Narradoras del Caribe hispano – CENTENO AÑESES (REF)

CENTENO AÑESES, Carmen. Narradoras del Caribe hispano. Río Piedras, Puerto Rico: Publicaciones Gaviota, 2018. 134 p. Resenha de: ORSANIC, Lúcia. Voces feministas y disidentes en el Caribe hispano. Revista Estududos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

Los aportes intelectuales de Carmen Centeno Añeses han sido muy relevantes para la inserción de Puerto Rico en el mapa de la crítica literaria. Su fluidez tanto en el campo académico como de divulgación científica queda demostrada por una serie de publicaciones en terrenos diversos, que van desde libros de carácter académico y artículos en revistas especializadas hasta trabajos de índole ensayístico, mayormente publicados en periódicos puertorriqueños y cubanos. Pese a la variedad de los temas que ha abarcado a lo largo de su vasta trayectoria, la escritura de Centeno Añeses es coherente en cuanto a sus intereses: los derechos humanos en general y los derechos de las mujeres en particular, la descolonización de Puerto Rico, la importancia del ensayo puertorriqueño en materia de independencia, el lugar de las mujeres en la tradición ensayística local, los discursos patriarcales que han dominado la historia de la literatura y la crítica literaria, la educación, entre otros temas.

Su más reciente libro, Narradoras del Caribe hispano, dialoga en cierta medida con una publicación inmediatamente anterior, Intelectuales y ensayo (2017). En este sentido, Narradoras… podría ser visto como una continuación de su labor interpretativa desde una perspectiva feminista. Si entre los intelectuales que trataba en su obra anterior, Centeno Añeses había hecho hincapié en la importancia del ensayo femenino y feminista en Puerto Rico – a través de figuras como Nilita Vientós Gascón, Áurea María Sotomayor y Marta Ponte Alsina -, ahora se adentra en el análisis narratológico de una serie de escritoras caribeñas, extendiendo el hilo feminista que las (nos) une y reúne en torno a una serie de prácticas contrahegemónicas. Y aunque no aparece explícitamente el término sororidad en las páginas de las Narradoras…, Centeno Añeses deja entrever que eso es lo que la mueve, dando lugar a una polifonía femenina pero sobre todo feminista. Leia Mais

Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina – SOARES (CP)

SOARES, Angélica. Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. Resenha de: BRITTO, Clovis Carvalho. Mulheres e memória poética: opressão à flor da letra?. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, Dez. 2010.

A árvore da literatura de autoria feminina lança-nos mais um fruto: o recente livro de Angélica Soares sabiamente intitulado Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Fruto cujo sabor vem sendo experimentado reiteradas vezes pelo trabalho crítico e sensível da pesquisadora que já apresentou análises inspiradoras a exemplo das inauguradas em A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira (1999). Nas frestas entre lembranças e esquecimentos, a autora realiza uma ação duplamente significativa: sublinha o valor de punhos líricos femininos na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, se destaca como uma legítima representante desse ofício na atividade crítica. Questão relevante quando relembramos que as mulheres por muito tempo (e porque não dizer ainda hoje) tiveram suas vozes embargadas no campo literário, enfrentando trajetórias de opressão ao ousarem modificar o silêncio ou os exíguos espaços que lhes eram destinados.

Vivenciando variadas formas de sujeição e dependência devido ao quadro implacável de assimetria nas relações entre os sexos, as mulheres, aos poucos, têm lutado pelo reconhecimento como protagonistas na cena intelectual brasileira. Uma atualização das dificuldades narradas por Virgínia Woolf quando relatou a luta que instituíram pelo acesso a voz no cenário literário inglês em Um teto todo seu (2004) e/ou um esforço para problematizar as muitas “zonas mudas” relacionadas à partilha desigual dos traços, da memória e da história, conforme os indícios demonstrados por Michelle Perrot em As mulheres ou os silêncios da história (2005). Nesse sentido, para além de relatar a opressão das mulheres poetas no campo literário brasileiro, Angélica desenvolve um esboço teórico-metodológico para identificar como tais estórias de opressão foram ficcionalizadas. Se não bastasse essa instigante co-relação entre mulher e memória, a pesquisadora fortalece a tradição crítica iniciada tardiamente entre nós por Lúcia Miguel Pereira, galgando espaços para que tanto as mulheres poetas quanto as críticas literárias adquiram visibilidade e reconhecimento na vida literária brasileira. Para tanto, destaca, de antemão, a opção epistemológica por não somente apontar a diferença das mulheres, mas atentar para a diferença nas mulheres.

Analisando a memória literária de diferentes mulheres, nos convida a observar indícios da opressão vivenciada historicamente no cotidiano feminino. Em uma espécie de arqueologia da escritura memorialística, a autora revela os modos como as poetas transparecem os efeitos da dominação masculina: do inconsciente reprimido à instituição de uma fala marcadamente provocadora, do agir mimeticamente ao homem à busca de uma atuação singular, entre exílios e máscaras à instituição de um lugar de fala e de uma fala própria. Examinando um caleidoscópio de vozes polifônicas, a partir do processo da reelaboração da memória, demonstra como a poesia contribui para materializar memórias desterritorializadas. A proposta dialoga com a metodologia de Kátia Bezerra, outra analista da lírica de autoria feminina e sua relação com a memória, especialmente quando compreende o ato de revisitar o passado como subversivo:

transmuta-se numa ferramenta crucial para compreender e denunciar os vários componentes que estruturam e oprimem a sociedade. Intenciona-se, assim, considerar a forma como esse projeto de escrita interroga o passado (Bezerra, 2007:13),

para melhor compreender as relações de força que se insinuam no presente.

