Índios e Espaços: visibilidade e protagonismo históricos / Revista Espacialidades / 2019

Cada vez mais articulados, os povos indígenas nas Américas têm conquistado espaço e atuado nas mais diversas áreas. Grupos antes negligenciados, agora ocupam lugares de destaque nos meios políticos, artísticos, acadêmicos, religiosos e todos os mais que permeiam a sociedade. Se hoje o número de trabalhos acadêmicos que buscam explicitar os protagonismos e agências indígenas aumentaram é porque houve uma renovação teórico-metodológica contra a perspectiva na qual, por muito tempo, estes povos apareciam na história nacional de maneira alegórica, datada e estereotipada, pouco condizente com sua realidade e com os processos históricos pelos quais passaram desde o momento do contato.

Impossível não destacar a aproximação entre a Antropologia e a História para o enriquecimento das produções acadêmicas sobre estas populações e para o adensamento teórico das discussões desenvolvidas nas Universidades, que não se limitam ao meio acadêmico. O diálogo com outras disciplinas, como a Geografia, gerou pesquisas sobre os elementos culturais característicos de povos específicos sendo determinantes para migrações e estabelecimento de assentamento, bem como o diálogo com a História do Direito possibilitou compreender as bases legais para o trabalho (escravo ou livre) dos índios desde o período colonial.

Perceber integrantes destes povos ocupando espaços na sociedade que antes lhes eram negados ou aos quais eram desestimulados a ocupar, como as Universidades, o Congresso Nacional, ou mesmo o cotidiano de centros urbanos, nos faz perceber a importância de relatá-los historicamente como o são: agentes de suas próprias histórias. Expor artigos sobre as articulações políticas destes povos em momentos cruciais de nossa história nacional, sobre a importância de seus elementos culturais em sua organização social, sobre sua constante busca por direitos enquanto povos diferenciados, traz à luz a atuação constante e imprescindível desta população nos processos históricos nos quais estão inseridos.

Neste sentido, o dossiê Índios e Espaços: visibilidade e protagonismo históricos reúne artigos que mostram, de diversas formas, como os povos indígenas atuam e atuaram nestes diferentes espaços e como suas agências são imprescindíveis na escolha de seus elementos culturais diacríticos, formação de seus grupos e na luta por seus direitos, além de trazer artigos que contemplam discussões conceituais que vêm sendo travadas no universo acadêmico nos últimos anos.

Exemplo disso é a discussão sobre os conceitos de território e territorialidades nos estudos sobre os processos de transformação do meio em que os povos indígenas coloniais habitavam e como estes tiveram que lidar com estas transformações, como mostra Marcos Felipe Vicente, doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, no artigo de abertura deste dossiê, intitulado “Transformação dos espaços indígenas coloniais: algumas reflexões conceituais”.

Da mesma forma que os conceitos estão sendo revistos, a historiografia de partes específicas do país também está sendo revisitada, como a região sul de Minas Gerais, que teve grande importância no período colonial pelas minas auríferas que abrigava. Gustavo Uchôas Guimarães, professor de História na rede pública de Minas Gerais, no artigo “O trabalho de visibilização dos indígenas nos estudos sobre Minas Gerais: o caso sul-mineiro de Virgínia e seus arredores” propõe uma revisão histórica do que vem sendo produzido sobre esta região, mais especificamente sobre a Serra da Mantiqueira e o rio Verde.

O terceiro artigo desta edição traz um debate historiográfico sobre as contribuições e limitações do Estruturalismo enquanto vertente explicativa de análise dos povos indígenas, a partir de respostas às críticas tecidas por Claude LéviStrauss, publicadas no periódico L’Homme, em 2001. O artigo “Críticas ao Estruturalismo na virada do século: o debate nas páginas de ‘L’Homme’ e ‘The Americas’ (2001-2003)”, escrito por Caio Rodrigues Schechner, mestrando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, traz este debate tão caro ao campo da História e das Ciências Sociais.

Em “À luz da ‘civilização’: representações indígenas nas narrativas dos viajantes (MT, séc. XIX-XX)”, Carlos Alexandre Barros Trubiliano, Professor Adjunto de História da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, utiliza a análise de discurso nos relatos de viajantes para perceber como o Estado de Mato Grosso e seus habitantes eram representados nestes relatos. Também utilizando crônicas, relatos e cartas de viajantes e conquistadores, Bruno Oliveira Castelo Branco, doutorando em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense – UFF, investiga a etapa inicial de colonização do Paraguai, analisando a problemática das categorias de trabalho atribuídas aos povos Guarani, em “‘Paraíso de Maomé’, terra de escravos: as categorias de trabalho indígena Guarani na etapa inicial da conquista. Paraguai e Rio da Prata (1541-1556)”.

