Retromania: Pop Culture‘s Addiction to Its Own Past – REYNOLDS (RETHH)

REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture‘s Addiction to Its Own Past. London: Faber & Faber, 2011. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Presos no tempo: retrô, cultura pop e experiência da história. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia v. 5, N.1, Janeiro-Julho de 2014.

Pedro Telles da Silveira*

Billy Pilgrim has got unstuck in time

KURT VONNEGUT

Em 1977, a cantora norte-americana Donna Summer lançou o álbum intitulado I Remember Yesterday. Produzido pelo italiano Giorgio Moroder, o disco era unificado pelo fato de que cada uma de suas oito faixas encarnava o estilo de uma década específica, seja os anos 1920, 1950 ou 1960. O que distinguia o disco de tantos outros que, já naquela época, procuravam emular o som gravado em décadas passadas, era sua última faixa, o hit da música disco ―I Feel Love‖, a qual não representava um momento histórico específico mas indicava simplesmente o futuro. Antes da passagem dos anos 70 para os anos 80, portanto, o futuro ainda era passível de ser imaginado.

Comparando com a primeira década do século XXI, o futuro, argumenta Simon Reynolds, começou a parecer cada vez mais distante ou indistinto, como se fosse meramente uma continuação do presente (REYNOLDS, 2011, p. 372). Para ele, a última década foi marcada pelo fato de que a ―sensação de se mover para a frente diminuiu conforme a década se desenrolou. O próprio tempo parece ter ficado lento, como um rio que começa a se perder em seus meandros e formar poças‖ (REYOLDS, 2011, p. X). Ao mesmo tempo, a década foi marcada por revivals que a fizeram ser a primeira, em muito tempo, a não possuir uma cara própria. O que mudou entre Donna Summer e Amy Winehouse? Simon Reynolds é jornalista com larga atuação nos maiores veículos da mídia musical impressa inglesa das últimas décadas (New Musical Express, Melody Maker, Wire etc.). Desde sua mudança para os Estados Unidos em finais da década de 1990, ele vem atuando como jornalista freelancer, dedicando-se à composição de livros dedicados à história da música eletrônica e do post-punk (REYNOLDS, 1998; 2005). Sua escrita é marcada pela utilização de um denso vocabulário conceitual e por um conhecimento quase enciclopédico da história da música do século XX, mesclando a escrita jornalística, a crítica musical e a teorização cultural.

Os contextos analisados por Reynolds em seus demais livros foram marcados por uma intensa atividade criativa que os fazia ou romper laços com o passado ou tornar o futuro incerto porém cada vez mais palpável. A sensação de estar vivendo no futuro, entretanto, foi substituída pela de ter chegado tarde demais ao mundo (REYNOLDS, 2011, p. XXII). No contexto do pop, esta mudança é ainda mais estranha, uma vez que O pop deveria ser todo sobre o presente, certo? Ele ainda é considerado o domínio da juventude, e os jovens supostamente não deveriam ser nostálgicos, afinal eles não estão por aí há tempo o bastante para construir um repertório de preciosas memórias (REYNOLDS, 2011, p. XVIII-XIX).

Ao longo do livro, são explorados vários sintomas relacionados a esta situação, os quais vão da tecnologia ao comportamento. O advento da internet, das mídias digitais e da conexão de banda larga significou uma compressão do tempo e da experiência histórica, fatiando o contínuo temporal em pequenos excertos que podem ser facilmente manipulados pelo usuário de acordo com a extensão de sua capacidade de atenção (basta pensar no Youtube) (REYNOLDS, 2001, p. 61, 69). Isto é acompanhado por uma transformação do conceito de criatividade, com o artista não sendo mais percebido como um criador mas sim como um curador ou compilador (REYNOLDS, 2011, p.

130). Esta transformação, que vem justamente do contexto da arte contemporânea das décadas de 1960 e 1970, ressoa fortemente na produção cultural das últimas décadas, onde a recombinação de tropos e clichês, resultando numa colagem de referências muitas vezes explícitas, é algo a ser esperado mais que evitado. Por último, a aproximação entre o consumo cultural e a moda, através da qual a combinação entre ―consumismo elevado e a criação-vista-como-curadoria‖ acaba na ―conversão da música em signos de estilo e capital cultural‖ (REYNOLDS, 2011, p. 170).