Nessa linha de força ou relativamente recente tradição de pesquisa, se inserem os trabalhos de Angélica Soares. Na tensão entre lembrar e esquecer, reúnem reflexões sobre memória, memorialismo poético e questões de gênero, ressaltando diferentes instâncias e formas de opressão feminina poematizadas como escritas do eu que ao mimetizarem

estórias (individualizadas), acabam por remeter, metonimicamente, a histórias (coletivas), pela recriação lírico-dramático-narrativa de fatos verificáveis em documentos e trabalhos de pesquisas sociológicas (Soares, 2009:14).

Embora reconheça que a poesia de autoria de mulheres também registra situações e experiências de vida bem sucedidas, optou por destacar aspectos que demonstrem a mulher como objeto de domínio físico ou simbólico, visto que dialogariam com situações recorrentes na vida das mulheres em sua condição histórica de duplamente colonizada: pelo sistema social de sexo-gênero e por sofrer a colonização decorrente de uma visão dualista e oposicional na qual a mulher representa o pólo negativo.

O gênero se torna uma importante categoria analítica para a crítica literária e, nas palavras da autora, as estórias de opressão recriadas na poesia demonstram que, para além das diferenças de classe, etnia e orientação sexual, as mulheres compartilham uma situação opressiva variável. Pelas transparências da memória apresenta-nos as relações entre constituição da identidade e memória, movimentos de desconstrução das oposições binárias, procedimentos coercitivos e figurações relacionadas a resistências e clausuras, culminando na análise das opressões comumente vivenciadas nas trajetórias femininas: da solidão infantil às representações do envelhecer. Acertadamente a pesquisadora dialoga com Pierre Bourdieu (2005) ao examinar como a memória poética entrevê e explicita a dominação masculina, especialmente quando destaca mecanismos com vistas à integração, embora em espaços limitados ou pautados por rígidos controles. Mecanismos muitas vezes “perturbadores”, a exemplo do erotismo na escrita feminina que aciona nuanças políticas ao deslocar as mulheres da condição de meros objetos para uma posição de enunciadoras do desejo.

A primeira estação do itinerário analítico contempla poetas cujas obras emanam aberturas à metamemória, ou em outras palavras, autoras cujos projetos criadores demonstram acentuada preocupação com o conhecimento sobre os processos e monitoramento da memória, além de sentimentos e emoções relacionadas com o lembrar/esquecer. Nesse primeiro bloco, investiga as poéticas de Cecília Meireles, Adélia Prado, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral, Arriete Vilela e Renata Pallottini, autoras de diferentes faixas etárias, regiões e condições sociais. A memória ao conduzir reflexões sobre sua própria dinâmica demarcaria as obras de acordo com especificidades. Cecília e a constituição de uma “encenação do esquecimento”; Adélia e o fugidio modo de experienciação; Marly e a impossibilidade de recuperar o passado exatamente como foi vivenciado; Helena e sua memória circular; Astrid e a mobilidade temporal da recordação; Arriete e os dinamismos míticos; Renata e a indissociabilidade entre tempo e espaço. Ao inventariar alguns versos desse conjunto heterogêneo e ao investigar aspectos da poesia memorialística contemporânea empreendida por mulheres, Angélica Soares se une a essas vozes, e sua obra, assim como as analisadas, se torna, ela própria, metamemória. Mas de que memórias essas mulheres falam, ou melhor, que memórias a pesquisadora selecionou da seleção empreendida pelas poetas? Resposta explicitada inicialmente no título da obra: estórias de opressão.

De posse dessas informações encaminha o leitor para uma segunda vereda relacionada a questões ideológicas de gênero e a consciência poética da exclusão histórica das mulheres. Subsidiada pelas reflexões de Teresa de Lauretis (1994), especialmente na concepção de que o pessoal é político, reafirma a importância de se pensar a diferença de mulheres e não só o diferente de Mulher. Denunciando as tecnologias de gênero e os discursos institucionais como responsáveis pelo campo de significação social, torna a categoria gênero como fundamental para a análise dos textos literários que, a partir de enfoques feministas, possibilitaria compreender as recriações de mulheres, oprimidas de incalculáveis maneiras em virtude da ideologia patriarcal. Essa leitura se aproxima de Michelle Perrot quando concebeu ser a memória, assim como a existência de que é prolongamento, profundamente sexuada. Seguindo essas considerações, Angélica Soares examina como a temática da opressão feminina comparece nos versos de Adélia Prado, Sílvia Jacintho e Astrid Cabral, espécie de cartão de visitas para um posterior aprofundamento na relação gênero, identidade e memória. Nessa ordem de ideias, destaca como emerge constantemente no memorialismo literário de autoria feminina um processo alienante, “falocêntrico”, a partir da identificação de bloqueios e limites ao autoconhecimento. Comprovando esse argumento rastreia exemplos desse processo em algumas imagens tecidas nos versos de Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, Lara de Lemos, Marly de Oliveira, Lya Luft e Hilda Hilst. Contradições integrantes da constituição de identidade pelas mulheres, metaforizadas no jogo entre o fluido e o consistente, a fuga e o encontro consigo mesmas.

