Gilberto Freyre e o Estado Novo: região/nação e modernidade | Gustavo Mesquita

O trabalho de Gustavo Mesquita2 pode ser entendido como uma busca pelo vocabulário político de uma determinada época. Sua narrativa está alicerçada na perspectiva interdisciplinar da História Social ligada à História dos Conceitos, e sua pesquisa situa-se na oposição da abordagem intelectualista e internalista, recorrendo às categorias elementares da Sociologia para concluir acerca do objeto delimitado, a saber: “intelligentsia”, “ideias sociológicas”, “uso político das ideias”, “negociação de interesses”, etc. (MESQUITA, 2018: 20). Ele tenta afastar-se da tradição de história intelectual inaugurada por Arhur Lovejoy (1936-2001), uma tradição, segundo ele, gradualmente incorporada pela historiografia brasileira, e que “insiste em desconsiderar o vínculo de dependência entre a produção das ideias e a dimensão mundana da vida no tempo e no espaço, ou seja, o mundo dos interesses dos agentes coletivos” (MESQUITA, 2018: 20). Uma das saídas que enxergamos para este contextualismo reducionista é a proposta de Dominick LaCapra, que afirma que que o processo de intepretação dos textos chamados clássicos compreende sua contextualização em diferentes camadas ou dimensões, que ele enumera como sendo seis: a intenção autoral, a vida do autor, a sociedade, a cultura, o corpus bibliográfico do autor e os modos de discurso (disciplinas, áreas do conhecimento, etc.) (LACAPRA, 1998). Mesquita estuda as modificações que a definição e as possibilidades semânticas do verbete “região” sofreram durante a vigência do Estado Novo, e o papel de Gilberto Freyre no processo dessas mudanças de sentido: regionalismo deixaria de ser algo identificado a sectarismo e separatismo, passando a significar a contemporização das diferenças locais; diferenças que, integradas, passariam a compor o nacional. Moema Selma D’Andrea já havia afirmado que Leia Mais

Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo” – PARANHOS (H-Unesp)

PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig, 2015. 172p. Resenha de: BUSETTO, Áureo. Sambas e bambas sem o breque do Estado Novo. História v.37  Assis/Franca  2018.

Na década de 1980, o samba andava em baixa na indústria fonográfica, no rádio e na televisão. A mídia promovia larga e amplamente outros ritmos musicais. Muitos vaticinavam o fim do samba. Em reação a tal cantilena, Paulinho da Viola em Eu canto samba, integrado ao seu premiado disco homônimo lançado em 1989, canta que ele há muito tempo escutava “o papo furado dizendo que o samba acabou”, ao que ementa resposta irônica: “só se for quando o dia clareou”. Enfim, o sambista, com maestria e temperança, pontuava que não era porque o samba seguia preterido ou vitimado por alterações impostas pelos interesses comerciais da mídia que ele havia deixado de existir, alegar a vida e falar das coisas dos sambistas e admiradores do gênero, bem como de ser cantado e dançado nas rodas de samba em fundos de quintais.

Ainda naquela década, na historiografia era assinalado que sambistas durante o Estado Novo, então, empenhado em alçar o samba urbano carioca à tradução musical da nacionalidade, tinham submetido suas canções totalmente aos valores políticos e sociais calcados na ideologia trabalhista idealizada e difundida por aquele regime ditatorial, via o vigilante serviço do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado no final de 1939 e atuante até o fim do regime, em 1945 (PEDRO, 1980GOMES, 1982VASCONCELLOS e SUZUKI JR., 1984).

Ainda que pretendesse revelar a censura sofrida e os esquemas de aliciamento do DIP investidos ao universo do samba, aquela historiografia caracteriza como dócil e passiva a adesão dos sambistas à ideologia estado-novista, mesmo essa se opondo radicalmente a elementos constituinte do samba urbano carioca, como, por exemplo, a malandragem e a boemia. Interpretação que, ademais, reforça a imagem de que o Estado Novo fora hegemônico, absoluto na vida cotidiana e mesmo na dimensão cultural, além de potencializar a mítica do líder máximo do trabalhismo, Getúlio Vargas.

Mas agora, com ampla e acurada pesquisa histórica, perpassada de igual sensibilidade e respeito com que Paulinho da Viola canta a gente e as coisas do mundo do samba, Adalberto Paranhos revela, em seu livro Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”, sambistas valeram-se em suas canções de “linhas de fuga” às investidas do DIP contra práticas e representações próprias do mundo do samba. Assim, o historiador assinala que bambas não foram somente sambistas que primavam pela qualidade do samba, mas, também, por saberem ou intuírem que nele apenas se podia admitir um tipo de breque, qual seja: aquela pausa do acompanhamento acentuadamente sincopado para intervenção declamatória do intérprete do samba. Enfim, se depreende da análise de Paranhos que, calcada em seu expressivo e firme conhecimento histórico e musical, as tentativas de doutrinação do trabalhismo varguista sobre o riscado do samba foram recebidas de maneira parecida à recepção dispensada a uma inautêntica baiana ao tentar entrar na roda de samba; valendo-se aqui de cena caracterizada pela letra do samba Falsa baiana, da autoria de Geraldo Pereira, lançado em 1944, na voz de Ciro Monteiro.

Na letra do seu samba, Geraldo Pereira narra que a impostura da falsa baiana se revela ao pessoal da roda de samba por ela não saber mexer, remexer e dar nó nas cadeiras. No seu livro, Paranhos evidencia que as intenções do Estado Novo em “higienizar a poética do samba”, em conformidade com a ideologia trabalhista, fora sentida e percebida por bambas como embuste em relação às coisas que nutriam e, mesmo, alegravam a vida de sambistas e do mundo a sua volta. Afinal, aquela imposição oficial era obra da elite, coisa de gente que sequer tinha patente para tirar samba – condição cultuada e defendida no meio sambista – e que imaginava, de maneira prepotente, bambas apenas dançassem conforme a música tocada. Completo desconhecimento da criatividade escapole dos que nasciam e queriam morrer com o samba, os quais em seu cotidiano tiravam de letra adversidades sociais impingidas pelos agentes do mando por meio da vigilância e força policiais. Dribles dados tanto aos apertos da subsistência, à época, amplamente pautada pelo desemprego e subemprego, quanto à ordem imposta que invariavelmente serviam de motes às letras de seus sambas, caracterizando o elo entre experiências de vida e a composição de suas canções, as quais, costumeiramente, ganhavam a aderência do seu típico público.

Na tentativa da falsa baiana entrar no samba, prossegue a letra de Geraldo Pereira, ninguém bate palmas, grita oba ou abre a roda para ela. As investidas do DIP para “higienizar” o samba, revelam as páginas de Os desafinados…, receberam por parte de bambas parecida recepção. E se eles, vez ou outra, aplaudiram, lançaram vivas ou abriram espaço em seus sambas aos valores políticos e sociais impostos pelo Estado Novo, não o fizeram por aquiescência própria e, mais ainda, não os dotaram necessariamente de igual sentido ao desejado por aquele regime. Se houve, conclui Adalberto Paranhos, a existência de uma plêiade de compositores e composições populares que se prestaram a enaltecer e exaltar o ideário estado-novista, fosse por meio de aliciamento ou de censura do DIP, o coro de sambistas descontentes com valores estado-novistas não deixou de se fazer presente no cenário musical, ainda que de maneira sútil e segundo as circunstâncias.

Não há como deixar de registar que Adalberto Paranhos lega um livro que expressa o cume da pesquisa na área de História, uma vez que enfoca tema e vale-se de fontes já tratados pela historiografia anterior, porém, fornecendo original e acurada interpretação deles por meio de abordagem inovadora. Com sua pesquisa, o historiador trata de um velho tema da história política – o poder do Estado na sociedade – e uma temática enfocada pela historiografia nas últimas décadas – o Estado Novo e a construção da nacionalidade – por um ângulo muito pouco tratado na área de História – o samba. Assim, a pesquisa e o livro de Paranhos se desenrolam com base na compreensão do entrelaçamento das dimensões da cultura, política e do social vigentes no Estado Novo, sem, contudo, desafinar quer nas notas necessárias para compreender as especificidades históricas de cada uma daquelas dimensões, quer nas dispensadas ao tratamento histórico das interseções entre elas. E como resultado final oferece novos e acurados acordes ao conhecimento historiográfico sobre as relações entre política e samba durante a ditadura varguista, os quais não poderão ser prescindidos em futuros estudos históricos sobre a política, sociedade e cultura na ditadura do Estado Novo, assim como nos voltados para história do samba, sob o risco de o pesquisador que agir ao contrário desafinar em suas conclusões.

Tomando o samba, ao mesmo tempo, como objeto e fonte de sua pesquisa, Paranhos transcende a limitada e arriscada análise centrada na letra ou partitura do documento canção. Ao valer-se de registros fonográficos gravados à época estudada, o historiador, por entender que a canção não existe em abstrato e o (re)interpretar também é compor, empreende, com grande acuidade, uma análise sobre a realização sonora da canção, englobando desde a orquestração musical à interpretação vocal, posto defender que tais expedientes são portadores de significações. É nesse diapasão que o autor revela que o emprego do breque em vários sambas da época funcionara para o intérprete se distanciar, ironizar, debochar e, mesmo, negar o que foi cantado na parte anterior da letra.

E quando da análise das letras dos sambas, Paranhos destaca palavras e expressões muito próprias às representações de criadores e cultores do gênero no período enfocado, dotando-as de historicidade, como, por exemplo, o faz com as palavras ‘batucada’ e ‘orgia’. Paranhos nos elucida que ‘batuque’ ou ‘batucada’ expressavam, ao mesmo tempo e paulatinamente a partir dos anos 1930, sinônimo ou referência de samba e elementos constituidores dele, sobremaneira quando se procurava dar ênfase na autenticidade do gênero e no seu valor como representante musical do povo brasileiro. Embora, saliente

que ambos os termos pudessem ser empregados quando se intencionava detratar o samba, segundo apreciações de lugares e comportamentos ligados ao gênero, isto é, os da população negra, mestiça e marginalizada. Em relação à ‘orgia’, nos ensina que a palavra expressava, nos sambas dos anos de 1930, o sentido de festa ou diversão pândega, logo, não se prendendo à conotação sexual que o termo pode suscitar, contudo, expressando ação oposta ao penar do mundo do trabalho, ainda que, dependendo do samba, a labuta com o trabalho pudesse oscilar entre honradez e humilhação.

