As raízes clássicas da historiografia moderna – MOMGLIANO (RETHH)

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: editora UNESP, 2019. Resenha de: SÁ, Charles Nascimento de. Historiografia clássica e os caminhos para a história moderna. Revista Expedições: Teoria e Historiografia, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

Conta-nos François Hartog em seu livro “Crer em História” que os anos sessenta e setenta do século XX viram a ascensão do estruturalismo e da virada linguística no campo das ciências Humanas. As ideias de que a fala e a linguagem davam sentido à existência e ao entendimento humano ganharam força nas academias e entre pesquisadores. A noção de relativismo cultural na produção do saber histórico ganhou impulso com o chamado pós-modernismo. No campo da história uma das obras mais impactantes nessa discussão foi o livro “Meta-História” do historiador norte-americano Haydem White. Tendo originado um forte debate sobre o sentido da compreensão histórica e dos limites da escrita e da ciência nessa área, ele gerou forte reação por parte da comunidade acadêmica de Clio.

A primeira grande resposta, e que se tornou base para a contestação das ideias de White, veio do historiador italiano Arnaldo Momigliano. Coube a um artigo por ele escrito servir de base para a defesa do método e da pesquisa em História. Momigliano indicou que a ele “pouco importava que os historiadores usem a metonímia ou a sinédoque, ou qualquer outro tropo, o que importa é que suas histórias devem ser verdadeiras” (HARTOG, 2017, p. 86). Seu artigo foi utilizado por Eric Hobsbawn e Carlo Ginzburg, dentre outros, em produções que estes escreveram em defesa do conhecimento histórico.

Inicia-se essa resenha com uma indicação de Haydem White para chamar atenção da importância do professor Arnaldo Momigliano no campo da historiografia. Tendo cultivado uma formação das mais relevantes e extensas na História ele desenvolveu ampla gama de estudos sobre o método histórico, questões sobre as sociedades da Antiguidade e do Renascimento, bem como análises sobre Edward Gibbon e seu método. Monmigliano foi o que se chamou scholars, isto é, indivíduos possuidores de rara e ampla erudição, com leituras vastas sobre o campo da história e suas áreas correlatas. Foi um dos grandes expoentes da escola italiana ao lado de Croce, Bobbio, Ginsburg.

Este texto reporta-se a análise do livro “As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna” publicado no Brasil pela Editora UNESP, com um total de 252 páginas, esta obra contém seis palestras feitas por Momigliano na Universidade de Berkeley na Califórnia na Sather Classical Lectures na década de 1960, nos dizeres do próprio Momigliano a participação nesses encontros “constituem uma célebre ocasião para encontros mais amplos. Tão célebre que já foi dito que um homem faz sua reputação ao ser convidado a ministra-los, e que a perde ao fazê-lo” (MOMIGLIANO, 2019, p. 242). O livro foi anteriormente publicado no Brasil pela editora EDUSC no ano de 2004 e em bom momento vem novamente a público pela UNESP.

Para consecução do volume o autor levou quase vinte anos, entre anotações, reescritas e citações. Os assuntos aí pontuados e discutidos concentram-se em questões sobre a Antiguidade clássica e os estudos sobre o mundo e a civilização grega e romana, sua cultura, sociedade, e, de modo particular, a gênese que estes povos desenvolveram na constituição do saber histórico. Para tal abordagem ganham escopo no livro a análise de diversos historiadores do período, com destaque para Tácito, Tucídides, Heródoto, Plínio – o jovem, Plutarco, dentre outros. Encontra-se aí também a abordagem sobre a importância dos antiquários para a historiografia da época moderna, e seu posterior declínio a partir da sedimentação da história enquanto ciência no século XIX e XX. Finalizando têm-se um estudo sobre a historiografia eclesiástica.

O livro abarca comentários e observações que transitam pelo Império Romano, pelas cidades gregas, pelo mundo persa, turco, Império Bizantino e pelos castelos e mosteiros da Idade Média. Em todas as seis palestras fica evidente as correlações envolvendo a constituição do pensar e do fazer histórico entre gregos e depois romanos e sua conexão com a noção de História que se mantêm ainda hoje.

