História do esporte / História – Questões & Debates / 2020

I

Embora ocorra uma confusão conceitual relacionada à gênese do esporte – seja no âmbito acadêmico ou leigo – em essência, confundindo práticas ritualísticas de civilizações antigas com as atividades corporais sistematizadas que surgiram, sobretudo, ao longo do século XIX, não há como negar que a ideia de competitividade tem uma origem remota. Provavelmente até mais distante do que os antigos jogos realizados nas diversas pólis gregas (o mais conhecido era, obviamente, aquele realizado em Olimpia) e os combates entre gladiadores (atividade de entretenimento popular pelos recônditos do mundo romano), a competição pode, de forma grosseira, remeter à luta por alimento, inclusive contra outras espécies. Talvez o ímpeto à competição esteja ali, impresso em nosso código genético, relacionado à adrenalina, aquele hormônio produzido pelas glândulas suprarrenais tão propalado por nos preparar para a movimentação intensa e súbita. Ainda no plano especulativo, é uma possibilidade que a descarga hormonal que nos levava a correr de um predador ou atrás de uma presa ou ainda a lutar pela sobrevivência ou por alimento, hoje, desnecessária, leve-nos a uma busca – tremendamente difícil de explicar – por uma espécie de catálise. Buscamos, despropositadamente, a prática física competitiva, mesmo que seja apenas para apreciá-la.

O que conhecemos, no seu formato acabado de hoje, como esporte – mesmo sendo registradas algumas iniciativas pontuais e prematuras no final do século XVIII – surgiu, considerando o seu volume, na segunda metade do século XIX, na Europa recém industrializada. Não se tem como negar que o processo de industrialização levou ao surgimento de grandes metrópoles que, por sua vez, foram ponto fulcral para que aquelas práticas físicas se desenvolvessem. Porém, atualmente, existem outros aspectos que são considerados pelos estudiosos dos esportes e práticas corporais, como fundamentais para que estes se transformassem em uma exibição de vigor físico, destreza e estética corporal de considerável impacto na sociedade contemporânea. O primeiro e mais evidente – e que, por incrível que possa parecer, passou desapercebido do meio acadêmico por um bom tempo – foi o avanço da tecnologia agrícola, o que permitiu que, ao menos a uma parcela considerável do mundo dito civilizado, houvesse um aumento do consumo alimentar. Não é de se estranhar, então, que durante a Idade Média, na Europa, fosse observada uma carência de atividades físicas (ao menos, as lúdicas sem propósito) tendo em conta que o consumo calórico médio era algo em torno de 1.500 calorias. Sabe-se hoje que consumo energético semelhante, perdurado por um tempo relativamente longo, leva à subnutrição. Logo, um indivíduo que mal tinha força para a labuta diária, não apresentaria, consequentemente, vontade de se exercitar além do necessário. O segundo aspecto foi o significado social que o tempo livre obteve na modernidade. Ter tempo disponível, seja para viajar com fins turísticos, praticar esportes ou exercícios físicos regularmente ou até mesmo para, simplesmente, “flanar” pelas cidades sem ter necessidade de um horário definido para o retorno, passou a ser um símbolo de status social. O golfe e o tênis, por exemplo, estão historicamente entre as modalidades mais elitistas e uma condição elementar para isso é que não existe uma definição precisa de tempo para duração de uma disputa. Uma partida pode durar quatro ou cinco horas e os competidores sabem desta possibilidade desde o início, sendo assim, são donos do seu próprio tempo. Não necessitam se preocupar em ter que interromper a prática no meio devido aos compromissos laborais típicos do dia a dia. Ao contrário, modalidades que caíram rapidamente no gosto popular – como o futebol americano, rúgbi, futsal e basquete – apresentam um tempo previamente definido, embora, para manter o senso de justiça, o cronômetro seja paralisado em momentos previstos nas regras. O futebol de campo foi mais longe: o tempo nunca para, então o praticante e / ou apreciador pode saber com a precisão variável de alguns poucos minutos (os acréscimos) o horário de início e encerramento da disputa.

O esporte, aquele surgido no novecentos, atualmente, galgou tamanha popularidade a ponto de ser considerado um fenômeno social. No início, tinha um interesse apenas restrito, o dos jovens (homens) praticantes em busca de um corpo estético renascentista, de sociabilidade e – com algumas exceções – de um símbolo de distinção social. Mas não foi necessário mais do que alguns anos para que passasse a angariar também apreciadores com outros perfis. É possível que este público interessado, os “simpáticos aos esportes”, reles apreciadores chamados de “a assistência”, fosse formado por minorias excluídas do processo: mulheres, idosos, deficientes, inábeis ao esforço físico, enfim. Só que a presença de interessados / curiosos, além dos próprios esportistas, nos locais de realização das práticas fez com que estas se transformassem em eventos sociais. Consequentemente, despertando também a atenção da mídia (ainda circunscrita aos diários e revistas). Quando a presença do público se avolumou, ganhou também outro significado: o de parte ativa do espetáculo esportivo. A “assistência” virou torcida.

Não é estranho, assim, que aqueles grupos minoritários, vetados na sociogênese da prática esportiva, gradativamente (e não na velocidade que gostaríamos), fossem incluídos e ganhassem o seu devido espaço. Além do crescimento do esporte de mulheres, também é sensível o crescimento do esporte para deficientes, sobretudo, nas últimas décadas. Hoje o esporte – com um pouco de otimismo – tem a capacidade de comportar a diversidade com dignidade e respeito. Embora existam inevitáveis aspectos biológicos que impliquem em subdivisões por sexo, peso, idade e até nível de rendimento – obviamente, variando de acordo com a modalidade – para assegurar condição de igualdade na disputa. Esta salutar diversidade se manifestou nas temáticas que compõem este dossiê, como será detalhado adiante.