Quanto a este último ponto, se poderia estar tentado a argumentar a respeito da natureza de distinção social de todo gosto cultural, na vertente da teorização de Pierre Bourdieu (2007). O problema identificado por Reynolds, entretanto, é mais complexo, partindo de sua própria recusa a conceder espaço a interpretações que buscam analisar a cultura pop apenas numa relação mercadológica ou no cálculo de fins e meios. Como afirma em determinado momento, a cultura pop é marcada pela contradição fundamental entre ―sua mediação pelo capitalismo‖ ao mesmo tempo em que se ―refere a valores que o transcendem‖ (REYNOLDS, 2011, p. 197).

No contexto analisado por Reynolds, é justamente o fato de que a música (assim como outros aspectos culturais) não é utilizada como signo de distinção social, no sentido de constituir subculturas unificadas, que chama atenção. Com isso, é o próprio ato de consumir, e não o que é consumido, elidindo a diferença entre alta e baixa cultura, que cria esta distinção. A fidelidade a um estilo ou gênero musical, assim como a um suposto estilo de vida, é tão passageira quanto as coleções que as marcas de moda lançam a cada estação.

O autor aponta apenas negativamente, porém, que a ausência de ―tribos‖ é o reflexo de uma história do pop que se fragmenta conforme o próprio conceito de uma cultura pop se desfaz. Quando apenas grandes gravadoras (no caso da música) virtualmente detinham o monopólio da produção da música pop e a dependência da mídia física correspondia ao controle por estas mesmas empresas dos canais de distribuição, era mais fácil pensar que havia apenas uma narrativa que reunia temporalmente os diferentes objetos de consumo. O viés interpretativo do autor lhe faz perder a oportunidade de refletir sobre a própria cultura pop atualmente, centrando sua atenção sobre o que, para ele, deveria ser uma vanguarda (os hipsters); se, contudo, ele adotasse uma perspectiva ligeiramente diferente, poderia ver com melhores olhos um contexto no qual a cultura pop vai se tornando sua própria alta e baixa cultura, dependendo dos horizontes do receptor, como o conceito de afterpop de Eloy Fernandez Porta (2007) ou, até mesmo, rompendo com esta narrativa de enquadramento do fenômeno que estuda, como já fez Karl Heinz Bohrer no seminal ensaio ―The Three Cultures‖ (BOHRER, 1987 [1979]). Apesar deste viés, a valoração de seu objeto é importante porque aponta para a própria trama do que subjaz a ele, qual seja, as transformações nos modos pelos quais a história e o tempo são experienciados.

Sendo assim, a acumulação de um vasto arquivo da própria história da música e da cultura pop significa que o passado se torna uma fonte de inspiração maior que o presente, nem que seja pelo simples motivo de que o passado se torna mais volumoso que o presente. Surge, desse modo, o retrô. Segundo o autor, o fenômeno retrô ou a retromania, como chama ―os usos e abusos do passado pop‖ (REYNOLDS, 2011, p.

XIII), distingue-se do antiquariato ou da memória histórica, primeiro, por se ocupar do passado imediato (REYNOLDS, 2011, p. XIV, XXX); segundo, por envolver uma lembrança exata do passado, ou seja, a possibilidade de replicar de modo preciso os estilos de outrora (REYNOLDS, 2011, p. XXX); terceiro, como resultado, o retrô se interessa pelos artefatos e objetos materiais desse passado recente, sendo que estes objetos frequentemente não eram os objetos valorizados na época em que foram usados, mas aqueles que eram considerados banais ou, até mesmo, de má qualidade (REYNOLDS, 2011, p. XXX); quarto, o retrô enquanto uma sensibilidade específica com relação ao passado não procura ―idealizá-lo nem sentimentalizá-lo, mas sim ser entretido e enfeitiçado por ele‖, resultando numa abordagem que não é purista e erudita mas irônica e eclética (REYNOLDS, 2011, p. XXX/XXXI).

Essas características apontam para uma transformação no modo de se relacionar com o passado e a história. A quebra de grandes paradigmas interpretativos abriu espaço tanto para uma maior projeção do passado sobre o presente quanto para um encolhimento do futuro; simultaneamente, a diferença entre os diversos contextos é reduzida a um presente amplo (HARTOG, 2013). A contribuição de Simon Reynolds se situa em colocar lado a lado os usos da tecnologia com as mudanças na experiência histórica contemporânea; parece quase um truísmo, porém é um aspecto tratado apenas tangencialmente pela historiografia mais recente que ―a internet coloca o passado remoto e o presente exótico lado a lado. Igualmente acessíveis, ambos se tornam a mesma coisa: longínquos, porém próximos…velhos, porém novos‖ (REYNOLDS, 2011, p. 85).