O primeiro capítulo intitula-se “a historiografia persa, a historiografia grega e a historiografia judaica”. Diferente do que se defendeu entre alguns estudiosos, para Momigliano os gregos reconheciam o caráter não linear na história e não a entendiam como cíclica. Além disso, outro ponto que também sempre foi gerador de polêmicas e atritos foi sobre a contribuição de Heródoto e Tucídides para a história. Em sua análise o autor aponta diferenças e semelhanças entre os dois escritores. Se Tucídides foi sempre visto como mais metódico em seu trabalho, mais realista em sua abordagem, as ideias e temas tratados por Heródoto, muitas das quais cheias de alegorias e fantasias, não significam que ele acreditava naquilo que escrevia, o viés crítico e reservado do “pai da história” na apresentação de muitos de seus relatos é sinal, para Momigliano, de sua apreciação com ressalvas sobre aquilo que escrevia. Outrossim, a influência e importância da historiografia judaica no mundo antigo é aí indicada e discutida.

O livro esclarece, discute, noções e ideias subjacentes aos povos antigos, bem como àqueles do Renascimento adentrando na historiografia moderna. Em todo processo de análise o autor realiza uma metodologia de longa duração no estudo de temas e conceitos subjacentes ao conhecimento histórico. Estes assuntos foram desenvolvidos na Antiguidade, com sua influência se mantendo em debates e questões levantadas a posteriori.

No capítulo intitulado “A tradição herodotiana e tucididiana” ele esclarece que “ao combinar a pesquisa com a crítica da documentação, Heródoto amplia os limites da investigação histórica” (MOMIGLIANO, 2019, p. 69). Para ele o pai da história possuía um humanismo profundo e sutileza em suas reações aos assuntos por ele abordados. Já Tucídides, mais preocupado com seu universo geográfico e sob impactos das questões políticas de seu tempo, entende o passado como chave para compreensão da situação política de sua época afinal “o presente era a base para a compreensão do passado” (MOMIGLIANO, 2019, p. 74).

Outro tema a perpassar as palestras que compõem o livro encontra-se na discussão entre a história e sua escrita. Discorre o autor sobre influências, autores e escolas na produção deste saber. No texto sobre “Fábio Pictor e a origem da história nacional” Momigliano se adensa em uma discussão sobre noções historiográficas partilhadas na Antiguidade pelos judeus, gregos e romanos. Cada grupo é aí inserido dentro de sua filosofia e ideia de história. No universo da palavra, os judeus, que tinham como base a escrita para aceitação de sua fé, representaram um dos grandes vetores na produção do saber histórico no mundo antigo, até que, devido ao entendimento de que tudo já havia sido dito, sua produção histórica definhou.

Coube a gregos e romanos a continuidade dessa discussão. Entre os romanos, diversos historiadores se consagraram ao entendimento da história de Roma e seus feitos. Entre estes estava Quinto Fábio Pictor, cujas obras evidenciaram a influência da cultura grega no mundo romano. Ele foi um dos responsáveis por trazer essa influência para aqueles que em Roma se dedicavam aos estudos de Clio. No entanto, isso não foi o mais significativo neste autor. O que realmente chamava atenção em seus textos era que ele os escrevia em língua grega. Aliado a isso sua parcimônia e objetividade na apresentação de seus estudos ocasionou um debate em que se discutia se ele não estaria fazendo propaganda e não história.

Encerrando seu livro encontra-se o texto “As origens da historiografia eclesiástica”. Nesse artigo ele discute sobre Eusébio e sua história da Igreja, ao mesmo tempo em que aponta a impossibilidade de uma história ecumênica do cristianismo a partir do século VI, na época de Justiniano, devido as diferenças entre o Ocidente e o Oriente e ao fato de a religião cristã ter se tornado cada vez mais vinculada ao Estado nessas duas partes do mundo antigo.