Mas explicar o súbito e contínuo crescimento da popularidade do esporte talvez seja uma tarefa tão árdua quanto descobrir os motivos da queda de Roma. Dentre os principais aspectos que podemos, por enquanto, somente especular, constam: 1- o sentimento de pertencimento a um grupo, condição que, como explica a Psicologia Social, traz segurança; 2- a adequação ao discurso médico-científico, o qual considera o esporte um suposto meio à saúde (é fato que hoje o esporte de rendimento se afasta cada vez mais desta máxima); 3- a percepção generalizada de que o esporte segue (mesmo com vários desvios) princípios humanistas e civilizados; 4- estar, desde o início, coadunado a um dos valores mais marcantes nas sociedades contemporâneas, o de família.

É fato que tais aspectos, juntos a outros secundários, alçou o esporte a mais marcante atividade de entretenimento global. Seria inevitável que uma das consequências paralelas ao seu desenvolvimento e popularização fosse a sua expansão econômica e hoje podemos crer em uma quase inesgotável indústria de consumo do esporte. Além do consumo direto dos espectadores / torcedores, seja comprando ingressos e assistindo in loco ou pela TV e pelas emergentes plataformas digitais, existe um interesse cada vez maior por bens de consumo derivados: vestuário com alto recurso tecnológico; bebidas, alimentos e suplementos que aumentam o rendimento; equipamentos específicos a cada modalidade; o turismo com fins esportivos (tanto para assisti-los quanto para praticá-los); produtos ligados aos cuidados com o corpo (cremes, desodorantes, etc.); mídias diversas (revistas especializadas, programas de debates televisivos, lives em plataformas digitais); enfim tudo isto é avidamente consumido.

II

É certo que nem o mais bem informado cientista do mundo poderia antecipar, no findar de 2019, que teríamos, já no início de 2020, uma pandemia de impacto global. Tampouco que tal pandemia – entre consequências muito mais graves, como a morte de centenas de milhares de pessoas – poderia resultar no adiamento por um ano dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Nós, então, não poderíamos continuar a apresentação deste dossiê se não com adjetivos como inacreditável, terrível, lamentável e pesaroso.

Quando propusemos às editoras da Revista História, Questões e Debates a temática história dos esportes para um dossiê temático, a ideia era exatamente aproveitar a aproximação dos XX Jogos Olímpicos, aqueles que seriam realizados em agosto. A ideia foi bem aceita, a chamada do dossiê foi lançada e, mesmo sem a realização do principal evento esportivo do mundo, a recepção da proposta por parte de nossos pares foi amplamente aceita. Recebemos quase três dezenas de artigos sobre o tema, dos quais, preservando as normativas da própria revista, foram selecionados os onze que compõem o dossiê.

A nossa preocupação como organizadores foi, primeiramente, preservar a multiplicidade temática. Sabíamos que, ainda mais no Brasil, existe uma predominância do futebol como modalidade de maior popularidade e tal condição não poderia deixar de se refletir no meio acadêmico. Com o agravante de que a própria Revista História, Questões e Debates já havia publicado anteriormente um dossiê acerca do tema – Futebol, Sentimento e Política (2012), organizado por Luiz Carlos Ribeiro. Para o nosso alento – embora, inevitavelmente, o futebol tenha sido a temática central de maior predominância dentre as submissões – recebemos propostas ecléticas o que assegurou que o dossiê se concretizasse, efetivamente, como de história do esporte.

Abrimos o dossiê com o artigo mais panorâmico, mas no sentido mais rico que o termo possa significar. Com maturidade acadêmica e requinte intelectual, JeanFrançois Loudcher em Processo civilizador e transformações sociais: uma análise das teorias elisianas em relação às Ciências Sociais do Esporte, revisa as possibilidades de uso da teoria de Norbert Elias nos estudos acerca dos esportes. Loudcher não idealiza Elias, respeita-o como intelectual que formulou um modelo histórico / interpretativo das sociedades (principalmente as ocidentais), mas não nega suas limitações e fragilidades.

Prova da amplitude das temáticas presentes são os artigos sobre os esportes ditos californianos. Dropando sobre as pranchas: os impactos das transformações conceituais das práticas do surfe e do skate refletidos no anúncio do Comitê Olímpico Internacional, escrito por Monique de Souza Sant’Anna Fogliatto e José Carlos Marques, trata, evidentemente, da completude da esportivização de tais práticas. Pensar que o surfe e skate carregavam junto a si nos anos 1980 / 90 o ideário “estilo de vida”, cuja principal característica era a aversão às regras (basta lembrarmos do impactante Kids de Larry Clark ou do descolado Caçadores de Emoção de Kathryn Bigelow) e que hoje são modalidades olímpicas altamente regradas é uma mostra do constante movimento adaptativo dos esportes. Reforçando a condição inconteste de que o surfe galgou a condição de esporte, o texto de Pedro Cezar Duarte Guimarães e Rafael Fortes, A transmissão ao vivo de campeonatos de surfe pela internet: padrões televisivos, inovação e questões para a história do esporte, examina o uso (e popularização) da plataforma de transmissão online da World Surfing League, focando o estudo na bateria final do Corona Open J-Bay no ano de 2017.

O surfe é um esporte que exige, além do confronto com os adversários, uma rápida e harmônica relação com a natureza e sua condição inconstante. Mas desafiar a natureza já era uma ideia recorrente desde o surgimento do esporte. A natação – modalidade realizada hoje, sobretudo, no ambiente extremamente controlado das piscinas (com o adendo de que a Maratona Aquática em mar seja uma das provas olímpicas) – nos seus primórdios, era praticada em locais inóspitos. Dois artigos abordam o assunto. O primeiro, de autoria de Daniele Cristina Carqueijeiro de Medeiros, Evelise Amgarten Quitzau e Marcelo Moraes e Silva, A Travessia de São Paulo à Nado (1924-1944) e o processo de esportivização aquática paulistana, detalha como uma prática que nasce imbricada à máxima de desafio à natureza e superação pessoal começa a ganhar contornos esportivos na primeira metade do século XX. Mesmo focados no processo que tornava as exóticas travessias no Rio Tietê algo de maior seriedade, ao analisar os periódicos Correio Paulistano e A Gazeta, os autores conseguiram com maestria mostrar também a presença na época de um ideal estético, por eles chamado, com propriedade, de “cultura física”. O segundo artigo, Los Diferentes sentidos sobre la ‘naturaleza’ y su relación con la feminidad y la nacionalidade – la prensa y el primer cruce a nado del Río de La Plata, 1923, um estudo de caso feito por Pablo Ariel Scharagrodsky, foca no feito inédito realizado pela atleta Lilian Harrison. A superação do desafio inóspito por Harrison fez com que esta se tornasse um símbolo de mulher argentina moderna – aquela que poderia superar adversidades originárias da masculinização da natureza – como os jornais nacionais argentinos faziam questão de enfatizar.