É justamente na intersecção entre a teorização sobre o tempo e a experiência histórica com a transformação tecnológica que o livro rende seus melhores frutos.91 Reynolds lembra que ―a cultura de massa de outrora substituiu cada vez mais os eventos políticos e as eleições como os marcadores da memória geracional‖ (REYNOLDS, 2011, p. XXIX), o que equivale a dizer que a memória histórica é cada vez mais mediada pela experiência midiática, inclusive pelas características específicas do meio de reprodução (REYNOLDS, 2011, p. 331). Em texto recente, Claudio Fogu argumentou que nós identificamos a passadidade (past-ness) mais e mais com um ―lugar‖ que com um tempo, e nós nos acostumamos cada vez mais a experienciar uma sensação ―virtual‖ da presença do passado na representação. No processo, a própria experiência temporal está sendo divorciada da representação histórica (FOGU, 2009, p. 112).92 Não é por acaso que a historicidade passa a estar inscrita nos próprios objetos, e não mais na relação que fazemos com eles (REYNOLDS, 2011, p. 163), o que explica a apropriação sensorial, estética e pouco narrativa do retrô com o passado. O jornalista britânico avalia de modo geralmente negativo aquilo que Hans Ulrich Gumbrecht (2010) defende como uma relação de presença com o passado, uma na qual a interpretação cede espaço à sensação. Parece-me que a intermediação conceitual com a reflexão sobre a mídia e a tecnologia faz o diagnóstico de Reynolds ser menos entusiasmado – e, talvez, menos ingênuo – com relação ao fenômeno que estuda que o do teórico alemão.

A questão que resta, entretanto, é se o viés negativo com que Reynolds analisa e, muitas vezes, condena alguns de seus objetos não o torna demasiadamente dependente de um conceito de história, grosso modo identificado com o conceito moderno de história centrado na noção de progresso (KOSELLECK, 2006), fazendo-o cego a abordagens recentes que a ele escapam. E se as décadas do século XX que formataram sua perspectiva teórica não tenham sido nada mais que um contexto específico, quase único, da produção da cultura pop? Se iniciativas artísticas recentes simplesmente não são feitas com base na tentativa de produzir algo novo com relação ao que veio antes, por que julgá-las então a partir de um enquadramento teórico que pressupõe a noção de progresso? A pergunta, é claro, poderia ser invertida, e é possível perguntar se, diante da apropriação irrestrita, irônica e, frequentemente, irrefletida do passado feita hoje em dia, não é a própria possibilidade de realizar um questionamento crítico como o de Reynolds que está ameaçada. Se Reynolds define a si mesmo como um modernista inveterado (REYNOLDS, 2011, p. 404), parece-me ser apenas por isso que ele julga necessário ressaltar o aspecto de dor que é parte integral da idéia de nostalgia (REYNOLDS, 2011, p. 356).

Ainda assim, sua posição pessoal lhe permite encontrar nexos que poderiam passar despercebidos. Como destaca em diversos momentos ao longo do livro, as transformações recentes no campo cultural são correspondentes a transformações na própria estrutura econômica mundial, ―uma transição da geração de dinheiro pela produção de coisas para a geração de riqueza através da informação, dos serviços e da criação de signos‖ (REYNOLDS, 2011, p. 419), de modo que ―enquanto os financistas investem em futuros, bandas (…) especulam sobre passados‖ (REYNOLDS, 2011, p.

141).93 Independente de se Simon Reynolds está errado ou não em permanecer fiel a uma narrativa modernista da cultura dos séculos XX e XXI, deve-se admitir que, quando se defende numa revista como a New Left Review que a esquerda abandone os projetos de futuro (CLARK, 2012),94 existe algo muito errado com o nosso (sentido de) tempo.

Referências bibliográficas BOHRER, Karl Heinz. ―The Three Cultures‖. In: Jürgen Habermas (ed.). Observation on the The spiritual situation of the Age. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1987 [1979].

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2007.

CLARK, Timothy James [T. J]. For a left with no future. In: New Left Review, 74, março-abril de 2012, pp. 53-75.

FOGU, Claudio. ―Digitalizing historical consciousness‖. In: History and Theory, May 2009, pp. 103-121.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo.

Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

KOSELLECK, Reinhart. ―Historia magistra vitae: sobre a dissolução do topos na História moderna em movimento‖, In: Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

LUHMANN, Niklas. ―La descripción del futuro‖. In: ___. Observaciones de la modernidade: racionalidade y contingência en la sociedad moderna. Buenos Aires: Paidós, 1992, pp. 121-138.

PORTA, Eloy Martínez. Afterpop: la literatura de la implosión mediática. Barcelona: Anagrama, 2007.

REYNOLDS, Simon. Energy Flash: A Journey Through Rave Music and Dance Culture. London: Picador, 1988.