Ademais, o livro de Adalberto Paranhos serve como dínamo a novos estudos históricos. Qual popular samba enredo após desfilar pela avenida, o conhecimento trazido pelo livro tende a ficar batucando na cabeça de atentos leitores sobre possibilidades de pesquisas ocupadas com as relações samba/política em outros períodos, bem como as de outras manifestações da cultura popular com o Estado e políticas governamentais. Batucada possível de se apossar da mente do leitor já nas páginas da introdução – intitulada sabiamente como Palavra Prima – e nas integradas ao primeiro capítulo do livro.

Com a leitura de ambas as partes, os leitores podem vislumbrar o rigor das reflexões sobre o saber historiográfico e elementos teórico-conceituais que Paranhos investiu à elaboração de sua temática de estudo, assim como o seu empenho na consecução da sua ampla e acurada pesquisa documental. Somam-se a isto férteis reflexões do historiador acerca do estatuto das variadas fontes consultadas (discos, jornais, revistas e conteúdos de programas de rádio, depoimentos), além de detalhes sobre a busca por elas, tarefa que envolveu dificuldades tanto da ordem de localização quanto de acesso. Registro que, ao mesmo tempo, facilita e estimula novas pesquisas com a documentação levantada. Louvável generosidade do autor para com a comunidade de pesquisadores interessados em estudos históricos sobre o Estado Novo e o samba.

No primeiro capítulo do livro, Paranhos apresenta um balanço reflexivo sobre as perspectivas teóricas que alicerçaram anteriores interpretações historiográficas ocupadas com a análise do Estado Novo e a dimensão do poder desse regime. Nessa direção, conceitos como hegemonia, dominação, resistência, apropriação e ressignificação, bem como questões teóricas centrais ligadas a eles, são enfocados, discutidos e refletidos pelo autor para definir e substanciar, de maneira objetiva e firme, a sua adesão à perspectiva da ‘história vista de baixo’. Capítulo que muito se distancia das partes introdutórias usualmente constantes em trabalhos acadêmicos e livros de difusão da pesquisa em História, posto que expressa diálogo ativo e reflexivo do pesquisador com referenciais teórico e historiográficos convergentes ou divergentes à perspectiva de análise e interpretação por ele compostas.

Longe de encerrar sua pesquisa sob a perspectiva de análise que tudo concede ao poder do Estado e centra-se na busca por marcar o império dos projetos de dominação estatal, Paranhos enceta uma abordagem que lhe possibilitou apreender os conflitos, as contradições, enfim, “o caráter dialético da dominação”. Para tanto, parte de elementos teóricos engendrados por Pierre Bourdieu (2002) e Michel Foucault (19771979)- votados à análise de práticas e dispositivos das disputas encontráveis nas relações de poder que atravessam os diferentes domínios sociais que compõem a sociedade – e de E.P. Thompson (1998) e Raymond Willians (1992) – ocupados em conhecer e analisar forças de lutas e resistências contra-hegemônicas.

Com tal foco analítico investido à plêiade de fontes pesquisadas, Paranhos evidencia, nos dois capítulos seguintes, como sambistas conseguiam, ao mesmo tempo, desempenhar, em meio à sua afirmação social, papel decisivo na incorporação do samba à galeria de símbolos nacionais e registrarem composições e interpretações dissonantes aos valores políticos e sociais ditados pelo Estado Novo, burlando as tentativas do DIP em “regenerar” o temário do gênero, extirpando desse representações sociais de mundo tidas como inconvenientes ao trabalhismo.

Dentro desse quadro, bambas investiram aos seus sambas, não sem sucesso, uma linguagem e/ou sonoridade prenhes de sentidos ambíguos, transpondo ao seu universo musical expediente tão comum no cotidiano da malandragem, geralmente empregado para despistar pequenos ilícitos e contravenções diante dos agentes da ordem. Nessa direção, bambas, como bem estabelece Paranhos, desenrolavam “linhas de fuga em relação à palavra estatal”, incorporando seus sambas às disputas de representações sobre o trabalho e o trabalhador, as quais, consonantes às experiências dos sambistas, podem ser sintetizadas pela letra de um samba da época: “o trabalho não dá camisa ao trabalhador”.

Mas Paranhos também capta a reação de bambas às investidas do Estado Novo em regular as relações de gênero, decorrência do entendimento dos ideólogos do regime que desajustes do mundo do trabalho contribuíam à manutenção de conflitos de gênero. Acentua que sambas com motes relativos às relações de gênero repercutiam as tratativas acerca do estabelecimento do Estatuto da Família entre o final dos anos de 1930 e o início da década seguinte. Apresenta como sambistas cantavam, de um lado, as insatisfações das mulheres no desempenho da função de provedoras do lar, em decorrência de seus maridos ou companheiros não assumirem ou negligenciarem aquele compromisso social – o que, aliás, como destacada o historiador, sambas que “não deixavam de retratar a sobrevivência de figuras masculinas que voltavam as costas ao trabalho”-, e, de outro, entoavam os lamentos de homens por conta de suas mulheres não se submeterem ao esperado papel social de dona de casa, preferindo elas a diversão. Assim, enfatiza o historiador, sambistas mesmo que admitissem a intromissão oficial na moral conjugal, mantiveram brechas em seus sambas para discordar e, mesmo, desprezar o ideário das relações de gênero difundido pelo regime estado-novista.

Há ainda que se considerar que os dois últimos capítulos iluminam ainda mais o que se conhece sobre a estrutura e dinâmica da indústria fonográfica e do rádio nos tempos do Estado Novo (CABRAL,1990LAGO,1977), enfatizando ou revelando práticas e representações próprias de agentes integrados naquelas mídias, fossem em termos da programação musical de maneira geral, fossem em relação ao samba. Sem deixar de demarcar precisamente as interseções entre aquelas duas mídias eletrônicas e a imprensa no tratamento tanto das manifestações culturais populares/samba quanto das populações identificadas com elas.

Sem dúvida, Os desafinados… se inscreve como livro original e inovador na historiografia sobre o Estado Novo e o samba, mas, também, como um ótimo guia a todos os interessados em melhor ouvir, sentir e compreender historicamente o amplo repertório dos bambas em tempos da ditadura varguista.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. [ Links ]

CABRAL, Sérgio. No tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petropólis: Vozes, 1977. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. [ Links ]

GOMES, Angela Maria de Castro. A construção do homem novo: o trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela de Castro. Estado novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. [ Links ]

LAGO, Mário. Na rolança do tempo. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. [ Links ]

PEDRO, Antonio (Tota). Samba da legalidade. Dissertação (Mestrado em História) – USP, São Paulo, 1980. [ Links ]

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. [ Links ]

VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI, JR. Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.). História geral da civilização brasileira – III – O Brasil republicano (Economia e cultura: 1930-1964). 3.ed. São Paulo: Difel, 1984. [ Links ]

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992. [ Links ]

Áureo Busetto. Professor Doutor. Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, UNESP. Av. Dom Antônio, 2100, Parque Universitário, Assis, 19.806-900 SP, Brasil. E-mail: [email protected].

A Diplomacia do Estado Novo: Crepúsculo do Colonialismo (1949-1961) – PEREIRA (LH)

PEREIRA, Bernardo Futscher. A Diplomacia do Estado Novo: Crepúsculo do Colonialismo (1949-1961). Lisboa: D. Quixote, 2017, 312 pp. Resenha de: REIS, Bruno Cardoso. Ler História, v.73, p. 262-266, 2018.

1 Bernardo Futscher Pereira é mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Columbia, foi jornalista antes de ingressar na carreira diplomática, foi embaixador na Irlanda de 2012 até 2017, período durante o qual redigiu esta obra. Embora eu resista à ideia de reduzir uma obra às circunstâncias ou a uma das identidades de quem a escreve, parecem ser de notar estes dados biográficos, pois poderão ajudar a perceber algumas das suas opções de partida. A obra assume-se, como seria de esperar, como a continuação, em termos cronológicos e de abordagem, do livro anterior do autor sobre A Diplomacia de Salazar, 1932-1949 (Lisboa: D. Quixote, 2012). Este é, portanto, “um livro essencialmente de história diplomática” o qual “procura sintetizar, em registo narrativo, os lances essenciais da política externa portuguesa, situando-os no contexto internacional da época”, oferecendo numa linguagem acessível uma visão geral da forma como a elite governativa e diplomática portuguesa foi gerindo os principais desafios da política externa.

2 Isso fará sentido tendo em conta as tendências atuais na História? A resposta é sim, a não ser que se queira impor (à maneira do Estado Novo) uma determinada agenda à História. Se o que se pretende é alargar os horizontes da disciplina então trata-se de adicionar novas dimensões às tradicionalmente dominantes, não de eliminar estas últimas. É tão legítima e válida a história “a partir de baixo” como “a partir de cima”, tudo depende das perguntas a que se quer responder. Independentemente das modas, a “alta política” e a diplomacia continuam a ser altamente relevantes. Veja-se o enorme impacto na vida de todos os portugueses, angolanos, moçambicanos, guineenses, e no curso da história nacional e global, das guerras coloniais tardias do Estado Novo. Guerras que, como este livro mostra, foram o pesado preço a pagar pela política seguida por Salazar na defesa do império ultramarino português.

3 Futscher Pereira também deixa claro que esta obra “baseia-se essencialmente em fontes secundárias e em fontes primárias publicadas”. É o normal em obras de síntese deste tipo, que quando muito complementam a sua síntese de obras e fontes publicadas com pesquisa de arquivo sobre alguns temas não suficientemente tratados na literatura existente. Foi o que Futscher Pereira fez, em especial sobre as “provações de Portugal nas Nações Unidas”, a que dá justificado destaque. Significa isto que esta obra se destina apenas ao público em geral, e não tem especial interesse para historiadores focados em análises originais? Como iremos procurar mostrar, esta é não apenas uma obra de referência útil, desde logo para o ensino destes temas, ela tem também elementos novos que merecem ser debatidos no quadro da agenda de investigação da história da política externa portuguesa neste período. É uma obra de divulgação, mas não é simplesmente descritiva.