Ainda na intensa década de 1920, período focal dos dois artigos da natação em rios, em Da celebração à comoção: os discursos da imprensa escrita paulista em relação a uma célebre luta de boxe, Rick Lise, eu (André Capraro) e Fernando Cavichiolli detalhamos um caso emblemático do boxe, a controversa luta entre o brasileiro Benedicto dos Santos e o italiano Ermínio Spalla. Transcendendo a própria prática do esporte, o confronto pugilístico demonstrou a volatilidade dos jornais brasileiros ao tratar de um incidente.

Como prática sociocultural, seria inevitável que o esporte também tivesse uma interface com a literatura. Centenas de obras literárias, cujo tema central é o esporte, são publicadas todos os anos mundo afora. Dentre os gêneros literários que se sobressaem, figuram aqueles de caráter híbrido, como a biografia e a autobiografia. Estes gêneros – ao lado da crônica, do romance histórico e do ensaio de cunho sociológico – são os memorialísticos. Com sofisticação acadêmica, circulando a análise entre os preceitos da Teoria Literária e da História, Elcio Cornelsen, em Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasileiros, analisa 18 obras pertencentes a tais gêneros. Pesquisa robusta, com resultados inéditos.

Não faltaram no dossiê dois subtemas clássicos em se tratando de esporte: 1) a presença da mulher no esporte e 2) a proximidade do esporte – diríamos até que em uma relação simbiótica – com a ginástica. No artigo de Alice Beatriz Assmann, Ester Liberato Pereira e Janice Zaperllon Mazo, Personagens na rede: indivíduos, posições sociais e identidades construídas por meio do Turnen no Rio Grande do Sul, as autoras descrevem o surgimento e as nuances de uma prática física tipicamente alemã, amplamente aceita pelas comunidades teutas estabelecidas no Brasil. Focando no caso específico do Rio Grande do Sul e, sobretudo, na atuante figura de Jacob Aloys Friederichs, o texto conclui que, mesmo sendo uma prática que aceitava a competição, o seu caráter era mesmo o de integração e harmonia. Quanto ao avanço das mulheres no cenário esportivo, consequentemente, estabelecendo complexas relações entre gêneros, Ana Flávia Braun Vieira e eu (Miguel A. de Freitas Júnior), em Relações de poder entre os sexos nos Jogos Olímpicos: análise da participação das atletas brasileiras a partir da perspectiva sociológica de Norbert Elias (1920-2020), apresentamos uma reflexão sobre a presença da mulher brasileira no eventomor do esporte; aproximando-se metodologicamente, inclusive, da proposta analítica feita por Loudcher no texto de abertura.

Finalizando o dossiê temos como foco os atuais Jogos Olímpicos. Em um ensaio crítico e contundente, A (des)politização dos Jogos Olímpicos modernos, Luiz Carlos Ribeiro nos brinda com uma avaliação conjectural de três momentos emblemáticos do olimpismo: o início sob a égide do amadorismo e fair-play; os anos 1930, com o totalitarismo em ascensão, materializado na emblemática Olimpíada de Berlim (1936); e, por fim, o período no qual se tornou um palco para as tensões da Guerra Fria. O artigo escolhido para o encerramento foi The legacy of a cultural elite: the British Olympic Association, de autoria de Dave Day e Jana Stoklasa. A dupla descreve o desenvolvimento do esporte olímpico britânico, com ênfase na presença e controle exercido por uma elite cultural que tinha com princípio a ética do amadorismo. O texto exacerba a ideia de que, tratando-se de esporte olímpico, há um forte exercício de poder (e controle), na maioria dos casos, externo à própria prática, que idealiza um modelo amadorístico – porém, tal modelo, ao menos no caso britânico, é suscetível ao desempenho atlético.

Complementam esta edição da Revista História, Questões e Debates o artigo de Roberta Barros Meira e Daniel Campi, Uma nova paisagem açucareira: os técnicos versus os modos tradicionais de produzir açúcar na Argentina e no Brasil nas primeiras décadas do século XX, fruto de uma parceria acadêmica entre Brasil e Argentina; e a resenha de Maria Eloisa de Oliveira e Pauline Iglesias Vargas, Reflexões sobre uma das obras de Svetlana Aleksiévich: as memórias das crianças que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, focadas no livro “As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial”. Embora as obras de celebradíssima Nobel de Literatura, Svetlana Aleksiévich, não tenham relação explícita com a temática do dossiê, as resenhistas – também pesquisadoras do esporte – usam-nas como um exemplo para quem trabalha com a oralidade.

III

Durante a pandemia COVID-19 não há como negar que o esporte (de alto rendimento) assumiu a sua condição de protagonista entre as atividades de entretenimento. Prova é que tais práticas competitivas se tornaram foco de um amplo e acalorado debate.

As opiniões oscilavam radicalmente. De um lado aqueles que o viam como apenas mais uma atividade trivial e que, consequentemente, os seus agentes deveriam participar da quarentena como outros quaisquer; de outro, como contraponto, um grupo que o considerava uma forma de entretenimento televisivo fundamental, logo, elemento que poderia até colaborar para que as pessoas permanecessem em casa por mais tempo. Entre as posições extremas acima, outras tantas mais ponderadas apareceram.