Momigliano começa esse capítulo contando a trajetória do monge beneditino Benedetto Bacchini e sua descoberta da obra Il Giornale dei Letterati escrita no século IX e que ele, vivendo entre o final do século XVII e início do XVIII resgatou em uma biblioteca. Essa obra era importante por trazer a discussão sobre o pallium, insígnia dada pelo papa para confirmar a autoridade de um arcebispo sobre sua sé. Antes, tal feito era exercido também pelos imperadores.

Esse assunto que abre o artigo já é apontado por Momigliano como um relato de um autor de um texto pouco conhecido. No entanto, ele ressalta que o escreveu justamente para indicar como na história eclesiástica “um acontecimento do século V, relatado por um historiador eclesiástico do século IX, ainda tinha implicações práticas no século XVIII” continua ele informando que “os precedentes têm, evidentemente, importância para qualquer tipo de história, e não há nada no passado que em determinadas circunstâncias não possa provocar paixões no presente” (MOMIGLIANO, 2019, p. 212-213).

Destaca-se na citação acima um traço perene nos estudos historiográficos e no entendimento da própria noção de historiografia. O pensar e o agir nessa área estão em sintonia com a ideia de que seu saber se faz no interior da pesquisa e escrita da história (AROSTEGUI, 2006, p. 37). Esta apreciação está em consonância com o saber e as indagações do tempo presente. No caso específico da história eclesiástica Momigliano destaca ainda em sua abordagem que “em nenhuma outra história os precedentes significam tanto como na história eclesiástica. A própria continuidade da história da Igreja através dos séculos torna inevitável que qualquer coisa que tenha acontecido no passado da Igreja seja relevante para o seu presente” (MOMIGLIANO, 2019, p. 213).

Ao caminhar assim em todas as palestras proferida na Universidade de Berkeley, e no livro que elas originaram e que só veio a ser publicado após a morte do autor, este judeu oriundo da península itálica transita com maestria por temas e ideias que são fundamentais para o entendimento da noção de história e de historiografia. Passeando por indivíduos, povos, nações, livros e ideias que surgem em um período, influenciam autores e saberes em outros, são contestados por alguns pensadores, endossados por alguns e seguem como baluartes para novas descobertas.

O pensar histórico atrela-se a períodos e tempos que se esboçam em continuidades e rupturas que a presente obra, em sua abordagem sobre temáticas da Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna, leva-nos a contemplar o processo de gênese e revisões que consolidaram essa área do conhecimento humano. Neste livro é possível observar seu caminho das cidades gregas, dos escritos judaicos, da produção romana até os dias atuais.

Uma última indicação deve aqui ser feita. Na diagramação e revisão do texto a editora cometeu dois erros. Na página 208 colocou-se “crônica do século XIX” quando o correto seria século IX. Já na página 212 fala-se em “implicações práticas no século XIII” quando o correto seria século XVIII. Esses dois erros por certo comprometem a compreensão para quem estiver mais desatento, mas não desabonam o caráter e a importância do livro. Boa leitura.

Referências

ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006.

HARTOG, François. Crer em história. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Charles Nascimento de Sá –Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis). Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor de História da Bahia e Historiografia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Campus XVIII/ Eunápolis).

Escrituras da história: da história mestra da vida à história moderna em movimento (um guia) – ANHEZINI (HH)

ANHEZINI, K. Escrituras da história: da história mestra da vida à história moderna em movimento (um guia). Guarapuava: Unicentro, 2009, 80 p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. As metamorfoses da “escrita da história”.  História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.223-227 setembro, 2010.

A história mestra da vida possui certidão de nascimento grega [com a obra de Tucídides], o nome cunhado em latim [por Cícero], os primeiros exemplos que a compunham eram profanos. […] Todavia, no século XVIII, essa forma de conceber a história se dissolveu.

Um novo espaço de experiência criou um novo horizonte de expectativas e, nesse processo, a concepção de tempo foi transformada. (ANHEZINI 2009, p. 76).