Se a dominação masculina acompanha historicamente a trajetória das mulheres e se a categoria gênero auxilia a visualização dessa opressão nas memórias líricas femininas, nada mais coerente do que encerrar o livro analisando o modo como as autoras poetizam as duas pontas da vida: a infância e a velhice. Não por acaso, os capítulos finais são dedicados a examinar poemas relativos à reconstrução da solidão infantil e às representações do envelhecer. A memória como testemunho cultural da opressão na infância, a partir das imagens criadas por Marly de Oliveira, Lya Luft e Neide Arcanjo, e como testemunho da opressão na velhice, nas obras de Adélia Prado, Diva Cunha, Alice Ruiz e Renata Pallottini.

O conteúdo das imagens selecionadas como corpus da obra é um convite para o reconhecimento da importância e para a leitura da poesia de autoria feminina contemporânea desenvolvida no Brasil. Do mesmo modo, o arcabouço teórico-metodológico criado por Angélica Soares é um estímulo a todos os pesquisadores que desejem compreender as implicações entre gênero, identidade, memória e opressão, com vistas a “avaliar, pela força do literário, as contradições e os avanços no percurso emancipatório feminino” (Soares, 2009:17). Itinerários de opressão muitas vezes silenciados e que as autoras, sentindo-os à flor da pele, transpareceram à flor da letra.

Referências

Bezerra, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007.         [ Links ]

Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 4ªed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.         [ Links ]

De Lauretis, Teresa. As tecnologias do gênero. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) Tendências e impasseso feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.         [ Links ]

Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, EDUSC, 2005.         [ Links ]

Soares, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da libertação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro, DIFEL, 1999.         [ Links ]

Woolf, Virgínia. Um teto todo seu. 2ªed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.         [ Links ]

Clovis Carvalho Britto – Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected].

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Minha guerra alheia – COLASANTI (S-RH)

COLASANTI, Marina. Minha guerra alheia. Rio de Janeiro: Record, 2010. 286 p. Resenha de: ABRANTES, Alômia. “O mosaico falhado de memória”: composições da infância e da guerra. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [23] jul./dez. 2010

No fluxo da produção de biografias e autobiografias lançadas no Brasil, Marina Colasanti, conhecida e premiada escritora, surpreende-nos com um livro de memórias sobre a sua infância vivida em meio a conflitos bélicos, em especial, no cenário italiano da II Guerra Mundial.

Poderíamos apressadamente pensar que trata-se de mais um trabalho de memória sobre um conflito reiteradamente narrado por tantos escritores, inspirador de tantas obras literárias e cinematográficas, mas “Minha Guerra Alheia”, além da marca sensível comum à escrita da autora, insinua um fazer escriturístico que ressoa nas inquietações de quem se debruça sobre a reflexão acerca da produção da memória, da escrita de si, e da relação destas com a história. Leia Mais

Ouvrières des Lettres – CONSTANS (CP)

CONSTANS, Ellen. Ouvrières des Lettres. Limoges, Pulim, 2007, 177 p. Resenha de: GARZONI, Lerice de Castro. Ouvrières des Lettres. Cadernos Pagu, Campinas, n. 34, Jan./Jun. 2010.

Entre o final do século XIX e meados do XX, as escritoras francesas que publicavam romances católicos e populares empregavam a expressão “ouvrières de lettres” para se referir à sua própria ocupação. Sob esse título, Ellen Constans nos apresenta uma pesquisa amplamente documentada, cujo objetivo é entender as dificuldades e contradições da inserção das mulheres na literatura, ou seja, a recepção e o desenvolvimento de seu trabalho enquanto autoras de romances. Além de partir de uma constatação das próprias contemporâneas, o título empregado também traz em si questões sobre o tipo de literatura que produziam. No fim do século XIX, segunda era de ouro do folhetim, eram inúmeros os debates sobre a legitimidade da chamada “literatura industrial” que, segundo seus detratores, seria produzida como mercadoria e segundo as leis do mercado, completamente distante do ideal artístico da literatura institucional.

Era nesse domínio, de qualidade amplamente questionada, e muitas vezes com a justificativa de ganhar a vida, que as mulheres debutavam na ocupação de “ouvrière de lettres“. A palavra “ouvrière“, que pode ser traduzida como trabalhadora ou operária, refere-se, acima de tudo, a uma mulher que executa um trabalho manual ou mecânico em troca de remuneração. Mas isso não significava que fosse visto como um epíteto depreciativo, pelo contrário, as escritoras evocavam a expressão para se referir a sua ampla e significativa produção literária. São essas inúmeras visões sobre o trabalho dessas autoras, assim como suas mudanças ao longo do tempo, que a pesquisa de Constans revela.