Mas o debate não era somente se os treinos e campeonatos deveriam retornar e quando. Já em março o Comitê Olímpico Internacional foi duramente criticado por postergar em exagero o anúncio de cancelamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Também causou polêmica a decisão do Ultimate Fight Championship, maior organizador de eventos de MMA, de recomeçar os combates sem público, só que no auge da pandemia nos Estados Unidos da América. Alguns poucos campeonatos que não foram cancelados também foram motivo de cobertura da imprensa – Cuba, Nicarágua, Bielorrússia, Cingapura, Taiwan, Burundi entre outros países não paralisaram as suas atividades esportivas. Assim como os posicionamentos contundentes de alguns atletas não se sentindo seguros para o retorno nos momentos definidos pelas instituições regulamentadoras (por exemplo, o caso NBA versus Lebron James). Enfim, raras exceções, o esporte, mesmo paralisado, nunca perdeu o protagonismo como a mais popular atividade de lazer / entretenimento.

O esporte é parte do nosso cotidiano. Não só do nosso, mas na verdade, do mundo todo. Nem mesmo os sherpas – pessoas de etnia de origem tibetana outrora desconhecida por viver na região do sopé nepalês do Himalaia – escaparam do impacto da indústria esportiva. Estes intrépidos “homens da montanha” agora são conhecidos mundialmente. Do best-seller No Ar Rarefeito de Jon Krakauer chegando à recente série Everest: o preço da escalada do Discovery Channel, os sherpas foram alçados à condição de heróis. Sua tarefa, em síntese, é viabilizar a estrutura para escalada e (não raro) resgatar atletas (a maioria, amadores) que se dispõem a pagar vultosas quantias às empresas que organizam excursões para a escalada e ataque ao cume do Everest. É fato que uma camada significativa da população global não tem predileção por esportes (seja para praticá-los ou assisti-los), porém, mesmo os avessos não conseguem se desvencilhar de sua presença.

Mas mesmo com toda a sua popularidade e altiva presença no globo, o esporte já parou. Parou em grandes e traumáticos eventos históricos. São os casos dos Jogos Olímpicos de Berlim (1916), cancelados por causa da Primeira Grande Guerra; ou os Jogos Olímpicos de Tóquio (1940) e Londres (1944), além das Copas do Mundo de Futebol de 1942 (provavelmente seria na Alemanha) e 1946 (provavelmente seria na Argentina), todos por causa da Segunda Guerra. Parou também durante o período de pandemia global da Gripe Espanhola, entre os anos de 1918-19. No caso brasileiro, vários campeonatos regionais de futebol foram cancelados e, para comoção geral, nem mesmo jovens atletas com elevada condição de saúde escaparam da impactante estimativa de 40 mil mortos pela Espanhola, apenas no Brasil. O esporte não parou, mas deveria parar em outras situações. É o caso, por exemplo, dos Jogos Olímpicos de Munique, quando um atentado terrorista promovido pela Organização Setembro Negro ceifou brutalmente a vida de atletas e treinadores da delegação de Israel. O esporte parou também no trágico acidente aéreo com o voo fretado pela Associação Chapecoense de Futebol em 2016. O impacto do acidente causou um luto nacional, mas foi deveras reconfortante a homenagem prestada pelos torcedores do Atlético de Nacional de Medellín – gesto que, sem dúvida, fez-nos lembrar o quanto o esporte nos une, mesmo na intensa dor. Nós, proponentes deste dossiê, não temos dúvida: parou e deveria parar por causa da pandemia COVID-19, mas irá se erguer novamente. “O show não pode parar!”

Não poderíamos deixar de agradecer as pessoas que colaboraram conosco na realização deste dossiê. Marcelo Moraes e Silva comprou a ideia e participou de forma tão ativa quanto nós da empreitada. Luiz Carlos Ribeiro, nosso eterno orientador, estimulou que tentássemos e confiou no nosso trabalho. Renata Senna Garraffoni era a editora da Revista História, Questões e Debates quando propusemos o dossiê e foi muito atenciosa com a transição. Mas o nosso maior agradecimento é a Priscila Piazentini Vieira, atual editora da Revista, sem a sua orientação, apoio e, sobretudo, paciência (ainda mais em época de pandemia) a concretização deste dossiê não seria possível.

André Mendes Capraro (Universidade Federal do Paraná)

Miguel A. de Freitas Junior (Universidade Estadual de Ponta Grossa)

Os organizadores


CAPRARO, André Mendes; FREITAS JUNIOR, Miguel A. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.68, n.2, jul./dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

História do Esporte e Comunicação: para além da imprensa e da mídia como fontes | Recorde | 2019

É com imensa satisfação que apresentamos uma seleção de trabalhos envolvidos com temáticas relacionadas à História do Esporte e da Comunicação. A proposta de organizarmos o presente dossiê surgiu de nosso envolvimento em ambas as disciplinas e da percepção de que existem imensas lacunas e possibilidades na intersecção entre elas. Não obstante, a adesão de pesquisadores nos surpreendeu, tanto pela quantidade de submissões, quanto pelo atendimento a algumas das sugestões e provocações que fizemos na chamada de trabalhos.[3] Neste sentido, foi possível organizar um dossiê com temas diversificados, fato que reforça nossa perspectiva de que existe uma via em construção nos estudos do esporte para pesquisadores de diferentes áreas que dialogam com a História do Esporte e a Comunicação.

Isto posto, convidamos os leitores a apreciarem os artigos. Primeiramente, destacamos três trabalhos que abordam o evento Jogos Olímpicos e dois sobre os Jogos Paralímpicos. Elcio Cornelsen e Izidoro Blikstein escreveram “A utilização da mídia em estratégias de marketing político no contexto da Olímpiada de Berlin” buscando identificar a construção da imagem que a imprensa alemã estabelece no momento da realização do evento utilizando um arcabouço conceitual das áreas de Marketing Político, Mídia e Análise do Discurso. Intitulado “Olimpíadas Rio 2016: A (In) Sustentabilidade do nosso Legado”, o trabalho de Roberta Ferreira Brondani e José Carlos Marques apresenta uma crítica ao suposto legado olímpico a partir de uma comparação entre o que apresenta a página “Rio 2016” no Portal do Comitê Olímpico Internacional e o conteúdo de reportagem exibida pelo programa Fantástico, da TV Globo, dois anos após os jogos. O artigo “Os Jogos Olímpicos jamais foram modernos: um ensaio da antropologia simétrica ao longo da história olímpica”, de Carlos Roberto Gaspar Teixeira e Roberto Tietzmann, se utiliza da perspectiva teórica da antropologia simétrica para problematizar a questão da presença dos “não-humanos” nos Jogos Olímpicos, bem como questionar o caráter moderno desses eventos utilizando como referência conceitual a proposta de Bruno Latour em sua obra Jamais fomos modernos (1994).