Nesses termos, Karina Anhezini (professora de teoria da história na UNESP, campus de Assis) sintetiza as mudanças da “escritura da história”, entre os séculos IV antes de Cristo e o século XVIII, como uma passagem da história mestra da vida (e fornecedora de exemplos) para a história enquanto processo contínuo, empreendida originalmente pelas “filosofias da história”, produzidas pelo “movimento iluminista” na Europa. Sua obra é voltada para o aluno que está ingressando no curso de história – estando inserida no projeto de ensino semipresencial da Universidade Estadual do Centro-Oeste (a Unicentro/PR), de oferecimento do curso de licenciatura plena em história à distância –, mas por suas qualidades pode facilmente ser útil ao especialista e a todo interessado em temas de história. Por outro lado, o livro chega também em boa hora, pois, se acrescenta a uma bibliografia ainda escassa em nosso meio, de obras introdutórias ao campo da teoria da história, da historiografia e da introdução aos estudos históricos, durante muito tempo limitados aos manuais acadêmicos de Jean Glénisson, José van den Basselaar, José Honório Rodrigues, José Roberto do Amaral Lapa, Francisco Iglésias, e, mais recentemente, por obras como História e teoria (2003) de José Carlos Reis e Teorias da história (2004) de Astor Antônio Diehl.

Seu principal objetivo foi, tomando de empréstimo a ideia de “operação historiográfica” de Michel de Certeau (1925-1986), mostrar que o “fazer história” inevitavelmente carrega as marcas de um “lugar” (um recrutamento, um meio, uma profissão), de “procedimentos de análise” (uma disciplina) e de uma “escrita”, que é a construção de um “texto” (uma literatura), que fazem com que o exercício de “escritura da história”, seja uma “prática” efetuada pelo historiador. Com esse intento, a autora procurou mostrar a importância do contexto para o indivíduo, e como ele age na produção da obra, na formação e nas experiências do autor (que limitado à sua época, carrega as suas marcas), como e por que ele escreve a sua obra e a quem ele a direciona, quais as estratégias narrativas que foram utilizadas e como o autor forma o seu estilo, de que modo a obra foi publicada e qual a herança crítica que ela deixou.

Mas que não se engane o leitor mais apressado, imaginando que pelo texto ter esse perfil didático, não deixe de carregar erudição. A própria simplicidade com que o leitor é conduzido pelo livro, fruto de um estilo de exposição dos dados, lhe deixará com a impressão de superficialidade.

Entretanto, esse não é o caso, e vejam-se tão somente alguns pontos para se demonstrar o argumento.

O primeiro ponto importante diz respeito à forma como a autora demonstra que embora a história mestra da vida constituísse um modelo de escrita da história, houve muitas variações no modo sutil com que cada autor, grego ou romano da Antiguidade (e mesmo depois no período medieval e moderno), apropriou-se dele na sua apresentação dos dados, por meio de uma narrativa.

Ela inicia essa demarcação fornecendo subsídios para que o leitor possa perceber como a História, antes de se distinguir como gênero específico, utilizou-se da epopeia, porque a “narrativa heroica de ações grandiosas, a construção da memória do aedo e a descoberta de um regime de historicidade são, nas palavras de Hartog, as condições que possibilitaram o que, alguns séculos mais tarde, será nomeado por Heródoto, história” (p. 16). Nesse processo, demonstra que questões como: verdade, testemunho, diferenças entre realidade e imaginação, real e ficção, e “o fato de ver paralelamente os dois lados abre a possibilidade de pensar […] [qual o] papel para o historiador” (p. 17). Por isso, também ressalta o que caracterizou a epopeia, com os exemplos da Ilíada e da Odisseia, e quais as diferenças e aproximações entre ela e a (escrita da) História, por que: A organização do texto épico se pautava na narrativa dos feitos dos homens e dos deuses. Com Heródoto, a história não pretendeu romper completamente com essa característica central da palavra épica, mas, sem dúvida, provocou algumas fraturas. […] a preocupação com a memória; a renúncia às certezas do aedo; a narrativa dos feitos dos homens, pois os feitos dos deuses escapam às possibilidades do historiador investigar; diferente do aedo o historiador viaja com os próprios pés e pelos relatos de outros e não mais por inspiração divina (p. 21).