Assuntos também importantes nas produções acadêmicas sobre os povos indígenas são as questões de migrações e mobilidades espaciais. “Xukuru-Kariri: mobilidades espaciais indígenas em Alagoas na segunda metade do século XX”, escrito por Adauto Santos da Rocha, mestrando em História pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, e Edson Silva, Professor Titular de História na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, buscam evidenciar as mobilidades dos Xucuru-Kariri que residem em Palmeira dos Índios-Alagoas, para trabalhos sazonais, discutindo os percursos entre as cidades nas quais os trabalhos são realizados e as aldeias Xukuru-Kariri, durante a segunda metade do século XX.

Partindo da região Nordeste para o Norte do Brasil, no sétimo artigo do dossiê, de Daniel Belik, Doutor em Antropologia Social pela Universidade de St. Andrews-Escócia, procurou compreender as experiências espaciais dos indígenas na Amazônia ao percorrer caminhos pela floresta e como a relação deste bioma com povos externos a ele ocorre de forma distinta em “Caminhos Indígenas: Espaços de movimentação pela Amazônia”.

“Migrações Terena para a periferia de Campo Grande (MS): a manutenção de relações tradicionais de parentesco em contextos urbanos”, escrito por Luiz Felipe Barros Lima da Silva, mestrando em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, e Victor Ferri Mauro, Docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, também abordam a temática dos deslocamentos. Além de analisarem os deslocamentos espaciais de um pequeno grupo Terena, os autores investigam a manutenção de redes de parentesco e compadrio.

Vinícius Alves de Mendonça, graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, analisa as pinturas corporais dos indígenas Jiripankó enquanto elemento representativo da memória e da identidade étnica deste povo, no artigo “História e grafismos: estudos sobre a pintura corporal entre os indígenas Jiripankó”. Assim como os Jiripankó tem em suas pinturas corporais um elemento representativo da memória, os Kaingang acionaram elementos identitários culturais na luta pela demarcação de suas terras. A paisagem, juntamente com outras atividades culturais, apresenta-se como lugares de memória que foram fundamentais para a consecução da demarcação da Terra Indígena Toldo Pinhal-SC, exposta no artigo “Places of memory and cultural re-signification in the indigenous land Toldo Pinhal, Brazil” escrito por Jesssica Alberti Giaretta, graduada em História pela Universidade Federal da Fronteira do Sul – UFFS, e Jaisson Teixeira Lino, Professor Adjunto na mesma instituição e Doutor pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto-Douro(UTAD) de Portugal.

Por fim, o último artigo desse dossiê, intitulado “Um quase eterno reencontro: Ailton Krenak e a Assembleia Nacional Constituinte (1987)” e escrito por Rômulo Rossy Leal Carvalho, graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – UFPI, e Rafael Ricarte da Silva, Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Neste artigo, os autores analisam as participações dos indígenas nos processos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), especialmente, a atuação de Ailton Krenak, da comunidade Krenak.

Na sessão “Entrevista” do presente volume, contamos com a colaboração da Professora Doutora Patrícia Maria de Melo Sampaio, pesquisadora premiada da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, que durante toda sua vida acadêmica se debruçou no estudo das desigualdades, buscando compreender o universo do trabalho dos povos indígenas, africanos e as fronteiras existentes entre estas populações.

Fechando este volume, contamos com a contribuição do Doutor Francisco Cancela, Professor Efetivo da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, na sessão “Corpo documental”. “Leis municipais ou posturas da câmara e concelhos desta Vila de Porto Alegre: Notas para o estudo sobre política e administração nas vilas de índios”, apresenta as posturas municipais da câmara de uma vila de índio da antiga capitania de Porto Seguro chamada São José de Porto Alegre, lançando notas para futuras pesquisas sobre política e administração das Vilas de índios.

Desta forma, o presente volume da Revista Espacialidades busca corroborar com os estudos que versam sobre os múltiplos aspectos da experiência indígena e sua atuação nos mais diversos espaços. Através de artigos que abordam aspectos teóricos e metodológicos da produção acadêmica sobre estes povos, que trabalham suas migrações e / ou deslocamentos espaciais, bem como elementos culturais distintivos e sua atuação na política e na luta por seus direitos, busca-se contribuir de maneira proveitosa com esta temática tão importante e necessária.

O Editor Chefe e a Equipe Editorial da Revista Espacialidades desejam a todos uma excelente leitura!

Clara Maria da Silva (UFRN) – Editora de texto (normatização)

Douglas André Gonçalves Cavalheiro (UFRN) – Editor

Edcarlos da Silva Araújo (UFRN) – Gerenciador do site

Lígio José de Oliveira Maia (UFRN) – Editor Chefe

Ristephany Kelly da Silva Leite (UFRN) – Editora Gestora

Rodrigo de Morais Guerra (UFRN) – Secretário de Comunicação e Mídias Sociais

Thiago Venicius de Sousa Costa (UFRN) – Vice Editor Gestor

Victor André Costa da Silva (UFRN) – Secretário Geral


MAIA, Lígio José de Oliveira et al. Apresentação. Revista Espacialidades. Natal, v.15, n. 02, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e índios / História Social / 2013