No que concerne as Paralimpíadas, o artigo de Tatiane Hilgemberg apresenta o desenvolvimento histórico do evento paralímpico em diálogo com as transformações ocorridas nos jogos, no próprio esporte e nas representações da ideia de deficiência. A autora estabelece também um paralelo com estudos críticos da deficiência e apresenta dados de sua pesquisa sobre a cobertura das Paralimpíadas pelo diário O Globo. Em “Paralimpíadas Escolares (2006-2018): evidências em mídias digitais acerca do evento esportivo”, Giandra Anceski Bataglion e Janice Zarpellon Mazo abordam o tema a partir de uma perspectiva local, descrevendo detalhadamente as composições históricas para a organização das Paralímpiadas Escolares no Brasil e buscando identificar agentes importantes, bem como sua repercussão em mídias digitais.

Dois trabalhos que relacionam a Economia com temáticas histórico-comunicacionais não apenas trazem discussões importantes, mas apontam promissoras e pouco exploradas sendas de investigação. Anderson David Gomes dos Santos apresenta uma pesquisa sobre os direitos de transmissão em eventos esportivos no Brasil articulando o tema com um estudo sobre a legislação desportiva no país. Trata-se de uma abordagem inovadora no âmbito da discussão de políticas públicas e econômicas sobre esporte que faz parte de um trabalho comparativo mais amplo com outros países latino-americanos (Argentina e México).

O trabalho coletivo capitaneado por Ana Carolina Vimieiro parte de uma perspectiva histórica da economia política do futebol para analisar criticamente as transformações, contradições e conflitos na mais recente “onda” do processo de mercantilização do futebol no país. Para tanto, as autoras utilizam conceitos como neoliberalização, comodificação e hibridação e uma análise empírica de tradicionais aspectos da organização estrutural e das relações de poder na conformação do futebol brasileiro no século XXI.

Quatro trabalhos se voltam para países latino-americanos, utilizando diferentes fontes para debater aspectos relativos aos próprios países ou à relação com outras nações.

Andrés Morales apresenta aspectos de sua atual pesquisa de doutorado sobre a representação simbólica da final de 1950 no imaginário coletivo dos uruguaios. Trabalhando com o conceito de hibridação de Néstor Canclini para analisar o discurso em diversas fontes da imprensa do país, o autor aponta também a importância do rádio e os vínculos politicos presentes nos diferentes meios de comunicação. Uma reflexão sobre a hipótese de “Maracanização” da sociedade uruguaia e sua influência no próprio futebol do país complementam o artigo, que aponta novos caminhos de investigação sobre um tema paradigmático nos estudos que relacionam Copas do Mundo e identidade nacional tanto no Brasil quanto no Uruguai.

O artigo de Gastón Laborido apresenta uma contextualização histórica dos fatores que possibilitaram a introdução do futebol na cidade de Montevidéu e a entrada desse esporte nos veículos da imprensa no início do século XX. A hipótese de um processo de “criolização” do futebol uruguaio, que teria surgido a partir da formação de um estilo de jogo híbrido, marcado pela presença de imigrantes que se contrapunham à forma britânica de praticá-lo, é reforçada e analisada nos discursos dos periódicos citados.

A partir de uma perspectiva da Nova História Política, o artigo de Alvaro do Cabo aborda questões sobre a Copa do Mundo de futebol realizada na Espanha em 1982. A primeira parte do trabalho é uma contextualização da conjuntura histórica que possibilitou a realização do torneio no país europeu: a transição democrática após a longa ditadura franquista. O segundo item utiliza os periódicos argentinos Clarín e El Gráfico para analisar as expectativas em torno da participação da seleção argentina, então campeã do mundo, na Copa de 1982, em meio a um contexto político marcado pelo conflito bélico com a Inglaterra, conhecido como Guerra das Malvinas.

Leda Soares e Carlos Guilherme Vogel analisam a série de ficção Club de Cuervos, uma produção latino-americana ambientada no México. Além de uma interessante contextualização da propagação do espaço midiático ocupado pelos seriados televisivos nas últimas décadas, com uma nova dinâmica estética e moral a partir do aumento das televisões fechadas e os canais a cabo, os autores observam uma questões de gênero, preconceito e homofobia no enredo da série. Tendo como tema central o futebol, a série possibilita a discussão de representações sociais em um ambiente latino-americano masculinizado.

Os dois trabalhos que complementam este seleto dossiê versam sobre o futebol e os estudos das crônicas da imprensa. A pesquisa de Nei Jorge dos Santos Junior ressignifica a perspectiva crítica do cronista Lima Barreto sobre a prática do futebol no início do século XX. O olhar a partir de diversas fontes impressas demonstra que a crítica ao esporte se insere em um contexto de defesa e tensionamento mais amplo que enxerga o futebol como uma prática até então elitista e excludente inserida em um discurso preconceituoso sobre as classes menos favorecidas e o “ethos” suburbano. Antes de ser um inimigo do futebol, o literato suburbano seria um crítico das representações geradas pelo futebol amador e os ”sportsman”.

O trabalho de André Couto sobre os cronistas do Jornal dos Sports conjuga uma análise temática que problematiza as principais características do jornal no período estudado, destacando o direcionamento para questões clubísticas e denuncistas e desenvolvendo uma espécie de taxonomia sobre as especificidades dos articuladores. Trata-se de um modelo que pode servir aos estudos que relacionam cronistas esportivos e imprensa em função da tipologia proposta.

