstruosidades políticas típicas do fascismo, ou do que Traverso (2019, p. 19) chama de pós-fascismo – enfatizando as continuidades e transformações históricas do fenômeno – até quando teremos forças e disposição para ouvir quem não admite escutar? Como restabelecer o diálogo – em que a arte da escuta (PORTELLI, 2016) é o centro dessa relação – em um mundo que nasceu e da implosão das noções do “comum” e da “democracia”, das próprias “ruínas do neoliberalismo” (BROWN, 2019)?

Referências

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016. (Coleção Ideias).

TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Translation David Broder. New York/London: Verso., 2019.

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Doutor em História Social (UFRJ). É professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Betim. Atualmente, faz residência pós-doutoral na UFF, investigando o debate público promovido por e em torno dos policiais antifascismo. E-mail: [email protected].


HERMETO, Miriam; AMATO, Gabriel; DELLAMORE, Carolina (Org). Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2019. 180p. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aquiar. A escuta do outro em tempos dissonantes. Canoa do Tempo, Manaus, v.12, n.1, p.457-463, 2020. Acessar publicação original. [IF].

Tenho algo a dizer: memórias da UNESP na ditadura civil militar (1964-1985) | Maria R. Valle, Clodoaldo M. Cardoso, Antonio C. Ferreira e Ana Maria M. Corrêa

A obra Tenho algo a dizer faz parte de um projeto desenvolvido pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) buscou rememorar a sua fundação, as conjunturas políticas e sociais dos anos da Ditadura Civil Militar.

O livro foi lançado no ano de 2014, ano em que se completou 50 anos do Golpe Civil-Militar no Brasil. Através de sua leitura, o leitor é apresentado como o sistema universitário foi burocratizado e perseguido ao longo dos anos do regime de exceção instaurados a partir de 1964. Ao mesmo tempo que eram vítimas deste sistema, as universidades buscaram fazer sua resistência a partir das lutas pela redemocratização dentro da sua comunidade acadêmica. Leia Mais

Padres de Plaza de Mayo: Memorias de una lucha silenciosa | Eva Eisenstaedt

Nos primeiros anos que sucederam os períodos ditatoriais em diferentes países da América Latina, foi possível observar uma ampla produção acadêmica direcionada às questões macroestruturais destes regimes. Nas mais diversas áreas das ciências humanas, buscava-se compreender as estruturas políticas, econômicas, repressivas e ideológicas que permeavam estes modelos autoritários e seus funcionamentos. Embora tenham sido extremamente relevantes e importantes para entender melhor o contexto em questão, com o passar dos anos foi notória a necessidade de se ampliar a pesquisa histórica, seus objetos de estudo e análise. Diante desta perspectiva, produções centradas em assuntos que até então não haviam sido problematizados começaram a surgir e enriquecer o entendimento acerca do tema, evidenciando os indivíduos desta história. Neste contexto, está situado o livro “Padres de Plaza de Mayo: Memorias de una lucha silenciosa” (2014) da autora Eva Eisenstaedt.

Eva Eisenstaedt natural de Buenos Aires é formada em Ciencias de La Educación pela Universidade de Buenos Aires – UBA, e na “Primera Escuela de Psicología Social” de Buenos Aires. A autora ficou conhecida com o livro “Sobrevivir dos veces. De Auschwitz a Madre de Plaza de Mayo” (2007) no qual conta a história de Sara Rus.[1] Leia Mais

O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975 | Alessandra GAsparotto

O livro é resultado de uma adaptação da dissertação de mestrado de Alessandra Gasparotto, agraciada com o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas 2010. Portanto, a obra cumpre com o pré-requisito de reunir informações relevantes sobre os fatos da história política recente no país a partir de meticulosa pesquisa.

O tema desenvolvido é o dos “arrependimentos” durante a ditadura civil-miliar no Brasil, em que jovens militantes de esquerda foram apresentados aos veículos de comunicação entre 1970 e 1975, renegando suas atividades na luta-armada e oposição ao regime imposto em 1964. Como apurado no livro, “as retratações eram apresentadas na forma de manifestações públicas, entrevistas coletivas, cartas escritas “de próprio punho” e aparições em programas de televisão, além de declarações de arrependimento atribuídas aos militantes por autoridades policiais e militares”. A autora coloca os termos “arrependidos” ou “arrependimento” sempre em itálico, pois considera que foram construídos pelo regime autoritário e pela imprensa da época.

Através de 42 casos referidos no livro, fica evidente que o período de maior incidência desses casos deu-se entre 1970 e 1971, porém o artifício estendeu-se de forma esporádica até 1975. A estratégia do regime foi a de apresentar uma mudança radical no posicionamento e no sentido das ações de antigos militantes que lutaram conta ele de armas na mão. Uma vez “arrependidos”, passavam a defensores do regime ao qual combateram. Essas retratações eram tidas como ações individuais, de militantes que se arrependeram da luta por aquisição de consciência de seus erros, foram exploradas com o objetivo apontar a fraqueza moral da esquerda e, principalmente, da luta armada.

Apresentados como “terroristas arrependidos”, também chamados na época de “desbundados” os militantes tiveram suas vidas sujeitadas à exposição, ganhando muito destaque na mídia nacional. Em alguns casos os protagonistas nunca foram perdoados pela suposta delação ou abandono da causa. Seus atos repercutiram “nas celas dos presídios, no isolamento da clandestinidade ou do exílio, foram recebidos como traição”, observa a autora. O tema nebuloso da traição e do arrependimento é tratado de forma madura, sem explicações simplistas e sem julgamentos de valores precipitados.

Preocupada em contextualizar de forma criteriosa e não repetir a desqualificação a qual foram submetidos por longos anos os “arrependidos”, a autora transita pela bibliografia do tema ditadura civil-militar com desenvoltura e naturalidade, dando assim um sentido acurado na análise de suas fontes primárias que são diversas e muito qualificadas: jornais, revistas, vídeos feitos para televisão, entrevistas pela internet, entrevistas com os “arrependidos” e familiares. Dessa maneira, Gasparotto dá voz as suas fontes, mas coteja suas posições com outros dados e caminhos de forma equilibrada, fazendo um balanço contextualizado e jamais anacrônico ou abusivo.

Merece destaque no livro, além de toda a construção teórico-metodológica clara, a abordagem muito bem articulada na reconstrução dos passos do primeiro grupo de “arrependidos” tornado público em 22/5/1970 no Rio Grande do Sul e veiculado com destaque pela televisão e nas capas de três dos principais jornais de Porto Alegre. Mobilizados por Rômulo Fontes, um grupo de cinco jovens chegou a tecer elogios ao governo do presidente Médici e sua realizações. Essa retratação serviu como pedra basilar na construção de uma estratégia de retratações. Foi de fato uma manifestação arquitetada pelos militantes “arrependidos”, porém o episódio espontâneo deu o tom para uma série de outros “arrependimentos”, ora negociados com contrapartidas de redução de penas ou liberdade, ora impostos a partir de brutal tortura. Também deu margem para diversos convites ao arrependimento e, ainda, falsificação ou alegação de arrependimentos. Então, se houve um movimento espontâneo, ele foi logo ampliado e transformado em ação psicológica para atingir a população, seus desdobramentos contaram com o terrorismo de Estado como meio de convencimento para os reticentes.

Pouco depois do primeiro caso de arrependimento, ganhou notoriedade o caso de Massafumi Yoshinaga de 21 anos, cuja entrevista foi exibida na TV Tupi de São Paulo, no Telejornal Ultra-Notícias do Dia, também foi capa da Revista Veja. Yoshinaga teria sido inclusive referido em discurso do próprio Presidente segundo a Folha de São Paulo em 4 de julho de 1970, e sua manchete “Médici indica o caminho da reconciliação”. O teor da matéria dava voz ao Presidente da República: “afirmou que a política nacionalista de desenvolvimento é o caminho para vencer o terrorismo e reconciliar o país, unindo a todos no esforço para a construção de um futuro promissor”. Médici ainda teria citado “o caso do ex-terrorista Massafumi Yoshinaga, que se entregou às autoridades em São Paulo, impressionado pelas recentes iniciativas do Governo”. Anos mais tarde, sem conseguir estabilidade emocional o jovem Yoshinaga suicidou-se.

Ainda no campo dos casos célebres, a autora dedica uma análise considerável a Celso Lungaretti. Foi tratado de forma muito dura, durante muitos anos por antigos militantes da esquerda que o responsabilizavam, ao que tudo indica injustamente, pela delação de um campo de treinamento da VPR. Ao ser apresentado na televisão, Lungaretti havia sido terrivelmente torturado.

“Foi assim que, na noite do dia 9 de julho de 1970, durante a exibição do Jornal Nacional, os telespectadores da TV Globo que esperavam por mais um capítulo da novela Irmãos Coragem, grande sucesso da época, viram-se surpreendidos pela aparição de Lungaretti – um jovem franzino, de 19 anos e aparência abatida, que renegou sua militância política, negou a tortura nos porões do regime, fez um apelo à juventude para que não ingressasse na luta armada e chegou até mesmo a elogiar algumas obras do Presidente Médici” (Gasparotto, 76-77).

Os anos do governo Médici atestam a face mais dura do regime, mas também revelam a mídia em estreita colaboração com o regime na desqualificação de seus opositores. A televisão foi vista como veículo apropriado para atingir o ambiente psicossocial dos grandes centros urbanos, sua utilização foi priorizada por uma ótica de comunicação capaz de mobilizar e sensibilizar a opinião pública ao mesmo tempo em que ela própria, a TV, se valia do tema do “terrorismo arrependido” para e aumentar os índices de audiência.

Ao longo de seu trabalho Alessandra Gasparotto não somente localiza, data, organiza e expõe de forma consistente como foram explorados na época através da televisão e das páginas de jornal as retratações públicas dos ditos “arrependidos”. Na verdade, ela investiga, dá voz e valoriza a subjetividade dos envolvidos, interpreta resgatando memórias e construindo a história como deve ser; rica e plural. A construção do objeto de sua pesquisa é minuciosamente desenvolvida, sem que isso prejudique a narrativa e a compreensão do leitor, seu rigor não é rigidez, mas compromisso com os personagens, com o contexto, com a memória e com a história, buscado na fluidez de sua escrita e nos filtros de diferentes prismas e fontes. Livro essencial para quem estuda a história do período da ditadura Civil-militar, livro essencial para a memória do Brasil.

Nilo Andé Piana der Castro –  Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. Resenha de: CASTRO, Nilo Andé Piana der. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.11, p. 138-140, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]