O livro coloca em xeque o consenso existente nos meios acadêmicos de que, até meados do século XX, há muito poucas autoras na literatura francesa. Afinal, contradizendo essa visão, apresenta uma série de testemunhos de contemporâneos sobre a participação das mulheres como escritoras desde 1840, sobretudo na confecção de folhetins (romances publicados aos pedaços nos jornais e revistas). Assim, para encontrar essas mulheres e entender sua relação com o público, Ellen Constans considera importante compreender a distância entre literatura popular e literatura legítima, assim como as origens desse processo de inviabilização e de ocultação dessas autoras. Ela constata que

a sacralização da escrita e a institucionalização da Literatura estão ligados a um processo de hierarquização e exclusão, que apaga as mulheres e as classes populares, ‘trabalhadoras’, como autoras e leitoras, respectivamente (15).

Além disso, para estudar o período em que a entrada das mulheres na literatura se inicia, é preciso considerar a questão da “escrita feminina”, objeto de inúmeras pesquisas e teorizações nos anos 1970 e 1980. Porém, a autora identifica nesse debate a tendência em estudar apenas a participação das mulheres na literatura legítima, sem considerar a produção de massa, como se as pesquisadoras feministas caíssem na armadilha construída pelos críticos da literatura popular de outrora. A principal colaboração de Constans, portanto, é relacionar as colaborações esparsas dessas autoras que escreveram romances folhetins em revistas de ampla circulação ou publicaram suas obras em coleções de romances populares entre o fim do século XIX e meados do XX. Os procedimentos para selecionar e observar essa documentação são expostos no primeiro capítulo, “Chercher la femme”, no qual é apresentado um balanço inicial da pesquisa nas coleções e periódicos de grande difusão publicados ao longo da Terceira República (1875-1940).

A partir desse balanço, é possível identificar os tipos de escrita então considerados como legítimos à participação das mulheres. Na literatura popular, a presença feminina é mais freqüente em coleções sentimentais ou generalistas, o que inclui o romance de amor ou dramático, sendo quase inexistente nas séries policiais e de aventura. Nos periódicos, a maior parte dos textos e romances escritos por mulheres apresenta sentido educativo, configurando a participação das escritoras como uma extensão de seu papel de mãe e educadora na esfera privada. Para Constans, esses dados mostram que a publicação da escrita feminina era admitida pela crítica e pela opinião pública desde que fosse restrita às zonas secundárias da literatura e que reforçasse os papéis tradicionalmente femininos. A partir dessas considerações, é possível compreender a grande presença de mulheres em publicações católicas, proporcionalmente bem maior que no segmento laico.

O contato com essas obras, sobretudo na imprensa, coloca um segundo problema: a questão do pseudônimo, um recurso que não só dificultaria a identificação das escritoras, já que muitas usavam nomes masculinos, mas seria um indício do mal-estar suscitado entre elas em relação à escrita literária e sua publicidade. Relativizando essas considerações, Constans parte em busca dos outros sentidos do pseudônimo, analisando a escolha dos nomes, seu caráter subjetivo e ambíguo. Esse é o tema do segundo capítulo do livro, “Jeux de masques”, no qual ela enfatiza que o uso do pseudônimo pode funcionar como um jogo com os leitores, a exemplo das máscaras usadas no carnaval. A autora constata que muitas mulheres escolhiam seu nome de solteira ou optavam por variações do nome verdadeiro, o que mostra que o pseudônimo não serve necessariamente para esconder sua identidade, pois há um movimento dúbio entre afirmar e mascarar a autoria.

Sobre a identidade dessas autoras que publicaram ao longo da Terceira República Francesa, Constans também reúne informações recolhidas nos arquivos da Société de Gens de Lettres (sociedade de defesa dos interesses profissionais de escritores), nos contratos firmados entre elas e os responsáveis de editoras ou periódicos e nas biografias existentes. O cruzamento dessas fontes permite a reunião de informações como sua cidade de origem, a profissão dos pais, o estado civil e seus recursos financeiros. Assim, no terceiro capítulo, “‘Ouvrières de lettres’ ou la vrai vie“, somos convidados a conhecer um pouco mais sobre a vida dessas mulheres, sobretudo a relação entre escrita e renda, pois a autora avalia as reais possibilidades de viver da literatura ao longo do período estudado.

No quarto capítulo, “Regards croisés“, a autora analisa as falas dos contemporâneos sobre essas escritoras. Mais uma vez, ela recorre ao material da Société de Gens de Lettres, sobretudo os pedidos de admissão, nos quais a requerente deveria ser apresentada por um dos membros da sociedade. Tanto suas características pessoais como as de sua produção literária eram alvo de avaliação por uma comissão de escritores. Além desse material, a autora analisa os artigos críticos que foram publicados na imprensa após a publicação de romances populares ou folhetins escritos por mulheres, destacando que a crítica institucional não se interessava pela produção da “literatura industrial”. Os textos analisados são extremamente relevantes para compreender as concepções de literatura e os critérios de avaliação dessas obras e de suas escritoras.