4 Futscher Pereira avança efetivamente com uma interpretação geral deste período da política externa do Estado Novo. A tese central do livro, que justifica o seu subtítulo, é a de que já neste período a Guerra Fria europeia foi secundária, e o anticomunismo foi instrumental na política externa de Salazar. O foco principal de atenção ao longo da década de 1950, a prioridade da ação externa do regime salazarista, era já, defende o autor, a defesa das colónias, em particular a mais diretamente ameaçada neste período – o Estado Português da Índia. O principal alvo da política externa de Salazar era já o anticolonialismo militante da União Indiana, muito ativo nos fora multilaterais da ONU. Isso importava mais do que a NATO, a defesa face à ameaça soviética, ou mesmo a relação bilateral com os EUA, todas elas, segundo esta obra, estavam subordinadas à prioridade máxima que era a defesa da dimensão ultramarina, colonial de Portugal. Esta é uma ideia fundamental a que voltaremos no final desta recensão.

5 Como avaliar genericamente esta primeira história geral da diplomacia do Estado Novo por um só autor? Desde logo, notando que esta é uma obra bem escrita, numa linguagem acessível, adequada ao seu objetivo de fazer divulgação de qualidade. Tem uma estrutura clara. Embora nos pareça questionável a opção por os títulos dos capítulos serem um par de datas. Os títulos temáticos dos subcapítulos tornam, apesar disso, relativamente fácil navegar na obra; dão também uma ideia de algo em que os praticantes da política externa insistem: a dificuldade de terem de lidar com problemas urgentes e inesperados em partes muito diversas do mundo simultaneamente ou em rápida sucessão. Mas isso não deixa de afetar um pouco a coerência da exposição e da análise. Depois, deve ser sublinhado que este tipo síntese, um tour d’horizon por um só autor, é uma novidade. Existem outras sínteses da história da política externa do regime de Salazar, mas não por um só autor e como parte de obras mais genéricas.1 Além disso, há que destacar que a obra tem uma base empírica e bibliográfica sólida. Como já vimos anteriormente, o livro resulta da consulta de fontes publicadas, mas também de alguma pesquisa original de fontes de arquivo. De notar também como ponto positivo que o autor utiliza inclusive algumas teses de doutoramento ainda inéditas sobre temas relevantes.2

6 Antes de terminarmos destacaríamos duas interpretações mais específicas desta obra, uma que nos parece particularmente pertinente, e a outra que nos suscita dúvidas. Sendo que, no entanto, qualquer delas nos parecem ser contribuições pertinentes para o debate sobre a política externa do Estado Novo. Quanto à primeira, um ponto forte desta obra é efetivamente a análise dos principais atores da política externa portuguesa. Poucos discutirão a afirmação de Futscher Pereira de que embora Salazar deixe de ser formalmente Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1947, continua a ser a figura central da política externa portuguesa. Apesar da mudança de título deste volume para o anterior, a Diplomacia do Estado Novo, é, no fundo, mais um volume sobre a Diplomacia de Salazar. O peso de Salazar é especialmente marcante quando o titular da pasta é fraco, como é o caso de Caeiro da Matta, entre 1947 e 1950. Mas Salazar continua a pesar na diplomacia portuguesa mesmo com os mais sólidos Paulo da Cunha, entre 1950 e 1958 (sendo que este terá ficado diminuído por razões de saúde a meio do seu consulado), ou Marcelo Mathias, entre 1958 e 1961.

7 Salazar nunca abdicou de escolher os principais embaixadores e de comunicar diretamente com eles. Vários deles são ainda, neste período, escolhas pessoais e políticas do ditador vindos de fora da carreira. É nova, no entanto, a tese de Futscher Pereira de que entre os diplomatas “no estrangeiro” neste período “o papel de maior destaque coube a Vasco Garin”, pois que “como embaixador em Nova Deli e, de seguida, em Nova Iorque, foi ele que, na primeira linha, sofreu o embate dos conflitos diplomáticos” mais importantes. Este parece-nos um ponto válido. Garin é, claramente, uma figura a merecer um bom estudo de fundo. Também de notar, por ser rara a valorização da história das informações e das operações especiais neste tipo de obra, é a atenção de Futscher Pereira à figura menos ortodoxa de Jorge Jardim, que por várias vezes foi os olhos e os ouvidos de Salazar em zonas de crise. O real papel de Jardim pode ser difícil de avaliar com rigor, mas esta dimensão de diplomacia paralela e recolha de informações secretas merece atenção.

8 Outro ponto forte na análise por Futscher Pereira dos atores da política externa é o destaque dado Delgado, a Henrique Galvão e à ação internacional da oposição. Uma oposição que desenvolve, pela primeira vez, uma estratégia internacional paradiplomática e mediática eficaz que cria dificuldades sérias ao regime. Teria sido interessante que o autor tivesse dado mais atenção ao papel da rede diplomática na vigilância e gestão da presença internacional da oposição, assim como ao papel do PCP e da sua relação especial com a URSS. A acção internacional dos movimentos independentistas africanos é referido pelo autor – sobretudo a presença do líder da UPA em Nova Iorque, aquando do início do levantamento armado no norte de Angola, feita precisamente para coincidir com a discussão da situação angolana no Conselho de Segurança da ONU.

9 Um ponto fraco da análise do autor, do meu ponto de vista, é a apreciação repetida ao longo da obra de que as chefias militares leais ao general Botelho Moniz – como Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e, depois, como ministro da Defesa entre 1958 e 1961 – tinham uma boa visão da política internacional e, por isso, defenderam uma boa estratégia militar e política de resposta ao desafio independentista africano, bloqueada pela austeridade cega de Salazar. Ora, como o autor bem assinala, Salazar frequentemente mostrou nas suas comunicações privadas temor pelo elevado preço que seria preciso pagar internacionalmente para o Estado Novo manter a África portuguesa, em contraste com a confiante retórica pública da sua propaganda. Um temor que aumentou com as conhecidas reservas relativamente ao colonialismo do jovem senador John Kennedy, eleito presidente dos EUA em 1960. A realidade é complexa e parece-me claro que Salazar pode ter estado errado na sua opção de política externa para Portugal, mas esteve certo na sua análise da política internacional. Já os militares em torno de Botelho Moniz, a meu ver, estão menos unidos quanto ao que fazer antes e depois do início da luta armada em Angola; estão menos certos quanto à análise que fazem do contexto internacional; e estão claramente errados quanto às possibilidades de uma mudança limitada da política colonial portuguesa ser viável a prazo ou ser recompensada internacionalmente. Moniz e os seus próximos aparentemente acreditavam que Portugal, sem Salazar, manteria as possessões coloniais durante pelo menos uma década e conseguiria consolidar uma federação lusófona depois disso. Estas chefias militares também me parecem sobretudo desejosas de defender o interesse corporativo das Forças Armadas em obter mais recursos, em vez de, como pretendia Salazar, com recursos semelhantes mudarem radicalmente de prioridades e passarem de uma guerra convencional na Europa para uma guerra de guerrilha em África.

10 Para terminar voltamos à tese central desta obra. Afirma o autor: “a disputa com a União Indiana acerca de Goa, Damão e Diu foi a questão principal que ocupou a diplomacia portuguesa nestes anos.” Afirma também que o comunismo no quadro da Guerra Fria é uma ameaça meramente instrumental para a diplomacia de Salazar. Discordo desta última tese. Creio que se trata mais propriamente de um caso da diplomacia de Salazar acreditar na sua própria propaganda. Havia, efetivamente, a ideia na elite salazarista de que muitos destes movimentos anticoloniais eram hostis ao bloco ocidental e estavam dispostos a aliar-se ao bloco soviético, fossem ou não propriamente comunistas. O próprio Futscher Pereira nota de forma pertinente que, em plena Guerra Fria, “a ameaça comunista era o fator decisivo na política externa dos EUA e da Grã-Bretanha, as duas grandes potências ocidentais e atlânticas que eram, também, os principais aliados de Portugal”, acrescentando que “durante a quase totalidade deste período estiveram no poder em Washington e em Londres governos de direita, que olhavam para o Estado Novo com complacência”. Também nos parece apressado dar por adquirido “o descrédito completo das doutrinas raciais” no bloco ocidental ou, mesmo, no soviético. Ainda havia muito racismo, embora de uma variante mais paternalista. Isto não significa que discordemos do autor de que se deve dar muito maior peso à questão colonial na diplomacia de Salazar logo na década de 1950, e de que este facto tem sido algo descurado em favor de uma maior atenção dada à Guerra Fria. Parece-nos, porém, que ambos os contextos estão intimamente ligados, mesmo que seja necessário repensar a respetiva ordem de prioridades na política externa do Estado Novo.

Notas

1 Um exemplo recente são os capítulos sobre política externa nos cinco volumes de António Costa Pinto (…)

2 O que não significa que não seja possível sugerir alguma adição ou notar alguma gralha. Por exemplo (…)

Bruno Cardoso Reis – ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected].

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Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo” – PARANHOS (RHH)

Dei um pulo na cidade.

Iaiá, minha preta, se eu sei não iria.

Só vi sacanagem, só vi covardia.

Não sei como pode alguém lá viver.

Quando vi o salário Que o pobre operário Sustenta a família Fiquei assustado, Iaiá, minha filha, Montei no cavalo e voltei pra você.

Quando eu contar, Iaiá Serginho Meriti/Beto Sem Braço A prática docente e a de pesquisa acadêmica encontram, entre muitas proximidades, a comum dificuldade em agregar elementos, documentos e fontes que permitam oferecer uma leitura do passado capaz de estimular interpretações de experiências e expectativas de sujeitos geralmente esquecidos, silenciados na memória oficial e no relato historiográfico predominante. O objetivo de narrar uma “história de baixo para cima”, embora estimule o fazer historiográfico desde a primeira metade do século XX, ainda exige muito esforço, criatividade e perspicácia para que se identifique o eco de vozes então abafadas pelo discurso hegemônico. O esforço em captar a repercussão das palavras de grupos dissonantes em um contexto autoritário e comumente identificado como onipotente, o Estado Novo Varguista, é o que move o historiador Adalberto Paranhos nesta nova obra, produção cara a iniciados nos estudos do período e, por sua linguagem acessível, também a demais interessados. Leia Mais

Estado Novo e Universidade: a perseguição aos professores | Fernando Rosas e Cristina Sizifredo

Em setembro de 2013, veio a lume em Portugal o livro Estado Novo e Universidade: a perseguição aos professores, de Fernando Rosas e Cristina Sizifredo. A obra trata de episódios ocorridos durante a Ditadura Militar (1926-1933) e o Estado Novo (1933-1974), nos quais pesquisadores e professores, por razões político-ideológicas, foram afastados do campo universitário luso ou nele impedidos de ingressar.