O dossiê se completa com uma entrevista realizada por Silvana Goellner com a jornalista Isabelly Morais, que marcou as transmissões sobre Copas do Mundo na televisão brasileira ao narrar a estreia da seleção brasileira no torneio realizado na Rússia em 2018. A conversa explora a trajetória profissional da narradora, desde o período em que cursou Comunicação Social/Jornalismo o trabalho como narradora de futebol no rádio e na televisão.

Agradecemos aos autores que submeteram trabalhos e ao precioso trabalho de avaliação realizado pelos pareceristas. Boa leitura!

Notas

3. A chamada encontra-se em https://historiadoesporte.wordpress.com/2018/09/14/revista-recorde-chamadapara-dossie-historia-do-esporte-e-comunicacao-para-alem-da-imprensa-e-da-midiacomo-fontes/ .

Rafael Fortes – Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Comunicação. E-mail: [email protected]

Álvaro do Cabo – Professor da Universidade Cândido Mendes. Doutor em História. E-mail: [email protected]


FORTES, Rafael; CABO, Álvaro do. Apresentação. Recorde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR].

Acessar dossiê 

 

História e Esportes / Projeto História / 2014

Este número da Projeto História parte de um pressuposto aparentemente incontornável: as relações entre história e esporte são antigas e amplamente reveladoras dos receios e sonhos de cada cultura. Por isso, a importância do seu estudo é inegável.

Entretanto, é relativamente recente a profusão de pesquisas históricas sobre as atividades de esporte e lazer. Conforme a entrevista aqui publicada do historiador Georges Vigarello, desde as últimas décadas do século passado, o tema adquiriu uma relevância inusitada dentro dos meios acadêmicos, dando lugar a teses, eventos, revistas científicas e livros que abordam desde a história das práticas esportivas tradicionais, até aquelas inventadas ou modificadas na época contemporânea.

De fato, compreender as relações entre história e esporte tornouse um dos grandes desafios para a pesquisa acadêmica. Diferentes pesquisadores dedicaram-se a questionar os significados e as funções culturais dos jogos e competições esportivas, mas também das experiências lúdicas, distantes dos estádios e clubes profissionais. É quando as referências clássicas de autores como Norbert Elias e Marcel Mauss foram consideradas à luz das novas maneiras de conceber o corpo e os meios de comunicação de massa, o desempenho físico e a técnica esportiva.

Cada vez mais amplamente, portanto, a investigação das atividades esportivas possibilitou a construção de uma história das emoções e de uma história do corpo, mas também contribuiu para renovar o entendimento das relações entre os gêneros, os países e as culturas. O tema “esporte” favoreceu, cada vez mais, a análise dos meandros do poder político e do funcionamento das instituições que o asseguram. E ainda, proporcionou subsídios para o entendimento sobre como a ciência e a técnica modificaram o espaço natural e a rotina das cidades, as noções de rendimento físico e de saúde, especialmente no decorrer dos dois últimos séculos.

Mas esta história, como tantas outras, é complexa e nem sempre evidente ao primeiro olhar. Este é o eixo central do presente número da Projeto História: mostrar o quanto a relação entre história e esporte é rica em problemas e, portanto, desencadeadora de temas essenciais ao entendimento da época contemporânea. Nesse sentido, o artigo do pesquisador alemão Hans Ulrich Gumbretcht, aqui publicado, evidencia o quanto os estilos esportivos são reveladores da história de cada país mas, também, de suas ambiguidades e da riqueza cultural que os caracteriza. Na entrevista realizada com o historiador Georges Vigarello, a história do esporte diferencia-se de uma análise dos esportes, embora ambas se complementem mutuamente. Especialista em história do corpo, Vigarello ressalta o lugar do heroísmo valorizado na atividade esportiva atual, assim como a importância do estudo sobre os esportes entre os historiadores.

A complexidade do tema envolve, também, a relação entre esporte e escrita. Entre a cultura dos gestos e a história dos jogos há um vínculo histórico cuja riqueza foi explorada pelo sociólogo e antropólogo português, Nuno Domingos, em seu artigo sobre o futebol em Moçambique colonial. Nele, pode-se observar como, em contextos coloniais, o futebol funcionou como um espaço para “negociar a modernidade”. Já no Brasil, o futebol pode ser repensado a partir de uma disputa entre raças e segundo as rivalidades entre nações, tal como mostra o artigo de Sérgio Settani Giglio, Marcel Diego Tonini e Katia Rubio, intitulado “Do céu ao inferno”. Defendendo a tese de que “o futebol é o grande ritual brasileiro”, o artigo de Martin Curi estuda etnograficamente as manifestações durante a Copa das Confederações em 2013.

Certamente o futebol é um dos esportes que, especialmente a partir do último século, mais chama a atenção dos povos e dos meios de comunicação de massa. No artigo dos pesquisadores franceses Jean Jacques Courtine e Claudine Haroche, a presença das multidões nos estádios, evocadora do antigo medo das massas ignaras, remete o leitor aos textos de Gustave Le Bon mas, igualmente, o faz refletir sobre a invenção de um “novo homem dos estádios” globalizado. O futebol possui portanto uma história densa, cujas tensões nem sempre são lembradas nos momentos espetaculares dos grandes triunfos e derrotas. Fábio Franzini revela algumas articulações históricas entre o Brasil político, militar e futebolístico. Dentro dessa complexidade esportiva, existem ainda os bastidores do jogo. O artigo de Hirata e Freitas Júnior mostra algumas das tensões ocorridas na tramitação Lei Pelé e as trajetórias de sua institucionalização.

Além do papel preponderante do futebol nas sociedades contemporâneas, existem jogos e esportes que também revelam sua rede de tensões históricas e de simbolismos essenciais para a compreensão de cada cultura. O artigo de Estefania Fraga e Felipe Marta privilegia o estudo da tradição das artes marciais segundo uma pesquisa junto a imigrantes japoneses em São Paulo. Investigação original, que mostra o quanto uma atividade física expressa os desígnios de uma cultura e de uma trajetória imigratória.