John Monteiro e o projeto ampliado de história indígena

“É importante não reduzir o termo indígena ao seu sentido ameríndio. Pensar que o indígena pode ser também o africano, o filipino, o marroquino. Enfim, todos os que tiveram de reagir às ofensivas comerciais, à cristianização, à dominação política dos ibéricos, fossem portugueses ou espanhóis. Um ponto comum a todos esses grupos tem a ver com o processo de ocidentalização e com as múltiplas formas de responder a este processo. Nós não podemos desvincular as modalidades de cristianização dos índios do Brasil pelos jesuítas com as praticadas em outras regiões. Para entender as especificidades do Brasil é preciso pensar como isso se passou na Índia porque são processos sincrônicos que incluem o jogo duplo da colonização política e religiosa. Ambos buscavam a transformação do índio em cristão. Este tipo de comparação não é nada arbitrário porque os mesmos jesuítas circulavam em todas as partes do império português e até fora do Império”. (Serge Gruzinski, em entrevista a Maria Regina Celestino de Almeida. Revista Tempo, vol. 12, no. 23, 2007: p. 198).

Este volume da REVISTA HISTÓRIA SOCIAL apresenta o Dossiê “História e Índios” como uma homenagem a John Manuel Monteiro (1956-2013), querido professor, colega e intelectual, que teve uma enorme importância não só na formação de mais de uma geração de pesquisadores em história indígena, como na renovação e, talvez, na refundação de um campo de estudos que sempre esteve à margem, seja da História, seja da Antropologia. A influência de John Monteiro na minha formação se deu principalmente por meio da leitura do livro “Negros da Terra”, já que eu nunca fui seu aluno. Foi, em grande parte, com base nele que elaborei o meu projeto de doutorado e, por sorte, foi isso que o levou a participar na minha banca. Isso consolidou o papel fundamental que John começava a desempenhar em minha recepção como pesquisador. Tinha sido dele o convite para participar do meu primeiro Grupo de Trabalho na ANPOCS, assim como da minha primeira palestra na UNICAMP e, mais tarde, ele me fez o primeiro convite para uma banca de doutorado. Foi dele também o mais que generoso prefácio do livro em que publiquei parte do doutorado e, finalmente, foi ele quem me recepcionou com uma pauta de possíveis projetos em comum, quando da minha entrada na UNICAMP. Este era o seu modo generoso e aberto, apesar de sempre discreto, de incentivar o trabalho de alunos e colegas mais novos. Foi isso que me permitiu aceitar a tarefa de escrever esta apresentação, como uma espécie de registro da larga e densa pauta de trabalho que John Monteiro nos deixa.

É possível identificar três blocos temáticos bastante consistentes nos textos publicados por ele. Depois de um primeiro momento dedicado mais claramente ao tema da escravidão indígena, do qual resulta o livro Negros da Terra, os seus textos se abrem em duas direções complementares. De um lado, uma história do pensamento social brasileiro – e mais especificamente paulista – que tem por eixo as ideologias bandeirante e indigenista. De outro, uma história da dinâmica colonial, que inclui a escravidão e sua relação com a história das sociedades indígenas, de onde surge a sugestiva categoria de “índios coloniais”.

Debruçando-se sobre personagens como Gabriel Soares de Sousa, Francisco Adolfo de Varnhagen, Machado de Oliveira, José Arouche de Toledo Rendon e Alfredo Ellis Jr. e, mais adiante, sobre a produção do IHGB, John Monteiro deixava claro que não é possível fazer História dos índios sem um quanto de Antropologia da história. Ao investigar a ideologia daqueles que produziram os relatos e documentos que formaram uma larga parcela do senso comum sobre a história dos índios no Brasil, John evidenciava as relações de poder que regem tais registros escritos ou imagéticos. Segundo essa concepção de História, os documentos não apenas registram a história que nos interessa, mas são parte dela, porque são parte de processos sociais de dominação, resistência, negociação, acomodação.

Essa posição reverbera o debate contemporâneo sobre como a formação e o desenvolvimento da Antropologia se dão, ao menos em parte, no mesmo espaço em que se formulam e se gerenciam as políticas estatais dirigidas às populações que a Antropologia estuda, conforme registra o livro organizado por L’Éstoile, Sigaud e Neiburg (2002). Isso nos insta a reconhecer o poder no centro da reflexão histórica, da mesma forma que a história no centro da reflexão sobre as relações de poder. Disso decorre também um modo particular de pensar a relação entre História e Antropologia, que passa pela reflexão sobre os dispositivos de classificação social que fundam e extinguem grupos, e tanto ordenam quanto são ordenados pelos processos históricos.

É nesse ponto que Monteiro lança mão da categoria de “índio colonial”, não como correspondente à categoria culturalista de “índio genérico”, como a proposta por Darcy Ribeiro, mas mais de acordo com a leitura sociológica de Karen Spalding. Se o índio genérico seria o produto da desagregação social e da perda de cultura, segundo uma perspectiva assimilacionista das relações coloniais, o índio colonial é virtualmente o inverso disso. Tal categoria descreve o modo pelo qual os grupos indígenas se situavam diante da realidade colonial e a agenciavam, afastando-se das suas origens pré-coloniais, ao mesmo tempo em que buscavam se diferenciar dos grupos sociais que emergiam diretamente do processo colonial, por meio da migração voluntária ou forçada.

Isso implica uma leitura da dinâmica colonial que não a resume à dupla alternativa indígena da dizimação ou da fuga, como tendeu a ser figurado por Florestan Fernandes, e que reverbera a dicotomia pureza pré e contágio pós-contato. No lugar disso, emerge a produção de uma grande variedade de respostas que resultaram em novas sociedades e tipos de sociedades. Ainda que concordando com a ideia de que o congelamento e o isolamento das etnias são um fenômeno sociológico e cognitivo produzido pela própria colonização e por uma incompreensão europeia da dinâmica da sociedade indígena, como sugere Viveiros de Castro, John Monteiro chama atenção para como tais dispositivos classificatórios tinham suas intencionalidades e eram, neles mesmos, produtivos, não podendo, portanto, continuar sendo pensados no registro do puro equívoco.

Com isso, John Monteiro deixou uma contribuição relevante para os debates sobre as etnogêneses no Brasil, por meio da radicalização da perspectiva histórica do fenômeno. Aquilo que mais comumente surge nas etnografias como um fenômeno novo, resultado de processos recentes de globalização, multiculturalização e de políticas de identidade pós-modernas, ganha outra densidade e extensão teórica. Deixam de ser modernos ou pós-modernos para serem intrínsecos à relação colonial (colonial mesmo sob os regimes do Império e da República, que fique claro), que busca impor suas próprias grades classificatórias e, com isso, passa a fazer parte das dinâmicas nativas de definição de alteridades e identidades.

O índio colonial chama atenção, assim, para a necessidade de investigarmos com mais atenção a inserção de diferentes grupos indígenas no interior do espaço colonial ou em suas margens, assim como a revisão das formas mais simplistas – mas ainda assim comuns – de reduzir a agência indígena à simples resistência. Seus trabalhos – e de vários de seus orientandos – chamam atenção para o protagonismo de lideranças indígenas e seus projetos de poder, mas sempre tendo em vista as condicionantes impostas por uma série de fatores provocados pelas dinâmicas coloniais: a agência indígena não podendo ser pensada em separado independentemente da apropriação (no sentido forte e ativo) dos símbolos e dos discursos europeus. Essas questões – relativas aos jogos classificatórios – estavam presentes em seu trabalho desde Negros da Terra, mesmo sem terem sido formuladas explicitamente como problema teórico. Valeria apontar, como ilustrativas, por exemplo, as suas reflexões sobre o jogo ambíguo entre as categorias de “escravos” e de ‘“administrados”, de um lado, e de “índios”, “crioulos” e “negros da terra” de outro. Jogo que eu também encontraria na documentação oitocentista sobre o sertão do São Francisco.

Por outro lado, houve também as análises em que John refletia sobre as categorias étnicas utilizadas pelos colonos e autoridades, em especial a de “carijó”, utilizada pela população indígena escravizada como forma de articulação, uma identidade de resistência dentro das próprias unidades produtivas. Enfim, um esforço constante em apontar na direção de uma história e de uma antropologia menos submetida aos rótulos herdados do processo de dominação colonial.

Negros da Terra é importante também por ter fixado a centralidade da escravidão na sua reflexão, o que não impedia que o tema fosse abordado a contrapelo das leituras tradicionais, centradas no bandeirantismo paulista, amplamente festejado em livros didáticos, monumentos, nomes de ruas e estadas. A proposta era apresentada por meio do desafio de oferecer uma versão propriamente indígena dessa história ou, ao menos, dadas as características da documentação disponível, uma visão cujo eixo ou perspectiva se desloca da lógica bandeirante para a lógica indígena.

Em primeiro lugar, havia a apresentação detalhada e, por isso, muito pouco linear, do processo de aprisionamento, escravização e expropriação territorial indígena, no qual ganhavam destaque documentos de autoria indígena reclamando terras e liberdade. Por meio deles, a ideia de inconstância da relação indígena com os colonos escapava tanto da simples racionalidade econômica quanto de qualquer atavismo ontológico, para ganhar a forma de uma “agência” que emergia do jogo complexo entre lógicas rituais, negociações políticas e resistências armadas.

A agência indígena se manifestaria também nas chamadas “fugas” indígenas das fazendas e dos aldeamentos. É interessante notar como John recupera com algum detalhe o caráter ambíguo dessas fugas, na medida em que elas não serviam para necessariamente negar a lógica da escravidão ou do missionarismo, mas para negociar melhores condições no interior deles. O interesse nesse tópico é amplo. Primeiramente, porque, assim concebidas, tais fugas estabeleciam uma relação bastante dinâmica entre unidades produtivas coloniais e o sertão, ou mesmo entre outras unidades, como as missões – em um jogo entre espaços de cativeiro, de liberdade e de negociação. Mas também porque, desta forma, sua interpretação entrava em comunicação direta com uma revisão que estava sendo realizada simultaneamente na historiografia sobre a escravidão negra. Essa revisão tinha no livro Negociação e Conflito de poucos anos antes (REIS; SILVA, 1989) exemplos muito semelhantes, ainda que para períodos e regiões distintas, de situações nas quais o significado das fugas assumia a mesma ambiguidade e estabelecia o mesmo tipo de dinâmica para a população negra entre espaços de cativeiro, de liberdade e de negociação. Essa última consideração aponta para a discussão proposta por John sobre o caráter, além de econômico, também de mentalidade do fenômeno escravidão no Brasil, já que a escravidão enquanto mentalidade teria operado até mesmo em situações ou contextos em que contrariava a lógica econômica colonial.

“Negros da Terra” também refletia sobre a relação entre o destino das populações indígenas e todo um campo de reflexão sobre a “pobreza” colonial, de forma que pensar a escravidão indígena implicava repensar a formação da própria sociedade colonial, tanto em seu aspecto econômico quanto em seu aspecto propriamente antropológico, interessada na formação social fundamentalmente mestiça, cabocla e, no limite, constituída majoritariamente por uma população desindianizada da sociedade colonial. Assim, a escravidão indígena abria-se à inevitável comparação (“pelo menos implícita”, como ele mesmo disse) com a escravidão negra no Brasil. Essa comparação era feita por meio das bases econômica e cultural da escravidão, mas também – e essa é uma surpresa da releitura recente do livro – por meio dos processos sociais e políticos manifestos nos processos judiciais de liberdade. No último capítulo do livro – sobre os anos finais da escravidão indígena – John abre uma discussão sobre os dois planos em que a liberdade era disputada e alcançada por índios escravizados: as alforrias e as ações na justiça. Um momento tão sucinto quanto brilhante do livro, que oferece uma visão dos momentos em que a população indígena – e particularmente a população feminina, ainda que isso não tenha sido destacado no texto – consegue decodificar e manipular as regras estabelecidas pelo próprio Estado, que garantia a violência que a escravizava.

Digo que essa passagem é uma surpresa da releitura recente porque não fui capaz de perceber, à época, a simultaneidade que tal análise sobre as ações de liberdade indígena encontrava com a emergência do mesmo tema das alforrias e ações de liberdade negra – também predominantemente das mulheres negras escravizadas. É do mesmo ano de “Negros da Terra”, por exemplo, o livro de Keila Grimberg, que instaurou no Brasil a preocupação com o tema, mas que já era trabalhado pela literatura norte-americana sobre a escravidão negra, que John certamente conhecia. Era justamente na direção de recuperar o avanço sobre o tema da escravidão indígena e da sua comparação com a escravidão negra que os projetos recentes de John Monteiro apontavam.

Em sua última palestra para o pequeno grupo de colaboradores do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI), ele nos ofereceu um esboço desse projeto. Baseando-se em pistas levantadas em uma crescente bibliografia sobre o tema na América do Norte, Caribe, Amazônia, Paraguai e Região Platina, ele propunha questionar o próprio conceito de escravidão, concebido exclusivamente na concepção moderna e mercantilista. No lugar disso, propunha iluminar as relações que teriam existido entre essa e uma série de práticas indígenas que a etnologia rotulou de outra forma, mas que não deveriam ser pensadas como estanques, como a circulação de pessoas, o casamento por rapto e o cativo de guerra. Sugeria também que algumas categorias sociais surgidas no século XVIII e que eram vistas apenas do ponto de vista da classificação racial, como a de mamelucos, poderiam apontar para categorias sociais marcadas pela adoção de determinadas práticas sociais, como o cultivo de uma rede de afins, por meio de práticas como o cunhadismo, de forma a ampliar o acesso a cativos.

John alertava ainda para a emergência recente de uma bibliografia sobre a relação entre sociedades indígenas e escravidão negra na América do Norte e que traz à análise contextos e situações em que grupos indígenas se tornavam senhores de escravos, grupos de escravos encontravam assentamento em território indígena, adoção de um discurso racializado pelos grupos indígenas etc. John chamava atenção para como tais situações não nos são desconhecidas, apontando como exemplo a relação de servidão que os Guaiakus impunham aos Guaná (prototerenas), mas como elas são geralmente tratadas como apenas episódicas e sem importância para a história e para a etnologia indígena.

Essa retomada do tema da escravidão, de forma ampliada e comparada, tanto quanto o seu retorno ao tema da colonização portuguesa em Goa, que havia sido matéria de sua monografia de graduação (“Portuguese Colonization in the Tropics: Afonso de Albuquerque’s Marriage Plan in Goa”, 1978) por meio de um dos artigos que fazem parte de sua tese de livre docência (“Tupis, Tapuias e Historiadores, 2001), apontam para o aprofundamento daquele questionamento que ele dirigia à história indígena e à própria etnologia feita entre nós sobre o necessário alargamento da nossa percepção sobre as categorias de pensamento que nos foram impostas pela colonização e sobre as quais construímos tanto disciplinas quanto castelos teóricos.

Nessa última palestra que John nos ofereceu, no CPEI, ele nos reportava à entrevista que uma das suas primeiras orientandas, Regina Celestino de Almeida, havia realizado com Serge Gruzinski e da qual nós retiramos a epígrafe deste breve texto, para atribuir-lhe o mérito de evidenciar, com uma naturalidade típica daqueles que não estão comprometidos com os termos do debate americanista feito no Brasil, a extensão da crítica para a qual John Monteiro apontava.

Não só por isso, é adequado começar a apresentação dos textos que compõem este Dossiê “História e Índios” justamente pelo texto de Maria Regina Celestino de Almeida, primeira orientanda de doutorado de John Monteiro, que defendeu no ano de 2000, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP, uma tese sobre “Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial: novos súditos cristãos do Império Português”. A autora abre este volume com um texto-depoimento sobre a importância de John Monteiro na sua formação pessoal e no desenho da sua pesquisa histórica, mas, principalmente, na promoção de uma abordagem interdisciplinar sobre a presença e atuação dos índios na história. O registro da contribuição de John Manuel Monteiro na elaboração de um campo de estudos histórico-antropológico, que a autora reputa fundamental, serve de mote para uma reflexão mais ampla sobre os avanços e desafios da produção do conhecimento nessa linha interdisciplinar.

A seguir, os textos deste volume podem ser agrupados em três blocos. O primeiro e maior deles diz respeito àquilo que mais acima chamamos de uma história da dinâmica colonial, se concebermos o “colonial” menos como um recorte temporal ou institucional do que como uma modalidade de relações de poder. Neste caso, temos dois textos que abordam tal relação a partir de perspectivas opostas: um deles sobre a recepção da legislação indigenista por parte dos colonos; o outro sobre o modo pelo qual a dinâmica colonial foi incorporada a uma perspectiva indígena das relações interétnicas.

O texto de Francisco Cancela discute a implantação da política indigenista pombalina na antiga Capitania de Porto Seguro durante a segunda metade do século XVIII. Partindo dos debates historiográficos sobre o Diretório dos Índios e sustentado na ideia de “tradução”, o autor busca demonstrar que a recepção das autoridades régias e dos colonos a essa legislação dependeu dos seus diferentes contextos e, assim, por outro lado, como essa legislação ocupa um lugar de destaque na variabilidade das experiências coloniais da América Portuguesa. O esboço historiográfico apresentado por Erik Petschelies busca descrever as relações políticas dos índios Guaikuru (região do Chaco) com outros índios e europeus durante a Conquista a partir da sua própria perspectiva, segundo a qual, sugere o autor, a chegada dos europeus ampliou o espectro das suas relações sociais.

Os outros três textos deste bloco falam de um tema central à reflexão de John Monteiro: os conflitos em torno dos dispositivos de controle do trabalho indígena, sucessivamente por meio da escravidão, por meio das Missões Religiosas, assim como por meio de uma instituição estatal, como os Correios.

O trabalho de Almir Antonio Souza tem por objetivo demonstrar que a experiência da escravidão, mesmo no Brasil Meridional do século XIX, se estendeu aos povos indígenas, por meio do registro das recorrentes expedições de apresamento, principalmente ao longo do chamado Caminho das Tropas, que ligava os pampas gaúchos no Uruguai, Argentina e província de São Pedro do Rio Grande do Sul à vila de Sorocaba. No caso do texto de João Paulo P. Costa, o estudo da relação dos índios com o Correio do Norte do Brasil, no Ceará do primeiro quarto do século XIX, serve para mostrar a importância dos mecanismos de controle e disciplinamento do trabalho indígena, assim como das estratégias de negociação e resistência destes no entendimento da história da região. Da mesma forma, é a insistência indígena em manter certo espaço de autonomia diante dos missionários que está no centro do trabalho de Márcio Couto Henrique sobre as missões religiosas na Amazônia do século XIX, em que ganha destaque o registro dos sítios que os indígenas mantinham afastados dos aldeamentos, contra as expectativas das autoridades.

Em seguida, temos textos sobre aquilo que podemos entender como dinâmicas que, ao longo do século XX e do regime republicano, operam críticas àquela dinâmica colonial: de um lado, a partir da política indigenista, manifesta nos museus; e, de outro, a partir da política indígena, reconstituída a partir de uma perspectiva biográfica.

Walter Francisco F. Lowande destaca ações de coleta e registro arqueológico e etnográfico relativo aos povos indígenas promovidas pelos antropólogos do Museu Nacional do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950, em termos comparáveis às salvaguardas promovidas pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Com isso, o autor pretende rediscutir o papel da Antropologia e do Museu Nacional na ampliação da noção de “patrimônio cultural brasileiro”, sob um aspecto ainda não discutido pela historiografia sobre patrimônio. Já o teto de Mariana da Costa A. Petroni aborda, por meio do registro em livro das memórias de Álvaro Tukano, relativas às décadas de 1980 e 1990, um período importante para a construção do campo indigenista e para a emergência do movimento indígena em escala nacional no Brasil.

Um terceiro bloco traz duas reflexões sobre um tema que, apesar de não ter sido trabalhado por John Monteiro, estava no horizonte das preocupações que ele compartilhava conosco no CPEI: a questão educacional. O texto de Lígia Duque Platero reconstitui parte do processo de escolarização promovida pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e pela Missão Evangélica Caiuá na reserva indígena de Dourados (MS), entre 1940 e 1970, tendo por base a memória dos Kaiowá, dos Guarani e dos Terena. O relato da experiência escolar Kaingang contemporânea, por sua vez, principalmente os conflitos relativos ao ensino de história, é o ponto de partida do texto de Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes, para discutir a Lei 11.645 / 2008, que estabelece a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena como uma possibilidade de interculturalidade nas escolas não indígenas.

Finalmente, temos um segundo texto escrito especialmente em homenagem a John Monteiro, agora sob a perspectiva dos alunos que John deixou ainda em pleno processo de formação. Escrito por Ernenek Mejía, Mariana Petroni e Patricia Lora, reproduzindo uma apresentação oral à mesa em homenagem ao Prof. John Monteiro realizada na Semana de Ciências Sociais (evento da graduação em Ciências Sociais da UNICAMP / 2013), o texto fala em nome de “pelo menos quinze estudantes de pós-graduação saudosos e aturdidos diante da tarefa de terminar uma dissertação ou tese sem o seu principal interlocutor, mas, principalmente, com o compromisso de seguir com sua obra”.

José Maurício Arruti – Professor do Departamento de Antropologia / Diretor do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena – CPEI.


ARRUTI, José Maurício. Apresentação. História Social. Campinas, n.25, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Os índios na História: abordagens interdisciplinares / Tempo / 2007

Onde estão os índios na História do Brasil? Foi a pergunta feita, recentemente, aos editores da Tempo por Nancy de Castro Faria, nossa revisora de português por mais de uma década. A pergunta colocada por alguém acostumada a ler inúmeros artigos de História sobre os mais diversos temas é significativa a respeito dessa grande lacuna em nossa historiografia.

Em nossos dias, no entanto, tal situação vem-se alterando, e a organização deste dossiê já é um reflexo dessa lenta mudança. No Brasil, em proporções menores que em outras regiões da América, as populações indígenas vão, aos poucos, ganhando espaço em nossa historiografia. Nas últimas décadas, a aproximação crescente entre historiadores e antropólogos tem conduzido a novas proposições teóricas, que, ao complexificarem conceitos como cultura e etnicidade, questionam antigos dualismos como índio puro / índio aculturado; estruturas culturais / processos históricos; aculturação / resistência e permitem um novo olhar sobre as relações de contato entre os índios e as sociedades envolventes. O resultado tem sido o desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares que tendem a valorizar as atuações dos índios como importantes variáveis para a compreensão dos processos históricos nos quais se inserem. Assim, de vítimas passivas ou selvagens rebeldes que, uma vez vencidos, não movimentavam a história, diferentes grupos étnicos da América passam, a partir dessas pesquisas, a figurar como agentes sociais que, diante da violência, não se limitaram ao imobilismo ou à rebeldia. Impulsionados por interesses próprios e visando à sobrevivência diante das mais variadas situações caóticas e desestruturadoras, movimentaram-se em diferentes direções, buscando múltiplas estratégias que incluíam rearticulações culturais e identitárias continuamente transformadas na interação com outros grupos étnicos e sociais.

Este dossiê reúne artigos de historiadores e antropólogos que analisam tais interações por meio de estudos de casos concretos em temporalidades e espaços diversos. Quatro artigos tratam de regiões de fronteira, nas quais os índios e os colonizadores desenvolveram diferentes formas de relações que continuamente se modificavam, conforme suas próprias dinâmicas. Os três primeiros abordam esses encontros, no século XVIII, em três diferentes regiões da América Portuguesa, que constituem hoje os estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Amazonas, enquanto o quarto, com recorte temporal mais longo, do século XVI ao XIX, aborda a região sul da América Espanhola, no atual centro-sul do Chile. No quinto artigo, as relações entre as populações em contato são enfocadas por meio da análise de um objeto de coleção de museu: o retrato de Guido, um menino Bororo, que, revestido de historicidade, revela instigantes conexões entre os agentes em contato e os diferentes significados que os objetos podem adquirir nas coleções dos museus para índios e não-índios.

No primeiro artigo, Maria Leônia Chaves de Resende e Hal Langfur desvelam a significativa atuação dos índios nos sertões e nas vilas mineiras. Os conflitos nos sertões complexificam-se, na análise dos autores, de forma que, nas intrincadas relações ali estabelecidas entre posseiros, soldados e índios, estes últimos deixam de figurar nos extremos de selvagens ou vítimas indefesas dos bandeirantes. Nas vilas, o foco recai sobre os índios inseridos na sociedade colonial, que desafiavam seus administradores, ao rejeitarem a condição de mestiços e afirmarem, nas “ações de liberdade”, a identidade indígena que os livrava da escravidão, conforme a legislação de Pombal.

O artigo de Elisa Frühauf Garcia trata da política pombalina de integração dos índios guaranis ao império português, enfocando os limites e as implicações da política lingüística desenvolvida em dois estabelecimentos de ensino criados na Aldeia dos Anjos, no Rio Grande de São Pedro. As dificuldades de implementação dessa política que visava proibir o guarani e obrigar os índios a falarem o português são analisadas de forma complexa e interdisciplinar, o que permite à autora levantar instigantes questões sobre os processos de mudança cultural e reafirmação étnica vivenciados pelos grupos em contato.

Patrícia Maria Melo Sampaio enfoca as ações e estratégias dos índios nas vilas coloniais da Amazônia Portuguesa no momento da implantação da Carta Régia de 1798, que aboliu o Diretório dos Índios (1757-1798). Ressaltando a importância dos vassalos índios naquela capitania e o temor das autoridades de que eles passassem para o lado espanhol, a autora apresenta as adaptações das legislações como resultado de negociações sistemáticas com as lideranças indígenas, de forma que as ações e estratégias dos índios são vistas como fatores essenciais para a construção das políticas indígenas e indigenistas da Amazônia.

Guillaume Boccara estuda, ao longo dos séculos, o processo de construção da identidade Mapuche, abordando as complexas relações de conflitos e negociações entre os índios Reche / Mapuche e os agentes coloniais. Evidencia-se que as mudanças culturais e identitárias daí resultantes foram fruto tanto das atuações dos índios quanto dos colonizadores. O suposto caráter exclusivamente conflitivo das áreas de fronteira dá lugar à idéia de espaço de interações fluidas e dinâmicas entre diferentes grupos étnicos e sociais, no qual se alteram relações de hostilidade e de trocas comerciais e culturais.

Combinando estudos históricos e etnográficos, João Pacheco de Oliveira analisa o retrato de Guido, o menino Bororo, identificando seus múltiplos significados. No contexto da chamada pacificação dos Bororo, o autor analisa as complexas relações entre os atores, refletindo sobre suas compreensões a respeito das próprias histórias, que se revelam por meio de textos, desenhos e objetos. Apresenta, pois, uma reflexão sobre os diferentes sentidos desses objetos para as populações em contato e sobre o significado de que se revestem no âmbito da coleção do Museu Nacional, lembrando que as representações dos índios ali expostas não se encerram em suas vitrines, mas possuem conexões com identidades dos índios no presente. O artigo aponta para a importância de se levar em conta a historicidade dos objetos museológicos, cujos sentidos são continuamente reinterpretados e ressemantizados, conforme os contextos e os agentes sociais.

Todos os estudos, portanto, se inserem num quadro teórico-conceitual no qual se enfatiza a historicidade das culturas e das identidades étnicas, valorizando-se as ações dos índios e os processos históricos como elementos importantes para a compreensão do desenvolvimento das próprias relações de contato e das sociedades daí resultantes. Nesse sentido, contribuem não apenas para uma revisão da história indígena, mas das próprias histórias nacionais e coloniais. Lembrando Jonathan Hill, desde a chegada dos europeus às Américas, as histórias dos índios passaram a se entrelaçar com as dos colonizadores e não devem ser vistas de forma distinta, nem em oposição a elas. Ao apresentar histórias indígenas imbricadas com as histórias coloniais / nacionais, os trabalhos deste dossiê convidam os leitores a repensarem o lugar dos índios na História do Brasil e da América e respondem, ao menos em parte, à pergunta colocada por nossa estimada revisora.

A entrevista com Serge Gruzinski e a resenha de Ronald Raminelli, publicadas neste número, complementam o dossiê. Serge Gruzinski, historiador da École des Hautes Études en Sciences Sociales e referência internacional para estudos interdisciplinares sobre relações interétnicas e mestiçagens culturais, nos fala sobre as dificuldades e os avanços da história indígena na América em perspectivas interdisciplinares e comparativas. Ronald Raminelli, historiador da UFF, especialista em pesquisas no campo histórico-antropológico, incluindo a temática indígena, levanta importantes questões sobre o dilema do tempo na etno-história, ao nos apresentar o livro Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial, de Cristina Pompa, antropóloga com alma de historiadora, cujo trabalho mereceu o primeiro lugar no concurso ANPOCS de 2002.

Maria Regina Celestino de Almeida – Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Apresentação. Tempo. Niterói, v.12, n.23, 2007. Acessar publicação original [DR]