Caminhos para a teoria da história da filosofia das historicidades e a questão da justiça histórica | Berber Bevernage

Berber Bevernage é um jovem e atua como professor de Teoria da História na Universidade de Gante, Bélgica. Além disso, é co-fundador da Rede Internacional de Teoria da História (International Network for Theory of History) criada em 2012 com o objetivo de promover a colaboração de teóricos por meio da divulgação e circulação de eventos e publicações na área. Atualmente também coordena o Grupo de Pesquisa TAPAS (Thinking about the past), onde promove iniciativas voltadas a pensar as múltiplas formas de relação com o passado que ocorrem dentro e fora do espaço acadêmico-universitário. Leia Mais

Estrela de Luz | Izoldino Resende, Ismael

Inicio esta resenha apresentando brevemente o seguimento doutrinário – o Espiritismo – que fundamenta o gênero literário (romance) da obra “Estrela de Luz”, bem como um sucinto histórico deste livro e dos seus autores, Izoldino Resende e Ismael, visando à assimilação do contexto geral da elaboração do manuscrito para, posteriormente, explanar o teor dos escritos. Leia Mais

As raízes clássicas da historiografia moderna – MOMGLIANO (RETHH)

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: editora UNESP, 2019. Resenha de: SÁ, Charles Nascimento de. Historiografia clássica e os caminhos para a história moderna. Revista Expedições: Teoria e Historiografia, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

Conta-nos François Hartog em seu livro “Crer em História” que os anos sessenta e setenta do século XX viram a ascensão do estruturalismo e da virada linguística no campo das ciências Humanas. As ideias de que a fala e a linguagem davam sentido à existência e ao entendimento humano ganharam força nas academias e entre pesquisadores. A noção de relativismo cultural na produção do saber histórico ganhou impulso com o chamado pós-modernismo. No campo da história uma das obras mais impactantes nessa discussão foi o livro “Meta-História” do historiador norte-americano Haydem White. Tendo originado um forte debate sobre o sentido da compreensão histórica e dos limites da escrita e da ciência nessa área, ele gerou forte reação por parte da comunidade acadêmica de Clio.

A primeira grande resposta, e que se tornou base para a contestação das ideias de White, veio do historiador italiano Arnaldo Momigliano. Coube a um artigo por ele escrito servir de base para a defesa do método e da pesquisa em História. Momigliano indicou que a ele “pouco importava que os historiadores usem a metonímia ou a sinédoque, ou qualquer outro tropo, o que importa é que suas histórias devem ser verdadeiras” (HARTOG, 2017, p. 86). Seu artigo foi utilizado por Eric Hobsbawn e Carlo Ginzburg, dentre outros, em produções que estes escreveram em defesa do conhecimento histórico.

Inicia-se essa resenha com uma indicação de Haydem White para chamar atenção da importância do professor Arnaldo Momigliano no campo da historiografia. Tendo cultivado uma formação das mais relevantes e extensas na História ele desenvolveu ampla gama de estudos sobre o método histórico, questões sobre as sociedades da Antiguidade e do Renascimento, bem como análises sobre Edward Gibbon e seu método. Monmigliano foi o que se chamou scholars, isto é, indivíduos possuidores de rara e ampla erudição, com leituras vastas sobre o campo da história e suas áreas correlatas. Foi um dos grandes expoentes da escola italiana ao lado de Croce, Bobbio, Ginsburg.

Este texto reporta-se a análise do livro “As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna” publicado no Brasil pela Editora UNESP, com um total de 252 páginas, esta obra contém seis palestras feitas por Momigliano na Universidade de Berkeley na Califórnia na Sather Classical Lectures na década de 1960, nos dizeres do próprio Momigliano a participação nesses encontros “constituem uma célebre ocasião para encontros mais amplos. Tão célebre que já foi dito que um homem faz sua reputação ao ser convidado a ministra-los, e que a perde ao fazê-lo” (MOMIGLIANO, 2019, p. 242). O livro foi anteriormente publicado no Brasil pela editora EDUSC no ano de 2004 e em bom momento vem novamente a público pela UNESP.

Para consecução do volume o autor levou quase vinte anos, entre anotações, reescritas e citações. Os assuntos aí pontuados e discutidos concentram-se em questões sobre a Antiguidade clássica e os estudos sobre o mundo e a civilização grega e romana, sua cultura, sociedade, e, de modo particular, a gênese que estes povos desenvolveram na constituição do saber histórico. Para tal abordagem ganham escopo no livro a análise de diversos historiadores do período, com destaque para Tácito, Tucídides, Heródoto, Plínio – o jovem, Plutarco, dentre outros. Encontra-se aí também a abordagem sobre a importância dos antiquários para a historiografia da época moderna, e seu posterior declínio a partir da sedimentação da história enquanto ciência no século XIX e XX. Finalizando têm-se um estudo sobre a historiografia eclesiástica.

O livro abarca comentários e observações que transitam pelo Império Romano, pelas cidades gregas, pelo mundo persa, turco, Império Bizantino e pelos castelos e mosteiros da Idade Média. Em todas as seis palestras fica evidente as correlações envolvendo a constituição do pensar e do fazer histórico entre gregos e depois romanos e sua conexão com a noção de História que se mantêm ainda hoje.

O primeiro capítulo intitula-se “a historiografia persa, a historiografia grega e a historiografia judaica”. Diferente do que se defendeu entre alguns estudiosos, para Momigliano os gregos reconheciam o caráter não linear na história e não a entendiam como cíclica. Além disso, outro ponto que também sempre foi gerador de polêmicas e atritos foi sobre a contribuição de Heródoto e Tucídides para a história. Em sua análise o autor aponta diferenças e semelhanças entre os dois escritores. Se Tucídides foi sempre visto como mais metódico em seu trabalho, mais realista em sua abordagem, as ideias e temas tratados por Heródoto, muitas das quais cheias de alegorias e fantasias, não significam que ele acreditava naquilo que escrevia, o viés crítico e reservado do “pai da história” na apresentação de muitos de seus relatos é sinal, para Momigliano, de sua apreciação com ressalvas sobre aquilo que escrevia. Outrossim, a influência e importância da historiografia judaica no mundo antigo é aí indicada e discutida.

O livro esclarece, discute, noções e ideias subjacentes aos povos antigos, bem como àqueles do Renascimento adentrando na historiografia moderna. Em todo processo de análise o autor realiza uma metodologia de longa duração no estudo de temas e conceitos subjacentes ao conhecimento histórico. Estes assuntos foram desenvolvidos na Antiguidade, com sua influência se mantendo em debates e questões levantadas a posteriori.

No capítulo intitulado “A tradição herodotiana e tucididiana” ele esclarece que “ao combinar a pesquisa com a crítica da documentação, Heródoto amplia os limites da investigação histórica” (MOMIGLIANO, 2019, p. 69). Para ele o pai da história possuía um humanismo profundo e sutileza em suas reações aos assuntos por ele abordados. Já Tucídides, mais preocupado com seu universo geográfico e sob impactos das questões políticas de seu tempo, entende o passado como chave para compreensão da situação política de sua época afinal “o presente era a base para a compreensão do passado” (MOMIGLIANO, 2019, p. 74).

Outro tema a perpassar as palestras que compõem o livro encontra-se na discussão entre a história e sua escrita. Discorre o autor sobre influências, autores e escolas na produção deste saber. No texto sobre “Fábio Pictor e a origem da história nacional” Momigliano se adensa em uma discussão sobre noções historiográficas partilhadas na Antiguidade pelos judeus, gregos e romanos. Cada grupo é aí inserido dentro de sua filosofia e ideia de história. No universo da palavra, os judeus, que tinham como base a escrita para aceitação de sua fé, representaram um dos grandes vetores na produção do saber histórico no mundo antigo, até que, devido ao entendimento de que tudo já havia sido dito, sua produção histórica definhou.

Coube a gregos e romanos a continuidade dessa discussão. Entre os romanos, diversos historiadores se consagraram ao entendimento da história de Roma e seus feitos. Entre estes estava Quinto Fábio Pictor, cujas obras evidenciaram a influência da cultura grega no mundo romano. Ele foi um dos responsáveis por trazer essa influência para aqueles que em Roma se dedicavam aos estudos de Clio. No entanto, isso não foi o mais significativo neste autor. O que realmente chamava atenção em seus textos era que ele os escrevia em língua grega. Aliado a isso sua parcimônia e objetividade na apresentação de seus estudos ocasionou um debate em que se discutia se ele não estaria fazendo propaganda e não história.

Encerrando seu livro encontra-se o texto “As origens da historiografia eclesiástica”. Nesse artigo ele discute sobre Eusébio e sua história da Igreja, ao mesmo tempo em que aponta a impossibilidade de uma história ecumênica do cristianismo a partir do século VI, na época de Justiniano, devido as diferenças entre o Ocidente e o Oriente e ao fato de a religião cristã ter se tornado cada vez mais vinculada ao Estado nessas duas partes do mundo antigo.

Momigliano começa esse capítulo contando a trajetória do monge beneditino Benedetto Bacchini e sua descoberta da obra Il Giornale dei Letterati escrita no século IX e que ele, vivendo entre o final do século XVII e início do XVIII resgatou em uma biblioteca. Essa obra era importante por trazer a discussão sobre o pallium, insígnia dada pelo papa para confirmar a autoridade de um arcebispo sobre sua sé. Antes, tal feito era exercido também pelos imperadores.

Esse assunto que abre o artigo já é apontado por Momigliano como um relato de um autor de um texto pouco conhecido. No entanto, ele ressalta que o escreveu justamente para indicar como na história eclesiástica “um acontecimento do século V, relatado por um historiador eclesiástico do século IX, ainda tinha implicações práticas no século XVIII” continua ele informando que “os precedentes têm, evidentemente, importância para qualquer tipo de história, e não há nada no passado que em determinadas circunstâncias não possa provocar paixões no presente” (MOMIGLIANO, 2019, p. 212-213).

Destaca-se na citação acima um traço perene nos estudos historiográficos e no entendimento da própria noção de historiografia. O pensar e o agir nessa área estão em sintonia com a ideia de que seu saber se faz no interior da pesquisa e escrita da história (AROSTEGUI, 2006, p. 37). Esta apreciação está em consonância com o saber e as indagações do tempo presente. No caso específico da história eclesiástica Momigliano destaca ainda em sua abordagem que “em nenhuma outra história os precedentes significam tanto como na história eclesiástica. A própria continuidade da história da Igreja através dos séculos torna inevitável que qualquer coisa que tenha acontecido no passado da Igreja seja relevante para o seu presente” (MOMIGLIANO, 2019, p. 213).

Ao caminhar assim em todas as palestras proferida na Universidade de Berkeley, e no livro que elas originaram e que só veio a ser publicado após a morte do autor, este judeu oriundo da península itálica transita com maestria por temas e ideias que são fundamentais para o entendimento da noção de história e de historiografia. Passeando por indivíduos, povos, nações, livros e ideias que surgem em um período, influenciam autores e saberes em outros, são contestados por alguns pensadores, endossados por alguns e seguem como baluartes para novas descobertas.

O pensar histórico atrela-se a períodos e tempos que se esboçam em continuidades e rupturas que a presente obra, em sua abordagem sobre temáticas da Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna, leva-nos a contemplar o processo de gênese e revisões que consolidaram essa área do conhecimento humano. Neste livro é possível observar seu caminho das cidades gregas, dos escritos judaicos, da produção romana até os dias atuais.