Entretanto, os séculos XIX e XX foram pródigos em “esportivizar” uma série de experiências que, durante anos, existiam em forma de festas e brincadeiras. O texto de Douglas da Cunha Dias e Carmen Lúcia Soares exemplifica o quanto algumas experiências nas águas de Belém do Pará passaram a ser vistas como “esportes”, dignos de uma cidade que, no começo do século passado, voltava-se a “domesticar a natureza”, segundo os pressupostos de uma burguesia florescente. Além disso, algumas das primeiras experiências esportivas brasileiras foram rigorosamente analisadas por Victor Andrade de Melo, que trabalha com diferentes fontes de pesquisa e discute as representações esportivas na capital do Império brasileiro, numa época em que já existiam agremiações esportivas, corridas de cavalo e regatas.

Ao alinhavar o curso da história à experiência do futebol, do remo, das artes marciais, das corridas e junto de uma miríade de atividades próximas ou totalmente infiltradas pelo esporte, fica claro que o gosto por torcidas e estádios não nasce pronto. Muitas vezes uma modalidade esportiva tem origem

em jogos educativos informais, noutras, ela brota da gratuidade de brincadeiras antigas, cujas bordas escapam para o lado das disputas por mais espaço, ou simplesmente por um tempo mais elástico, dentro do qual é aberta a possibilidade de risos e, sobretudo, do convívio coletivo.

Denise Bernuzzi de Sant’Anna

Estefania K. Fraga


FRAGA, Estefania K.; SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 49, 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Uma História do Esporte para um País Esportivo / Tempo / 2013

Precisamente o que os historiadores sociais do esporte fazem? Eles
examinam os esportes como textos, formações ou práticas sociais,
com o propósito de entender ambos, sociedade e esporte. Perguntam
e respondem sobre a natureza e formato do esporte em certos
períodos, sobre como e por que se concebem formas particulares
de praticá-lo, sobre os signi!cados que os agentes humanos a ele
concedem, sobre con”itos e contestações que existem ao seu redor,
sobre padrões de continuidade e de mudanças nas experiências
e estruturas esportivas e sobre o signi!cado social das práticas
esportivas no contexto de outras práticas, processos e dinâmicas.1

A organização de um campo de investigação histórica tendo por objeto as práticas corporais institucionalizadas,2 notadamente o esporte, no cenário internacional, data da virada dos anos 1960 e 1970. Já no Brasil, ainda que desde o século XIX existam experiências ligadas à ‘preservação’ da memória de diferentes modalidades esportivas, foi apenas na década de 1990 que surgiram os primeiros sinais de uma maior estruturação dos estudos históricos que se debruçam sobre tais objetos.3 Naquele momento, há pelo menos uma década, outras disciplinas das ciências sociais, notadamente a Antropologia e a Sociologia, já dedicavam uma atenção maior ao desdobramento das investigações pioneiras de José Sérgio Leite Lopes, Simoni Guedes e Roberto DaMatta.

No Brasil, as primeiras iniciativas de conformação da “História do Esporte” — utiliza-se uma metonímia para designar práticas corporais institucionalizadas — não se iniciaram na disciplina História, mas sim no âmbito da Educação Física. Na primeira persistiam desconfianças relativas à propriedade do tema, bastante semelhantes às que existiam com outros objetos que interessavam mais aos historiadores culturais.4 A segunda passava por um movimento de reavaliação, que induziu a uma maior proximidade com os estudos socioculturais, contrapondo, ao menos momentaneamente, a forte relação que existia na área com as investigações experimentais de natureza biomédica.

Uma maior proximidade entre a História do Esporte e a História foi observada apenas na primeira década do século XXI. Como indícios, é possível apontar a criação de simpósios temáticos nos eventos organizados pela Associação Nacional de História, a maior presença do tema em revistas especializadas5 ou de divulgação científica, o crescimento do número de dissertações, teses e livros acadêmicos sobre o assunto, entre outros.

Esse acolhimento tem certamente relação com as mudanças notadas na disciplina-mãe, que tem demonstrado maior abertura a novas possibilidades de investigação, bem como com os movimentos de consolidação da História do Esporte, sobretudo no decorrer das duas últimas décadas, quando o aperfeiçoamento de suas experiências foi percebido.

Tanto ou mais do que esses dois aspectos, deve-se considerar também a força do fenômeno esportivo na sociedade brasileira. O que era notável nos anos finais do século XIX e cresceu no decorrer do XX teve mais importância na primeira década do XXI, não só em função de o esporte ter se tornado um dos principais produtos dos meios de comunicação e da indústria de entretenimento como um todo, como também pelo fato de que o Brasil, na esteira de seu crescimento econômico e do aumento de sua visibilidade no cenário internacional, sediará os dois maiores eventos esportivos mundiais — a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos de Verão.

Nesse país tão e cada vez mais esportivo, não surpreende que o assunto tenha se imposto aos intelectuais e pesquisadores, inclusive aos historiadores, filhos atentos do seu tempo, como sugeria Lucien Febvre.

Este dossiê intenta apresentar um panorama desse campo de investigação nos últimos anos. Sua estruturação partiu de um olhar sobre as discussões que majoritariamente vêm ocorrendo em eventos e periódicos científicos, bem como sobre os caminhos que tal subdisciplina pode vir a trilhar.

A edição inicia-se com uma contribuição de Wray Vamplew, professor emérito da Universidade de Stirling, na Escócia / Reino Unido, autor de livros-referência (entre os quais o renomado “Pay up and play the game: professional sport in Britain, 1875–1914”) e editor de importantes periódicos especializados (atualmente está à frente do International Journal of Sport History). Por sua carreira destacada, na qual sobressaem suas contribuições para a história econômica do esporte, em 2011, recebeu o prêmio do ano da International Society of History of Physical Education and Sport (ISHPES). Sua análise da configuração da História do Esporte no cenário internacional é certamente um contributo para que olhemos ao nosso movimento nacional, uma base que pode nos ajudar em caminhadas futuras.