A distinção entre romances católicos e romances populares é retomada nos dois últimos capítulos, enfatizando as diferenças entre eles e os motivos da maior participação feminina em livros e jornais religiosos. Antes, porém, a autora mostra o que há de comum nesses escritos de larga circulação e consumo. Assim, no capítulo cinco, “Écrire – Voyages à travers les contrées du roman de large consommation“, a autora mostra a recorrência das histórias de amor nesse tipo de publicação, o que permite que ela conclua que o gênero sentimental, ainda que tenha funções diferentes nos romances católicos e nos laicos, constitui uma característica compartilhada pela literatura de massa.

A autora mobiliza uma série de fontes e estratégias para cercar seu objeto, mas é no sexto capítulo, “Le Roman catholique et B.C.-B.G. ou bien penser pour bien écrire“, que ela se dedica mais demoradamente à análise de dois jornais católicos, nos quais a colaboração de escritoras foi bem marcante desde a última década do século XIX. Chama a atenção o cuidado de Constans em apresentar os periódicos e sua história, mostrando como a inserção da escrita feminina se deu nesses suportes específicos. Ela analisa as contradições dos organizadores dessas folhas que, condenando o romance popular como um veneno social, passam a usar a mesma fórmula para propagar os princípios cristãos e, mais que isso, a incentivar a colaboração de mulheres como folhetinistas. Da mesma forma, os romances qualificados como “B.C.-B.G.”, publicados como folhetins de revistas de moda ou em coleções como Stella e Fama, também propagavam a religião católica, em tom menos militante, por meio da escrita feminina. Constans compara alguns enredos e conclui que durante todo o período estudado (1875-1940) esses romances não apresentaram mudanças significativas.

No último capítulo, “Au coeur du Roman populaire“, a autora acompanha a trajetória de algumas das mulheres que tiveram seus Romances publicados em coleções populares antes de 1914. A partir desse ano, as autoras ganharam mais espaço nesse meio, consolidando definitivamente sua presença na literatura francesa na década de 1930. Os motivos dessa maior aceitação das autoras, a visão que elas mesmas tinham sobre a literatura de massa e seu “confinamento” a temas amorosos são questões trabalhadas nesse capítulo. Segundo Constans, “as romancistas populares de diversas gerações não se viam como investidas de uma missão, elas escreviam para responder aos desejos e gostos, reais ou supostos, do público, aos seus hábitos de consumo, e também às mudanças de suas expectativas, porque o público quer, para seu prazer, ao mesmo tempo, o conhecido e o novo” (135).

Ainda que tenham feito sucesso e publicado inúmeras obras, a maior parte dessas “ouvrières de lettres” caiu no esquecimento, sendo ignorada inclusive por estudiosos contemporâneos. Nesse contexto, a autora resgata seus nomes e trajetórias e, com isso, busca mostrar que, mesmo dentro dos limites da produção de massa, elas encontraram um espaço de expressão e contribuíram para a expansão da participação feminina em trabalhos considerados como masculinos, ou seja, para a igualdade entre os sexos e a “democratização cultural” Há, portanto, um tom militante no trabalho de Constans que, herdeiro da “História das Mulheres”, busca dar visibilidade às escritoras francesas de outrora, insistindo na existência de mulheres enquanto sujeitos históricos.

Por um lado, chama a atenção que uma pesquisa importante como essa, que acompanha o processo de inserção das mulheres no campo da produção literária francesa, tenha sido empreendida apenas no início do século XXI. Constans parece nos alertar sobre a importância de retomar a observação de trajetórias femininas ao longo do tempo, como uma renovação dos princípios da “História das Mulheres”. Por outro lado, fica evidente que o foco nas autoras compromete, em alguns momentos, a análise apresentada. Na leitura dos pedidos de admissão enviados à Societé de Gens de Lettres, por exemplo, a ausência de menções aos mesmos documentos em relação aos homens escritores inviabiliza que o leitor compreenda quais eram os critérios mobilizados na avaliação dos escritores dos dois sexos e aqueles restritos ao julgamento das mulheres. Da mesma forma, o estudo dos pseudônimos femininos ganharia maior densidade em comparação com aqueles empregados entre os escritores. Enfim, no momento de selecionar e organizar os documentos analisados, o emprego de uma perspectiva de gênero seria capaz de conferir mais fundamentos para os argumentos apresentados.

O estudo é extremamente relevante na medida em que, a partir de evidências esparsas, consegue reconstruir a “arte” de escritoras até então ignoradas pela história literária. Ao longo do livro, entendemos porque, ao lado de outros escritores da “literatura industrial”, elas foram legadas ao esquecimento, o que levaria a crer que a participação feminina nesse campo só teria acontecido a partir da segunda metade do século XX. Ao retroceder ao final do século XIX, acompanhando os desafios e contradições dos homens e mulheres envolvidos com a publicação de romances femininos na imprensa e em coleções populares, Constans nos possibilita observar algumas das soluções encontradas por esses sujeitos naquele momento histórico.

Lerice de Castro Garzoni – Doutoranda em História no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (Bolsista Fapesp e Capes). E-mail: [email protected].