Uma última indicação deve aqui ser feita. Na diagramação e revisão do texto a editora cometeu dois erros. Na página 208 colocou-se “crônica do século XIX” quando o correto seria século IX. Já na página 212 fala-se em “implicações práticas no século XIII” quando o correto seria século XVIII. Esses dois erros por certo comprometem a compreensão para quem estiver mais desatento, mas não desabonam o caráter e a importância do livro. Boa leitura.

Referências

ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006.

HARTOG, François. Crer em história. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Charles Nascimento de Sá –Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis). Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor de História da Bahia e Historiografia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Campus XVIII/ Eunápolis).

O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MAYER, Milena Santos. Revista Expedições, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

“Os textos aqui reunidos formam uma constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com pés calçados no presente, com olhos no passado ou como um projeto de história futura” (CEZAR, 2019, p.12). É assim que o historiador Temístocles Cezar apresenta o livro “O Tecelão dos Tempos “publicado no ano de 2019 pela Editora Intermeios. Publicados anteriormente em outros livros ou revistas acadêmicas, os escritos são frutos de análises, pesquisas e apresentações do historiador Durval Muniz Albuquerque Junior em conferências, aulas magnas ou seminários. O autor de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” (1999), “Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do Gênero Masculino” (2003) e “História: A Arte de Inventar o Passado” (2007), dentre outros, apresenta a nova publicação rebatendo críticas e comentando a repercussão que o livro de 2007, dedicado também à teoria, que causou entre os colegas da academia.

Segundo Durval, as críticas iniciaram pelo próprio título, uma vez que os termos arte e invenção sugerem um debate polêmico e recorrente no campo da história diante da busca por uma cientificidade. Além das questões teóricas, o autor foi avaliado em relação a forma em que o texto foi construído e apresentado. Por esse motivo, o historiador dedica a apresentação do novo livro para rebater as críticas, justificar e argumentar o uso do ensaio como gênero de escrita. Para ele é possível produzir conhecimento histórico preocupando-se também com a forma e com a estética da narrativa. No decorrer da leitura é possível perceber a intenção em reforçar o entendimento de que o trabalho do historiador é um trabalho de escrita e que, portanto, a forma dessa escrita é essencial e um desafio constante. “Sem a reflexão crítica sobre a arte da narrativa não há ciência possível na historiografia” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019, p. 16). Leia Mais

La folie Dartigaud – JOUHAUD (RETH)

JOUHAUD, Christian. La folie Dartigaud. Paris: Éditions de l’Olivier, 2015. Resenha de: SÁ JÚNIOR, Luiz César de. Dartigaud: Delírio Dartigaud: Uma fábula historiográfica. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, Morrinhos, v. 8, n. 3, set./dez. 2017.

“Sentimento e objetividade”, “memória e legitimação”, “fascínio e ceticismo” são dilemas profundamente vinculados ao trabalho do historiador. As incertezas que acarretam envolvem os usos contemporâneos do passado, repartidos entre o crescente interesse público pela história e a percepção acadêmica de que ela nada tem a ensinar. Em nossa economia simbólica, permeada pela transformação de sentimentos poderosíssimos, como a nostalgia, a mais-valia (aqueles que conhecem Don Draper sabem do que estou falando), esses usos podem ter trazido consequências ao ofício que ainda não foram totalmente elucidadas.

Afinal, o que impele o historiador a escolher um determinado tema e um determinado método? Imperativos morais e sentimentais próprios a cada indivíduo, agendas ético-políticas ativas na comunidade que os dota dos instrumentos analíticos necessários à pesquisa certamente comparecem em suas preferências. Mas há, talvez, uma questão de fundo, a saber, a interação entre, na falta de um termo melhor, o “desejo de presença” que nos impele aos arquivos e o trabalho hermenêutico voltado à restituição da historicidade dos objetos estudados. É à dramatização dessa dinâmica que o novo livro de Christian Jouhaud se consagra, introduzindo suas reflexões no formato de uma fábula historiográfica.

Tudo começa com um mergulho para fora do tempo. Em 17 de julho de 1962, o espeleólogo2 francês Michel Siffre conduz uma experiência radical: após três horas de descida ele atinge a profundidade de cem metros na caverna de Scarasson, situada fronteira franco-italiana dos Alpes. Dispondo de um caderno de anotações e de um “magnetofone” (que usava para informar uma equipe de acompanhamento médico), Siffre permaneceu, de resto incomunicável, de modo a atingir o objetivo a que se propunha, isto é, viver “fora do tempo”.

Os resultados da experiência foram brutais – física e psicologicamente. O então jovem de 23 anos havia perdido a noção do tempo, desregulando drasticamente hábitos alimentares e a rotina do sono. Conforme relato que consta no livro que escreveu sobre sua experiência (Hors du Temps, 1963), quando questionado sobre a data em que imaginava estar ao sair da gruta, errou por vinte e cinco dias.

Seu ordálio teria inspirado outro caso, anos mais tarde. É nesse período, que Christian Jouhaud situa o personagem de sua ficção, o historiador René Dartigaud, cuja desejo de conhecimento imediato do passado o leva a desencadear uma “experiência de imersão historiográfica” (p. 7). Embora inspirada pelo programa de Siffre, ela diferia radicalmente em sua finalidade; se este havia mergulhado no abismo para “perder o tempo”, aquele desejava avidamente recuperá-lo.

Dartigaud cogitava que a única forma de contemplar o passado seria entrar em uma espécie de máquina do tempo erudita. Ela fora “construída” em uma casa na região estudada pelo historiador, Saint-Croix-du-Mont, e destinava-se a replicar as condições de vida da época de seu interesse, o século XVII. Uma vez instalado nela, seu isolamento era quase total: a alimentação e os documentos disponíveis nos arquivos eram levados à casa sem que ele tivesse contato com os mensageiros, e, todos os aparelhos eletrônicos foram banidos.

A voracidade com que conduziu seu projeto acarretou sequelas tão ou mais graves que aquelas experimentadas por Siffre. Poucos meses depois de trancar-se em seu laboratório, Dartigaud foi encontrado em estado catatônico, o que resultou em sua internação em um hospital psiquiátrico. Aparentemente incapaz de se lembrar do período em imersão, Dartigaud passou os primeiros dias falando compulsivamente do tema da avidez, sem deixar de se condenar pela “insaciável profanação do tempo” (p. 15) que teria cometido.

Somos apresentados pelo narrador a alguns vestígios deixados pela experiência de Dartigaud. Em primeiro lugar, um breve relato manuscrito feito após o período de sua internação em um hospital psiquiátrico, na sequência do confinamento. Além dele, dois documentos são encontrados nos arquivos do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS: de um lado, o “contrato” que estabelecia as normas do confinamento historiográfico; de outro, o “projeto” que o subsidiava.

A leitura do contrato paródico introduz elementos determinantes para a compreensão do caso. Dartigaud é de saída satirizado como um lunático, à medida que o “grupo de pesquisa” ao qual se vincula para a consecução do projeto é constituído, ao que parece somente por ele. Assim, o contrato é firmado entre René Dartigaud e o diretor do “Grupo Experimental de Imersão Historiográfica”, dirigido por René Dartigaud.

O projeto de pesquisa remetido ao CNRS sustentava um objetivo bifronte, orientado tanto a “escrever a história das atividades sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais” (p. 11) da Saint-Croix-du-Mont seiscentista quanto a observar seu próprio comportamento no processo, estabelecendo os impactos de sua situação de imersão a partir da hipótese de que a restrição a todos os artefatos do presente culminaria no contato direto com o passado, cuja presença radical tornaria visível o que estava morto. Recusando-se a empreender qualquer tentativa de demografia histórica (o que sugere a distância para as inclinações de seu métier naqueles anos), Dartigaud planejava conhecer os “personagens mais visíveis” da vida citadina, sobretudo do ponto de vistas das ações destinadas a estabelecer sua unidade social.

Pouco a pouco, o historiador recupera a memória de sua experiência, e ela é descrita na chave do arrebatamento provocado pela avidez com que perscrutou o passado. Ao invés de ser preenchido pela exuberância da “presença”, o que viu foi a ruína de um “tempo abolido, atingido pela corrosão universal” (p. 16-17):  Sentia-me imobilizado e congelado pelo encantamento de alguma fonte invisível, petrificado pelos mil fios grudentos de uma teia de aranha […]. Não passo de uma pedra fria, um rochedo colocado na entrada da fúnebre gruta onde nascem os infernos. Estou condenado (p. 18).

O processo de cura de Dartigaud começa quando ele encontra uma bicicleta arruinada no hospital. Em seus relatos, afirma que foi a tentativa de consertá-la que o despertou do delírio que o experimento havia lhe imposto, e que estava calcado num sentimento de melancolia. Todos os lugares que visitara emanavam sombras da presença que o faziam sonhar. Cada silêncio soava-lhe como um convite a que resgatasse os ruídos que outrora coloriam Saint-Croix-du-Mont, todos os vivos lembravam-lhe dos mortos que poderiam ser ressuscitados. Como a pressão para que efetivasse essa operação fosse incontornável, Dartigaud só conseguia qualificá-la de inebriante; as sombras eram uma fonte inesgotável que ele sorvia “como aguardente” (p. 29).

Mas, a restauração da bicicleta permitiu-lhe enveredar por operações de outra ordem. Ao invés de sonhar com a presença daqueles que a usaram, bastava recuperá-la. Para isso, era necessário refazer certas peças, peças novas, porém idênticas àquelas perdidas, o que exigia por sua vez, a invenção de ferramentas apropriadas. A bicicleta em si não tinha qualquer importância; o que de fato valia o seu tempo era a ação de torná-la útil uma vez mais, de fazer suas rodas girarem como giravam em 1865, data de sua criação.#

“A meu ver, a bicicleta, enquanto objeto, não tinha de fato a menor importância. Poderia ter sido qualquer outro objeto. Tudo residia na ação. Na densidade, na plenitude dessa ação sem sonho, sem sombra e sem presença” (p. 31). Sem que fosse realmente possível andar nela, a bicicleta não era mais do que comemoração, e não presença viva do passado. Nesse sentido, a bicicleta serviria de elogio à utilidade “como artefato radical de uma presença eficaz” (p. 86).

Esse discernimento o tirou definitivamente da ala psiquiátrica e o trouxe de volta aos estudos. Professor universitário conhecido, passou a defender os valores de uma erudição ascética desconfiada das “miragens” que o anseio pela presença do passado poderia suscitar. Contra toda metafísica dos espectros, Dartigaud realizava, aula após, aula, um exorcismo terapêutico apto a mitigar sua aflição, canalizada em prol da admoestação metodológica.

Mas, esse comportamento apenas relegava o problema ao segundo plano, pois o engajamento de Dartigaud sinalizava a persistência da experiência na forma de trauma, o que proporciona uma resposta cômico-pedagógica àqueles que imaginam que reações aquelas aulas semelhantes a sessões de terapia podem ter suscitado nos alunos. Para ficar na alusão alcoólica convocada pelo protagonista anteriormentr, Dartigaud cala sua angústia fundando uma espécie de “epistemólogos anônimos”, verdadeira clínica de orientação contra delírios historiográficos.