Em um panorama geral da obra, sobressaem-se dois aspectos relativos a seu conteúdo: a solidez da pesquisa histórica em que se apoia a publicação e seu apoio aos movimentos em defesa da memória dos perseguidos políticos portugueses do século XX. No que diz respeito à forma, destaca-se o estilo fluido, um tanto lacônico e bastante claro da narrativa. Leia Mais

A Criação do IBGE no contexto da centralização política do Estado Novo | Eli Alves Penha

O trabalho de Eli Penha, inicialmente sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ em 1992, tem como proposta investigar o significado da criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, sua importância para a geografia e para a sociedade. Segundo o autor, mais um ponto de partida para a recuperação da memória institucional e menos uma história do Instituto.

Estruturada em quatro capítulos, introdução e conclusão, a publicação é prefaciada por Pedro Pinchas Geiger, geógrafo do antigo Conselho Nacional de Geografia, nome de peso na formação do campo disciplinar da geografia (Machado, 2009). Complementam-na os anexos referentes aos esquemas dos Sistemas de Serviços Estatísticos e Geográficos, o Plano Rodoviário Nacional e a “Lei Geográfica do Estado Novo”, isto é, o Decreto Lei, n° 311 de 1938, que dispôs sobre a divisão territorial do país, entre outros documentos. Leia Mais

A vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo – ACCAIUOLI; FERRO (LH)

ACCAIUOLI Margarida; FERRO, António. A vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo. Lisboa: Bizâncio, 2013. Resenha de: VICENTE, Filipa Lowndes. Ler História, n.65, p. 182-188, 2013.

1 Em 1923, António Ferro publicou no Brasil A Idade do Jazz Band1. O texto fazia um elogio ao jazz – um símbolo «frenético, diabólico, destrambelhado, ardente» da contemporaneidade. Num momento em que este tipo de música era ainda incompreendido por uma vasta maioria, vilipendiado por atentar contra a harmonia musical e usado para fundamentar teorias racistas que o associavam à música negra, o jazz era para Ferro o símbolo de uma Europa renascida depois da Grande Guerra, e aberta ao que vinha do outro lado do Atlântico.

2 Nas décadas de 20 e 30, Ferro era ainda um jovem intelectual inquieto. Politizado, sem ser ainda político. Sempre em movimento, num entra e sai do país. Manifestava-se em múltiplos escritos – uns para consumo interno, outros destinados a públicos externos. Foi o caso da entrada que redigiu sobre o regime político português, na prestigiada Encyclopédie Française dirigida pelo historiador Lucien Febvre (1933)2. Uma sinopse do «Estado Novo», integrada num capítulo dedicado aos «outros regimes autoritários», aqueles que não cabiam na categoria dos «regimes fascistas», nem nos «regimes nacionais-socialistas». Uma entrada que era, sobretudo, um elogio a Salazar e ao seu modo de ser um português suave com mão de ferro.

3 Mas a vasta obra publicada de Ferro não foi um gesto silencioso e solitário. Intelectual de ação, a sua palavra impressa era, em geral, registo de um discurso oral, do diálogo-entrevista, da conferência proferida, no Rio de Janeiro ou em Lisboa. Em voz alta, pronunciada à frente de um público, discursada ao microfone, Ferro aprendeu bem a utilizar o melhor de todos os meios de comunicação disponíveis, quer na sua própria escrita, quer nas múltiplas vertentes de comunicação usadas pelos órgãos institucionais ou culturais que dirigiu.

4 Ferro traz para Portugal o mundo «lá de fora» onde ele identifica os traços do que era «moderno» na música, literatura, pintura, arquitetura ou escultura, bem como nos protagonistas dos novos fascismos europeus. Enquanto repórter jornalístico fez entrevistas a D’Annunzio, Mussolini ou mesmo Hitler, e transformou-as no livro Viagem à volta das Ditaduras, que antecedeu as suas conversas, mais longas, com Salazar. Destes diálogos nasceu a ligação que faria deles cúmplices na ação política e na construção das suas imagens públicas.

5 Um destes diálogos teve lugar num automóvel, em andamento, como se vê numa das fotografias publicadas em Salazar. O homem e a sua obra (1933). Para que o entrevistado não perdesse o pouco tempo que tinha para equilibrar as finanças do país? Ou para que a imagem do católico tradicionalista que tinha vindo da província fosse marcada pela modernidade do século? A conversa entre os dois homens foi marcada pelo click imediato da fotografia instantânea, bem como pelo movimento do automóvel, tal como o Chevrolet que levara Álvaro de Campos de Lisboa a Sintra.

6 Em 1933, já diretor do recém-criado Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), o escritor da contemporaneidade – ou o historiador do presente – passa a ser o político do espírito. Foi, então, que o seu cosmopolitismo deu lugar à construção de uma ideia de «Portugalidade» definida em várias frentes. Um Portugal dos sentidos para aqueles que sabiam ler, mas também para aqueles – a maioria – que só sabia ver. O Bailado do Verde-Gaio, a hesitar entre a reinvenção de um folclore esquecido e uma tradição clássica internacional; os múltiplos prémios literários e artísticos, a construir os cânones da época – onde A Romaria do Padre Vasco Reis ganhou o prémio de poesia de 1934, relegando a Mensagem de Pessoa para um prémio de consolação; as pousadas de Portugal, para que os portugueses pudessem americanizar os seus lazeres e viajar na própria terra; o concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal e a definição etnográfica de uma cultura popular (o povo deveria continuar a ser povo, mas um povo ciente das tradições que o identificavam e que deveria reproduzir); as intervenções numa Lisboa urbana, entre o culto do bairro de Alfama, com vasos de flores à janela para o rio, e a abertura das avenidas novas, com nomes de colónias e países estrangeiros; ou a tentativa de regulamentar o estilo decorativo através das «campanhas do bom gosto». Um estilo que os críticos chamavam, ironicamente, o «estilo secretariado».

7 Esta última é uma das poucas referências feitas no livro à contestação da política cultural do regime ou à resistência àquilo que muitos também viam como um excesso de regulamentação que pouco ou nada se coadunava com a prática da criatividade. Face à multiplicação de prémios e concursos para todos os tipos de escrita ou de arte, a revista Presença pôs o dedo na ferida. Onde estava aquele Ferro que, no passado, tinha escrito sobre a incompatibilidade entre a liberdade da produção cultural e a intervenção política?

8 A autora do livro dá bastante ênfase aos discursos proferidos por Ferro aquando da sua saída do Secretariado, em 1950. Foi através destes discursos que Ferro aproveitou para responder às críticas de que naturalmente também foi alvo, entre as múltiplas homenagens. Mas ficamos com vontade de saber mais sobre o que suscitou estes discursos justificativos. Em que margens se encontra a contestação ao regime, para lá do texto de Almada ou de António Pedro a questionar a ideia de converter os portugueses ao «bom gosto»? Onde estão os artistas, escritores e intelectuais que ficaram de fora? Por exemplo, segundo Jorge Segurado, Ferro teria dito que «era uma pena que o Arlindo Vicente não tivesse aderido ao Estado Novo». Que possibilidade de resistência – ou sobrevivência – é que tiveram aqueles que não aderiram? E as organizações que foram extintas pelo regime, como o Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas, principal organismo feminista, liderado pela intelectual Maria Lamas? Em 1947, este conselho organizou, na Sociedade Nacional de Belas Artes, uma Exposição de Livros Escritos por Mulheres de todo o Mundo e foi, em parte, o sucesso deste evento e dos colóquios que o acompanharam que acabaria por levar à sua extinção compulsiva.

9 E onde ficam as mulheres de uma história cultural do Estado Novo? Não aquelas que apareciam com trajes de minhota nas fotografias a preto e branco ou nas aldeias populares reconstituídas na exposição de 1940, mas as que escreviam, pintavam, ilustravam livros ou coreografavam espetáculos de dança e teatro. O livro refere vários nomes de mulheres, sobretudo as que ganharam prémios literários ou participaram nas muitas exposições patrocinadas pelo SPN (um útil apêndice mostra todos os premiados). Mas não faz qualquer abordagem de género. E é pena, pois o próprio António Ferro refletiu várias vezes sobre a contemporaneidade ou sobre a criatividade através daquilo que identificou como sendo valores femininos ou masculinos. E aqui, longe de «modernas» – Virginia Woolf, por exemplo, publicaria A Room of one’s own em 19293 –, as posições de Ferro correspondiam à ideologia dominante em relação à incapacidade da mulher para a escrita e para a criatividade.

10 Ferro aproveitou a sua entrevista à escritora francesa Colette para escrever sobre o assunto: por um lado, elogiou-a, nas vésperas de ser condecorada com a Legião de Honra, afirmando que só em França isso seria possível4. Uma Colette portuguesa, escreveu Ferro, seria uma imoral, fútil e – como todos aqueles «que se limitam a ser de hoje» – seria considerada «futurista». Mas, por outro lado, para ele a literatura era uma «arte masculina», a mulher era «o manequim da literatura», a musa inspiradora e a exceção que só servia para confirmar a regra da incapacidade da mulher para a escrita. Ou seja, aquelas que escreviam bem faziam-no por terem «cabeça de homem» e por não serem «mulheres de carne e osso».

11 Este é o mesmo homem que escolheu casar com uma mulher intelectual. Fernanda de Castro, uma escritora de múltiplos registos e vasta obra, da tradução, à poesia, ao teatro ou romance5. Como tantas outras mulheres de intelectuais do seu tempo, também ela contribuiu ativamente para consolidar a carreira do marido, traduzindo-lhe os discursos ou colaborando em muitas das iniciativas do SNI. Mas claramente existe uma opção de cingir a biografia a aspetos da vida pública de Ferro e não da sua vida familiar e privada. No entanto, o papel cultural ativo e interveniente de Fernanda de Castro subverte esta fronteira entre público e privado.