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Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses – CUNHA (REF)

CUNHA, Cecília Maria. Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008. 232 p. Resenha de: NOVAES, Mariana de Souza. Escritoras cearenses do século XIX. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.3 Sept./Dec. 2009.

O resgate da atuação e da ação de mulheres ao longo da história ainda se torna pertinente em pleno século XXI. Felizmente, hoje, muitas pesquisas têm sido feitas a fim de mostrar a importância exercida pela mulher tanto na história quanto na literatura, nas artes plásticas, na política, na educação e na imprensa, como esta, de Cecília Maria Cunha, que vem nos revelar o que há muito tempo ficou escondido ou esquecido: a produção feminina. Ainda assim, há muito a ser feito a despeito de esforços como o de Cunha. é preciso considerar que grande parte da produção literária feminina se encontra ausente nos estudos acadêmicos e, dessa maneira, esquecida dos leitores. Urge, pois, reapresentar as letras femininas, apontando sua importância na história da literatura.

A pesquisa de Cecília Cunha – mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – é pioneira. Através de uma investigação minuciosa e detalhada, a autora apresenta o estudo e o resgate dos primórdios das letras femininas cearenses. A ensaísta faz um recorte do final do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX e expõe um panorama da imprensa, da literatura e da situação feminina tanto no Ceará quanto no restante do país.

Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses organiza-se em duas partes. A primeira trata da situação da mulher naquela época: a educação que recebiam; a participação na história do Brasil – o momento da abolição e da chegada da corte ao país – ; e a influência europeia na cultura e na educação das mulheres.

Vale destacar, como um dos pontos mais relevantes de sua pesquisa, o estudo sobre a imprensa feminina cearense e da imprensa feminina brasileira, embora Cecília Cunha não se aprofunde nesta última. Para a pesquisadora, a imprensa se configura como o principal e o primeiro instrumento de inserção das mulheres nas letras e, portanto, como meio de divulgação dos seus trabalhos literários. Ela apresenta diversas autoras que escreveram e colaboraram em jornais, revistas e almanaques femininos (ou não necessariamente só femininos), além de fundarem muitos deles, durante os séculos XIX e XX. Dá-nos a conhecer nomes de importantes escritoras, como Francisca Clotilde – considerada uma das mais presentes na literatura cearense – , Emília de Freitas, Ana Facó, Alba Valdez e Maria da Câmara Bormann, que foram objeto de estudo de sua dissertação de mestrado, agora publicada.

Há que se ressaltar que, na pesquisa de Cecília Cunha, encontram-se informações valiosas a respeito de jornais da época, como O Lyrio, Orvalho e Sexo Feminino. Já na segunda parte, a autora investiga e decompõe a obra literária de quatro escritoras, a saber: Emília Freitas, autora do romance A rainha do ignoto; Francisca Clotilde, ousada, escreveu sobre o divórcio em A divorciada; Alba Valdez, memorialista na sua novela Dias de Luz; e Ana Faço, com Páginas íntimas. Além disso, há, também, a crítica recebida por suas produções.

Deve-se destacar, ainda, os dados preciosos contidos nos rodapés, em que estão as fontes de estudo e de pesquisa utilizadas pela autora, informações importantes sobre as escritoras e os jornais cearenses e, também, algumas observações de indispensável leitura. Merece lembrança a presença de ilustrações de jornais que circulavam na época e de excertos de publicações das escritoras cearenses.

Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses é, pois, uma excelente contribuição no conhecimento da literatura dos séculos passados e, sobretudo, para aqueles que estudam e pesquisam a literatura brasileira de autoria feminina. Cecília Cunha reacende e resgata as letras produzidas por mulheres na literatura que nos antecedeu. O estudo trata-se, nas palavras da própria autora, de “uma verdadeira arqueologia literária”, de “escavações nos porões do silêncio”.

Mariana de Souza Novaes – Universidade Federal de Minas Gerais

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Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature – FERREIRA-PINTO (REF)

FERREIRA-PINTO, Cristina. Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature. West Lafayette: Purdue University Press, 2004. 208 p. Resenha de: FÉLIX, Regina R. Sexo-política na literatura brasileira por mulheres. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

É de fôlego o estudo sobre narrativas escritas por mulheres de Cristina Ferreira-Pinto, seu mais recente trabalho depois do marcante O “Bildungsroman” feminino: quatro exemplos brasileiros (1990). No estudo, a autora enfoca a resposta contraideológica de escritoras. Enfatiza sua contestação em relação aos mitos femininos do cânone literário brasileiro através dos quais o discurso e o desejo masculinista terminaram por desfigurar e silenciar as mulheres. Precedido por uma abrangente crolonogia da atuação da mulher na sociedade brasileira e situação da produção literária de escritoras de 1752 a 2000, o livro é composto de uma introdução, seis capítulos e conclusão. Com trabalhos selecionados de escritoras várias, como Gilka Machado (1893-1980), Lygia Fagundes Telles (1923- ), Helena Parente Cunha (1930- ), Marina Colasanti (1937- ), Lya Luft (1938- ), Sônia Coutinho (1939- ), Myriam Campello (1948- ), Márcia Denser (1949- ) e Marilene Felinto (1957- ), sem deixar de passar pelo crivo de um pertinente elenco de teóricas feministas, o livro trata de questões de gênero no âmbito da individualidade. O âmago do estudo localiza nos discursos da sexualidade e do desejo das mulheres o delinear de sua identidade, que se plasma como literatura.