O livro de Christian Jouhaud metaforiza modalidades da produção de presença, e, para atingir esse objetivo, mobiliza discussões que se vinculam à sua obra. Historiador da política e das práticas letradas francesas seiscentistas, Jouhaud notabilizou-se com a publicação de Mazarinades, la fronde des mots (1988), objeto do último texto de Michel de Certeau, uma resenha bastante elogiosa. De modo geral, tem se preocupado com a restituição das “tecnologias escriturárias” outrora vigentes, sobretudo de escritos elaborados no âmbito de polêmicas e/ou a serviço dos poderes monárquicos.

Em livro recente, Richelieu et l’écriture du pouvoir (2015), somos apresentados a esse programa através da análise da ressonância dos escritos produzidos em torno do cardeal (portanto, em seu primeiro ambiente de consumo), mas não só. Tomamos ciência de seu funcionamento como ações cujo propósito era garantir que seus leitores futuros fossem persuadidos pelos argumentos originalmente comunicados, instilando o apagamento de certos personagens e ideias e a preservação de outras.

A persistência de sombras que são propriamente vestígios das ações passadas irrevogavelmente perdidas rebate no vocabulário do “espectro”, segundo a acepção delirante de Dartigaud. Em debate sobre o livro, Jouhaud diz ter retomado as definições de “espectro” de Derrida para discutir seu uso do conceito. Em Espectros de Marx, Derrida define os espectros como frequências invisíveis (no sentido de uma presença sutil, como uma vibração radiofônica) que apenas a visibilidade poderia captar. O conceito de visibilidade, aqui, escapa ao de visão, sendo compreendido como possibilidade de perceber; quanto às frequências, elas seriam detectáveis por seu caráter repetitivo – os espectros são révenants, sempre de regresso, sempre disponíveis para tentar perfurar a espessa camada de visibilidade e atingir nossa visão.

A interação entre esses dois elementos traduz-se na experiência do tempo: se os espectros não podem ser vistos por não pertencerem à ordem do fenômeno, podem ser apreendidos, porque deixam vestígios recorrentemente. Uma vez flagrados pela visibilidade, tornam-se passíveis de “tradução”, abandonando o plano espectral para emergir (retornar) como representações, imagens – em suma, fantasmas.

A conversão da condição espectral irmana-se ao trabalho do luto. O espectro é algo que nos vê, mas que jamais poderemos contemplar em sua forma original, lição aprendida a duras penas por Dartigaud. Transposto para toda a comunidade de Saint-Croix-du-Mont ao longo dos séculos de sua existência, essa limitação tem consequências devastadoras. O conjunto de ruínas que sinaliza para aqueles passados jamais se presentificará nos termos inicialmente pretendidos, condenando a atividade do historiador a um interminável (e, para alguns, doloroso) trabalho de contrição.

A metodologia histórica de Dartigaud é descrita, por isso, no registro de categorias psicanalíticas. Lembremos que Derrida escreveu Espectros de Marx para (e contra) Freud, o que provavelmente não escapou a Jouhaud, uma vez que este publicou La folie Dartigaud em uma coleção penser/rêver, voltada a escritos de psicanálise.

A segunda parte do livro dedica-se, aliás, à investigação do psicanalista, que persegue os vestígios de Dartigaud após sua morte. O modelo dessa investigação é historiográfico-detetivesco, mesclando a leitura dos vestígios disponíveis, isto é, os documentos que compõem o corpus Dartigaud, a diligências, como uma visita a Saint-Croix-du-Mont, onde ele foi enterrado, e a tentativa de estabelecer quais foram seus últimos passos, graças ao apoio de um amigo policial.

Sua avaliação é que, no caso de Dartigaud, o luto não conseguiu represar a melancolia, e dessa combinação infeliz despontaram a angústia e a subsequente vigilância maníaca da penetração da nostalgia nos trabalhos de outrem. Como constata o narrador, “a aridez de sua escrita de historiador visava a abolir toda ressurgência da nostalgia” (p. 64), e “não há um parágrafo sequer escrito por Dartigaud após a saída de sua fase ávida que não possa ser encarado como uma recusa da ideia de que o passado possa ser tornado presente pela escrita que o elabora” (p. 75).

Entretanto, o regresso dos espectros ignora seu ascetismo, impondo uma ameaça temível: ao se recusar a admitir alguma forma de presença do passado, Dartigaud terminou se transformando, ele mesmo, num espectro. O vetor desse risco, na opinião do analista, é a afasia: quanto mais lutava contra a presença das imagens, quanto mais buscava a “verdade da história sem sombras” (p. 86) ao censurar o discurso, mais ele se silenciava (p. 84).

Graças a esses esclarecimentos, a natureza da turbulência emocional de Dartigaud fica menos nebulosa: de um lado, o excesso de vozes trazidas à tona pelo experimento de imersão o enlouqueceu; de outro, o silêncio absoluto a que se condenava ao declarar-se contrário a qualquer forma de interação com os espectros não lhe garantia conforto. Irrompe, assim, um questionamento abrangente: seria de fato desejável evitar a valorização intelectual da nostalgia como antídoto válido contra o celibato enaltecido pela fria monumentalização?  Sabemos muito pouco sobre Dartigaud para tirar conclusões pormenorizadas quanto a sua conduta. Todavia, as angústias que simboliza soam como um comentário à constatação de Michel de Certeau de que o trabalho do historiador residiria na superação do papel de “adivinho” intuído por Michelet, devendo se comprometer, antes, com a formulação de monumentos eruditos que preenchem vazios de resto insondáveis. Recorrendo a Freud, Michel de Certeau mobilizou a categoria de luto num sentido que ultrapassa o psicanalítico, propondo-o como chave epistemológica para o exame de um passado irremediavelmente perdido. É o que achamos em História e Psicanálise:

Meio século depois de ter sido afirmado por Michelet, Freud observa que, de fato, os mortos “voltam a falar”. Não mais como pensava Michelet, pela evocação do “adivinho” que seria o historiador; “isso fala”, mas à sua revelia, em seu trabalho e em seus silêncios. Tais vozes, cujo desaparecimento é o postulado de qualquer historiador que as substitui por sua escrita, remordem o espaço do qual estão excluídas e continuam falando no texto-homenagem que a erudição ergue em seu lugar.

O corolário dessa prescrição, isto é, a defesa de que é metodologicamente conveniente preocupar-se mais com os dispositivos através dos quais as vozes espectrais serão ouvidas do que com sua presença, atende aos protocolos do campo, atacando, nesse sentido, os apêndices da nostalgia – o fetichismo e o anacronismo. Entretanto, graças à versão hiperbolizada desse procedimento, que emerge da caricatura de Dartigaud, somos induzidos a constatar, por outro lado, que o ódio alimentado pelas sombras da nostalgia só pode surgir de um amor profundamente reprimido.

Assim, ao amplificar as prescrições na forma do delírio, Jouhaud descreve, em essência, a face oculta do mesmo pesadelo historiográfico, o risco do silêncio que corremos ao ignorar potências latentes da imaginação e do sonho impossível da presença. Trata-se, como se vê, de um livro curioso, e que pede análises mais detidas. Por ora, é de se destacar em La folie Dartigaud o mérito de fabular oportunamente o recalque, a inquietude e o medo, assombrações que cercam toda atividade escriturária, espectros que rondam cada historiador.

2 Cientista que estuda as cavernas e grutas.

3 CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre a ciência e a ficção. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

Luiz César de Sá Junior – Pós-Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/PNPD/CAPES). Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política – BOMFIM (RETHH)

BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte, Puc/Minas, 2013 [1930]. 486 p. Resenha de:  FERREIRA, Clayton José. Epistemologia, Historiografia e História no ensaio “O Brasil na História, de Manoel Bomfim”. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, Morrinhos, v. 8, n. 2, mai./ago. 2017.

Em sua extensa obra, Manoel Bomfim (1868-1932) produziu quatro ensaios de cunho histórico, respectivamente: A América Latina: males de origem (1905), O Brasil na América: caracterização da formação brasileira (1929), O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política (1930) e o Brasil nação: realidade da soberania brasileira (1931). Nestes livros procura descrever e compreender grande parte da história brasileira através das mais diversas fontes documentais e da obra de diversos historiadores nacionais e internacionais os quais tiveram a história brasileira como objeto de estudo. Do mesmo modo, elabora uma crítica historiográfica, debatendo questões sobre a escrita da história.#

Educador, historiador, médico e psicólogo, nasceu na cidade de Aracaju, estado de Sergipe, porém, viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde completou sua formação superior em medicina, exerceu cargos públicos, participou da fundação de jornais e revistas e se tornou professor. Escreveu alguns trabalhos dedicados a educação escolar, tal qual o livro de leitura escrito em coautoria com Olavo Bilac, Através do Brasil (1910), utilizado até a década de sessenta em muitas escolas, tendo sua última, das muitas edições, datada do ano de 2000. Sua obra adquiriu, nas ultimas décadas, uma ressignificação diante da relevância em nossa contemporaneidade de temáticas abordadas pelo autor como, por exemplo, a discussão em torno da potencialidade na multiplicidade étnica e a importância da ampliação da educação básica. Os textos de Bomfim anteriores a 1905, tal qual o discurso O progresso pela instrução proferido em 1904 e, posteriormente publicado, o artigo no jornal A República em sete de Janeiro de 1897, intitulado Dos Sistemas de ensino, e o discurso pronunciado em 1906 e intitulado O respeito à criança, também publicado, possuem um extenso material a respeito da sua preocupação com a educação no Brasil. Dada a atualidade de muitos temas trabalhados em sua obra, seu trabalho tem sido revisitado e novas edições de seus textos têm sido publicadas nas ultimas décadas, tal qual a nova edição de 2013 do livro resenhado.#

O ensaio histórico O Brasil na História de Bomfim, possui uma importante erudição teórica sintonizada a muitos dos principais historiadores, filósofos e sociólogos de sua contemporaneidade, além da análise de um grande número de fontes documentais. O livro de Bomfim se inicia com uma importante introdução a qual procura esclarecer sua compreensão epistemológica da história. Neste texto, intitulado “orientação”, é abordada a relação ontológica do ser humano com a história. Tanto em nossa existência individual como social procuramos possíveis estímulos para nossas ações de modo a norteá-las e potencializá-las. Impulsos parcamente constituídos podem resultar em constantes escolhas infrutíferas, na estagnação da ação e na instabilidade. Como a espécie humana e seu sucesso se estabeleceram através da capacidade de se organizar e agir socialmente (perspectiva construída a partir de sua leitura de Darwin), estímulos os quais projetam uma melhor sociabilidade orientam a atuação humana rumo a aquilo o qual se considera progresso em uma determinada temporalidade.#

Portanto, sentimentos socializadores ou, a preocupação ética, são constantemente abordados na busca por estabilidade dos conflitos humanos. Tais estímulos para a busca por orientação da ação são elaborados, individualmente e comunitariamente, através do compartilhamento de determinadas experiências históricas que estão centralizadas na história, na memória, na identidade e na tradição. Apesar da distância moderna entre passado e presente, as experiências humanas, necessariamente são, com maior ou menor intensidade, espaços para a constituição de alguma reflexão e orientação do agir. Dito isto, Bomfim aponta a necessidade de um esforço historiográfico que siga ao encontro desta constituição ontológica do humano para que o conhecimento histórico profissional e científico ofereça possibilidades de reflexão sobre o norteamento da realização humana, enfrentando os aspectos abstratos e subjetivos da experiência, porém, consciente da incapacidade da disciplina em oferecer prognósticos.#

A partir deste argumento, irá produzir uma crítica direcionada a historiografia nacional a qual, segundo Bomfim, possui uma metalinguagem onde se narra a história brasileira como o lugar da decadência, da desordem e da incapacidade para o progresso. Para o autor, o passado brasileiro (ou daqueles os quais viveram no território o qual se tornou o Brasil) evidencia uma profunda competência para o desenvolvimento. Se o saber histórico pode auxiliar na reflexão e orientação, já que necessariamente ou, para o autor, “instintivamente” os indivíduos se relacionam com o passado, a educação está na centralidade de seus argumentos para mediar e capacitar uma relação mais sofisticada no interior das experiências de modo a produzir uma sociabilidade melhor organizada, de ampliar o que Bomfim chama de “consciência” dos motivos para a ação frente a concepções de progresso historicamente constituídas. Uma historiografia centrada em certa hermenêutica a qual desestimula e retira a potencialidade das experiências passadas e desvia dos objetos históricos os quais demonstram outras possibilidades, fundamentava parte da constituição de uma memória e tradição desencorajadoras frente ao ideal de progresso, atribuindo crédito à falácia da incapacidade civilizacional do brasileiro.#

O primeiro capítulo retoma e desenvolve a relação entre a tradição, a memória e a historiografia no interior de uma sociabilidade ativa sob o signo da nacionalidade. Para o autor, a partir da modernidade, a compreensão coletiva a respeito do passado está diretamente associada a capacidade confiante e engajada em se produzir ideais comunitários de progresso. A aptidão para produzir e direcionar a ação coletiva produz uma maior disposição à solidariedade entre os indivíduos e, portanto, situa-se no interior da sedimentação de valores ético-morais. Seria necessária uma historiografia atenta a esta compreensão teórica, já que ai se encontra o registro mais sofisticado e preciso do passado. Após estas reflexões, Bomfim quer deixar claro que sua proposta historiográfica, mesmo enquanto crítica à epistemologia da disciplina, mantem-se atrelada à produção do saber histórico através do método, da representação do passado fundada no maior rigor e exatidão possível, e não em uma hermenêutica a qual apresente uma história irrealista, idealizada.#

Exatamente para tal aproximação do real, entende ser de vital importância que se tematize aspectos subjetivos entre as experiências passadas e sua contemporaneidade já que tais aspectos são partes incontornáveis da existência. Ainda no interior deste argumento, critica severamente a expectativa descabida de objetividade, apontando que, mesmo através de procedimentos criteriosos, ainda assim todo saber será produzido no interior de valores morais e de identidade do pesquisador. Tais vínculos entre a história e a potencialização da sociedade frente a projetos de progresso poderiam ser observados na historiografia realizada naqueles países considerados como os mais avançados. No entanto, Bomfim aponta criticamente esta abordagem quando ela produz a representação imprecisa de um passado, fantasiando e glorificando a história em um esforço de legitimação de uma equivocada superioridade hierárquica, imputando a outros países a subordinação e dependência, calcadas falsamente em argumentos de inferioridade da formação histórica, social e étnica. O que é considerado progresso civilizacional na modernidade diz respeito a uma complexa relação de saberes e técnicas produzidos pelos mais diversos povos no tempo, o que tornava esta noção hierárquica um esforço estratégico para a realização de uma política internacional favorável.#

No segundo capítulo é tematizada parte das abordagens históricas produzidas em outros países a respeito do Brasil como uma causa externa da deturpação da história brasileira, enquanto que a primeira causa interna estaria associada ao que chama de “Estado português bragantino”. Estas reflexões são voltadas, neste capítulo, com uma especial atenção aos historiadores, sociólogos e viajantes franceses os quais produziram trabalhos sobre o Brasil. Para o ensaísta, grande parte destes autores (Jean de Montlaur, Edmund de Goucourt, Renan, Koster, Gilbert Chinard, Villegagnon, Léry, Thevet, Febvre, Chateaubriand, Gauthier, Flaubert, etc.) teriam produzido muitos dos seus trabalhos buscando confirmar preconceitos e conjecturas, se utilizando de noções teóricas deturpadoras da realidade brasileira (para Bomfim, especialmente o positivismo de Comte), buscando o exótico e produzindo excessivas generalizações; escolhas inadequadas para analisar e compreender experiências divergentes do pesquisador. Como a intelectualidade francesa possuía grande prestígio, suas obras acabavam por impactar negativamente na compreensão do Brasil pelos brasileiros, deturpando principalmente a história nacional. Flexionando este argumento frente a alguns escritores, Bomfim traça grande elogio à História do Brasil (1810) do historiador inglês Southey, o qual teria produzido na grande maioria de seu livro uma sofisticada e atenta análise a qual associava as dicotomias da objetividade e subjetividade valorizadas pelo sergipano.#

Quanto à administração bragantina, esta teria estabelecido um regime centralizado que incapacitou a realização do que Bomfim compreende como uma tradição a qual poderia culminar com uma política republicana; tradição desenvolvida devido a anterior frouxidão das capacidades administrativas da metrópole, resultando em uma organização no território brasileiro relativamente autorregulada. As sublevações, realizadas até então e a partir deste momento contra o Estado, teriam sido compreendidas como resultados de uma população desordeira, sem autogoverno, incapaz frente aos ideais civilizacionais modernos, categorizadas sempre como insurgências e inconfidências e desvalorizando os movimentos sociais no registro da historiografia. No entanto, para Bomfim, se tratavam de legitimas manifestações contra o Estado, de grande potencialidade para a politica republicana, demonstrando ampla capacidade para os ideais progressistas de sua contemporaneidade.#

O terceiro capítulo dedica-se a mediação e crítica de parte da historiografia nacional. Aqui, muitos dos historiadores fortemente associados aos Estados monárquicos desde 1808 são apontados como a segunda causa interna da deturpação da história brasileira. Tais autores, especialmente Varnhagen, teriam repetido, no intuito de legitimar a política centralizadora do Estado, os argumentos os quais imputavam a população uma desordem e incapacidade atávica. Em sua crítica a Varnhagen, há uma forte desaprovação de seus procedimentos para o levantamento de fontes e dados, métodos, fundamentos hermenêuticos e teóricos. Como sua contrapartida, aponta Capistrano de Abreu como historiador ideal, de procedimentos científicos, o qual associava simultaneamente em seu trabalho fundamentos objetivos e subjetivos. Há também uma análise elogiosa a respeito do livro História do Brasil (1627) de Frei Vicente do Salvador como o primeiro e mais valoroso esforço de produção de uma história brasileira, procurando realocá-lo como verdadeiro patriarca da história nacional no lugar de Varnhagen.#

A crítica a respeito do argumento que atribui à monarquia Bragança a unidade territorial é a primeira questão a ser debatida no quarto capítulo. Neste ponto, é desenvolvida com maior densidade a compreensão de que havia certa frouxidão do Estado até a transferência do centro governamental para a até então colônia americana, o que gerou certa auto regulação administrativa a qual tendia à constituição de uma tradição republicana. Admitindo as distâncias e diversidades dos povoamentos ralos, critica especialmente o pressuposto a respeito da unificação atribuído a monarquia no livro Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha. Bomfim defende a existência de certa solidariedade entre a maior parte dos povoados na colônia, surgindo e se fortalecendo nas transações internas, nos movimentos de defesa territorial contra os holandeses e franceses, na insatisfação contra o Estado e, ainda, durante a mediação entre os interesses da colônia e os holandeses, franceses, ingleses. Segundo o autor, alguns documentos evidenciam tal sentimento ao tratarem suas questões locais apontando, para além da localidade, certo sentimento de unidade.#

O capítulo quinto se inicia através de um debate teórico a respeito dos conceitos de patriotismo e nacionalismo. Dissertando no interior do vínculo entre indivíduo e sociedade, o ensaísta discorre quanto às possibilidades de estabelecimentos de sentimentos socializantes a partir do assentamento das comunidades e seus antagonismos estabelecidos a respeito de outros grupos. A partir deste fundamento, é desenvolvida e tese de que o estabelecimento de certa tradição, de sentimentos de solidariedade e embates entre as comunidades coloniais e os holandeses, franceses, além da defesa de interesses contra os ingleses e certo hábito de se portar contra os portugueses, sedimentaram lentamente certo sentimento de identidade na colônia portuguesa americana. Tais sentimentos seriam observáveis em alguns documentos, na literatura e na divergência encontrada nas manifestações contra o Estado português.#

O capítulo de número seis da continuidade ao argumento onde o autor defende a unidade territorial brasileira como resultado de sentimentos agregadores, surgidos entre as comunidades da colônia. Também da sequência a crítica direcionada a historiografia a qual associa unidade territorial a monarquia, apontando nestes trabalhos uma metodologia pouco criteriosa, altamente associada à política do império. Para o autor, a história do Brasil evidencia, no geral, tipos sociais fortes e ativos, como os sertanejos e bandeirantes, além de uma constante resistência aos abusos do Estado. Há ainda, certo caráter de “tranquila bondade” atávico ao brasileiro, o qual se concretizou desde a experiência colonial. Em poucos momentos surgiram movimentos de separação, e quando houve, estavam associados a uma administração tirânica. Segundo o ensaísta, o processo de independência, segundo historiadores e documentos do período, demonstra a adoção do sistema imperial como uma rápida resposta para evitar o que se considerava uma real possibilidade de rompimento incisivo entre o Brasil e a corte portuguesa: a implantação de uma república. Tal processo tornaria saliente, mais uma vez, certa tradição republicana.#

Bomfim aborda no capítulo sete, parte da história portuguesa do século XVI até a segunda metade do século XVII, principalmente através da obra do historiador Oliveira Martins. Portugal é compreendido como um grande reino, de importante atividade politica, de desenvolvida capacidade mental e nacional o qual teve suas tradições e política degradadas no decorrer de suas crises econômicas. Este processo teria acirrado a maior exploração de seus domínios, produzindo o mesmo declínio nos territórios americanos do reino. O oitavo capítulo da continuidade as questões do anterior. Aqui, o sergipano da foco maior a atividade mercantil de Portugal, partindo do seu auge, e relacionando sua crise aos decaimentos das instituições e do caráter nacional do português, vulgarizando certo comportamento ganancioso e cobiçoso. Em um segundo momento o autor trata dos mesmos problemas na corte da família Bragança e de uma consequente má administração e política internacional.#

O nono capítulo apura o entendimento do autor acerca da deturpação das tradições e da sociabilidade no Brasil a partir do começo do século XVIII como consequência da crise económica e política portuguesa. Neste sentido, o autor narra e expõe seu discernimento quanto as ações da administração e comercialização portuguesa em sua colônia americana. Entre eles estão os governos de Gregório de Castro Morais e Francisco de Castro Morais e as invasões ao Rio de Janeiro realizada pelos corsários franceses Jean François Duclerc e René Duguay-Trouin, a cobiça dos mercadores portugueses apontada em episódios como na expulsão em 1643 de comerciantes em Assunção devido a sua suposta cupidez, nos problemas entre os proprietários de terra e os negociantes reinóis os quais culminaram na “Guerra dos Mascates”, na proibição do cultivo da vinha e do trigo para não prejudicar a agricultura portuguesa, a cobrança dos impostos, entre outros.#

No décimo capítulo o autor procura entender o processo de independência do Brasil a partir do que chama de movimentos nacionalistas. Muitas vezes conhecidos como movimentos nativistas e movimentos emancipacionistas, tratam-se de conflitos locais ocorridos em sua maioria entre os séculos XVII e XVIII, os quais, para Bomfim, poderiam atribuir possibilidades de sentido para o surgimento de algum sentimento socializante, de solidariedade e alguma unidade entre as comunidades espalhadas no território da colônia portuguesa nas américas. Através do apoio de documentos oficiais e de comerciantes, atas, relatos, cartas e outras fontes procura-se apontar o surgimento de alguma afetividade nacionalista, especialmente nos embates ocorridos em Minas Gerais de 1707 a 1709 e em Pernambuco em 1710 a 1711, e em 1917. Estes momentos seriam evidência da capacidade civilizacional do brasileiro, intrinsecamente fundamentada na história, deslegitimando e desmistificando os argumentos europeus os quais diagnosticavam um insucesso atávico as populações da América latina através de argumentos a respeito da mestiçagem, do clima tropical e de uma suposta história inexpressiva.

Tal sociabilidade e tendências a uma civilidade e políticas republicanas além de um maior desenvolvimento civilizacional, aspectos de uma tradição em formação, teriam sido lentamente cerceadas com a administração do Estado português e a posterior monarquia instaurada na independência. Este é o problema central dos capítulos onze e doze, o primeiro se dedicando de 1808 até a independência, e o segundo aos governos de D. Pedro I e D. Pedro II. No processo de independência teriam sido coibidas as potencialidades das experiências constituídas no passado através do pacto entre a corte bragantina e as oligarquias, estabelecendo um regime político de certa incompatibilidade às tradições locais, dando continuidade a centralização política estabelecida desde 1808. Este processo teria introduzido o hábito em se produzir funcionários administrativos “ineptos, corrompidos, prevaricadores, tirânicos”.#

Bomfim conclui que a história do Brasil revela grandes potencialidades para o progresso nas populações espalhadas pelo território. No entanto, estas competências foram constantemente reprimidas pelo descaso dos governos quanto às questões sociais, a sua instrução e educação, em favor de uma exploração comercial sustentada pelo argumento da necessidade da ordem, o que explicava o atraso frente aos ideais de progresso durante a Primeira República. Dito isto, tal atraso não poderia ser explicado por uma suposta condição determinista ou étnica, atávica aos americanos, fruto de uma cientificidade associada a identidade europeia e à políticas imperialistas: a história revelava a aptidão do brasileiro frente as adversidades. Grande parte da historiografia do século XIX teria se esforçado por legitimar a noção de que o brasileiro é um desordeiro e incapaz o qual apenas poderia manter-se unificado, como povo e território, através do regime monárquico, desvalorizando parte indispensável da história para o estímulo da ontológica orientação humana através das experiências do passado.#

O Brasil na História compõe um importante exemplar historiográfico de um célebre momento da intelectualidade brasileira. No final do século XIX e início do XX foi produzida uma erudita e específica prática de escrita tendo a história como foco e o ensaio como gênero textual destacado, elaborando o espaço para a convivência do rigor, do método e da ciência simultaneamente a subjetividade, a afetividade, a elucubração. Para além de uma compreensão particular de determinados fenômenos históricos, trata-se de um trabalho o qual possibilita a melhor apreensão da historicidade da década de 1920, da Primeira República brasileira e de sua comunidade letrada.

Clayton José Ferreira – Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Marcelo de Mello Rangel e ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].

Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT; HÉBRARD (RETHH)

SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Tradução: Vera Joscelyne. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. Resenha de: GESSER, Ana Carolina. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, n. 2 – AGOSTO-DEZEMBRO de 2016.

A obra Provas de Liberdade: uma odisséia atlântica na era da emancipação, publicado em 2014 pela editora Unicamp, é o livro mais recente de Rebecca J. Scott, na qual divide a coautoria com Jean M. Hébrard. Através de 295 páginas, este livro compõe-se de um mapa de rotas atlânticas, uma genealogia esquemática da família Vincent/Tinchant, prólogo, nove capítulos, epílogo e um caderno de imagens.

Rebecca Scott é professora de História de Direito na Universidade de Michigan, na qual leciona o curso de direitos civis e fronteiras da cidadania sob uma perspectiva histórica. Suas discussões pautam-se em discutir a legislação diante da escravidão e da liberdade. Jean M. Hébrard é professor visitante na Universidade de Michigan, cujas aulas e seminários estão relacionadas a história social e cultural das sociedades escravistas e pós escravistas do mundo atlântico.

Os autores iniciam o prólogo de Provas de Liberdade, citando uma carta enviada por Edouard Tinchant, um comerciante de charutos de Antuérpia, no ano de 1899, ao general Gómez.

No conteúdo da carta, Edouard pedia ao general que o autorizasse a utilizar o nome de Gomez para a marca de seus artigos. A citação da carta foi proposital, pois esta fonte permitiu que os autores pudessem chamar a atenção para aspectos reveladores da política e da identidade de Tinchant: a alusão das origens haitianas de Edouard para convencer o general, ao estabelecimento de seus pais na Louisiana e a justificativa dos motivos pelos quais seus pais decidiram se mudar para a França, e a insinuação acerca de “leis abomináveis” e “preconceito ignorante” como motivadores dessa migração.

É inegável o especial interesse dos pesquisadores por esta carta, pois, ela retratava um mundo atlântico em que várias lutas sobre raça e direitos estavam entrelaçadas, e no quais idéias e conceitos eram intercambiados (SCOTT, HÉBRARD, 2014). Tantas ligações os levaram a questionar sobre a própria abrangência dela. O que poderia este documento apresentar em termos de uma coesão, como a personificação de uma conexão entre as três maiores lutas antirracistas do século XIX: a Revolução Haitiana, a Guerra Civil, a Reconstrução dos Estados Unidos e a Guerra Cubana pela independência? Para responder essa questão ambiciosa, os autores seguiram os rastros do itinerário da família de Edouard Tinchant, através de registros mantidos por padres tabeliães, oficiais e recenseadores oficiais de diversos lugares. A prática investigativa levou então, os pesquisadores a todos os lugares pela qual essa família passou: começou na Senegâmbia (Senegal), foi para Saint Domingue (Haiti) no final do século XVIII, continuou até Santiago de Cuba (Cuba), Nova Orleans (Estados Unidos), Porto Príncipe (Haiti), Pau (França), Paris (França), Antuérpia (Bélgica), Veracruz (México) e Mobile (Alabama, Estados Unidos).

A odisséia dessa família despertou um interesse especial nos autores. No cerne de sua pesquisa esteve a preocupação em perceber como a exigência por dignidade e respeito esteve atrelada a importância da produção de documentos e dos movimentos políticos gerados tanto pelas grandes revoluções da época quanto por embates locais de reivindicação de direitos. Ao optar pelo encalce da trajetória dos membros dessa família, Scott e Hébrard especificam sua orientação metodológica, caracterizando seu estudo como o de micro-história posta em movimento. Esse tipo de estudo, segundo os mesmos, se apoia na convicção de que os estudos de um local ou evento cuidadosamente escolhido, examinado bem de perto, pode revelar dinâmicas não visíveis através das lentes mais familiares de região e nação.

O essencial de suas análises é, portanto, a percepção de como as experiências pessoais nos diversos espaços do chamado mundo Atlântico do século XIX, esses movimentos contínuos de pessoas e de papéis através do Caribe e da travessia do oceano permitem interconectar eventos que desvelam problemas como o da liberdade, dos fenômenos de raça e antirracismo com movimentos políticos e revolucionários.

A busca pela trajetória de homens livres de cor revela o lugar social da qual provém esses historiadores quando se observa como se apropriam de grandes elementos basilares da historiografia a partir da segunda metade do século XX: a História Cultural e a Nova Esquerda Inglesa, a micro-história e a História Atlântica. Embora hoje a ênfase na história de homens livres de cor não constitua nenhuma novidade, movimentos historiográficos como a Nova Esquerda Inglesa foram essenciais para a emergência estudos que explorassem as experiências históricas de homens e mulheres que até então tiveram a existência ignorada ou abordada de forma passiva, e ao trazer novos sujeitos para a história – a chamada história vista de baixo -, trouxe também o problema das fontes (BURKE, 1992, p. 40).

O acesso à documentação de pessoas “comuns”, portanto, também trouxe consigo problemas de método, uma vez que o acesso ao testemunho direto a essas pessoas era muito escasso. Entretanto, a vasta documentação, dentre registros de batismo, carta de alforria, correspondências, certidões, de que se munem Scott e Hérbrard, permitem – através da metodologia da micro-história – que a prática de redução de escala de observação, análise microscópica e um estudo intensivo do material documental revele indícios de sujeitos até então marginalizados.

Por meio do prólogo, também podemos observar que o lugar social de qual falam Scott e Hérbrard está profundamente ligado a um movimento de historiadores que vem desde pelo menos a segunda metade do século XX, colocando uma perspectiva atlântica em suas análises. Não por acaso, o contexto da Guerra Fria, a emergência do terceiro Mundo e a procura por um legado cultural na América do Norte levou este grupo de pesquisadores da história colonial, imperial e da escravidão, a questionarem e romperem com as fronteiras regionais, nacionais e imperiais, uma vez que estas, ao delimitarem os horizontes de pesquisa e abordarem uma perspectiva eurocêntrica, colocavam a histórias como da África e da América Latina à margem. Dessa forma, a pretensão por uma história que estabeleça conexões, comparações, observando recorrências coerências em marcos globais e interimperiais estruturados tem ganhado atenção dos historiadores, que ao focar em questões de gênero, sexualidade, raça e etnicidade têm encontrado no Atlântico um terreno fértil. O reconhecimento da História Atlântica enquanto disciplina iniciou-se com o movimento de historiadores norte-americanos dispostos a abraçar os projetos Atlânticos, e a Universidade de Michigan, onde Scott leciona, é uma das instituições onde os estudantes podem especializar-se nesse tipo de História145.

No primeiro capítulo, Rosalie, mulher negra de nação Poulard, a carta remetida por Edouard ao capitão Máximo Gómez ganha atenção para análise dos autores. Ao reportar sua própria ascendência aos haitianos, intitulando a si mesmo como um “filho da África”, Eduard conectou sua história com a dos seus pais, que tinham sofrido com embate da Revolução Americana, Francesa e Haitiana, carregando consigo o estatuto de escravos. A partir disso, chegou-se à documentação de batismo e de cartas da mãe de Edouard, e também à origem de Rosalie, sua avó, identificada como de nação Poulard.

Neste capítulo, são abordados vários aspectos da provável vida de Rosalie: o significado político de pertencer à nação Poulard, seus costumes e políticas peculiares, as condições das viagens e dos navios em que eram trazidos os cativos da costa do Senegal para Saint-Domingue (Haiti).

Embora os autores não tenham informações precisas sobre a viagem de Rosalie, o resgate de peculiaridades do seu provável itinerário atlântico forneceu-os certos elementos característicos acerca dos conhecimentos que pessoas de nação Poulard trouxeram consigo e foram difundidos durante o tempo em que permaneceram sob o cativeiro no Caribe. Uma destas características era a familiaridade com a importância da escrita: sabendo ou não ler, pessoas como Rosalie tinham a consciência que o papel poderia mudar sua condição.

O segundo capítulo, Rosalie…minha escrava, relata o processo de escravização de Rosalie em Saint-Domingue (Haiti) e os fatores – como as revoltas, repressões e a Revolução Haitiana – que levaram-na a deixar a ilha e se mudar para Jérémie (Haiti). Ao situar a paulatina importância econômica que assumiu Jérémie (Haiti) depois que Rosalie se mudou, os autores reconstituem a história de pessoas de sua rede de relações. Dentre elas, Marthe Guillaume, a negra livre que constituiu fortuna com o comércio de compra e venda de escravos. Mostram como prosperou Marthe, a importância da sua rede de conexões e apadrinhamento e de onde provinha sua renda: do trabalho de escravos, na qual Rosalie era uma. Também expõem fatores que levaram a região a atrair outras pessoas, como Michel Vincent, cujas aventuras anteriores de colono não deram certo.

O capitulo continua tecendo relações entre o contexto em que vivia Rosalie com as condições da Revolução Francesa, conectando as pressões que homens livres de cor da colônia exerciam para tentar fazer cumprir as garantias de direitos iguais e a extensão da cidadania às pessoas deste estatuto. Dessa forma, observa como discussões mais amplas, como a questão da cidadania aos homens de cor, concedia no ano de 1792 pela Assembléia Legislativa Francesa, influenciou nos interesses locais, onde os homens brancos conservadores, ao verem seu poder ameaçado, entraram em confronto com poderes coloniais acabando por induzir Guillaume, a senhora de Rosalie, a vender esta última a um vizinho, um açougueiro que era livre e mulato.

Partindo novamente para um contexto macro, os autores abordam as tensões que envolviam homens livres de cor e brancos, as repressões sofridas pelos primeiros e as implicações negativas para os escravos com as alianças estabelecidas entre os brancos do poder local com a Grã- Bretanha. Da mesma forma, salientam as alianças estabelecidas entre homens livres e escravos, e as expectativas destes em face da possibilidade de alforria. Neste meio tempo, Rosalie havia voltado ao poder de sua antiga senhora. Com este acontecimento, os pesquisadores postulam sobre a relação entre Rosalie e Michel Vincent, que em 1795 tinham dois filhos registrados, embora não possuíssem um registro de união. Marthe Guillaume, nesse mesmo ano, expressou o desejo de conceder liberdade a Rosalie, mas as circunstâncias políticas estavam dificultando a concessão de qualquer alforria. Nesse tempo, sugerem os autores, é possível que Rosalie vivesse como uma pessoa livre, e com relativa comodidade com Michel Vincent, considerando que Guillaume não se propôs a fazer qualquer reivindicação legal sobre ela.

A questão que se coloca é que, embora Rosalie provavelmente vivesse como uma mulher livre, o seu estatuto era de uma pessoa “sem documentos”, pois não possuía qualquer titulo que estabelecesse a legitimidade de seu estatuto civil. O capítulo passa a versar então sobre como o status de Rosalie, agora grávida do terceiro filho, dificultaria a situação do casal que, diante da invasão das tropas de Napoleão e a possibilidade de reescravização em Jérémie (Haiti), viu na viagem para a França uma alternativa. O capítulo termina abordando as estratégias utilizadas por aqueles que estavam na mesma situação de Rosalie e sobre como os conhecimentos de tabelionato de Michel Vincent levaram-no a forjar uma carta de alforria aos moldes do Antigo Regime, uma forma mais segura que poderia definir o destino da agora, “liberta”.

O terceiro capítulo, intitulado A cidadã Rosalie inicia caracterizando as diferenças político-jurídicas entre Haiti e Cuba, um baluarte da escravidão e de colonização espanhola. Versa sobre quais estratégias as pessoas livres de cor refugiadas do Haiti utilizaram para não voltarem a serem reescravizadas em Cuba e sobre como, a partir da morte de Michel Vincent, Rosalie, que já havia homologado o testamento deste, tornou-se sua herdeira e conseguiu com que as autoridades de Santiago assinassem o documento de alforria forjado ainda em Jérémie. Porém, novamente os planos de Rosalie são mudados pela conjuntura política das relações conturbadas entre a França napoleônica e Espanha, e diante dessas circunstâncias, os autores expõem as peculiaridades que faziam da Lousiana o território vizinho mais atraente em uma época difícil para a população francesa que vivia em território espanhol. Por fim, o capitulo termina discorrendo sobre as possibilidades e aprendizados de Rosalie, como a importância dos documentos dentro de uma sociedade escravista, as implicações da sujeição à mudança de jurisdição e a relevância do estabelecimento de uma boa rede de conexões, pois, ao enviar sua terceira filha, Élisabeth com sua madrinha para New Orleans, viu a indispensabilidade de estar integrada a uma família diante das condições adversas em que se encontrava.

A travessia no Golfo é o título do quarto capítulo, que desloca o foco narrativo para as experiências de Élisabeth, filha de Rosalie, em Nova Orleans (Estados Unidos). Os autores atentam para os percalços pelos quais passaram os refugiados, como Élisabeth, ao entrar no território da Louisina (Estados Unidos), e sobre como o rótulo de homem livre de cor a eles atribuído gerou problemáticas mais amplas acerca da questão do estatuto, pois, definia direitos, posição social e sobrevivência.

Passando de considerações mais gerais sobre a condição dos refugiados nas novas terras, este capítulo passa a abordar as boas condições nas quais Élisabeth estabeleceu com seus padrinhos, e sua relação com Jacques Tinchant, com quem se casou em 1822. Observa-se então o que os autores chamaram de uma união emblemática de novas famílias americanas, pois Jacques e Élisabeth haviam crescido em casas atravessadas por uma linha de cor: seus pais não puderam contrair união civil por serem casais “inter-raciais”. A mudança do sobrenome de Elisabeth, que agregou o sobrenome do seu pai, Vincent, na certidão de batismo dos seus filhos, foi ressaltada como um fator que a distanciava de sua ascendência escrava, além de suas boas relações com o tabelião facilitarem essa mudança.

A despeito das boas condições materiais que pessoas livres de cor como a família de Jacques Tinchant gozava, eram as restrições impostas pelas leis que geravam um descontentamento na população de cor livre. Dessa forma, a principal questão deste capítulo é a de que a prosperidade econômica, a estabilidade material de pessoas de cor e suas boas relações sociais não eram suficientes para mitigar as limitações impostas a elas, pois não podiam contar com direitos pra si e nem para a educação de seus filhos. Os autores terminam então, discorrendo sobre como Jacques deixou seus negócios aos cuidados de seu meio-irmão e os motivos prováveis da decisão de viajar com sua família para a França, onde sua mãe adoecida o aguardava.

O quinto capítulo, com um título bastante sugestivo, A terra dos direitos dos homens mostra como as motivações pessoais de migração de Jacques estavam atreladas à promulgação do Código Civil Francês e a Carta Constitucional de 1814. Ao estabelecerem a igualdade legal a todos os cidadãos, estendendo a todos o gozo de direitos civis e políticos por homens de cor livres, essa mudança na legislação atraiu a família de Jacques e Elisabeth pela perspectiva de educação e respeito para os meninos e de direitos para eles próprios, assim como a possibilidade de se tornarem proprietários de terras.

O acesso a um bom acesso educacional permitidos pela França, na qual os filhos de Jacques foram inclusos, juntamente com a boa fase dos negócios do mesmo, ocupam as páginas deste capítulo, que relaciona a prosperidade política desta nação com o gozo dos direitos civis experimentados no liceu pelos filhos de Jacques e Élisabeth. O filho mais velho do casal, Joseph, ganha a atenção no final deste capitulo, pois seus interesses particulares pelas aulas sobre direito e filosofia desvelam, além das idéias e conteúdos que faziam parte da educação formal de alunos como ele, o que o legado da Revolução Francesa deixou para a formação das concepções que professores das universidades tinham acerca de raça, cor, direitos civis e políticos e os militantes das causas abolicionistas. Porém, este capítulo também termina mostrando como a volta da situação política conturbada na França, juntamente com as adversidades econômicas enfrentadas por seu pai levaram Joseph a manter a tradição familiar dos Vincent-Tinchant em considerar atravessar o atlântico para, ao lado de seu irmão mais velho Louis, que havia ficado em New Orleans (Estados Unidos) quando seus pais resolveram viajar para a França, trilhar novos rumos.

Diante da viagem de Joseph para New Orleans (Estados Unidos), o capítulo seis, Joseph e seus irmãos, inicia expondo as possibilidades e limitações que ali encontravam homens livres de cor, chamando novamente a atenção para a fronteira entre escravidão e liberdade. Joseph e Louis, diferentemente de seu pai, não possuíam o mesmo conhecimento de produção rural, mas encontraram na produção e comércio de charutos – uma prática comum entre homens livres de cor – uma saída para obter lucros. A herança deixada pela madrinha de Élisabeth, composta em parte pela propriedade de escravos, permitiu a investida neste novo negócio.

Recursos financeiros de Jacques advindos da venda de parte das terras que possuía na Lousiana (Estados Unidos) forneceram o capital para a expansão dos negócios e, depois de Scott e Hébrard ocuparem as páginas deste capítulo para contextualizar o comércio de tabaco entre os vários pontos do Atlântico, concluíram que a Bélgica pareceu ser a melhor opção para as investidas além-mar de Joseph, que passou a morar em Antuérpia (Bélgica) com o resto da família, enquanto Louis cuidava da parte de produção na Louisiana (Estados Unidos).

Porém, novamente mudam-se os planos dos Tinchant, e agora era o contexto propiciado pela guerra da Secessão – culminando com a separação da Lousiana da União em 1861 – que levou os irmãos Tinchant a migrarem novamente para os Estados Unidos diante da má situação dos negócios. Além dos problemas que Joseph teria que lidar nos negócios, seus pais resolveram enviar Édouard, seu irmão mais novo, para New Orleans, após este manchar a reputação da família em Antuérpia (Bélgica).

A narrativa dos autores chega, assim, a Édouard. Buscar entender como a vida anterior em Antuérpia (Bélgica), que permitira que tivesse acesso a níveis educacionais, acabou influenciando as opções políticas abolicionistas de Édouard foi o objetivo deste capítulo. Além da militância pela causa na imprensa, ele acabou envolvendo-se na luta com as tropas da União, mas sua posição em não lutar novamente e a decisão em permanecer na Louisiana (Estados Unidos) quando seus irmãos estavam migrando para o México foi a chave para entender os intempéries daqueles que como Édouard, lutavam pela igualdade de direitos e pelo fim da escravidão: o alto comando da União era cúmplice dos preconceitos de uma sociedade escravista.

O sétimo capítulo, que tem como título É preciso fazer com que o termo direitos públicos signifique alguma coisa, descola o foco de análise para a atuação política de Édouard na Louisiana (Estados Unidos). Para compreender o entendimento do que Édouard tinha acerca do conceito de cidadania, os autores retomam a bagagem intelectual trazida da França, que explica a definição do que ele entendia por direitos públicos, ao mesmo tempo em que observam a cautela que teve ao utilizar o termo igualdade de direitos nos Estados Unidos, dadas as particularidades segregacionistas deste país.

A posição ideológica de Édouard, atrelada ao seu apoio político à União é destrinchada ao longo do capítulo, que mostra principalmente como Édouard ganhou suporte político e participou ativamente da promulgação da Constituição da Louisiana. O reconhecimento à cidadania, independente de cor, foi uma conquista prevista nesta Constituição, que juntamente com outros debates visando direitos à população de cor levaram os pesquisadores a conjecturarem em que medida as limitações sociais impostas aos antepassados destes sujeitos podem ter colaborado para a intenção de debater esses ideais.

Embora nem todas as idéias de Édouard fossem acatadas no texto final, os autores versam sobre os direitos públicos que essa Carta permitiu as pessoas de cor, e sobre seus reflexos na arena legal, como a permissão para que pessoas provenientes de famílias humildes pudessem, por exemplo, entrar na justiça caso fossem barradas em lugares de comércio.

A despeito dessas conquistas, este capítulo mostra como os direitos às pessoas de cor previstos nessa Constituição, ao conflitar com os interesses da Suprema Corte, fizeram com que os artigos referentes a direitos públicos fossem removidos e com que Édouard e seus companheiros perdessem poder e consequentemente, o emprego com o aumento do segregacionismo, principalmente nas escolas. Edouard lecionava, e essa situação forçou-o, juntamente com a família que formou, a migrar. Por fim, o capítulo termina discutindo os motivos para Édouard escolher Mobile (Estados Unidos) como o lugar que teria que reconstruir sua vida.

Horizontes de comércio, o oitavo capítulo, desloca o foco para a história dos outros filhos de Jacques Tinchant e Elisabeth Vincent: Jules, Pierre e Joseph, para mostrar o que teria acontecido com eles após a abertura do comércio de charutos, quando cada um cuidou de uma parte do comércio. Resgatam as intempéries que Jules e Pierre passaram quando trabalham com o comércio no México sob a influência e ocupação francesa para mostrar como as guerras atrapalharam seus negócios e dos motivos da migração de Joseph para o México.

A forma como os quatro irmãos mais velhos da família Tinchant se estabeleceram com a produção e comércio de charutos é mostrada através dos vários percalços e intrigas que os acompanhavam. O grande acúmulo de dívidas foi apontando como a principal causa da migração de Joseph, que em busca de novos mercados, mudou com a família para Havana, onde fez boas relações e novamente a viagem para a Antuérpia (Bélgica), finalmente obtendo sucesso com a criação de uma companhia de charutos com o nome de Tinchant y Gonzales. Os autores observam então, como a conexão entre este nome com a América Latina, juntamente com a cidadania mexicana conseguida anteriormente por Joseph, reforçaram aos seus charutos um ar de qualidade, distanciando-o da identidade da ascendência de escravos que foram trazidos para a América. A invenção desta “tradição”, portanto, criou um status que permitiu o sucesso na produção e venda de charutos.

Passa-se então à analise da sina de Édouard. Estabelecendo a sua companhia de charutos em Mobile (Estados Unidos), dedicou-se aos afazeres de um homem de negócios e as responsabilidades de pai de família, principalmente porque era um mau momento para se envolver com política em Mobile, visto que o Alabama era um estado extremamente racista. Quando estava começando a se estabelecer, ele e sua família desaparecem de Mobile e se mudam repentinamente para Antuérpia (Bélgica). Os autores atribuem essa mudança a motivações por política, negócios e família, uma vez que Édouard fora trabalhar com Louis e chamou a nova política republicana na presidência de “leis abomináveis” e “preconceitos ignorantes”.

Enquanto Édouard nunca fez questão de relacionar seus charutos à Havana ou a Europa, e sempre relacionando o nascimento de seus pais as lugares que lembravam deles, Joseph e seus descendentes faziam referências a origens aristocratas espanholas e francesas que achavam estarem entre seus antepassados e, nessas atitudes, residem as diferenças entre os irmãos: a exclusão da menção de exílio, a luta pelo republicanismo e por igualdade de direitos foram excluídas dessa narrativa sobre a ascendência familiar por parte daqueles que obtiveram sucesso comercial cosmopolita, que não queriam ser associados a preconceitos de cor.

Após o capítulo anterior focar no sucesso econômico dos irmãos Tinchant, o nono e último capítulo, intitulado Cidadãos para o bem da nação, mostra como a questão da cidadania alcançada a nível nacional devido às múltiplas viagens atlânticas de Joseph e seus irmãos interferiram por um lado, na tentativa dos irmãos Joseph e Ernest, no ano de 1892, em buscar a grande naturalisation, que conferia direitos políticos e civis a um cidadão belga e por outro de Édouard de buscar a nacionalidade francesa.

Chama-se atenção aqui para as restrições da lei e o preconceito racial, embates que Rosalie e seus descendentes tiveram que lidar, desenvolvendo táticas engenhosas: ora fugiam de guerras, ora participavam, ora expressavam-se politicamente, ora calavam-se. A reivindicação da cidadania e de nacionalidade nos diversos lugares que estiveram, juntamente com todas as ações mobilizadas ao longo desta narrativa, permitiram perceber a magnitude de forças que foram necessárias para o alcance de seus direitos.

“Por um motivo racial” foi o título escolhido pelos autores para narrar a odisséia de Marie-José Tinchant. O relato da ousadia da neta de Joseph Tinchant na imprensa, nos tribunais e sua participação política na guerra como militante presa permitiram aos autores perceber como as questões raciais interferiram na construção de uma memória política sobre a mesma, pois, quando os descendentes de Marie-José entraram na justiça, alegando serem beneficiários de uma prisioneira política, a justiça belga atribuiu à razão de sua prisão pelos nazistas como sendo um motivo racial.

Quando a filha de Marie-José, em 2010 finalmente conseguiu, por parte das autoridades de Bruxelas, o reconhecimento da prisão de sua mãe como prisioneira política, já havia migrado para o México em busca de suas raízes familiares naquele país.

A partir da observação da escrita dos capítulos, percebemos como os autores de Provas de Liberdade evocam a trajetória de alguns indivíduos do passado através da sequência dos acontecimentos e das interações conscientes destes com um contexto maior, trabalhando sempre com um “jogo de escalas” para explicar como uma conjuntura de guerra, ou de luta política, por exemplo, influiu em suas atitudes. Assim, Scott e Hérbrard, ao tentar compreender as ações destes indivíduos, reproduzem no interior deste discurso desdobrado, a relação entre um lugar do saber e sua exterioridade. É essa distorção que nos permite então, perceber ocultos no texto, sobre o lugar de onde falam seus autores.

Concomitantemente, ao colocar em cena a trajetória destes sujeitos, a construção narrativa dos autores permite que a sociedade se situe em relação a um passado e abre espaço para o presente. Como observou Certeau, a escrita “faz mortos para que os vivos existam. Mais exatamente, ela recebe os mortos, feitos por uma mudança social, a fim de que seja marcado o espaço aberto por este passado e para que, no entanto, permaneça possível articular o que surge com o que desaparece.” (CERTEAU, 1982, p. 107). A família Tinchant e os indivíduos estão mortos e os percalços, intempéries, forças que eles tiveram que lidar morreram com eles, naquela sociedade que é diferente da nossa, como o livro de Scott permite observar. Ao mesmo tempo em os descendentes dos Tinchant se afastavam dos estigmas e estereótipos atribuídos à ascendência africana, não tendo que lidar com as mesmas situações que seus antepassados, constituíam uma memória familiar, e é essa memória que revela permanências e conecta o mundo dos vivos àquele “enterrado” pela escrita da história.

Referências

BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1982.

GAMES, Alison. Atlantic history: definitions, challenges, and opportunities. In: The American Historical Review, vol. 111, nº 3, 2006.

SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de Liberdade: uma odisséia na era da emancipação. Tradução: Vera Joscelyne. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.

Ana Carolina Gesser – Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Bosista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. E-mail: [email protected].

Retromania: Pop Culture‘s Addiction to Its Own Past – REYNOLDS (RETHH)

REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture‘s Addiction to Its Own Past. London: Faber & Faber, 2011. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Presos no tempo: retrô, cultura pop e experiência da história. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia v. 5, N.1, Janeiro-Julho de 2014.

Pedro Telles da Silveira*

Billy Pilgrim has got unstuck in time

KURT VONNEGUT

Em 1977, a cantora norte-americana Donna Summer lançou o álbum intitulado I Remember Yesterday. Produzido pelo italiano Giorgio Moroder, o disco era unificado pelo fato de que cada uma de suas oito faixas encarnava o estilo de uma década específica, seja os anos 1920, 1950 ou 1960. O que distinguia o disco de tantos outros que, já naquela época, procuravam emular o som gravado em décadas passadas, era sua última faixa, o hit da música disco ―I Feel Love‖, a qual não representava um momento histórico específico mas indicava simplesmente o futuro. Antes da passagem dos anos 70 para os anos 80, portanto, o futuro ainda era passível de ser imaginado.

Comparando com a primeira década do século XXI, o futuro, argumenta Simon Reynolds, começou a parecer cada vez mais distante ou indistinto, como se fosse meramente uma continuação do presente (REYNOLDS, 2011, p. 372). Para ele, a última década foi marcada pelo fato de que a ―sensação de se mover para a frente diminuiu conforme a década se desenrolou. O próprio tempo parece ter ficado lento, como um rio que começa a se perder em seus meandros e formar poças‖ (REYOLDS, 2011, p. X). Ao mesmo tempo, a década foi marcada por revivals que a fizeram ser a primeira, em muito tempo, a não possuir uma cara própria. O que mudou entre Donna Summer e Amy Winehouse? Simon Reynolds é jornalista com larga atuação nos maiores veículos da mídia musical impressa inglesa das últimas décadas (New Musical Express, Melody Maker, Wire etc.). Desde sua mudança para os Estados Unidos em finais da década de 1990, ele vem atuando como jornalista freelancer, dedicando-se à composição de livros dedicados à história da música eletrônica e do post-punk (REYNOLDS, 1998; 2005). Sua escrita é marcada pela utilização de um denso vocabulário conceitual e por um conhecimento quase enciclopédico da história da música do século XX, mesclando a escrita jornalística, a crítica musical e a teorização cultural.

Os contextos analisados por Reynolds em seus demais livros foram marcados por uma intensa atividade criativa que os fazia ou romper laços com o passado ou tornar o futuro incerto porém cada vez mais palpável. A sensação de estar vivendo no futuro, entretanto, foi substituída pela de ter chegado tarde demais ao mundo (REYNOLDS, 2011, p. XXII). No contexto do pop, esta mudança é ainda mais estranha, uma vez que O pop deveria ser todo sobre o presente, certo? Ele ainda é considerado o domínio da juventude, e os jovens supostamente não deveriam ser nostálgicos, afinal eles não estão por aí há tempo o bastante para construir um repertório de preciosas memórias (REYNOLDS, 2011, p. XVIII-XIX).

Ao longo do livro, são explorados vários sintomas relacionados a esta situação, os quais vão da tecnologia ao comportamento. O advento da internet, das mídias digitais e da conexão de banda larga significou uma compressão do tempo e da experiência histórica, fatiando o contínuo temporal em pequenos excertos que podem ser facilmente manipulados pelo usuário de acordo com a extensão de sua capacidade de atenção (basta pensar no Youtube) (REYNOLDS, 2001, p. 61, 69). Isto é acompanhado por uma transformação do conceito de criatividade, com o artista não sendo mais percebido como um criador mas sim como um curador ou compilador (REYNOLDS, 2011, p.

130). Esta transformação, que vem justamente do contexto da arte contemporânea das décadas de 1960 e 1970, ressoa fortemente na produção cultural das últimas décadas, onde a recombinação de tropos e clichês, resultando numa colagem de referências muitas vezes explícitas, é algo a ser esperado mais que evitado. Por último, a aproximação entre o consumo cultural e a moda, através da qual a combinação entre ―consumismo elevado e a criação-vista-como-curadoria‖ acaba na ―conversão da música em signos de estilo e capital cultural‖ (REYNOLDS, 2011, p. 170).

Quanto a este último ponto, se poderia estar tentado a argumentar a respeito da natureza de distinção social de todo gosto cultural, na vertente da teorização de Pierre Bourdieu (2007). O problema identificado por Reynolds, entretanto, é mais complexo, partindo de sua própria recusa a conceder espaço a interpretações que buscam analisar a cultura pop apenas numa relação mercadológica ou no cálculo de fins e meios. Como afirma em determinado momento, a cultura pop é marcada pela contradição fundamental entre ―sua mediação pelo capitalismo‖ ao mesmo tempo em que se ―refere a valores que o transcendem‖ (REYNOLDS, 2011, p. 197).

No contexto analisado por Reynolds, é justamente o fato de que a música (assim como outros aspectos culturais) não é utilizada como signo de distinção social, no sentido de constituir subculturas unificadas, que chama atenção. Com isso, é o próprio ato de consumir, e não o que é consumido, elidindo a diferença entre alta e baixa cultura, que cria esta distinção. A fidelidade a um estilo ou gênero musical, assim como a um suposto estilo de vida, é tão passageira quanto as coleções que as marcas de moda lançam a cada estação.

O autor aponta apenas negativamente, porém, que a ausência de ―tribos‖ é o reflexo de uma história do pop que se fragmenta conforme o próprio conceito de uma cultura pop se desfaz. Quando apenas grandes gravadoras (no caso da música) virtualmente detinham o monopólio da produção da música pop e a dependência da mídia física correspondia ao controle por estas mesmas empresas dos canais de distribuição, era mais fácil pensar que havia apenas uma narrativa que reunia temporalmente os diferentes objetos de consumo. O viés interpretativo do autor lhe faz perder a oportunidade de refletir sobre a própria cultura pop atualmente, centrando sua atenção sobre o que, para ele, deveria ser uma vanguarda (os hipsters); se, contudo, ele adotasse uma perspectiva ligeiramente diferente, poderia ver com melhores olhos um contexto no qual a cultura pop vai se tornando sua própria alta e baixa cultura, dependendo dos horizontes do receptor, como o conceito de afterpop de Eloy Fernandez Porta (2007) ou, até mesmo, rompendo com esta narrativa de enquadramento do fenômeno que estuda, como já fez Karl Heinz Bohrer no seminal ensaio ―The Three Cultures‖ (BOHRER, 1987 [1979]). Apesar deste viés, a valoração de seu objeto é importante porque aponta para a própria trama do que subjaz a ele, qual seja, as transformações nos modos pelos quais a história e o tempo são experienciados.

Sendo assim, a acumulação de um vasto arquivo da própria história da música e da cultura pop significa que o passado se torna uma fonte de inspiração maior que o presente, nem que seja pelo simples motivo de que o passado se torna mais volumoso que o presente. Surge, desse modo, o retrô. Segundo o autor, o fenômeno retrô ou a retromania, como chama ―os usos e abusos do passado pop‖ (REYNOLDS, 2011, p.

XIII), distingue-se do antiquariato ou da memória histórica, primeiro, por se ocupar do passado imediato (REYNOLDS, 2011, p. XIV, XXX); segundo, por envolver uma lembrança exata do passado, ou seja, a possibilidade de replicar de modo preciso os estilos de outrora (REYNOLDS, 2011, p. XXX); terceiro, como resultado, o retrô se interessa pelos artefatos e objetos materiais desse passado recente, sendo que estes objetos frequentemente não eram os objetos valorizados na época em que foram usados, mas aqueles que eram considerados banais ou, até mesmo, de má qualidade (REYNOLDS, 2011, p. XXX); quarto, o retrô enquanto uma sensibilidade específica com relação ao passado não procura ―idealizá-lo nem sentimentalizá-lo, mas sim ser entretido e enfeitiçado por ele‖, resultando numa abordagem que não é purista e erudita mas irônica e eclética (REYNOLDS, 2011, p. XXX/XXXI).

Essas características apontam para uma transformação no modo de se relacionar com o passado e a história. A quebra de grandes paradigmas interpretativos abriu espaço tanto para uma maior projeção do passado sobre o presente quanto para um encolhimento do futuro; simultaneamente, a diferença entre os diversos contextos é reduzida a um presente amplo (HARTOG, 2013). A contribuição de Simon Reynolds se situa em colocar lado a lado os usos da tecnologia com as mudanças na experiência histórica contemporânea; parece quase um truísmo, porém é um aspecto tratado apenas tangencialmente pela historiografia mais recente que ―a internet coloca o passado remoto e o presente exótico lado a lado. Igualmente acessíveis, ambos se tornam a mesma coisa: longínquos, porém próximos…velhos, porém novos‖ (REYNOLDS, 2011, p. 85).

É justamente na intersecção entre a teorização sobre o tempo e a experiência histórica com a transformação tecnológica que o livro rende seus melhores frutos.91 Reynolds lembra que ―a cultura de massa de outrora substituiu cada vez mais os eventos políticos e as eleições como os marcadores da memória geracional‖ (REYNOLDS, 2011, p. XXIX), o que equivale a dizer que a memória histórica é cada vez mais mediada pela experiência midiática, inclusive pelas características específicas do meio de reprodução (REYNOLDS, 2011, p. 331). Em texto recente, Claudio Fogu argumentou que nós identificamos a passadidade (past-ness) mais e mais com um ―lugar‖ que com um tempo, e nós nos acostumamos cada vez mais a experienciar uma sensação ―virtual‖ da presença do passado na representação. No processo, a própria experiência temporal está sendo divorciada da representação histórica (FOGU, 2009, p. 112).92 Não é por acaso que a historicidade passa a estar inscrita nos próprios objetos, e não mais na relação que fazemos com eles (REYNOLDS, 2011, p. 163), o que explica a apropriação sensorial, estética e pouco narrativa do retrô com o passado. O jornalista britânico avalia de modo geralmente negativo aquilo que Hans Ulrich Gumbrecht (2010) defende como uma relação de presença com o passado, uma na qual a interpretação cede espaço à sensação. Parece-me que a intermediação conceitual com a reflexão sobre a mídia e a tecnologia faz o diagnóstico de Reynolds ser menos entusiasmado – e, talvez, menos ingênuo – com relação ao fenômeno que estuda que o do teórico alemão.

A questão que resta, entretanto, é se o viés negativo com que Reynolds analisa e, muitas vezes, condena alguns de seus objetos não o torna demasiadamente dependente de um conceito de história, grosso modo identificado com o conceito moderno de história centrado na noção de progresso (KOSELLECK, 2006), fazendo-o cego a abordagens recentes que a ele escapam. E se as décadas do século XX que formataram sua perspectiva teórica não tenham sido nada mais que um contexto específico, quase único, da produção da cultura pop? Se iniciativas artísticas recentes simplesmente não são feitas com base na tentativa de produzir algo novo com relação ao que veio antes, por que julgá-las então a partir de um enquadramento teórico que pressupõe a noção de progresso? A pergunta, é claro, poderia ser invertida, e é possível perguntar se, diante da apropriação irrestrita, irônica e, frequentemente, irrefletida do passado feita hoje em dia, não é a própria possibilidade de realizar um questionamento crítico como o de Reynolds que está ameaçada. Se Reynolds define a si mesmo como um modernista inveterado (REYNOLDS, 2011, p. 404), parece-me ser apenas por isso que ele julga necessário ressaltar o aspecto de dor que é parte integral da idéia de nostalgia (REYNOLDS, 2011, p. 356).

Ainda assim, sua posição pessoal lhe permite encontrar nexos que poderiam passar despercebidos. Como destaca em diversos momentos ao longo do livro, as transformações recentes no campo cultural são correspondentes a transformações na própria estrutura econômica mundial, ―uma transição da geração de dinheiro pela produção de coisas para a geração de riqueza através da informação, dos serviços e da criação de signos‖ (REYNOLDS, 2011, p. 419), de modo que ―enquanto os financistas investem em futuros, bandas (…) especulam sobre passados‖ (REYNOLDS, 2011, p.

141).93 Independente de se Simon Reynolds está errado ou não em permanecer fiel a uma narrativa modernista da cultura dos séculos XX e XXI, deve-se admitir que, quando se defende numa revista como a New Left Review que a esquerda abandone os projetos de futuro (CLARK, 2012),94 existe algo muito errado com o nosso (sentido de) tempo.

Referências bibliográficas BOHRER, Karl Heinz. ―The Three Cultures‖. In: Jürgen Habermas (ed.). Observation on the The spiritual situation of the Age. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1987 [1979].

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2007.

CLARK, Timothy James [T. J]. For a left with no future. In: New Left Review, 74, março-abril de 2012, pp. 53-75.

FOGU, Claudio. ―Digitalizing historical consciousness‖. In: History and Theory, May 2009, pp. 103-121.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo.

Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

KOSELLECK, Reinhart. ―Historia magistra vitae: sobre a dissolução do topos na História moderna em movimento‖, In: Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

LUHMANN, Niklas. ―La descripción del futuro‖. In: ___. Observaciones de la modernidade: racionalidade y contingência en la sociedad moderna. Buenos Aires: Paidós, 1992, pp. 121-138.

PORTA, Eloy Martínez. Afterpop: la literatura de la implosión mediática. Barcelona: Anagrama, 2007.

REYNOLDS, Simon. Energy Flash: A Journey Through Rave Music and Dance Culture. London: Picador, 1988.

_____. Rip It Up and Start Again: Post-Punk 1978-1984. London: Faber & Faber, 2005.

_____. Retromania: Pop Culture‘s Addiction to its Own Past. London: Faber & Faber: 2011.

*  Licenciado em História pela Universidade Federal o Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Doutorando em História pela UFRGS, sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi. Atualmente desenvolve a pesquisa intitulada Por escrituras de pedras, ou o que por nossos olhos ainda podemos ver: antiquariato, evidência da história e a cultura história do Renascimento a partir de André de Resende (1500-1593). Artigo enviado em 13/04/2014 e aceito para publicação em: 30/06/2014. E-mail: [email protected].

91 Não se trata apenas das tecnologias recentes, pois Reynolds percebe uma espécie de subversão da ordem temporal na própria origem da música gravada, uma vez que a gravação permite que uma voz seja descolada de um corpo e transportada até outro contexto, inclusive para além da vida da pessoa que a gravou (REYNOLDS, 2011, p. 312-313). Sendo assim, o processo de alargamento temporal do presente se estenderia do século XX e apenas se intensificaria nas últimas décadas.

92 O próprio Reynolds refere-se, ainda que de modo diverso, à espacialização do tempo: ―Esta espacialização do tempo faz a profundidade histórica ser abandonada; o contexto original ou a significação da música se tornam irrelevantes e difíceis de alcançar. A música se torna um material a ser usado como você quiser, seja ouvinte ou artista. Perdendo seu aspecto remoto, o passado inevitavelmente perde muito de seu mistério e de sua mágica‖ (REYNOLDS, 2011, p. 425).

93 A análise de Reynolds aproxima-se da de Niklas Luhman, a respeito da substituição dos projetos de futuro pelo gerenciamento de riscos (LUHMANN, 1992).

94 Agradeço a Arthur Lima de Ávila pela indicação deste texto.