12 A «masculinização» de uma estética dos regimes fascistas europeus, para lá do óbvio domínio masculino do poder tem sido um tema abordado noutros casos europeus. De que forma é que este culto do corpo masculino se fazia sentir em Portugal? Por exemplo, Ferro escreveu que só admirava aqueles escritores que tinham «músculo na prosa» (Colette, p. 28). A iconografia da propaganda do Portugal dos anos 40 dá-nos outros exemplos – erotizados? – desta masculinidade visível. É o caso do livro Portugal 1940, publicado pelo SPN, que mostra imagens de homens a construir pontes em tronco nu ou a escavar a terra em mangas de camisa, os braços erguidos em uniformes militares ou em perfeitas coreografias de ginástica, homens negros a dançar seminus numa fotomontagem destinada a ilustrar a viagem do Presidente da República às colónias, ou um homem que, qual estátua grega, noutra sobreposição fotográfica, parece dominar o novo Estádio Nacional6.

13 À vertigem da palavra, bem notada no subtítulo do livro, será necessário acrescentar a vertigem da imagem. Enquanto «moderno», Ferro reconhecia naturalmente a relevância crucial da fotografia e do cinema, quer enquanto arte, quer enquanto instrumento de propaganda. Margarida Acciaiuoli reconhece a importância da imagem, dedicando um capítulo específico aos usos que Ferro, através do SPN/SNI, fez das tecnologias visuais. Mas não legenda, apropriadamente, as magníficas fotografias do livro. Sem autoria, sem identificação e sem data, muitas das imagens acabam por ser abordadas não como um documento histórico, mas apenas como uma ilustração. Neste uso da fotografia, como superfície de representação e não como um objeto em si que precisa de ser contextualizado historicamente e abordado criticamente, acabam por se reproduzir os modos como a própria fotografia foi usada no passado: como ilustração e não como documento.

14 Entre os casos mais interessantes que são referidos no livro, estão as encomendas dos álbuns fotográficos Portugal 1934 e Portugal 1940 – ambos com a enorme sofisticação gráfica comum a tantas das publicações do Secretariado. Com a participação de vários fotógrafos e a utilização das diferentes técnicas de montagem disponíveis na época, o próprio meio de propaganda correspondia à mensagem de modernidade que se queria transmitir. Da permanente relação contemporânea entre a fotografia e as exposições, Ferro tinha plena consciência. Em algumas exposições, a fotografia era usada negativamente – para mostrar aquilo que se queria rejeitar; noutras, positivamente, para expor aquilo que se pretendia celebrar.

15 O passado recente que se queria renegar era o da I República, como bem nota Acciaiuoli. A fotografia, retrabalhada em montagens que favoreciam o contraste, serviu de prova da «desordem» que o Estado Novo viera erradicar. Ao recorrer ao arquivo do fotógrafo Joshua Benoliel, com as suas reportagens visuais da politização das ruas republicanas, António Ferro tentou demonstrar uma consciência das potencialidades políticas da imagem que caracterizou todo o século XX. A Exposição Anticomunista, realizada em 1936 na sede do SPN, foi mais um exemplo dos usos políticos da fotografia, para os quais contribuíram as fotomontagens de Mário Novais. A mesma técnica foi também usada por Novais nos Pavilhões de Portugal nas exposições universais de Paris (1937) e de Nova Iorque (1939) para propagandear um país simultaneamente moderno e tradicional, consciente do seu passado, mas a viver o futuro.

16 Em 1942, António Ferro promoveu uma exposição do britânico Cecil Beaton, já então um fotógrafo de prestígio, conhecido pelos seus retratos sofisticados e produções de moda, na Vogue como nos círculos de Hollywood. Beaton fora pago pelo governo britânico para fotografar as personagens políticas do Portugal de Salazar, mas Ferro compreendeu a oportunidade única de poder mostrar ao público do Palácio Foz um Carmona, um Cerejeira ou um Duarte Pacheco. Este último, de cigarro entre os dedos, a olhar para um mapa de Lisboa, um belo homem fotografado como um ator de cinema. Esta foi, talvez, uma das raras oportunidades para Ferro mostrar algo de «internacional» em Portugal. Como demonstram muitos casos referidos no livro de Acciaiuoli, era quase sempre Portugal a ser exportado para fora – os pavilhões de Portugal nas exposições internacionais, os redescobertos Pauliteiros de Miranda no Royal Albert Hall de Londres em 1933, a exposição de arte popular portuguesa em Genebra, em 1935, ou a companhia de bailado Verde-Gaio apresentada num teatro parisiense em 1949.

17 O arquivo fotográfico do SPN/SNI, hoje na Torre do Tombo, é o arquivo de um Portugal de Trás-os-Montes a Timor. Um Portugal que se podia fotografar e que se podia divulgar. Estas imagens eram usadas nas múltiplas publicações do SNI, mas também cedidas para os portugueses ou estrangeiros que quisessem participar nesta divulgação. O guia de Portugal para estrangeiros que a embaixatriz britânica Ann Bridge e Susan Lowndes publicaram em 1949 é exemplo disso7. Muitas das fotografias que ilustram o Selective Traveller in Portugal foram escolhidas pelas autoras no arquivo fotográfico do SNI, instituição que também apoiou, logisticamente, as viagens que as duas inglesas fizeram pelo país nos finais da década de 1940. Um Portugal ainda a preto e branco, feito de igrejas restauradas, casas caiadas, e monumentos modernos em homenagem a feitos antigos – um cânone visual que a ação do SNI contribuiu muito para consolidar e que somente uma revolução política veio perturbar.

18 Este era também um Portugal para «inglês ver». Traduzido em inúmeras línguas e exportado numa linguagem estética moderna, mas não modernista, onde além dos «feitos do passado» se queria mostrar a «obra do presente», com as colónias a ocuparem um lugar central. Mais tarde, o SPN passou a chamar-se Secretariado Nacional da Informação (SNI), assinalando uma passagem da ideia de «propaganda» para a ideia de «informação» que não foi acidental. Mas a ideia de criação de uma «imagem» de Portugal – para fora ou para dentro – esteve sempre presente em Ferro. Nesta consciência e ação de um nacionalismo exportado está um dos aspetos mais fascinantes da sua obra institucional, pois é nela que melhor se consubstanciam as ideias de cosmopolitismo e nacionalismo.

19 Parecia existir uma tensão entre a modernidade tal como ela era sentida por Ferro – da moda ao jazz, na estetização das ditaduras, ou nas potencialidades do visual consubstanciadas na fotografia, nas exposições ou no cinema – e a crescente resignação em aceitar que o caminho cultural de Portugal tinha que ser o de um Portugal «português». Um exemplo poderia ilustrar esta hesitação, ou mesmo conflito, entre diferentes modos de pensar uma política cultural nacionalista. Em 1945, Villas-Boas teve um programa de música jazz na Emissora Nacional, a rádio oficial dirigida por Ferro. Mas, pouco depois, o programa passou para o Rádio Clube Português, por se considerar que não era adequado à ideia de «Portugalidade» que o SNI definia sempre com maior precisão. Tivera Ferro que abdicar do seu «cosmopolitismo» para não suscitar grande oposição do próprio regime? Porque é que o homem que não acreditava no passado, que renegava a nostalgia e a saudade, e que tanto tinha escrito sobre a necessidade da arte e da escrita celebrarem o presente, e mesmo o futuro, colaborava agora na construção de uma estética do passado português?

20 António Ferro. A vertigem da palavra teria beneficiado com abordagens de género, com um outro uso das fotografias fascinantes que o ilustram, com uma maior distanciação do discurso oficial das próprias fontes para melhor explorar as vozes de resistência e, também, com uma abordagem transnacional do assunto, atenta àquilo que de semelhante se passava para lá das fronteiras nacionais. O livro dialoga com os textos do seu biografado, dando-nos uma súmula muito útil do pensamento de Ferro, mais do que com uma bibliografia secundária de teses de doutoramento já publicadas ou por publicar. Do livro de Ellen Sapega, Consensus and Debate in Salazar’s Portugal: Visual and Literary Negotiations of the National Text, 1933-19488, ou o de Vera Alves, sobre arte popular e nação no Estado Novo9, à tese recente de Marta Prista sobre as Pousadas de Portugal10, são muitas as investigações interessantes que sobre este período têm sido realizados. Falta, agora, desenvolver uma maior consciência do contexto cultural internacional em abordagens transnacionais e comparativas.

21 Este é um livro bem escrito e com referências especialmente interessantes para a história dos museus, exposições e arquitetura do Estado Novo, onde uma narrativa mais centrada na figura de Ferro, e sobretudo no seu discurso, é intercalada com referências à cultura oficial do tempo. Tal como o nome da revista criada por Ferro para divulgar a cultura e a arte portuguesas, este livro constitui um panorama para quem se interesse pela história cultural, e política, do período. Desperta a curiosidade para outras leituras sobre o assunto, para a própria obra de Ferro e para os muitos traços estéticos e monumentais que a «política do espírito» deixou nas ruas e edifícios do país. Porém, cabe ao leitor assumir um papel ativo. Lendo para lá da voz reproduzida do biografado e interpelando uma narrativa que por vezes oficializa a história oficial. Sem problematização, a estética do Estado Novo, com a sua atração inegável, corre o risco de se despolitizar, e nos deixar com saudades de brincar, na ilusão da liberdade infantil, no Portugal dos Pequeninos.

Notas

1 António Ferro, A Idade do Jazz Band, São Paulo, Monteiro Lobato, 1923.

2 António Ferro, «L’État Nouveau», pp. 10’88-15, Encyclopédie Française publiée sous la direction gen (…)

3 Virginia Woolf, Um Quarto que seja seu, pref. de Maria Isabel Barreno, trad. de Maria Emília Ferros (…)

4 António Ferro, Colette, Colette Willy, Colette , Lisboa – Porto, H. Antunes, 1921.

5 As suas obras foram recentemente republicadas: Fernanda de Castro, Obra literária completa, com a i (…)

6 Barros, J. Leitão (dir.), Portugal 1940, Lisboa, Secretariado da Propaganda Nacional, 1940.

7 Bridge, Ann e Susan Lowndes, The Selective Traveller in Portugal, Londres, Chatto & Windus, 1949.

8Sapega, Ellen W., Consensus and Debate in Salazar’s Portugal: Visual and Literary Negotiations of t (…)

9Alves, Vera Marques, Arte Popular e nação no Estado Novo. A política folclorista do Secretariado de (…)

10Prista, Marta, Discursos sobre o Passado: Investimentos Patrimoniais nas Pousadas de Portugal, Lisb (…)

 

Filipa Lowndes VicenteInvestigadora Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (UL). E-mail: [email protected]

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O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro – LEHMKUHL (RBH)

LEHMKUHL, Luciene. O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro. Uberlândia: Edufu, 2011. 268p. il. Resenha de: PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011.

O livro O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro, da historiadora Luciene Lehmkuhl, docente na Universidade Federal de Uberlândia, foi originalmente tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina e está inserido metodologicamente nas fileiras da História Cultural, que com rara sensibilidade adentra na chamada ‘virada pictórica’ (pictural turn).

Café (1935),1 óleo sobre tela do pintor de Brodósqui, é visto como um ícone da história cultural brasileira. Pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, e com esse quadro Portinari ganhou a segunda menção honrosa do Carnegie Institute, em Pittsburgh, no ano de 1935, distinção obtida por Salvador Dalí e Kokoschka. Da tela despontam trabalhadores braçais negros colhendo café e carregando sacos do produto, na época o principal item de exportação do Brasil e símbolo da pujança nacional.

Essa tela é simbólica das contradições inerentes à sociedade brasileira egressa de séculos de escravidão, mas dela também emergem representações que irão povoar a obra portinariana com suas colonas, com seus lavradores, com seus negros e mestiços, com suas culturas agrícolas – como a cafeicultura – que integram o universo da sua produção pictórica.

Café foi a “nota dissonante à harmonia estética” – na feliz expressão da prefaciadora da obra, professora Maria Bernardete Ramos Flores – no conjunto de obras brasileiras que integraram o “Stand de Arte” do Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português, que se realizou em Lisboa, em 1940, comemorativa aos centenários portugueses. As obras expostas são egressas do Museu Nacional de Belas Artes e estão em consonância com a hierarquia de gêneros, como a pintura de história, a pintura de retrato, a pintura de gênero, a pintura de paisagem e a pintura de natureza-morta. Essas obras transitam entre o realismo, o impressionismo, o simbolismo e o naturalismo.

Nesse conjunto pictórico de 24 óleos, Café não está em consonância com o conjunto apresentado de características ‘acadêmicas’ ou da arte tradicional. Além disso, o “Stand de Arte” não é representativo da produção artística brasileira da década de 1930, pois ignora Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, entre outros. O que mostra que a estética modernista em ebulição no Brasil não era unanimidade no campo cultural e nas hostes estado-novistas.

Com base nesses dados a autora propõe várias questões, entre as quais: por que Café integrou essa exposição do Estado Novo português, uma pintura modernista num lugar dedicado à tradição? Por que a comissão organizadora do “Stand de Arte” do Brasil selecionou Café entre tantas obras representativas da estética modernista? Por que Café mereceu tanta visibilidade naquela exposição? Que imagem o Brasil estado-novista levou para as comemorações nacionalistas da sua ex-metrópole?

Para respondê-las, a autora com argúcia se debruçou sobre arquivos e bibliotecas do Brasil e de Portugal e perquiriu cuidadosamente o acervo dessas instituições, sem descuidar do cotejo entre as obras do Museu Nacional de Belas Artes que atravessaram o Atlântico e foram expostas no Pavilhão do Brasil. O que denota o trabalho criterioso de Luciene Lehmkuhl, quanto ao métier do historiador.

A escolha de Café para integrar o “Stand de Arte” do Pavilhão do Brasil deve-se, entre outros motivos, ao capital simbólico da obra que tinha sido premiada pela prestigiada instituição estadunidense e ao fato de ser considerada um símbolo da arte moderna brasileira pela crítica nacional e internacional. Também, Portinari integrava uma importante rede de sociabilidade intelectual que abrangia até mesmo a burocracia estatal, o que permitiu encomendas oficiais (as obras para o Ministério da Educação e Saúde Pública) e a realização da Exposição Portinari no Museu Nacional de Belas Artes, em 1939.

A autora chama atenção para a magnitude do Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português às margens do Tejo, o qual é emblemático da “coroação da campanha da formação da intimidade luso-brasileira”. No bojo da política nacionalista, o Estado Novo português queria mostrar ao mundo o Brasil com uma “imagem forte”, ao passo que Portugal potencializava sua imagem virtual de “berço de descobridores e de criadores de nações”.

Se o conjunto pictórico apresentado pretendia mostrar a autoimagem do Brasil à ex-metrópole ibérica, o que sobressaiu são paisagens bucólicas, naturezas-mortas, nus femininos e Lindoia (uma índia, bem ao gosto oitocentista). O que corrobora a visão de que o “Stand de Arte” estava imerso na tradição acadêmica da arte brasileira, compatível com a orientação das instituições oficiais, como o Museu Nacional de Belas Artes, sob a direção de Oswaldo Teixeira, e o Salão Anual.

O impacto visual causado por Café entre pinturas identificadas como acadêmicas propiciou que Portinari e sua obra ficassem conhecidos em Portugal e se tornassem assunto da imprensa portuguesa. A repercussão envolveu o campo cultural daquele país nas discussões sobre questões centrais e prementes em torno da arte moderna no Brasil e em Portugal, como nacional/internacional e arte pura/arte social, além das aproximações arte/vida e arte/política.

A recepção de Café, em 1940, marcou indelevelmente os caminhos a serem trilhados pelos artistas e pela crítica de arte em Portugal. A historiografia da arte em Portugal menciona Café como um ponto de inflexão na história do modernismo português; para alguns, teve importante papel no estabelecimento do neorrealismo naquele país. A autora adverte que Portinari só foi recuperado pelos neorrealistas portugueses em 1946, quando concedeu entrevista ao poeta, ensaísta e pintor Mário Dionísio, após a exposição na Galerie Charpentier, em Paris.

Café é visto como o melhor exemplo da estética modernista brasileira, embora na Exposição do Mundo Português tenha sido exposto em meio à preponderância da imagem da tradição do Estado Novo brasileiro.

O livro de Luciene Lehmkuhl é de suma importância para a história da arte brasileira, merece ser lido não só pelos acadêmicos que se debruçam sobre história e arte, imagens, práticas historiográficas, acervos documentais e visuais. Deve-se proceder à leitura como a “uma operação de caça” – no sentido proposto por Michel de Certeau – na qual se descobrem muitas sutilezas metodológicas.

Notas

1 Café (1935), pintura a óleo sobre tela, 130 x 195 cm. Assinada e datada no canto inferior esquerdo, “Portinari Brasil 935”. Coleção Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

Maria de Fátima Fontes Piazza – Doutora pelo PPGH/UFSC. Departamento de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, UFSC. Campus Universitário. 88040-900 Florianópolis – SC – Brasil. E-mail: [email protected]

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Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937) – CALDEIRA (RBH)

CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937). São Paulo, Annablume, 1999, 135p. Resenha de: CYTRYNOWICZ, Roney. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

A publicação do livro Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937), do historiador João Ricardo de Castro Caldeira (São Paulo, Annablume, 1999), suscita a reabertura do debate referente às leituras e interpretações sobre o Integralismo no Brasil. Os estudos já dedicados ao movimento/partido Ação Integralista Brasileira (AIB), que existiu legalmente no Brasil entre 1933 e 1937, concentraram-se principalmente na análise de sua ideologia. Tendo como marco inicial o livro de Hélgio Trindade em 19741, cerca de dez livros e artigos foram escritos desde então sobre o tema, cujo campo é ainda uma grande frente de pesquisa em aberto. Esta produção historiográfica e de ciências sociais é reduzida se comparada, por exemplo, à vasta bibliografia sobre movimentos e partidos de esquerda, e mais ainda se analisada no contexto da produção sobre o primeiro período Vargas e o Estado Novo.

A importância de se estudar o Integralismo decorre, entre outras razões, de sua expressiva atuação política entre 1933 e 1937, do interesse de comparar o Integralismo com outros movimentos fascistas (aceitando-se ou não sua caracterização como fascista2), da necessidade de se pesquisar a história dos movimentos e do pensamento de direita e de extrema-direita no País (que não são apenas miméticos em relação à Europa) e, por fim, do interesse que personagens e obras como as de Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Miguel Reale e outros tiveram e têm como matrizes de movimentos e pensamentos no País, muito além do próprio Integralismo. As ressonâncias do Integralismo têm forte presença na atualidade, seja pela ação de pequenos grupos de extrema-direita que se dizem seguidores do Integralismo, seja pela difusão de livros e sites na Internet3, especialmente anti-semitas, que também retomam a ideologia integralista4.

A pesquisa de João Ricardo de Castro Caldeira, realizada como dissertação de mestrado em História na USP, está focalizada na atuação política da AIB no Maranhão e preenche uma lacuna importante na historiografia. Primeiro, por pesquisar o apelo do ideário intregralista em um Estado do Nordeste, tanto no interior como na capital, tendo como eixo central as questões regionais. Segundo, por centrar sua pesquisa na atuação política do partido: suas alianças e oponentes, sua prática política, seus aliados e adversários e seu comportamento eleitoral. O estudo de Caldeira mostra que uma pesquisa local ou regional sobre Integralismo não é apenas a repetição das questões nacionais, mas um alargamento da própria compreensão da atuação do Integralismo no País, e também da compreensão do jogo político entre as forças políticas locais e o regime de Getúlio Vargas. Além disso, as características do Estado, com baixa urbanização e industrialização, colocam um desafio suplementar para se entender a emergência desta ideologia naquele Estado.

O Integralismo foi provavelmente o primeiro partido de massa do País, mantido com a contribuição de seus próprios membros, o que o distinguia dos partidos tradicionais baseados em um modelo oligárquico. Há várias estimativas relativas aos militantes, com números difíceis de confirmar que variam de 100 mil a 1 milhão, discrepância e cifras que sugerem uma percepção de massa que ficou registrada na memória social e na própria historiografia.

Os principais fatores que catalisaram o apoio ao Integralismo no Maranhão, segundo Caldeira, foram o anticomunismo, o nacionalismo, valores próximos ao cristianismo e o importante apoio de setores da Igreja. O anticomunismo deve ser entendido e matizado diante de dados como o número de apenas 3.105 operários nos anos 20 (para uma população, em São Luis, de 70 mil), número que deve ter aumentado pouco na década seguinte. Os integralistas também direcionavam sua propaganda para operários, mulheres e jovens, setores quase não representados pelos partidos existentes. Em 1934, no Maranhão, mulheres fundaram a Ação Feminina Integralista e chegaram a representar 18% dos membros do partido.

O discurso antioligárquico era um dos motes principais do partido no Maranhão. Em uma campanha para a prefeitura de Pedreiras, uma propaganda integralista bradava que o Integralismo pretendia a “liberação de Pedreiras das garras de um feudalismo entorpecente e retrógrado”. Várias caravanas integralistas, originárias de São Paulo e Rio de Janeiro, visitaram o Maranhão. As caravanas eram também chamadas de “bandeiras integralistas” e pretendiam difundir a imagem de um novo desbravamento mítico do País. Delas participava Gustavo Barroso, membro da Academia Brasileira de Letras, que fazia pregações anti-semitas em discursos sobre a “escravização do Brasil aos banqueiros judeus”5.

O Integralismo atraía, assim, especialmente setores das classes médias urbanas, e camadas não representadas na política tradicional, que respondiam ao discurso de um movimento que prometia que as “libertaria” do poder das oligarquias regionais. Aderiam jornalistas, advogados, professores, estudantes, empregados domésticos, médicos, funcionários públicos, padres, funcionários de comércio e operários, entre outros. Esta mistura social já é um dado significativo de uma representação política distinta. A presença de profissionais liberais e de intelectuais explica-se em parte pelo apelo cultural nacionalista. Em suas memórias, Miguel Reale destaca a militância no Integralismo como um espaço importante de discussão da “realidade nacional”6.

É bastante indicativo também que a primeira referência pública na imprensa do Maranhão em relação ao Integralismo fizesse a seguinte descrição: “A ‘camisa verde’ que ele criou para distintivo material de sua idéia está aparecendo, cativante, alegre, persuasiva, em vários pontos do território nacional.” Para entender o Integralismo, certamente tão importante quanto o “conteúdo” do discurso, era o apelo definido por meio de desfiles minuciosamente coreografados, as “Bandeiras” (caravanas), os símbolos, palavras de ordem, canções, discursos dramatizados, estandartes, uniformes, insígnias, rituais, a movimentação da massa, uma mitologia de imagens que Walter Benjamin – referindo-se ao Nazismo – definiu como “estetização da política”. Estes elementos eram um poderoso atrativo e diferenciador perante as práticas dos partidos e criavam toda uma mística ritualizada (rituais que regulavam do nascimento à morte) da adesão que deveria ser considerada não a um partido, mas a um movimento que se apresentava como renovador das forças espirituais da nação7.

No entanto, apesar do discurso violento contra as oligarquias, ao passar do plano do ideário político para o da negociação para chegar ao poder, o Integralismo acabou tendo uma conduta política semelhante à das oligarquias que ele combatia, assumindo políticas clientelísticas e assistencialistas. O partido apoiou, por exemplo, uma negociação em 1936 para eleger um governador ligado a Getúlio Vargas, e participou de uma ampla composição de forças tradicionais da política local, passando a integrar a administração pública. Em 1936 e 37, o Integralismo cresceu no Estado, chegou a deter uma emissora de rádio, a Rádio Sigma, e um jornal comparável aos maiores do Maranhão, que recebia até anúncios da Goodyear. Em 1937, no Maranhão, os integralistas participavam da administração pública, do parlamento estadual, e tinham o apoio de padres e de chefes políticos locais, sem sofrer qualquer repressão. Apesar disso, nas eleições de 1937, embora com núcleos organizados em 17 municípios do Maranhão, apenas seis lançaram candidatos a prefeito ou vereador, e apenas um vereador foi eleito. Nas eleições para prefeito de São Luís, em que se inscreveu sob a legenda “Deus, Pátria e Família”, o partido teve cerca de 5% dos votos e era identificado com as forças da situação.

Esta dualidade entre movimento e partido, entre um combate retórico violento contra o sistema democrático, partidário e parlamentarista (no plano nacional) e antioligárquico (no plano regional, o que lhe dava uma aparência modernizadora) e, de outra parte, aceitação do jogo da política oligárquica e clientelística, quando se trata de negociar alianças e cargos mostra, talvez mais do que qualquer outro dado, os limites objetivos (felizmente) à emergência do Fascismo no Brasil. E também talvez forneça pistas para entender por que o movimento teve pouco apoio eleitoral se comparado à sua repercussão, à época, como marco (ultra) nacionalista de debates dos grandes temas do País, como a organização de um Estado centralizado, além de sua atração como um partido identificado como nacional e antioligárquico. Também se pode sugerir que algumas das bandeiras do Integralismo estavam presentes no próprio ideário do Estado-Novo que se implantaria em 1937, o que pode ter contribuído para difundir seu ideário, apesar de oficialmente banido.

A descrição do processo político e da prática política dos integralistas no Maranhão é realizada por Caldeira com precisão e acuidade, constituindo o eixo central do seu livro. O autor optou por uma pesquisa que privilegiou a prática política e não a análise ideológica, que nem sequer ganha um resumo introdutório, que poderia contribuir para a pesquisa e para uma leitura mais compreensiva para um tema tão (academicamente) pouco conhecido. A pesquisa é coerente com a proposta. Mas não terá essa opção do autor esvaziado em parte o caráter fascista da ideologia integralista, ou simplesmente esvaziado ideologicamente o Integralismo?

A pesquisa sobre a “prática” das alianças eleitorais do partido, o jogo político que em nada difere do jogo político mais arcaico, apesar de uma retórica antioligárquica inflamada, tudo isso acaba mostrando um partido que, no calor da disputa eleitoral, não se diferencia das oligarquias locais. É evidente que este é um dado da pesquisa relevante e consistente, mas não deveria esta ênfase sobre a prática ser colocada para análise juntamente com a análise ideológica do movimento, sob o risco de perder de vista a especificidade e a violência ideológica particular do Fascismo, que é o que caracteriza o Fascismo e o torna específico, com suas variações locais e nacionais?

Caldeira poderia recusar este comentário não apenas reafirmando uma opção historiográfica, diante de uma bibliografia inteiramente dedicada ao estudo da ideologia (em sua maior parte produzida pelas ciências sociais), mas também como uma conclusão da própria pesquisa, no sentido de que esta mostra, no Maranhão, um partido esvaziado de sua violência ideológica e de conteúdos que existiam apenas no discurso nacional, mas não no regional.

Mas não será esta contradição entre a retórica violenta do movimento e sua atuação “prática” esvaziada precisamente uma contradição central do Fascismo brasileiro, expressão das camadas médias que se beneficiavam do alargamento da ação do Estado e das oportunidades de emprego e ascensão social abertas nos anos 30, com a montagem de uma vasta máquina estatal, ao mesmo tempo em que defendiam vagas reformas na estrutura do Estado e se opunham fracamente às oligarquias às quais estavam de fato subordinadas, e diante das quais eramo estruturalmente dependentes? Se é próprio das classes médias não ter um projeto político autônomo, neste caso isto foi acentuado por sua relativa ascensão nos anos 30 e pelo discurso estado-novista que parecia contemplar seus anseios.

E, em conseqüência, este limite do Integralismo no Brasil na década de 30 não seria dado pelo relativo atraso do desenvolvimento capitalista no País e pela não-difusão das relações capitalistas? Esta tese, defendida em estudos de peso, como os de José Chasin, Antonio Rago e no trabalho extremamente instigante de Gilberto Vasconcelos, deve ser colocada para discussão, e não simplesmente negligenciada8.

A dualidade entre Fascismo movimento e Fascismo partido, entre a retórica e o poder, também pode ser observada no Fascismo italiano e no Nazismo alemão, e isto em nada significa atenuar as conseqüências da guerra e do genocídio. Estudos recentes sobre o Nazismo alemão mostram uma convivência, até hoje desconhecida e negligenciada, de partidos tradicionais e de elites políticas locais com os nazistas, que não tinham quadros próprios para fazer funcionar o Estado. Esta idéia, longe de atenuar os crimes nazistas, alarga a responsabilidade por crimes como o próprio genocídio contra os judeus, que não foram “apenas” a decorrência de um discurso violento do partido nazista mas resultado de uma gigantesca e minuciosa operação de destruição que envolveu muitos setores da sociedade e do Estado alemães, havendo, claro, matizes entre responsabilidade indireta, conivência e cumplicidade direta9. Ou seja, entender a passagem da retórica para o poder é um tema central dos estudos de movimentos fascistas e a contradição é própria destes movimentos que não têm maior enraizamento social. Basta lembrar, na Alemanha, o crescimento do partido, a partir dos anos 20, diante dos partidos baseados em forças sociais historicamente estruturadas, como a social-democracia, os comunistas e os partidos centristas, conservadores e católicos. Também no Brasil, a adesão ao Integralismo não tem um enraizamento social mais consistente e prévio aos anos 30, havendo uma história irregular de pequenos movimentos e partidos de extrema-direita.

Ao privilegiar o estudo local, regional, do Integralismo, corre-se o risco de se alargar um horizonte de compreensão, mas de se fechar outro e de menosprezar o poder ideológico do Fascismo como a ideologia do ódio e da destruição. Mais do que optar por uma única interpretação e torná-la profissão de fé – o que Caldeira jamais faz, ressalte-se – é importante pensar sempre entre as diferentes interpretações, confrontando-as diante da pesquisa.

Se há algo que os historiadores têm mostrado nos últimos dez anos de um verdadeiro rush de estudos históricos sobre Nazismo e Fascismo é que, à parte o desejo de se estabelecer tipologias do Fascismo (a mais célebre talvez seja a de Renzo de Felice; a última, a de Umberto Eco10), é cada vez mais esclarecedor e produtivo combinar análises da ideologia com a pesquisa empírica, documental, que busque as especificidades locais da eclosão do Fascismo, que entenda sua prática política específica e, ao mesmo tempo, busque caracterizar uma ideologia que existiu basicamente entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais e que pode ser tipificada.

As particularidades do Integralismo devem ser entendidas em toda a sua complexidade para que seja possível compreender, por exemplo, por que um intelectual como Luís da Câmara Cascudo tornou-se seu asdepto no Rio Grande do Norte11. É preciso efetuar esta discussão sem maniqueísmo prévio, em um arco que comporte personagens tão díspares entre si como Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, os três mais importantes dirigentes nacionais que, com conflitos, conviveram nos anos 1930. Se pensarmos na importância política e intelectual que Reale teria durante décadas, como paradigma de um certo liberalismo, longe de aceitar que sua militância integralista foi apenas um breve parêntese juvenil, ganharíamos na compreensão de como a ideologia fascista é capaz de exercer atração sobre intelectuais que não são “tipos ideais” do Fascismo e de como o Fascismo pode ter pontos de contato com outras ideologias e movimentos. É esta maleabilidade e caráter intrinsecamente contraditório, próprio das condições históricas do entre-guerras, que permite entender estas adesões. No caso de Cascudo, certamente há toda uma gama de questões de política e cultura locais12.

É próprio da ideologia fascista ser um aglomerado de idéias contraditórias entre si, porque o Fascismo e o Nazismo devem ser entendidos, historicamente, muito mais como respostas, como reação, como ideologia do anti (principalmente anticomunismo e, no caso alemão, anti-semitismo) e da destruição, do que como a formulação efetivamente coerente de constituição de um projeto nacional. O partido nazista derivava sua força muito mais da violenta reação contra a democracia, o parlamento, os judeus e o Comunismo, e da violenta pregação que prometia uma inclusão aos setores marginalizados e ameaçados pela crise. Por isso, a guerra e o genocídio, da mesma forma que o racismo e a eugenia, estiveram no centro da ideologia e da ação nazistas. ‘Eu não sou ninguém, mas ao menos não sou judeu’, escreveu Thomas Mann, sintetizando uma pregação chave do Nazismo, que foi o anti-semitismo associado ao anticomunismo. Por justapor idéias contraditórias, como ser simultaneamente anti-capitalista e anti-comunista, o Fascismo atrai diferentes setores sociais e seu discurso repercute em diferentes demandas, falando para várias camadas sociais e dirigindo apelos específicos e contraditórios a cada uma. Assim, não faz sentido procurar em cada militante ou eleitor do Fascismo um representante “ideal” desta ideologia. Igualmente não faz sentido transferir a ideologia mecanicamente para cada situação histórica como se a ideologia se manifestasse apenas como reprodução de si mesma. Mas é fundamental não apenas estabelecer as identidades ideológicas, bem como suas diferenças, e entendê-las como manifestações dos anos 20 e 30, seja no Brasil, Portugal, Romênia, Hungria, Itália ou Alemanha.

A recente eleição de um governo, na Áustria, em aliança com a extrema-direita em um País que é um dos mais prósperos da Europa, com menor índice de desemprego, mostra que o apelo fascista atinge setores nem sempre objetivamente ameaçados por uma crise econômica e social, uma das interpretações clássicas da emergência do Nazismo na Alemanha. Ao contrário, como mostrou Marilena Chauí em seu ensaio sobre o Integralismo13, a crise é uma poderosa imagem engendrada pelo próprio discurso fascista, que investe em um discurso emocional e irracional, repleto de imagens aterrorizantes, brandindo a ameaça de que a sociedade e seus valores estão em desagregação, à beira do caos, e que seria preciso um movimento restaurador de valores, regenerador do homem e uma nova ordem.

Mas é preciso jamais perder de vista que se chame Fascismo, Nazismo ou Integralismo, e em que pesem suas diferenças, o Fascismo é uma ideologia da destruição, da negação e do horror ao conflito, da recusa ao diferente e ao outro, do ódio às divisões sociais, à democracia e ao sistema de representação, do nacionalismo xenófobo, da liderança ditatorial, da guerra, da destruição das organizações da sociedade civil, do terror, da intimidação e do racismo. O fim da história no “Estado Integral” ou no “Reich de Mil Anos” pressupunha um estado permanente de harmonia social, exterminados previamente na “solução final” todos os que fugiam à norma ideal racista. Para o Nazismo, o extermínio dos povos considerados inferiores era considerado “biologia aplicada” que abreviaria um processo que a própria natureza se encarregaria de realizar. Neste ponto, o Integralismo não era monolítico, havendo diferenças sérias entre, por exemplo, Gustavo Barroso e Plínio Salgado, sendo que o anti-semitismo ficou mais marcado na pregação de Barroso.

O livro de Caldeira certamente se insere em um novo caminho historiográfico para os estudos sobre o Fascismo no Brasil (ou movimentos como o Integralismo e outros, sendo que a discussão sobre o caráter fascista não pode ser evitada), no qual ela trabalha com consistência e coerência. Há trinta anos atrás, Gilberto Vasconcelos escreveu seu livro, o professor Florestan Fernandes escreveu no prefácio que duvidava até se o Integralismo era um tema a justificar estudos acadêmicos14. A um pensamento de esquerda racional e intelectualmente sofisticado, a violência caótica e contraditória do discurso integralista parecia apenas desprezível, fruto de um movimento político inexpressivo no Brasil. Quem lê Gustavo Barroso, por exemplo, pode se surpreender com a aparente irracionalidade e total aparente non-sense dos seus panfletos. Foi Jean Paul Faye, entre outros, quem explorou a gramática fascista, mostrando o terrível poder daquela linguagem incitadora de violência e da destruição por meio da articulação de poderosas imagens de crise, de destruição e de ódio. O discurso fascista é extremamente eficaz, atingindo pulsões, sentidos, emoções e circuitos que o discurso racional não penetra. Ler um texto fascista implica desmontar a lógica da construção do Fascismo e não apenas aceitar um debate político racional. Os livros-panfleto de Gustavo Barroso são um exemplo dessa terrível eficácia do mal.

Estas reflexões são sugeridas pelo livro de João Ricardo de Castro Caldeira e pelo seu trabalho de mestrado muito bem articulado e exemplar enquanto pesquisa de história. O campo de pesquisa e de interpretação sobre a história do Integralismo no Brasil é ainda um território em aberto, especialmente à pesquisa documental aliada à análise ideológica. E, sobretudo, politicamente urgente. Poucos dias após a posse do novo governo austríaco, em aliança com a extrema-direita, cujo líder, Haider, tem aberta simpatia pelo Nazismo, foi na Praça da República, no coração da cidade de São Paulo, em 6 de fevereiro de 2000, que um grupo que se diz publicamente integralista e seguidor de Plínio Salgado e Gustavo Barroso cometeu o assassinato de Edson Neris da Silva, de 35 anos, o qual, segundo o grupo que o matou, “parecia homossexual”. Nunca é demais lembrar que o Fascismo é essencialmente a ideologia do ódio ao diferente e que, dependendo das circunstâncias, este ódio transforma-se em destruição física.

Notas

1 TRINDADE, Hélgio. Integralismo, o Fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1974. O livro pioneiro de Trindade é ainda o mais completo e compreensivo estudo sobre o tema, com ampla pesquisa de campo. Os trabalhos que vieram depois particularizaram temas ou aprofundaram certos aspectos ideológicos específicos.

2 Hélgio Trindade considera que a AIB era um partido fascista “em função da composição social dos seus aderentes, das motivações de adesão de seus militantes, do tipo de organização do movimento, do conteúdo do discurso ideológico, das atitudes ideológicas de seus aderentes e do sentido de solidariedade do movimento em relação à corrente fascista internacional”. Mas o debate neste campo entre os poucos pesquisadores do tema é muito intenso.

3 Sobre os sites racistas, ver KAHN, Tulio. Ensaios sobre Racismo. Manifestações Modernas do Preconceito na Sociedade Brasileira. São Paulo: Conjuntura, 1999.

4 Os livros anti-semitas de Gustavo Barroso, como Brasil colônia de banqueiros, foram reeditados pela editora Revisão que edita em português livros nazi-negacionistas em relação ao genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial e outros panfletos anti-semitas como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, cuja primeira edição em português foi apresentada pelo próprio Barroso.

5 Sobre Gustavo Barroso, ver MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio Janeiro: Imago, 1992; RAGO FILHO, Antonio. A crítica romântica à miséria brasileira: o Integralismo de Gustavo Barroso. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1989 e CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e anti-semitismo nos textos de Gustavo Barroso na década de 30. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 1992; neste último, um capítulo mostra a conexão entre o nazi-negacionismo e Gustavo Barroso. Há ainda muito material e campo de pesquisa para se estudar Gustavo Barroso, sua trajetória intelectual e política. Sobre o anti-semitismo na década de 30, ver LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica. Rio Janeiro: Imago, 1995, e para uma descrição da documentação do anti-semitismo, ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988.

6 REALE, Miguel. Memórias. Vol. 1. Destinos Cruzados. São Paulo: Saraiva, 1986.

7 Para conhecer a importância das imagens no Integralismo, ver SOMBRA, Luiz Henrique e GUERRA, Luiz Felipe Hirtz (orgs.). Imagens do Sigma. Rio Janeiro: Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

8 Além da obra já citada de RAGO FILHO, Antonio, ver VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia Curupira: análise do discurso integralista. São Paulo, Brasiliense, 1979, e CHASIN, José. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.

9 Sobre isso, ver CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: EDUSP/Nova Stella, 1990.

10 DE FELICE, Renzo. Explicar o Fascismo. Lisboa: Edições 70, 1976, e ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1997. As tipologias sempre agregam elementos interessantes para a análise, em que pese sua generalização e pretensão de modelo que dê conta de todas as particularidades.

11 Até hoje, a chamada cultura popular é tradicionalmente muito mais apropriada por forças políticas conservadoras do que de esquerda, que a vê, muitas vezes, como arcaica, repetitiva e estruturalmente conservadora. Se de um lado a cultura popular está associada a estruturas centenárias de submissão e dominação, criando espaços narrativos míticos de redenção e utopia em uma esfera fora da situação social objetiva, por outro haverá outra saída que não equacionar repetição e criação, enraizamento e libertação, fixação e nomadismo? Esta discussão de história da cultura é sumamente importante para entender o apelo regional, local, que o Integralismo teve no país. Um dos três principais líderes, Gustavo Barroso, violento anti-semita e com posições que podem ser aproximadas ao Nazismo alemão, era um escritor regionalista de sucesso e foi membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido seu presidente. É preciso entender como o Integralismo operou estas justaposições e como se organizou seu apelo.

12 O estudo de GERTZ, René. O Fascismo no Sul do Brasil. Germanismo, Nazismo, Integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, é exemplar a respeito de como não de pode fazer generalizações que à primeira vista parecem óbvias, ao tratar das diferenças e conflitos entre germanistas, nazistas e intregralistas nas “colônias” alemãs no sul do país.

13 CHAUÍ, Marilena. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

14 FERNANDES, Florestan. Prefácio ao livro de VASCONCELOS, Gilberto, Op. cit., p. 11.

Roney Cytrynowicz – Doutor em História Social pela USP.

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