Na sequência, dois jovens pesquisadores, João Manuel Casquinha Malaia Santos (Universidade Nove de Julho, em São Paulo), um especialista em história econômica do esporte, e Maurício Drumond (Sport: Laboratório de História do Esporte, Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro), que tem dado significativas contribuições à história política do esporte, fazem uma instigante e perspicaz análise da historiografia do futebol no Brasil. Como em alguns momentos esse foi praticamente o único tema investigado (ainda é o majoritário, mas já divide espaço com outras modalidades), fazia-se necessária tal abordagem, mesmo porque os modelos de pesquisa adotados para discutir o tema, não poucas vezes com imprecisões ou inadequações, foram e têm sido inspiração para muitos estudos.

Cleber Dias, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem se dedicado desde seu curso de Mestrado a discutir as relações entre o esporte e o espaço urbano, faz um balanço crítico de um dos objetos mais abordados nessa primeira década de estudos históricos: o surgimento do fenômeno esportivo nas mais diversas cidades brasileiras. Compreender melhor a peculiaridade de cada uma dessas experiências é um desafio fundamental para que possam ser evitadas posturas etnocêntricas e possam ser compreendidas a plasticidade e a riqueza da prática.

Silvana Vilodre Goellner, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, discute um dos temas mais comuns nos estudos históricos do esporte no Brasil e no mundo: as questões de gênero. A pesquisadora alerta para a necessidade de ampliar o escopo das investigações, não as restringindo a análises sobre mulheres. Faz-se necessário não só enfatizar o aspecto relacional, sugerindo-se até mesmo um olhar mais atento às questões da masculinidade, como também levar em consideração outros grupos como homossexuais e transgêneros.

Augusto Nascimento, pesquisador do Instituto de Investigação Científica Tropical / Lisboa, que estuda a história de São Tomé e Príncipe, e Andrea Marzano, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, que desenvolve pesquisas sobre a história angolana, lançam um olhar panorâmico sobre a presença e a importância do esporte nas antigas colônias portuguesas na África. Destaca-se a postura dos autores em se afastar de abordagens maniqueístas, percebendo o quanto a prática foi, por ambos os lados, metrópole e movimentos nativistas, mobilizada para seus intuitos específicos.

Enquanto os artigos anteriores são balanços historiográficos de ramos específicos do campo da história do esporte, os dois seguintes são estudos de caso, o primeiro escrito com o uso de fontes documentais, o segundo a partir de um trabalho de campo de natureza antropológica.

Victor Andrade de Melo, coordenador do Sport – Laboratório de História do Esporte e do Lazer, e Marcelo Bittencourt, especialista na história de Angola, debruçam-se sobre a política colonial portuguesa, analisando o Boletim Geral do Ultramar e prospectando o quanto o Estado Novo, à busca de manter seu Império, operou a prática esportiva.

Vale lembrar que os dois artigos anteriores são frutos de um projeto que está em andamento desde 2008, desenvolvido por pesquisadores de três instituições brasileiras e duas de Portugal. Seu principal intuito é investigar, de forma comparativa, a presença do esporte nos países de língua oficial portuguesa. A ambição de tal pesquisa é, portanto, extrapolar as fronteiras nacionais, percebendo-se similaridades e diferenças entre localidades que têm algum grau de relação histórica.

Para encerrar a publicação, Marcos Alvito, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Esporte e Sociedade da Universidade Federal Fluminense, analisa um tema urgente e de grande visibilidade, as torcidas organizadas, as quais nos últimos anos têm estado constantemente presentes nos meios de comunicação, não poucas vezes sendo tratadas de forma apressada e preconceituosa. O autor chama a atenção para a necessidade de melhor considerar essa que é uma das facetas mais conhecidas e importantes do fenômeno esportivo.

Distintas abordagens metodológicas (Histórias Comparada, Social, Cultural e Política), diferentes recortes espaciais (Brasil, África, Portugal, cenário internacional), diversos temas, oito instituições universitárias de três países: acredita-se que se trata de um bom panorama dos estudos históricos sobre o esporte.

No entanto, não se equivoque o leitor, muita coisa ficou de fora: temas, abordagens, modalidades e investigações espalhadas por todo o país. A diversidade desse alvissareiro campo de pesquisa efetivamente não caberia na íntegra nas dimensões reduzidas de um dossiê. O que é observado no presente trabalho é a ponta de um iceberg, que, ao contrário do que comumente ocorre com esses enormes blocos de gelo, cresce enquanto navega pelas águas de Clio.

Notas

1. Nancy Struna, “Social History and sport”, In: Jay Coakley; Eric Dunning, Handbook of Sports Studies, London, Sage, 2007, p. 187-203. [ Links] 2. Certas práticas corporais, mesmo com peculiaridades, passaram por processos aproximados de institucionalização, constituição de um campo ao seu redor, podendo ser investigadas por áreas de pesquisa específicas: esporte, educação física (entendida tanto como disciplina escolar quanto uma área de conhecimento), ginástica, dança, atividades físicas alternativas (antiginástica, eutonia, ioga etc.), alguns fenômenos análogos de períodos anteriores à Era Moderna (as práticas de gregos, os gladiadores romanos, os torneios medievais, um grande número de manifestações lúdicas de longa existência), entre outras (como a capoeira).
3. Para mais informações, ver Victor Andrade De Melo; Rafael Fortes, “Sports history in Brazil: an overview and perspectives“, Sport History Review, vol. 42, n. 2, p. 102-116,2011. [ Links] 4. Para um debate sobre a pequena presença do tema na história brasileira até os anos 1990, ver Patrícia Genovez, “O desafio de Clio: o esporte como objeto de estudo da História”, Lecturas: Educación Física y Deportes, Buenos Aires, n. 9, 1998. [ Links ] 5. Desde 2008 existe um periódico integralmente dedicado ao tema, a Recorde: Revista de História do Esporte.

Victor Andrade de Melo – Professor Doutor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]

Marcelo Bittencourt – Professor Doutor na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]


MELO, Victor Andrade de; BITTENCOURT, Marcelo. Apresentação. Tempo. Niterói, v.19, n.34, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê