Feios – WESTERFELD (RF)

WESTERFELD, Scott. Feios. Tradução de Rodrigo Chia. Rio de Janeiro: Galera Record, 2010. Resenha de COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. Fabricar a beleza corporal. Revista FACED, Salvador, n.19, p.125-130, jan./jun. 2011.

Não é uma coisa boa encher a sociedade de pessoas bonitas?

Yang Yuan

Numa época em que os corpos são pavoneados e festejados em todos os lugares e cada um é estimulado, de diferentes maneiras, a promover mudanças físicas e mentais, em performances cada vez mais extraordinárias, praticamente todos desejam beleza e perfeição. De preferência em acordo com as celebridades midiáticas do momento, que não cessam de promover e administrar minimamente os modos como tecnicamente constroem e cultuam a si mesmas.

As técnicas, terapias e recursos para as metamorfoses corporais se multiplicam e se popularizam. Nas revistas, TV, sites, filmes e publicidades em geral é repetido insistentemente que um mundo de beleza e perfeição está ao alcance de todos. Sob essa lógica, só é feio quem quer, não se cuida, não ama nem acaricia a si mesmo com os cosméticos e medicamentos que prometem milagres na aparência dos sujeitos, no desempenho muscular e cognitivo.

Nesse contexto, as fronteiras entre o cotidiano de milhares de pessoas, cada vez mais seduzidas pelas possibilidades do melhoramento corporal, e a ficção literária e cinematográfica, que promove os corpos turbinados, são cada vez mais tênues. Um livre e veloz trânsito entre esses universos complementares faz parte da aventura prazerosa contida no ato de pavonear-se.

Em Feios, o livro de Scott Westerfeld, a perfeição corporal não depende da vontade ou iniciativa pessoal, é lei, onde a beleza é mais que uma opção ou sorte de privilegiados. É algo obrigatório.

Trata-se do primeiro livro da trilogia do autor texano, que mescla aventura e ficção, e se tornou best-seller do New York Times e em vários países onde foi traduzido. Aqui no Brasil o livro foi lançado pela Editora Record, no recém-nascido selo Galera, que é voltado para jovens e nasceu do infanto-juvenil Galera Record.

Num futuro não distante a utópica sociedade de Westerfeld apresenta pessoas que são divididas e classificadas como feias ou perfeitas. Todos nascem feios. Até mesmo os que podem ser considerados bonitinhos são feios. Nascer feios não significa que são marcados por alguma aberração ou defeito físico e mental. Significa que são pessoas normais. Mas num mundo onde as tecnologias constroem incessantemente a perfeição, ser normal significa mesmo ser feio. Assim, os normais, isto é, os feios, nascem em Vila Feia e ficam presos em alojamentos até completarem 16 anos.

Quando os adolescentes feios completam 16 anos ganham de presente do governo a operação plástica completa, que os transformam em belos e perfeitos. Presente é modo de dizer, pois com essa idade todos são submetidos aos processos de transformação cirúrgica. A operação plástica completa inclui diversos procedimentos cirúrgicos e medicamentos de última geração para corrigir as feições consideradas indesejadas. A pele é trocada por outra e adeus espinhas e manchas. Os músculos são modelados e a gordura sugada para sempre. Os ossos são substituídos por uma liga artificial, mais leve e resistente. Os olhos, cortados a laser para se obter uma visão perfeita, recebem implantes reflexivos sob a íris, tornam-se grandes; os lábios cheios e volumosos. Os ossos são amassados, esticados ou recheados até atingir o formato certo.

Os dentes são trocados por cerâmica resistente como a asa de um avião e tão brancos como porcelana. Desse modo, as pessoas feias são transformadas em perfeitas, tornam-se borbulhantes e passam a viver felizes em Nova Perfeição.

Nova Perfeição, a morada dos belos tecnicamente construídos, fica defronte a Vila Freia, do outro lado do rio. É o lugar onde os perfeitos vivem, bebem, pulam de paraquedas, voam a bordo de pranchas magnéticas e se divertem o tempo todo, em intermináveis festas, orgias e bebedeiras. Moram em casas lindas e ultraconfortáveis e se dedicam ao divertimento em tempo integral. Usam roupas maravilhosas, sempre da última moda, são populares, queridos e bajulados, afinal são belos e têm tudo o que desejam. Namoram as pessoas mais lindas e incríveis. Além de belos são ricos. Não precisam se preocupar com trabalho e problemas pequenos e limitados como subsistência, educação e segurança, coisas típicas dos imperfeitos, dos feios. A cidade oferece bastante liberdade, deixa que os jovens aprontem, desenvolvam sua criatividade e independência.

Nova Perfeição é a Cocanha dos nossos tempos ultramodernos.

A Cocanha é uma utopia medieval. Numa época em que a fome ameaçava sempre as pessoas e o trabalho duro enfraquecia multidões, o País de Cocanha é o lugar do sonho, da perfeição, da abundância, da prosperidade e do prazer, da liberdade e do gozo eternos. A Cocacha é a terra abençoada onde corre leite e mel, rios de vinho estão por toda parte, as frutas caem maduras dos pés, os peixes saem fritos dos rios e mares. Queijos e pães são obtidos sem nenhuma dificuldade ou esforço. A Cocanha é um país tão rico que bolsas cheias de moedas ficam jogadas pelo chão. As pessoas não são vis, são virtuosas e corteses. É o lugar das festas e das orgias.

São quatro páscoas por ano, quatro festas de São João, quatro natais, quatro carnavais. Já a quaresma, só tem uma a cada quatro anos. Ninguém compra ou vende, não existe trabalho, cansaço, aborrecimentos, dores de qualquer espécie. As pessoas são sempre belas, jovens e saudáveis. Vivem para satisfazer o seu prazer, como por lazer. De certo modo, a Cocanha, esse paraíso de delícias e perfeição, remete ao mito judaico do Éden e também ao mito do Eldorado, tão difundido na época da conquista das Américas.

Na cibercultura, na era da sociedade em rede, das pessoas conectadas em tempo real, o mito da Cocanha medieval é atualizado em Nova Perfeição, o lugar dos corpos minimamente construídos e potencializados em acordo com os mais rigorosos critérios de beleza, da memória modificada para apagar vestígios de tristezas e dores da dura vida de pessoas insignificantes, isto é, de feios.

Nova Perfeição existe por causa da medicina avançada, de medicamentos de última geração capazes de alterar corpos, memórias e inteligências, para que todos desfrutem de uma vida borbulhante e incessantemente feliz.

Tally Youngblood é a heroína dessa saga dos corpos perfeitos, que encarna as aventuras, que permitem uma pessoa cruzar as fronteiras entre os feios e bonitos, promover as melhorias técnicas na aparência e na interioridade de si. Em Feios, Tally ainda é uma garota que espera ansiosamente completar os 16 anos para ser finalmente transformada em perfeita. Enquanto sofre a longa espera, tudo que deseja é abandonar a vida sem graça e seu corpo estranho de feia. Costuma passar os dias pensando em todos os visuais possíveis para assumir quando finalmente se tornar perfeita. Nessa enfadonha espera, enfrenta muitas madrugadas no seu alojamento a contemplar o outro lado do rio, a Vila Perfeição, onde alguns amigos que já cruzaram a fronteira desfrutam de uma vida incrível, cheia de aventuras e prazeres. E o mais importante, é que deixaram para trás seus corpos feios e podem viver felizes com suas novas formas físicas e mentais sempre belas e sedutoras.
De acordo com Tally, “duas semanas de queimaduras horríveis serão compensadas com uma vida inteira de aparência maravilhosa” (p. 100).

Enquanto espera o tempo estipulado por lei para tornar-se perfeita, Tally conhece Shay, uma feia que não está nem um pouco ansiosa para completar 16 anos e viver a sua metamorfose cirúrgica.

O que Shay deseja é fugir de Vila Feia e do destino de ser bela em Vila Perfeição. Ela considera a beleza construída horrível. Trata- -se de uma adolescente rebelde que não aceita o destino traçado pelas autoridades e quer viver do seu modo a sua própria aventura, sendo feia para sempre, pois é capaz de qualquer coisa para “fugir à tirania da beleza” (p. 133). Tem um plano para fugir dos limites da cidade e se juntar à Fumaça, um grupo fora da lei que sobrevive nas ruínas de uma vila perdida na floresta e sobrevive retirando o sustento da natureza.

O conflito entre natureza e técnica se coloca aqui de modo curioso. Tally não consegue entender como alguém pode desejar ser feia para sempre, querer voltar para a natureza, plantar, caçar, queimar árvores para se aquecer, matar animais para se alimentar, beber água dos córregos sem passá-la pelo purificador, enfrentar doenças, viver pouco. Como alguém pode desejar abrir mão do conforto tecnológico e da vida fácil nas cidades e preferir o campo sempre hostil? Com a fuga da amiga Tally, é chantageada pelos Especiais, uma espécie de polícia altamente equipada que tudo vê e controla: deve se unir a eles para derrotar de vez os enfumaçados ou vai ser condenada a ficar feia para sempre. A garota vive muitos dilemas. Sente-se curiosa pelo estilo de vida na Fumaça, quer conhecer pessoas que amadurecem naturalmente depois dos 16 anos, gente de fisionomia decadente, que preserva uma verdade enrugada, venosa, esmaecida, grosseira, terrível, mas ao mesmo tempo almeja sua beleza perfeita. Das escolhas que faz dependem as muitas aventuras entre os feios e os bonitos, entre o universo da natureza e o das técnicas avançadas.

A viagem para a distante fumaça é uma verdadeira odisseia cheia de enigmas que precisam ser desvendados. O deslocamento é feito sobre prancha voadora que segue veloz sobre o rio e a floresta, com o uso de jaquetas inteligentes que regulam a temperatura do corpo e ajuda na tomada de decisões, pois indica caminhos; com a facilidade dos alimentos sintéticos e pingentes rastreadores.

Para Tally, apesar do fascínio, não é fácil se adaptar e viver entre os enfumaçados. “Ela nunca tinha visto tantos rostos tão diferentes. Bocas, olhos e narizes de todos os formatos possíveis, combinados de um jeito absurdo, em pessoas de todas as idades.

E os corpos? Alguns eram monstruosamente gordos ou estranhamente musculosos ou perturbadoramente magros. E quase todos apresentavam proporções desequilibradas e feias. No entanto, em vez de demonstrarem vergonha por causa de suas deformidades, as pessoas davam risadas, trocavam beijos…” (p. 193-194).
Aos poucos, a protagonista percebe diferenças abismais entre a Vila Perfeição sonhada e o cotidiano da Fumaça. Na cidade as coisas são sempre descartáveis e substituíveis. Ali no mato, os objetos e as pessoas ficam velhos e carregam suas histórias em amassados, arranhões, rasgos e rugas. Na cidade vive uma massa de corpos modificados, perfeitamente sorridentes e iguais, voláteis, programados e fáceis de controlar, pois têm os cérebros e o sistema nervoso recondicionados pelas cirurgias e medicamentos. Na floresta tem-se a diversidade corporal, as controvérsias, discordâncias, os diferentes modos de ser e viver. Na cidade as pessoas perfeitas são rastreadas, monitoradas e orientadas cada minuto do dia, seus pensamentos são programados, seus sentimentos são manipulados.

Na floresta enfrentam livremente as vicissitudes da vida, podem tomar suas próprias decisões, sofrer e corrigir as escolhas erradas, encher-se de júbilo com as decisões acertadas.

Tally também percebe aos poucos que existe um certo romantismo em relação à natureza, à vida na floresta. Talvez essa discussão de fundo sustente muito do fascínio de milhares de pessoas pelo livro de Westerfeld. A sociedade tecnológica não constrói apenas as cidades, mas igualmente a natureza. De certo modo a natureza é uma mentira. Não há natureza, o que contemplamos sempre é o artifício. A natureza é uma fabricação da cultura, da cultura tecnológica, que naturaliza em nós seus muitos e sedutores artifícios. É natural do homem produzir artifícios, refazer o mundo, modificar e recriar a si mesmo. Por mais que amasem a natureza os enfumaçados nasceram em cidades, eram todos produto da civilização tecnológica. Talvez por isso, uma vez rastreada, Tally leva a polícia especial para destruir a Fumaça. E volta para a cidade, sem dramas, para, finalmente, submeter-se à cirurgia e ser perfeita, para sempre.

O livro Feios, de Westerfeld, é um importante e divertido relato literário de corpos inscritos em acontecimentos tecnológicos.

Rompe com o olhar naturalista sobre o qual muitas vezes o corpo é observado, explicado, educado e enfatiza sua condição cultural, suscetível a inúmeras intervenções de acordo com o desenvolvimento tecnológico e científico de cada época.

No livro, o aperfeiçoamento da natureza e dos corpos é sempre criticado baseado numa convicção estranha de que as tecnologias padronizam os corpos e os pensamentos. Ressoa aqui uma certa visão negativada das transformações tecnológicas sobre o mundo e sobre nós mesmos. Talvez essa convicção estranha do autor sirva apenas para alimentar as tramas da série e nos volumes seguintes seja possível observar que determinadas tecnologias médicas e de comunicação, que na atualidade promovem uma suposta padronização, num futuro próximo sejas empregadas para produzir intensas diferenças, renovados modos de ser e viver. Talvez, nesse contexto, natureza e técnica, corpos feios e bonitos, deixem de ser realidades opostas e conflituosas. Talvez o futuro da biotecnologia seja menos sombrio e promova o equilíbrio entre essas realidades, integradas e dinâmicas, em que os sujeitos alegremente reelaborem a si mesmos em encantadas e criativas aventuras existenciais.

Edvaldo Souza Couto – Professor Associado na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – UFBA. E-mail: [email protected]

Silvana Vilodre Goellner – Professora Associada na Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

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O Imperial Collegio De Pedro II e o ensino secundário da boa sociedade brasileira – CUNHA JUNIOR (RBHE)

CUNHA JUNIOR, Carlos Fernando Defferira da. O Imperial Collegio De Pedro II e o ensino secundário da boa sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. Resenha de: GOELLNER, Silvana Vilodre; CARVALHO, Marco Antônio Ávila de. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.

Elaborado tendo como ponto de partida a tese de doutoramento em educação produzida pelo autor, o presente livro percorre os corredores e arredores de uma tradicional instituição escolar no período compreendido entre 1837 e os anos finais do Império. Suas páginas permitem identificar rastros de um modo de educar os jovens da elite imperial brasileira cujo objetivo primeiro estava direcionado para a formação da boa sociedade brasileira. Trata-se, portanto, de uma obra ímpar cujas fontes arroladas fornecem dados fecundos para melhor conhecermos a atmosfera político-intelectual de um período no qual se buscava a formação dos corpos e sub­jetividades de homens representados como potenciais dirigentes do mundo imperial.

O livro é dividido em cinco capítulos. No primeiro deles, no qual o foco é a constituição do quadro de profissionais que atuavam no Colégio Pedro II(CPII), Carlos Fernando desenvol­ve uma interessante narrativa ao destacar os atributos, valores, funções e responsabilidades necessárias para tornar-se, tanto um professor, como um inspetor de alunos. Boa formação acadêmi­ca, erudição e notoriedade revelam-se como alguns dos critérios basilares para a contratação de docentes; já para os inspetores, exige-se o nível de instrução/formação com domínio de língua estrangeira bem como uma moral ilibada. Aos docentes cabia a tarefa não só de ensinar aos alunos as Letras e as Ciências como, também, lembrá-los de seus deveres perante Deus, Pais, Pátria e Governo. Aos inspetores, responsáveis pela ordem, disciplina e preservação da moral, era indicada a missão de vigiar, controlar e cuidar da boa conduta dos colegiais, assim como zelar pelo seu bom proveito nos estudos.

Ao dialogar fontes de diferente natureza (regulamentos, atas, ofícios, entre outras), Carlos Fernando faz ver que esse “perfil ideal” nem sempre era aquele que compunha o quadro profissional da instituição pois, não raras vezes, se depara com reprimendas e exonerações decorrentes de atitudes consideradas não apropriadas. Com relação aos docentes, identificou registros que apontavam para a falta de assiduidade, ofensas à moral e corrupção; no que respeita aos inspetores, além dessas falhas percebeu, ainda, denúncias con­tra mau tratamento aos alunos, bigamia e sodomia. Atos estes que feriam, sobremaneira, os princípios cristãos, a moral elevada e a construção da masculinidade desejada no e pelo Colégio.

Projetado para formar um determinado modelo de homem: “fiel, honrado, culto, disciplinado, católico e eloquente” (p. 37), o CPIInão aceitava mulheres como alunas nem mesmo integran­do o seu quadro profissional. O processo de masculinização lá desenvolvido deveria seguir regras viris evitando, sobretudo, a contaminação pela feminilidade. Nesse sentido, como afirma o autor, ao dificultar o ingresso das jovens ao universo letrado, “os dirigentes imperiais preservavam o monopólio do poder público dos negócios, da política e do poder em suas próprias mãos, ou seja, sob o controle masculino” (p. 47).

O segundo capítulo é dedicado a identificar o perfil dos alunos que ingressavam no Colégio considerando dois fatores: a origem socioeconômica e a naturalidade dos estudantes. Da análise docu­mental empreendida, o autor indica a existência de vários critérios tanto para o ingresso quanto para a permanência na instituição, o que não significa desconhecer que existiam, também, alguns apa­drinhamentos e predileções. Para entender essa afirmação deve-se levar em conta que, em função dos custos, apenas uma minoria da população poderia ter seus filhos matriculados no Colégio da Corte, reduzindo, sobremaneira, a formação da elite.

Ao desenvolver seus argumentos, Carlos Fernando destaca a existência de duas classes de alunos: Internato e Externato, explicitando ser a segunda delas a mais “acessível” às classes menos favorecidas. Nos primeiros anos após 1857, percebeu um significativo aumento no número de matrículas de alunos exter­nos e internos e um indício de que, pelo menos no Externato, esse acréscimo deu-se em função de um corte nas aulas avulsas de instrução pública secundária que eram ministradas na cidade do Rio de Janeiro. A diminuição da oferta de vagas dificultou a aquisição de conhecimentos mínimos por parte dos jovens menos favorecidos, razão pela qual, muitos dos alunos que ingressavam no Externato, frequentavam apenas os primeiros anos, o que era suficiente para realizarem os exames preparatórios. Em decorrência dessa situação, ainda que houvesse a presença de alunos vindos das escolas públicas, o ensino ministrado no CPII, acabou por facilitar o acesso ao ensino superior apenas para filhos da boa sociedade imperial.

Com relação à naturalidade e à carreira seguida pelos cole­giais após concluírem seus estudos, o autor aponta que a grande maioria dos alunos era natural do próprio Rio de Janeiro, fazendo ver que o CPII destinava-se, prioritariamente, à formação dos fi­lhos dos Saquaremas, grupo que circulava na Corte e região. Para analisar as atividades profissionais daqueles que ingressaram nas Academias Superiores, utilizando-se de um método semelhante ao de José Murilo de Carvalho (1980), Carlos Fernando destaca três grandes grupos: Governo: profissionais ligados ao Estado imperial e ocupantes de cargos políticos; Profissões liberais: médicos, advogados, poetas, jornalistas e engenheiros que não tinham relação profissional com o Estado imperial; e Economia: proprietários rurais, negociantes, comerciais e banqueiros. Revela, ainda, uma alternância na predileção da carreira a ser seguida, inicialmente voltada para o Governo e, partir de 1870, para as Profissões liberais. Essa alteração, segundo o autor, proporciona a formação de uma outra elite, menos comprometida com os in­teresses dos Saquaremas e, de certa forma, menos interessada nas ocupações do governo imperial. Esse período coincide, também, com as influências positivistas sofridas pelo Colégio, onde houve a abertura de espaços para uma maior divulgação e aplicação de conhecimentos de cunho científico.

O capítulo 3, inicia com uma descrição do entorno do CPII: a cidade do Rio de Janeiro, o crescimento populacional, o comér­cio, a urbanização, o sistema sanitário etc. A partir de relatos de professores e alunos, o autor expõe, também, as características estruturais do Colégio, a divisão de sua sede, o interno de seus prédios cuja precariedade acabou sendo evidenciado pela imprensa local. Precariedade essa que parece explicar os poucos registros iconográficos da instituição, uma vez que revelar suas deficiências poderia macular a imagem que se queria construir do Colégio como um símbolo da educação pública no Império.

Apesar dessa contextualização, o foco de análise recai em dois espaços que poderíamos denominar de lugares da memória: a cafua e o Salão Nobre. Carlos Fernando chama a atenção para esses espaços por perceber que é neles que se desenvolvem os minucio­sos e sutis processos de educação do corpo e do caráter revelado na aplicação das punições e recompensas. A cafua era destinada àqueles que não cumprissem as normas vigentes na instituição; já o Salão Nobre era ocupado pelos melhores alunos, o local no qual recebiam prêmios, destaques, honrarias e visibilidade. Ambiência simbólica construída a partir de dicotomias entre “o escuro e o luminoso; o fechado e o aberto; o escondido e o visível; o sujo e o limpo; o privado e o público; o vergonhoso e o célebre” (p. 85). Enfim, espaços pedagógicos nos quais aplicavam estratégias disciplinares que educavam para a formação de homens da boa sociedade brasileira.

No quarto capítulo, o autor analisa a instrução ministrada no CPII, instituição construída como modelar do governo imperial. Perscruta os planos de ensino, o projeto pedagógico, os decretos, as disciplinas ministradas e os conhecimentos valorizados, dentre os quais destacam-se, até o final da década de 1860, as letras clássicas e o ensino religioso. Essa orientação pedagógica, gradativamente, começa a perder força, cedendo espaço para a afirmação de uma cultura mais racional e científica, peculiar ao movimento positivista e à instauração da República. Oconhecimento, antes centrado nas letras, voltou-se também para o científico, o que não significa afirmar que a instituição tenha adotado uma função propedêutica destinada a preparar candidatos para os cursos superiores. Pela sua história e configuração, o Colégio da Corte era identificado como um local a formar e recrutar a elite nacional, “local em que os virtuais dirigentes imperiais deveriam aprender mais do que o conhecimento exigido nos preparatórios, mas um amplo conjunto de saberes, vivências e atividades” (p. 103).

Aprendizado esse que passaria pela educação do corpo, con­forme podemos observar no quinto e último capítulo. Nele ganha destaque a gymnastica, introduzida no Colégio em 1841, sob a orientação Guilherme Luiz de Taube, ex-Capitão do Exército Im­perial. Nos documentos analisados é recorrente a ideia de que a adoção da ginástica inspirava-se nos colégios europeus, nos quais tal prática era recorrente e recomendada como um importante elemento de educação da juventude.

Conhecida como científica, a ginástica ali aplicada estava pautada pelo modelo médico-higienista, oriundo da tradição eu­ropeia, a qual consolidou-se como um meio de controle social, de formação moral e disciplinar, de regeneração e aperfeiçoamento da raça, de construção de um sentimento de identidade nacional, de desenvolvimento e aprimoramento do físico e da saúde. Prática regular no CPII, este capítulo focaliza a gradativa consolidação deste elemento da cultura corporal no qual são evidenciados os seus principais mestres, os dias e horários das aulas, a construção do ginásio e do pórtico de ginástica, o regulamento que a oficiali­za, os planos de ensino e seus conteúdos, enfim, o seu acontecer dentro da instituição.

Inspirada inicialmente pela conduta militar, a ginástica passa a ser justificada e incentivada na sociedade brasileira em função de argumentos de ordem médica e higiênica, visto que a ciência positiva estava a alastrar-se e, com ela, a ideia de que a construção de um corpo forte e sadio seria obtida mediante a prática sistemática de exercícios ginásticos. Vale ressaltar, conforme aponta Carlos Fernando, que a ginástica desenvolvida no interior do CPIInão esteve orientada apenas por uma escola ou método. Da análise das fontes emergiram diálogos entre autores de diferentes tradições indicando certo ecletismo no seu fazer dentro do Colégio da Corte, ora ressaltando a prática da esgrima, ora de exercícios oriundos da escola francesa ou, ainda, outras filiações compondo, assim, um modo de educar o corpo masculino e, por consequência, de formar a elite imperial brasileira.

Feita essa síntese, gostaríamos de registrar que, muitas são as razões pelas quais a leitura desse livro é tarefa necessária e, diríamos também, prazerosa para quem se interessa pela história da educação no Brasil. Afora o fato de tratar-se de uma importante e tradicional instituição tomada como referência para tantas outras, o desenho metodológico e a densidade teórica aqui presentes mostram-se exemplares para investigações dessa natureza. A produção das fontes e os diálogos estabelecidos entre elas, a urdidura da trama e a construção narrativa proposta por Carlos Fernando são revela­dores de um investimento pessoal e, também, coletivo na medida em que indica novas abordagens sobre temas e fontes já outrora visitados. É exatamente esse tom que nos permite, ao folhearmos suas páginas, sentir os cheiros e as texturas, ouvir as vozes e os sussurros dos corredores e arredores do Imperial Collegio Pedro II. Ao tocar nossa sensibilidade, identificamos vestígios de um projeto político-pedagógico de educação da elite cujo desenrolar promoveu encantamentos e desencantos, liberdades e interdições. E, nesse sentido, não há como ler esse livro sem lembrar de O Ateneu, obra magistral de Raul Pompéia publicada em 1888, cuja narrativa focaliza uma instituição escolar destinada a formar meninos da e para a boa sociedade brasileira. Resguardadas as especificidades de cada um dos livros, vale lembrar a retórica de Aristeu Argolo dos Santos, seu diretor, quando relata o árduo trabalho de educação da mocidade:

Um trabalho insano. Moderar, animar, corrigir esta massa de carac­teres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar e enca­minhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar excessivos ardores; retemperar o ânimo dos que se dão por vencidos precocemente; prevenir a corrupção; desiludir aparências sedutoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres ensinamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espiar os sítios obscuros; fiscalizar as amizades; descon­fiar das hipocrisias. Ser amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com segurança para depois duvidar; punir para pedir perdão depois… (…) não é o estudo dos rapazes a minha preocupação… É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade! [Pompéia, 1967, p. 30]

Sem pretender analisar o componente da imaginação e da ficção presentes na obra literária e na investigação historiográ­fica, importa identificarmos o Ateneu e o Colégio Pedro II como instituições escolares destinadas à formação da elite Oitocentista. Ou melhor, a elite masculina, a qual se inferia a expectativa de representar, nos corpos e subjetividades de seus integrantes, um modo viril e qualificado de ser, atributos considerados necessários a futuros dirigentes. Por fim, os vestígios revisitados por Carlos Fernando permitem que, em pleno início do século XXI, possamos compreender o conselho de Aristarco aos ingressantes no Ateneu “faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se” (idem, p. 37). Palavras essas também pronunciadas e ouvidas nos corre­dores e arredores do Imperial Collegio Pedro II.

Referências

Carvalho, J. M. de. A construção da ordem – a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

Pompéia, R. O Ateneu. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1967.

Silvana Vilodre Goellner –  E-mail: [email protected].

Marco Antônio Ávila de Carvalho

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História comparada do esporte | Victor Andrade de Melo

O livro História comparada do Esporte reúne um conjunto seleto de onze textos escritos por alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/IFCS/UFRJ). Sob orientação e organização do Prof. Dr. Victor Andrade de Melo, que também escreve um dos textos, os autores fazem uso da História comparada para direcionar suas investigações e estabelecer considerações sobre o esporte em suas diferentes manifestações.

Pautados no sub-campo da história do esporte, os textos, além da diversificação no uso do método de História comparada, analisam temáticas e períodos históricos diferenciados. Divididos e organizados a partir de cinco áreas, os artigos publicados demonstram coerência entre si e proporcionam ao leitor uma compreensão facilitada acerca dos temas que abordam. A divisão proposta pelo organizador compreende, desde a caracterização das possibilidades e dos limites teórico-metodológicos da Historia comparada do esporte até o agrupamento dos textos a partir de temas como Futebol, História Antiga/História Contemporânea, Esporte, e Outras práticas corporais. Leia Mais