A Opção Sul-Americana: Reflexões sobre Política Externa (2003-2016) | Bruno Gaspar

Marco Aurelio Garcia 2 política externa
Marco Aurélio Garcia | Foto: Roberto Stuckert Filho / Agência O Globo / 2004

A opcao sul americana política externaEntre um Brasil para a América do Sul e uma América do Sul para o Brasil

Na História da Política Externa Brasileira (HPEB), o relacionamento entre nosso país e os vizinhos sul-americanos se constituiu num dos capítulos mais complexos nos últimos dois séculos. Ao longo dessa trajetória de país independente, diversos episódios marcaram as fases de aproximações e distanciamentos entre Brasil e América do Sul. Entre construções de identidades políticas e culturais, debate sobre fronteiras, guerras e disputas de hegemonia, tal temática é uma vertente complementar para a compreensão da formação de nosso Estado e da nossa sociedade, sendo, portanto, estratégica na construção da inserção internacional brasileira.2

Durante os primeiros anos do século XXI, sem necessariamente romper com todas as linhas de atuação anteriores, os governos Lula e Dilma ficaram marcados por uma nova fase na constituição de laços entre os brasileiros e seus vizinhos, seja da perspectiva das relações bilaterais, seja nos esforços multilaterais. A América do Sul se reafirma como um dos eixos prioritários da Política Externa durante os primeiros governos petistas (RICUPERO, 2017), num esforço de intensificação de relações e construção consciente desse espaço regional. Leia Mais

Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política | Dainis Karepovs

Em artigo publicado na década passada, Dainis Karepovs ofereceu uma imagem para a historiografia dos instrumentos de luta da classe operária no Brasil. Segundo ele, a escrita da história dos organismos políticos de esquerda construiu um edifício, bem estruturado em alguns pontos e com lacunas a preencher em outros. A história do trotskismo no Brasil seria um “cômodo” da construção.1 Seguindo a imagem proposta por Karepovs, podemos dizer que o prédio e o cômodo destinado à história do trotskismo – que não é encerrado em si mesmo, estando interligado com os demais espaços da edificação – ganharam mais um ajuste com a publicação de Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política, obra que aborda a trajetória de atuação daquele que estava presente em Paris, em 1938, na conferência que fundou a IV Internacional, mas que também percorreu outros caminhos de elaboração e atuação política.

Dainis Karepovs já se encontrou antes com a figura de Mário Pedrosa. É dele – e de Fulvio Abramo – a organização do livro Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933), obra fundamental para os estudos posteriores acerca dos grupamentos de oposição de esquerda no Brasil, por publicar documentos que dão acesso às formulações políticas de sujeitos e organizações ligados ao pensamento dissidente. É lá que se encontra o clássico texto “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, produção que deu as bases teóricas e conceituais da Oposição de Esquerda no Brasil. A autoria é de Mário Pedrosa e Lívio Xavier, com os pseudônimos de M. Camboa e L. Lyon.2

Em Pas de Politique Mariô!, a escolha teórico-metodológica é a abordagem biográfica, na tentativa de compor uma “biografia política” de Mário Pedrosa. Desse modo, o período tratado no livro vai da década de 1920, com destaque para o ano de 1925, quando Pedrosa ingressa no Partido Comunista do Brasil (PCB), até 1980, ano de sua morte e de seu último ato de militância política, com a filiação ao Partido dos Trabalhadores em seu encontro fundacional.

Mário Pedrosa, nascido em 1900, era um estudante de Direito no Rio de Janeiro quando se aproximou dos comunistas. Leitor de publicações estrangeiras, sobretudo a revista francesa Clarté, Pedrosa adere às ideias de Leon Trotski e constrói uma Oposição de Esquerda no Brasil, junto de outros militantes comunistas como Lívio Xavier. Sua vinculação direta com o trotskismo vai até 1940, quando rompe com a IV Internacional diante da divergência acerca da caracterização da União Soviética como Estado Operário a ser defendido na Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, Pedrosa alinha-se aos norte-americanos na posição de considerar a URSS como Estado imperialista, tal qual as potências ocidentais sobreviventes ao conflito. As fontes utilizadas por Karepovs para apresentar a militância de Pedrosa na Oposição de Esquerda são de vários tipos. O autor utiliza a correspondência entre Pedrosa e Lívio Xavier, as publicações dos diversos organismos políticos trotskistas da década de 1930 e material da imprensa carioca.

O autor procura não tornar os momentos posteriores à militância de Pedrosa junto aos trotskistas como desdobramentos sucessivos de uma identidade política. Da mesma forma, a ruptura não é a extinção de qualquer relação com os sujeitos e as ideias que compunham a sua experiência nos anos 1930.

Após a ruptura com o trotskismo, Pedrosa engaja-se na construção da União Socialista Popular (USP), grupamento que levantava a bandeira da superação da ditadura de Vargas e visava a construção de um partido político socialista no país. Em 1945, a USP apoiou Eduardo Gomes para a presidência da República. No entanto, a tarefa principal de sua militância na década de 1940 foi a publicação de Vanguarda Socialista, jornal que apresentava-se como um órgão não submetido a nenhuma disciplina partidária, embora fosse construído por um grupo de pessoas com base intelectual comum. Karepovs destaca o papel do periódico como difusor de textos de autores marxistas de épocas e posições políticas distintas como Rosa Luxemburgo, Bukharin, Kautsky, Trotski, Karl Korsch e Julius Martov.

O autor chama a atenção para algo que se apresenta relevante: o trabalho intelectual como característica de um programa político. Mário Pedrosa, nos anos 1930, esteve à frente de um projeto editorial, capitaneado pela Editora Unitas, para pôr em circulação obras de autores marxistas. Nos grupamentos trotskistas dos quais fez parte, a educação política dos trabalhadores também possuía centralidade na atuação dos militantes. Isso leva a uma reflexão sobre a crença no poder da palavra, do estudo e da erudição como característica comum a um determinado grupo de militantes que se forjaram na Oposição de Esquerda na mesma década que Pedrosa, como Lívio Xavier e Edmundo Moniz.

O momento em que Pedrosa busca integrar Vanguarda Socialista à construção do Partido Socialista Brasileiro, ao lado da Esquerda Democrática, se apresenta como uma das contribuições mais inovadoras do livro. Filiado ao PSB a partir da segunda metade da década de 1940, Pedrosa desenvolve intensa oposição ao que considerava ser o varguismo e suas ramificações. Diante do suicídio de Vargas, reage com frieza, vendo aquele momento como oportunidade de libertação das massas frente às lideranças populistas. Tal oposição ao getulismo leva ao ponto alto de sua crítica, quando, após a vitória de Juscelino Kubitschek sobre Juarez Távora, Pedrosa questiona a legitimidade da votação do candidato vencedor. Tal posição o aproximava do udenismo, mas a retórica e as preocupações de Pedrosa mantém-se no campo da defesa do que imaginava ser os interesses do operariado brasileiro. As críticas ao presidente JK seriam amenizadas no fim da década, em um gesto de deslocamento de posições.

Outras elaborações relevantes são acompanhadas de perto pelo autor. Pedrosa, diante do golpe que depôs João Goulart, procura interpretar os motivos e os percursos do desenvolvimento da economia brasileira. Um militante, Pedrosa vai para o MDB e chega a se aproximar da Frente Ampla, mas sem participação efetiva. Busca reforçar as suas concepções ligadas à análise do “terceiro mundo” e se tornava cada vez mais próximo das ideias de Rosa Luxemburgo acerca do caráter da revolução e das organizações de trabalhadores. A “biografia política” se encerra com a morte de Pedrosa em um momento no qual ainda houve tempo de participar da construção do Partido dos Trabalhadores.

Karepovs destina uma segunda parte do livro à publicação de textos de excompanheiros de militância e atividade intelectual, publicados na imprensa partidária e comercial. O autor também apresenta anexos à obra. Lista os livros que compunham o programa editorial Biblioteca Socialista, a ser lançado pela Editora Unitas; relação dos artigos publicados em Vanguarda Socialista; inventário de textos, apresentações, prefácios e livros escritos por Mário Pedrosa. O autor oferece uma obra que realiza uma análise menos fragmentada da trajetória do biografado, demonstra como a identidade destinada à Mário Pedrosa como um trotskista se associou a um conjunto de elaborações muito distintas e conflitantes. Ao mesmo tempo, Karepovs realiza também um trabalho para o futuro, indicando fontes e contribuindo com pesquisas que virão.

Destaca-se o material presente no Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa – CEMAP, acervo que hoje encontra-se sob guarda do Centro de Documentação e Memória – CEDEM, da Universidade Estadual Paulista. Por fim, gostaria de citar uma lembrança curiosa. Ao visitar o arquivo em questão – no qual Karepovs teve papel destacado em sua criação – acessei um documento no qual estava uma relação de projetos de pesquisa a serem desenvolvidos pelos membros do CEMAP durante a segunda metade da década de 1980. Um dos projetos listados é a construção de um “Dicionário Biográfico” de militantes do movimento operário. No rol dos biografados, estão Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Hílcar Leite, Edmundo Moniz, entre outros. Aparentemente, o projeto vai se realizando, por outras formas, caminhos e ritmos.

Notas

1. KAREPOVS, Dainis. O Arquivo Edgard Leuenroth e a pesquisa sobre o trotskismo no Brasil. Cadernos AEL, v. 12, n. 22/23, p. 267-280, 2005.

2. ABRAMO, Fulvio; KAREPOVS, Dainis (orgs.). Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933). São Paulo: Brasiliense, 1987.

Victor Emmanuel Farias Gomes – Doutorando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil. Mestre em História pela Universidade Federal do Ceará; graduado em História pela Universidade Regional do Cariri. E-mail: [email protected]  ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1654-673X CV   Lattes: http://lattes.cnpq.br/5047979239664818


KAREPOVS, Dainis. Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política. Cotia, SP; São Paulo: Ateliê Editorial; Fundação Perseu Abramo, 2017. Resenha de: GOMES, Victor Emmanuel Farias. A opção intelectual: Mário Pedrosa e a política. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 22, p. 235-238, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello / Lilia M. Schwarcz

A editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Fundação Perseu Abramo, lançou, em 2008, a coleção „Intelectuais do Brasil‟, para abordar o conjunto da obra de certos autores, cuja “reflexão sobre o Brasil seja considerada relevante para a compreensão do país”. Foram editados quatro livros naquele ano, apresentando as obras de Evaldo Cabral de Mello, Boris Fausto, Silviano Santiago e Leonardo Boff. Cada livro ficou sob a responsabilidade de um organizador, cuja tarefa, além de articular a apresentação da obra e do respectivo autor selecionado, era reunir um grupo de pesquisadores para efetuarem análises aprofundadas. Lilia Moritz Schwarcz foi a responsável pela organização das leituras críticas que foram feitas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello.

Embora a coleção não apresente o que está entendendo por „intelectual‟, supõe que são indivíduos cuja obra e atuação diante do cenário nacional e internacional contribuíram diretamente para que questões políticas e culturais fossem pensadas e repensadas, quanto ao presente (ao passado e ao futuro) das sociedades. Tal definição, mesmo que indiretamente, aparece interligada entre cada um dos quatro livros até aqui lançados pela coleção. No caso de Evaldo Cabral de Mello, tal questão se apresenta em sua atuação como historiador e diplomata, cuja relação profissional não é recente no país. Em função da presença tardia de universidades no país, a formação do ofício de historiador permaneceu, durante muito tempo, em caráter „autodidata‟. A paixão pelo ofício, alicerçava-se nos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e seus congêneres estaduais. Sem profissionalização, a atuação „autodidata‟ dos praticantes do ofício neste período tinha que, por razões óbvias, manter-se ligados a outras profissões. O exercício da diplomacia, ao lado da prática da pesquisa histórica, foi muito comum nos séculos XIX e XX, e mesmo após a criação das primeiras universidades, a partir da década de 1920, tal tradição não desapareceu. Evaldo Cabral de Mello, nesse sentido, esta enraizado nesta tradição de pesquisa, que media história e diplomacia: “fez uma carreira em tudo singular: seguiu a diplomacia e sempre alardeou um „horror‟ às instituições, as quais, segundo seu próprio depoimento, são sempre muito „conformistas‟” (p. 11), mas não se limitou a ela. Em suas obras, a “fonte documental permite perceber como a identidade é uma criação social, opositiva e circunstancial: uma resposta política a um contexto político [mesmo considerando sua relutância sobre o uso deste conceito]” (p. 9). Por outro lado, descortina a ideia “de que a vinda da Corte já levaria a prever uma independência conservadora e liderada pela monarquia”, cujo fundamento estava alicerçado numa interpretação finalista e parcial sobre a separação política, “condicionada pela história da Corte”, e por suas ações. Ao longo do livro, que conta com cinco ensaios, uma entrevista e um balanço dos ensaios efetuado pelo autor, apresenta-se esta questão e sua contribuição, para a produção da abra do autor.

No primeiro ensaio, Stuart Schwartz, faz um balanço da produção do autor, dando destaque as suas obras: Olinda restaurada (de 1975), Rubro veio (de 1986), O nome e o sangue (de 1989), A fronda dos mazombos (de 1995), O negócio do Brasil (de 1998) e A outra independência (de 2004). Para ele, esse conjunto formaria um sexteto de uma história regional do país, em que estudou parte do nordeste e a história de Pernambuco. Essas obras estariam articuladas num projeto historiográfico ambicioso e bem sucedido.

Em certo sentido, o sexteto de Evaldo Cabral de Mello é um exemplo brasileiro do ‘retorno à narrativa’ […]. O autor adotou este meio de exposição não porque desconhecesse a teoria nas ciências sociais, ou porque rejeitasse um modo analítico. De fato, seus livros demonstram familiaridade com um amplo espectro teórico; mas ele sempre concebeu a teoria e o método como ferramentas, não como propósitos da análise histórica. Além disso, criticou o que chama de ‘orgia’ nas ciências humanas e o abuso da interdisciplinaridade entre historiadores […] sempre se manteve de certa foram um positivista, e pensa ser possível à recuperação daquilo que realmente aconteceu no passado […] também acredita que a narrativa é a forma clássica do historiador, e o método mais adequado a sua tarefa: reconstruir os eventos do passado e explicá-los aos leitores do presente sem incorrer no pecado do anacronismo […] confia que a escrita da narrativa é o melhor método a partir do qual é possível começar a entender as estruturas subjacentes aos eventos e as conexões entre acontecimentos e estruturas. Ao mesmo tempo, sua abordagem também o tornou particularmente sensível a narrativas passadas, às maneiras através das quais atores históricos no passado representaram a si próprios e a sua realidade, explicaram eventos e usaram tais narrativas para criar uma mitologia que representa sua visão do mundo (p. 30-1).

No segundo ensaio, Luiz Felipe de Alencastro, prolonga essas análises, centrando-se na questão da narrativa contida nas obras do autor. Pauta-se na analise de: O norte agrário e o Império (de 1984), além de Rubro veio, O nome e o sangue e Olinda restaurada. Procura dimensionar a importância da narrativa histórica no encadeamento do enredo de cada um dos livros, fazendo também uma avaliação crítica do uso deste procedimento expositivo de dados. Para ele, o autor versa sobre um conflito luso-holandês, unindo a “metodologia histórica atual à erudição e à tradição regionalista”, numa reflexão que conforma três séculos de história, “conectando-a aos grandes debates historiográficos e tornando-a um dos capítulos centrais da historiografia das Américas” (p. 39).

Júnia Ferreira Furtado, em seu ensaio, analisa comparativamente O nome e o sangue com Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa. Para ela, detendo-se na questão da mitologia política, enquanto Evaldo Cabral procurou demonstrar um segredo, ao expor a genealogia de uma família, Guimarães Rosa fez o inverso, no que diz respeito aos segredos do sertão, e as suas características políticas. De acordo com ela:

Ao revelar as vicissitudes e os percalços por que passou o personagem em sua tentativa de fraudar sua história familiar, criando o segredo que se oculta nas entrelinhas do processo [como cristão-novo], a narrativa [de Evaldo Cabral] desnuda o universo não só da sociedade do açúcar do Nordeste do Brasil, como também do mundo luso-brasileiro, suas formas de sociabilidade e seus conflitos. Um mundo em transformação, onde os negócios promoviam a inversão da ordem, mas onde o sangue, o nome, a honra, a linhagem e a nobreza continuavam a ser fatores estruturantes desta sociedade (p. 80).

A preocupação de Pedro Puntoni esteve mais em demonstrar as características metodológicas e as escolhas efetuadas pelo autor em sua obra. Para ele, o traço marcante da obra está em alcançar grandes sínteses sobre os processos analisados, investindo na questão narrativa, como forma de exposição dos dados, e na interpretação de uma massa documental impressionante. Por isso, a “prosa evaldiana nos conduz […] pelos desvãos desta sociedade conflituosa”, dando a “possibilidade de não apenas compreender a história, mas também de habitá-la” (p. 105).

Pautando-se na interpretação de A outra independência, Lilia Moritz Schwarcz no quinto ensaio do livro, voltou-se para o modo como Evaldo Cabral de Mello além de contraria as interpretações sobre a independência do país, não deixa de lado demonstrar que a história não é um processo teleológico no qual „os atores sociais‟ tem plena consciência de suas decisões e de suas atitudes. Para ela, as obras do autor “têm gerado movimento e feito a historiografia nacional passar por uma clara renovação e questionamento”, por que mostrou ângulos e aspectos do passado pouco percebidos, que teoria e método são importantes, mas apenas quando estão articuladas, a análise das fontes e a exposição dos dados, e que todo acontecimento impõem uma multiplicidade de olhares, não se limitando a uma única interpretação.

Na entrevista que concedeu a Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, juntamente com seus comentários aos ensaios, o autor volta à questão da articulação de sua obra num projeto coerente e organizado, destacando que não haveria tal projeto. E que foi concebendo cada obra, uma após a outra, e não todas ou um conjunto ao mesmo tempo. Ressalta a importância da carreira diplomática, para a consecução de suas pesquisas. E que:

A conclusão que tirei a partir de outras leituras foi a de que a narrativa proporciona a técnica mais adaptada a realizar a integração dos saberes históricos; e que o preconceito vigente contra ela nos meios acadêmicos não leva em conta que a opção em seu favor decorre essencialmente da natureza da realidade histórica. A historia ideal de um dado acontecimento histórico seria a meu ver a que, por exemplo, tratando da Revolução de 1848 na França, combinasse o Marx do ‘18 de Brumário de Napoleão Bonaparte’ e o Tocqueville das Recordações. O historiador não pode aceitar ser posto contra a parede pela escolha entre historiar eventos ou historiar estruturas. Não há porque optar por uma em detrimento da outra. A história puramente factual é confusa e monótona; a história puramente estrutural não o é menos, mesmo quando escrita por um historiador de talento. […] Os eventos têm uma estrutura (como demonstra a história comparada das revoluções), mas a estrutura também compõe-se de ações, pois, nada tendo de metafísica, é apenas o produto de uma miríade de microeventos, e é ação cristalizada dos homens ao longo do tempo (p. 198).

A leitura desta obra dá, portanto, um belo exemplo de como uma obra é produzida, e ao longo de sua produção quais os questionamentos, dificuldades e dilemas que perpassam por seu autor. Nesse sentido, a coleção „Intelectuais do Brasil‟ constitui um empreendimento editorial inovador e didático, por permitir uma apresentação minuciosa a produção de importantes „intelectuais‟ brasileiros, que contribuíram para a produção e a renovação do conhecimento histórico nas últimas décadas. No caso das leituras aqui apresentadas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello não é diferente, mesmo por que os autores possibilitaram um acesso à obra viável tanto para o iniciante, quanto para o pesquisador da área. Além disso, destaque-se o intenso debate entre os comentadores e o autor, que demonstra a complexidade que sempre permeia a interpretação de qualquer obra ou autor. O que apenas torna a obra ainda mais rica e viável para consulta. A lamentar apenas o pouco espaço que foi dado a discussão da formação do autor (principalmente, em sua infância e juventude), que apenas se inseriu na entrevista.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pelo programa de pós-graduação da UNESP, Campus de Franca. Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos. E-mail: [email protected].


SCHWARCZ, L. M. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu Abramo, 2008, 204p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Historiografia e “intelectuais brasileiros”. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.15, p.122-125, jul./dez., 2009. Acessar publicação original. [IF].

Gênero, patriarcado, violência / Heleieth Saffioti

Publicado recentemente, em 2004, Gênero, Patriarcado, Violência parece ter sido concebido para ser uma espécie de “manual didático” que busca conceituar, sob a perspectiva de uma socióloga estudiosa das temáticas feministas, conceitos imbricados de paradoxos tais como gênero, patriarcado, poder, raça, etnia e a relação exploração-dominação.

A partir da utilização de conceitos formulados pela autora no correr de sua vida acadêmica, já que os temas em pauta fazem parte do universo de pesquisas de Saffioti desde os anos oitenta, a obra em análise se propõe a abrir novas perspectivas para o entendimento da violência contra as mulheres. Este tipo de violência, segundo a autora, consiste em um problema social cujo exame encontra-se entrelaçado aos estudos de gênero, raça/etnia, classes sociais e patriarcado.

Dividido em quatro seções de análises, a obra de Saffioti “destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos”(p.9), dentre os quais está a violência contra as mulheres, questão que perpassa todos os eixos de reflexão do livro em pauta.

As áreas da Saúde, Jurídicas, Ciências Sociais e Humanas têm se dedicado, mesmo que de forma tímida ou isolada, à compreensão dos mais diversos mecanismos de opressão das mulheres. Dada à diversidade e a multiplicidade de pesquisas que vem sendo realizadas em relação aos temas abarcados nesta obra, é possível observar que as articulações dos pensamentos da autora são perpassadas pela transversalidade de saberes. Assim, por meio de uma perspectiva reconhecidamente feminista e a partir do instrumental teórico do campo disciplinar no qual está inscrita é que partem suas pontuações. Com títulos de abertura dos capítulos considerados pouco comuns, tais como “a realidade nua e crua” e “descoberta da área das perfumarias”, a socióloga versa sobre temas específicos de forma a conceituar, em termos jurídicos e sociológicos, sobre os diversos tipos de violências (doméstica, de gênero, contra as mulheres, intra-familiar, urbana) existentes no caso brasileiro sob uma espécie de permissividade social.

Com essa profusão de novos conceitos, a releitura e a reinterpretação de teorias já existentes, acrescentando-se a instabilidade característica do fazer feminista, talvez não seja possível encontrarmos termos consensuais no contexto dos embates das correntes feministas.

A autora faz uma breve análise do cenário político-econômico brasileiro e constata que estes terrenos são, “certamente, a maior e mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado”(p.14). Para ela, é sob a ordem patriarcal de gênero que devem ser feitas as análises sobre a violência contra as mulheres.

Recorrendo a referências obrigatórias no campo dos Estudos Feministas e de Gênero, tais como Carole Pateman, Gayle Rubin, Joan Scott, entre outras, Saffioti empreende uma escrita que varia entre pontuações extremamente coloquiais e outras passagens com reflexões importantes e densas para uma obra que pretende ser didática. Para o/a leitor/a desavisado/a, essas passagens requerem especial atenção, já que as análises da autora requerem uma leitura prévia dos conceitos discutidos. Exemplo disso é a utilização do conceito de poder formulado por Foucault que a socióloga utiliza sem maiores esclarecimentos acerca da perspectiva pósmoderna.

Influenciado pelas correntes do pensamento pós-moderno no qual estava inserido (construindo e desconstruindo suas perspectivas), ao refletir sobre outras maneiras de pensar, Foucault defende um amplo questionamento de conceitos caros a seu campo como a finalidade, a natureza, a verdade, os procedimentos tradicionais de produção do conhecimento histórico, as representações do passado com que operamos e os usos que fazemos de sua construção.

Outra questão que merece zelo na leitura são as discussões teóricas que Saffioti estabelece sobre diferentes perspectivas sobre os conceitos de gênero existentes. Vale destacar que, de natureza cultural e ideológica, os Estudos de Gênero introduziram a questão de gênero como categoria analítica e demonstraram como é ilusória a neutralidade dos valores ditos “universais”. Em sua prática interdisciplinar, articula – a partir de uma perspectiva “gendrada” – questões de raça, classe, etnia, bem como contribuições de vários eixos epistemológicos como a psicanálise, marxismo, antropologia, etc, buscando compreender a representação (histórico-cultural, literária) das mulheres, bem como sua contribuição neste processo.

Um ponto bastante interessante a ser ressaltado nesta obra, como se pode depreender da sua leitura, é que esta consiste no fruto de reflexões embasadas em dados empíricos e sobre pontos de referências a respeito das sobreposições parciais, as especificidades e diferenças entre as várias modalidades de violências existentes, fenômenos estes, demonstrados pela autora, que não são tão raros quanto o senso comum indica.

Consiste alvo de crítica da autora, em diversas passagens da obra, o uso político de uma diferença fundada nos argumentos do determinismo biológico e em normatizações feitas a partir de uma marca genital. Para ela, as pessoas são socializadas para manter o pensamento andrógino, machista, classista e sexista estabelecido pelo patriarcado como poder político organizado e legitimado pelo aparato estatal por meio da naturalização das diferenças sexuais.

Em relação à violência, tema que perpassa a maioria das reflexões da autora há que se considerar as sobreposições feitas por Saffioti sobre os conceitos e as especificidades de cada “fenômeno”, sua expressão para designar a violência. Ao mostrar os fatos em suas peculiaridades, a autora trabalha quadros teóricos de referência com vistas a orientar seu leitor. Assim, ela diferencia e explicita as características e os contextos em que ocorrem principalmente os seguintes tipos de violência: contra a mulher, de gênero, doméstica, intrafamiliar, entre outras. Nesse sentido, faz parte também das análises de Saffioti a ocorrência do “femicídio”, que, segundo ela, consiste na feminização da palavra homicídio e é um fenômeno infelizmente bastante recorrente, principalmente nos tempos atuais (p. 72-73).

No que tange ao significado da violência e todas as conseqüências que surgem da ocorrência deste fenômeno, a autora lembra que na sociedade patriarcal em que vivemos, existe uma forte banalização da violência de forma que há uma tolerância e até um certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. Dessa forma, é “normal e natural que os homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência.” (p.74) Para Saffioti, a ruptura dos diferentes tipos de integridade, quais sejam, a física, a sexual, a emocional, a moral, faz com que se estabeleça a “ordem social das bicadas”, na qual o consentimento social para a conversão da agressividade masculina em agressão contra as mulheres, não é um fator que prejudica apenas as vítimas, mas também seus agressores e toda a teia social que convive ou é forçada, por inúmeros motivos, a suportar tal sujeição. como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade e, dessa forma, cada mulher interpreta de forma singular esse mecanismo de sujeição aos homens. Segundo Saffioti, somente uma política de combate à violência (especialmente a doméstica) que se articule e opere em rede, de forma a englobar diferentes áreas (Ministério Público, juizes, polícia, hospitais, defensoria pública) pode ser capaz de ter eficácia no combate à violência.

As experiências da autora e a liberdade com que trata dos temas de forma a informar e/ou atualizar o leitor merecem atenção. Ao desvelar parte do processo de diferenciação sexuada, nas múltiplas configurações espaços-temporais, a autora expõe o caráter produtor e reiterador de imagens naturalizadas de mulheres e homens. Dessa forma, a obra pode ser considerada referência de leitura para as pessoas que se interessam pelas temáticas ligadas às questões de gênero, violência, patriarcado, e afins.

Uma vez que a literatura científica feminista tem sido constantemente obscurecida ou ignorada, este livro ressalta a importância no questionamento dos paradigmas científicos e da naturalização das formas de relações sociais que instituem o feminino e o masculino em uma escala de valores hierarquizada com vistas à desnaturalizar construções cristalizadas no imaginário e nas representações sociais sobre as desigualdades existentes nas relações entre homens e mulheres.

Trata-se de uma obra instigante, cuja leitura deve ser cuidadosa, que funda suas interpretações a partir do enfoque que entende o gênero como uma representação que produz e reproduz diferenças por meio da classificação dos indivíduos pelo sexo, os quais exigem abordagens e epistemologias específicas para suas análises.

Longe de ser um “manual didático” Gênero, Patriarcado, Violência apresenta conceitos já trabalhados pela autora em outros estudos, mas pode ser considerada uma referência bibliográfica atualizada para os/as interessados/as em estudos de Gênero e violências, já que apresenta importantes distinções das considerações anteriormente feitas aos deslocar o olhar do leitor para além do senso comum e das generalizações

Fabrícia F. PimentaGraduada em Direito, Mestre em Ciência Política pela UnB e doutoranda na UnB em História na linha de pesquisa “Estudos Feministas e de Gênero”. Apoio financeiro para a pesquisa: CNPq. E-mail: [email protected] / [email protected].


SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, 151p. Resenha de: PIMENTA, Fabrícia F. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.10, p.190-193, 2006. Acessar publicação original. [IF].

Relações Internacionais do Brasil: de Vargas a Lula | Paulo Fagundes Vizentini

O estudo da política externa brasileira tem se valido dos avanços positivos experimentados por esse campo do conhecimento como um reflexo direto de programas de pesquisa cada vez mais consolidados e do incentivo à produção acadêmica provenientes das esferas pública e privada. Esses avanços, contudo, não representam um esgotamento dos temas a serem apreciados e das questões a serem resolvidas. Pelo contrário, o próprio caráter dinâmico da história faz com que o aperfeiçoamento do conhecimento seja a tarefa a ser buscada, o que de fato é exigido do estudo da história da política exterior do Brasil e dentro do qual o livro Relações Internacionais do Brasil: de Vargas a Lula é produto direto dessa preocupação eminentemente acadêmica.

A obra de Paulo Fagundes Vizentini responde às necessidades quase obsediantes daqueles diplomatas, professores, estudantes ávidos pelo conhecimento dos fatos mais relevantes da nossa história política contemporânea. Nesse sentido, destaque para a quarta parte do livro, na qual o autor enfoca o período de 1990 a 2002, apreciando e relacionando os impactos da globalização neoliberal com o culto irrestrito ao americanismo na passagem dos dois “Fernandos” pela presidência do Brasil, o que teria profundas repercussões sobre os rumos da política exterior do país. Além disso, procura demonstrar a fragilidade do Mercosul enquanto estratégia de inserção internacional, ao mesmo tempo em que aponta para o abandono do projeto nacional, que havia se amparado sobre o nacional-desenvolvimentismo no período anterior. Leia Mais