Com Tucídides (455-404 a.C.), a escrita da história agrupa o valor de “prova”, seja com a participação direta do historiador quanto aos eventos narrados, seja por demarcar uma abordagem adequada ao espaço do observador no presente (que, evidentemente, será depois criticada por visualizar a “história política”, com esta exclusividade). Ao eleger a Guerra do Peloponeso, um fato marcante em sua época, Tucídides começou a dar ênfase à história baseada em “exemplos”. Ainda que ambos considerassem “a tradição oral superior à tradição escrita” e confiassem “em primeiro lugar em seus olhos e ouvidos e depois nos olhos e ouvidos de testemunhas confiáveis”, diferenciavam-se na medida em que “Tucídides nunca se contentava em registrar algo sem assumir a responsabilidade pelo que registrava” e também “raramente indicava as fontes porque queria ser digno de confiança” (p. 25-26). Outro aspecto importante, ao comentar tais autores, foi o destaque que a autora deu ao informar os diferentes usos (e abusos) que tanto a obra como os autores tiveram ao longo do tempo, em função das características políticas e culturais de cada momento, que fará com que em cada período histórico “os textos” tenham “significados diferentes e que, por isso, precisamos ficar atentos para questionarmos os cânones literários, filosóficos e, sobretudo, historiográficos” (p. 29).

Com Aristóteles (384-322 a.C.) e Políbio (210-130, aprox.) houve uma preocupação especial em se diferenciar os papéis de cada campo do saber, que, para o primeiro, a História seria incumbida do “particular”, enquanto a Poesia (épica) do “geral” (fato marcante durante séculos, por excluir a capacidade de reflexão filosófica nos estudos históricos), e o segundo lhe responde ao pretender escrever a “primeira história universal”. Com Cícero (106-43 a.C.), a escrita da história passará a dar importância sobre alguns temas, como: “exemplos, imparcialidade, biografia, história dos grandes homens e imitação”. Para ele, “a história, para ser verdadeiramente escrita, para deixar de ser apenas o registro nos anais, deve ser escrita para o orador e ninguém melhor que ele, o próprio orador, para escrever tal história, pois domina a arte da palavra, a eloqüência”.

Não será sem razão que a história passara a ser mestra da vida, ao fornecer os exemplos descritos pelo orador. E: Para escrever a história são necessários fatos e palavras. O historiador pode ordenar esses fatos, apresentá-los por meio das palavras, mas nunca poderá instaurá-los, criá-los, instituí-los. Os fatos são verdadeiros, eles existem, seu aproveitamento e composição pertencem à competência do orador (p. 37).

Por outro lado, as críticas levantadas por Luciano de Samósata (125- 181) são descritas pela autora como um momento de reflexão teórica pouco usual na Antiguidade, e de profundo interesse para se entender os caminhos da escrita da história, e os usos políticos a que foi submetida. Ao demonstrar como Flávio Josefo se utilizou das características desse modelo de “escritura da história”, com vistas a criticar tanto gregos como romanos que foram seus criadores, por a praticarem de forma inconsistente e inadequada, este acreditará que “sua história é verdadeira não somente pelos procedimentos da autópsia aprendidos com Tucídides, mas porque uma instituição [a Igreja] atesta a veracidade dos fatos narrados” (p. 47). O aparecimento de uma instituição, neste caso a Igreja, para demarcar a autenticidade e veracidade dos fatos narrados pelo historiador, constitui o início da fundação do “lugar”. Com Eusébio de Cesareia (265-340) e Santo Agostinho (354-430) essa questão será ainda mais marcante nos contornos que tomaram a escrita da história, tendo em vista a importância que terá a instituição na demarcação dos temas e objetos a serem escolhidos, analisados e descritos pelo historiador.

Depois de descrever as variações e a durabilidade da história mestra da vida na “escritura da história”, a autora, tendo por base a obra de Reinhart Koselleck (Futuro passado), passará a demonstrar a sua dissolução no século XVIII. Para isso foi necessária a formação de “novas” expectativas sobre o passado, o presente e o futuro. E que se deram em função de uma mudança na compreensão da História (enquanto processo contínuo), não mais como fornecedora de exemplos sobre o passado, mas como indicação da maneira que se dará o processo histórico (no presente e no futuro), apreendendo o “conceito de coletivo singular”, ao destacar que “acima das histórias” está a História. Nesse aspecto, o surgimento, nesse momento, das “filosofias seculares da história” fará com que a história adquira “um caráter processual cujo fim é imprevisível” (p. 72) e, com isso, favorecerá a inauguração de um novo futuro, por meio da reelaboração do passado. Além disso, a modernidade marcará o aparecimento de uma experiência conjunta de aceleração e de retardamento, com as revoluções e suas contraofensivas. Para ela, Koselleck explicará como a “aceleração causada pela Revolução Francesa modifica a forma de compreensão do tempo e, portanto, altera o próprio tempo” (p. 74).

Nesse sentido, além de fornecer subsídios para que o ingressante ao ofício de historiador possa compreender o que é a teoria da história, e de que modo a escrita da história muda com o tempo, a autora também dá base para que este perceba que qualquer modelo de “escritura da história” não é homogêneo, que sua elaboração é mediada por questões políticas e culturais, que este traz as marcas de seu tempo, que seus fundamentos visam atingir a um fim e este fim pode também direcionar a maneira com que os dados são apresentados (seja numa forma narrativa ou outra). Contudo, mesmo considerando seus objetivos didáticos, não há como negar que em alguns pontos os argumentos poderiam ter ficado mais consistentes, com o aporte de outros autores, como: Carlos Ginzburg (de Relações de força, e de O fio e os rastros), Luiz Costa Lima (de História.Ficção.Literatura, e de O controle do imaginário & a afirmação do romance), François Cadiou (de Como se faz a história) e Maria das Graças de Souza (de Ilustração e história) – para ficar apenas em alguns. Muito embora essa questão e alguns pequenos erros tipográficos da edição, que em nada interferem nos méritos da obra, esta deve ser muito elogiada pelo seu caráter didático. A lamentar apenas a política editorial da Universidade Estadual do Centro- Oeste (a Unicentro/PR), que, com pequenas tiragens (como a deste livro de 400 exemplares, ainda que reconheçamos a especificidade do projeto em questão), não comercializa suas obras, que seriam fundamentais para um intercâmbio entre outros cursos de história e de ciências sociais, além de disponibilizar as obras para um público mais amplo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando Universidade Federal do Paraná (UFPR) [email protected] Rua Tibagi, 404/100 – Centro Curitiba – PR 80060-110 Brasil.

A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna | Flávia Varela, Helena Miranda Mollo, Sérgio Ricardo da Mata e Valdei Lopes de Araujo

A coletânea organizada por Flávia Florentino Varella, Helena Miranda Mollo, Sérgio Ricardo da Mata e Valdei Lopes de Araujo é mais uma boa testemunha do recente incremento das reflexões sobre história e historiografia no Brasil.

Remontando ao II Seminário Nacional de História da Historiografia, realizado em agosto de 2008, em Mariana-MG (UFOP), o livro contém 14 artigos escritos por pesquisadores lotados em diferentes universidades de quatro das cinco grandes regiões brasileiras. É demasiado vasto e complexo o leque dos temas abordados no livro, de modo que uma discussão detalhada de cada um dos artigos seria aqui inapropriada. Muito mais oportuno parece ser um breve exame geral dos componentes de tal leque temático – e é precisamente isso o que se tentará a seguir. Leia Mais

As raízes clássicas da historiografia moderna | Arnaldo Momigliano

Resenhista

Pedro Paulo Abreu Funari

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: Edusc, 2004. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo Abreu. História Revista. Goiânia, v.10, n.1, p.183-186, jan./jun.2005. Acesso apenas pelo link original [DR]