Na introdução, “A literatura das mulheres como discurso contra-ideológico”, Ferreira-Pinto afirma que há de fato uma tradição de literatura escrita por mulheres, ainda que em maior volume a partir do século XIX e como profissão estabelecida apenas no século XX, embora escritoras que fizeram nome e carreira na linhagem literária brasileira a partir do século XX apareçam como “exceções isoladas e esporádicas”. Ferreira-Pinto credita a Zahidé Lupinacci Muzart e seu imprescíndivel projeto de recuperação da obra de escritoras dos séculos XIX e anteriores a recuperação de tal tradição.

Anterior aos anos 1960, quando a produção literária da mulher se torna contundente na oposição ao patriarcalismo cultural brasileiro, ou “discurso dominate”, a autora assinala, portanto, que já existiam obras que procuravam interferir na hegemonia dos mitos que aprisionaram as mulheres em papéis sociais, papéis estes que limitaram seu desejo em identidades e experiências enfatizadoras apenas da beleza, da juventude e da delicadeza como os atributos definidores da feminilidade. A autora propõe expor como a linguagem poética dos textos que analisa mostra-se expressão tanto de uma realidade que se altera como do discurso sobre esta.

Em “Corpo de mulher, desejo de homem”, do Capítulo 1, a autora ilustra, com a produção literária escrita por homens, aspectos do “discurso dominante” ao qual se refere e o qual parece nortear a resposta das escritoras que analisa. Munida de conhecimento crítico nacional, com Antonio Candido, Dante Moreira Leite e Affonso Romano de Sant’Anna, e internacional, com Doris Sommer, Terry Eagleton, Michel Foucault e David Foster, para citar uns poucos, Ferreira-Pinto expõe celebrados mitos da literatura romântica e realista através de análises aptas. Mostra, por exemplo, como Iracema reúne em si a carga de papéis femininos como Eva, Maria e Pietá, com suas conotações de sensualidade e submissão, porém etnicamente marcada por sua origem indígena. Nas tramas de Memórias de um sargento de milícias, a autora apresenta a ideologia heterossexual voltada ao casamento e à reprodução como normas e o comportamento desviante da personagem Vidinha – mulata sensual – como a baliza que sugere a ordem social como tal. Dialogando com a celebrada análise de Antonio Candido, que nos deu a “Dialética da malandragem” entre a ordem e a desordem, Ferreira-Pinto sugere a dialética que, de um lado, coloca a mulher doméstica e, de outro, a mulher pública, dicotomia esta formada por uma dialética conceitual entre raça e sexualidade que, enfim, nos legou aquilo que a autora ironicamente denomina como o mito da “mulata cordial”. Rita Baiana d’O cortiço, claro, é mencionada como outro exemplo desse tipo, ao lado de outros estereótipos que servem de contraponto entre si: a lésbica Pombinha, a prostituta Leónie, as ninfomaníacas Estela e Leocádia, as reprodutoras Augusta e Piedade. Finalmente, considera as personagens de Machado de Assis aparentes ideais de feminilidade, mas de uma complexidade ímpar na literatura da época. As personagens, ainda assim, em seu julgamento, seguem os ditames das normas da vida doméstica, dentro do casamento e da vida urbana burguesa cujo alvo é a ascensão social.

No Capítulo 2, Ferreira-Pinto inicia o contra-discurso das mulheres, como propõe o título “Escritoras brasileiras: a busca de um discurso erótico”. Após uma introdução que discute os trabalhos de escritoras do século XIX como pano de fundo, a autora mostra que Gilka Machado supera o comportamento “subserviente ao desejo masculino”, pois expressa, em seu texto, os anseios do corpo da mulher. Ferreira-Pinto comenta que grande parte da crítica que se debruça sobre os estudos de gênero na literatura considera a obra de Gilka Machado como aquela que inaugura a Erótica que a autora focaliza entre as escritoras selecionadas para seu estudo. Usando elementos teóricos de críticas como Hélène Cixous, Luce Irigaray e Teresa de Lauretis, a autora dá vivacidade à temática da escritora carioca e nos revela uma criadora forte e contemporânea. Uma discussão que procura situar o discurso erótico feminino – distinguindo-o do texto pornográfico e do eroticismo pronunciado por personagens mulheres em textos escritos por homens, que terminam por endossar a “ideologia dominante masculinista” – é seguida da análise do erotismo como uma forma de reestruturar a identidade das protagonistas em A mulher no espelho, de Helena Parente Cunha, e em As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. A autora procede a uma análise minuciosa desses textos, tendo como ponto de vista fundamental o fato de que os trabalhos opõem a pulsão do desejo do macho adulto branco, que por muito tempo embasou as relações sociais no Brasil, ao menos no âmbito das elites.

As obras Quarto fechado, de Lya Luft, e As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles, são enfocadas no Capítulo 3, “A representação do corpo feminino e o desejo: o gótico, o fantástico e o grotesco”. Nesse capítulo, Ferreira-Pinto envereda por uma visão inovadora das obras, quando considera os gêneros gótico, fantástico e grotesco como uma estratégia através da qual as escritoras comunicam o constrangimento e o deslocamento das protagonistas diante do ambiente patriarcal que as cerca e ainda cerceia. Outro tema crescentemente relevante, mas explorado há apenas poucas décadas, especialmente como atributo crucial da feminilidade, compõe o Capítulo 4, “O conto de Sônia Coutinho: o envelhecimento e o corpo da mulher”. A autora do estudo mostra como Coutinho expressa a decepção da protagonista quando esta verifica, surpresa, sua inabilidade de seduzir homens, quando percebe que os cosméticos não trarão de volta a beleza perdida com os anos e o fato consequente de que, para a mulher, o tornar-se idosa significa um progressivo descrédito como pessoa por causa da perda gradual de seu apelo sexual, também por não mais possuir a capacidade reprodutora. Ao mesmo tempo, o texto de Coutinho sugere que a fruição plena da sexualidade da mulher é possível apenas se ela transcender os mitos de feminilidade apresentados a ela como o curso natural das coisas pelo “discurso dominante”. Só assim pode a mulher se desvencilhar dos parâmetros de adequação, segundo os quais teria que “agir de acordo com sua idade”, e então ser livre para viver, sem as imposições que limitam sua existência a papéis prescritos por outrem.

No Capítulo 5, “O conto brasileiro contemporâneo escrito por mulheres: o desejo lésbico”, após oferecer um histórico que mostra o modo como a homossexualidade masculina e a feminina foram constituídas pelo discurso das instituições normativas, estando entre estas principalmente a Igreja, a autora mostra como diferentes teóricos (David Foster, Gloria Anzaldúa, Ronaldo Vainfas, Luís Mott, entre outros) trataram o assunto e como os temas queer foram expressos na literatura brasileira do século XX. Trabalhos de Edla Van Steen, Sônia Coutinho, Lygia Fagundes Telles, Myriam Campello e Márcia Denser são analisados tendo-se em conta a diversidade com que tratam do desejo lésbico, um espaço de transgressão e agência da mulher que desse modo se afirma livre como sujeito.

“Os trabalhos de Márcia Denser e Marina Colasanti: a agência feminina e a heterossexualidade” mostra que, mesmo apresentando protagonistas heterossexuais, as escritoras que o Capítulo 6 analisa assumem, muita vez, uma posição de confronto visà-vis ao patriarcalismo, o que as alinha politicamente com as escritoras que se expressam através do desejo lésbico. Com sua “ficção sexual”, para além da dicotomia entre erótico e pornográfico, Denser, segundo a autora, desestabiliza as convenções de gênero, assim promovendo a afirmação da sexualidade da protagonista, que demonstra um grande apetite sexual, o que não é comumente caracterizado como atributo de mulher “de bem” na literatura. Colasanti, por seu turno, se expressa através de um “erotismo do corpo” que afirma a mulher como tal – sem o costumeiro pejo com que somos ensinadas a disfarçar funções orgânicas. Ferreira-Pinto observa que, não se atendo ao lirismo e usando termos considerados de baixo calão, Colasanti se apodera das palavras usualmente pronunciadas pelos homens e, paradoxalmente, afirma a agência da mulher.

Na Conclusão, “Escritoras brasileiras no novo milênio”, Ferreira-Pinto reitera sua observação de que, sendo a sexualidade aquilo que define a identidade da pessoa, o desejo (erótico, homossexual, heterossexual etc.), que necessariamente expressa tal sexualidade, aborda de frente o princípio criativo das escritoras. Desse modo, o desejo que se faz texto expressa a identidade ou posição da escritora – poderíamos denominar tal posicionamento sua sexopolítica -, seguindo a vereda aberta pelo importante estudo de Kate Millett, o clássico Sexual Politics?

Como fica claro, este é um estudo que, embora panorâmico, utiliza um bom arsenal teórico para examinar algumas de nossas melhores escritoras. Em inglês, é ao mesmo tempo uma imprescindível apresentação das escritoras no âmbito de Women’s Studies na literatura brasileira e um estudo bastante útil nas salas de aula no campo Brazilian Studies dos Estados Unidos, onde tais análises são escassas, mas muito necessárias. No sentido de instigar Brazilianistas ainda mais em relação ao assunto, no entanto, teria sido interessante ver esmiuçadas algumas generalizações no decorrer do texto (“o discurso dominante masculinista”, “a mulher”, “a sociedade brasileira patriarcal e eurocêntrica”, “algumas mudanças sociais e políticas importantes [a partir de 1970]” etc.) e ter obtido um tratamento mais complexo à relação, central no estudo, entre sexualidade, desejo, identidade e formação discursiva, pontos que, embora sejam apresentados como subentendidos a estudiosos do assunto, por isso mesmo detêm, na chance única que a publicação do livro apresenta, a consideração de novos prismas na revisitação de velhos problemas.

Regina R. Félix – University of North Carolina Wilmington.

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