_____. Rip It Up and Start Again: Post-Punk 1978-1984. London: Faber & Faber, 2005.

_____. Retromania: Pop Culture‘s Addiction to its Own Past. London: Faber & Faber: 2011.

*  Licenciado em História pela Universidade Federal o Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Doutorando em História pela UFRGS, sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi. Atualmente desenvolve a pesquisa intitulada Por escrituras de pedras, ou o que por nossos olhos ainda podemos ver: antiquariato, evidência da história e a cultura história do Renascimento a partir de André de Resende (1500-1593). Artigo enviado em 13/04/2014 e aceito para publicação em: 30/06/2014. E-mail: [email protected].

91 Não se trata apenas das tecnologias recentes, pois Reynolds percebe uma espécie de subversão da ordem temporal na própria origem da música gravada, uma vez que a gravação permite que uma voz seja descolada de um corpo e transportada até outro contexto, inclusive para além da vida da pessoa que a gravou (REYNOLDS, 2011, p. 312-313). Sendo assim, o processo de alargamento temporal do presente se estenderia do século XX e apenas se intensificaria nas últimas décadas.

92 O próprio Reynolds refere-se, ainda que de modo diverso, à espacialização do tempo: ―Esta espacialização do tempo faz a profundidade histórica ser abandonada; o contexto original ou a significação da música se tornam irrelevantes e difíceis de alcançar. A música se torna um material a ser usado como você quiser, seja ouvinte ou artista. Perdendo seu aspecto remoto, o passado inevitavelmente perde muito de seu mistério e de sua mágica‖ (REYNOLDS, 2011, p. 425).

93 A análise de Reynolds aproxima-se da de Niklas Luhman, a respeito da substituição dos projetos de futuro pelo gerenciamento de riscos (LUHMANN, 1992).

94 Agradeço a Arthur Lima de Ávila pela indicação deste texto.

Clio and the crown: the politics of history in Medieval and Early- Modern Spain – KAGAN (HH)

KAGAN, Richard K. Clio and the crown: the politics of history in Medieval and Early- Modern Spain. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009, 376 p. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Qual o lugar da história oficial na história da historiografia? História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. 338-344, nov./dez. 2011.

Sublinhar que o panorama da produção historiográfica na Idade Moderna é mais variegado do que durante muito tempo se tendeu a imaginar não deixa de ser uma espécie de lugar-comum nas obras – não tão recentes assim – dedicadas ao tema. De fato, já nos ensaios e conferências de Arnaldo Momigliano1 tal apelo era feito, e ele se repete e se complexifica nos livros de Donald R. Kelley (KELLEY 1991, p. 14-15) e Anthony Grafton (2007), para ficarmos apenas com alguns dos mais conhecidos nomes associados ao estudo desse tipo de historiografia. As obras destes e de outros autores procuram todas resgatar a vivacidade, a diversidade e a pertinência dos debates historiográficos anteriores à formação da historiografia enquanto disciplina científica, processo que ocorre, grosso modo, no decorrer do século XIX. E, mesmo assim, aspectos importantes dessa produção continuam negligenciados, como é o caso da história oficial. É tendo em vista esta situação que se insere Clio and the crown, de autoria do historiador norte-americano Richard L. Kagan.

Afiliado ao influente grupo da atlantic history, tendo editado junto com Geoffrey Parker, um volume em honra a John H. Elliott,2 Richard L. Kagan fez sua carreira estudando a Espanha dos séculos XVI e XVII e a administração de seu então poderoso império. As marcas dessa atuação aparecem logo no início do primeiro capítulo, onde afirma que apesar de muito da historiografia produzida nos reinos espanhóis nos séculos que lhe interessam terem sido objeto de estudos recentes, estes têm como foco as características estilísticas e retóricas destes textos, e não suas funções e seus usos (KAGAN 2009, p. 18). Também a filiação institucional de Kagan, professor na universidade Johns Hopkins, permite compreender o amplo recorte temporal que o livro abarca. Partindo das primeiras crônicas escritas em vernáculo em Castela no século XIII, o livro se fecha na passagem do século XVIII para o XIX, quando a falência da Real Academia de la Historia em cumprir seus objetivos indica que a era da história oficial chegara ao fim. Com esse recorte em mente, Richard L. Kagan paga tributo a dois de seus colegas de departamento, Gabrielle Spiegel e Orest Ranum, que já atacaram questões semelhantes a respeito, respectivamente, da historiografia francesa medieval e da historiografia seiscentista deste mesmo reino.3 Para Kagan, história oficial é a historiografia produzida visando a defesa dos interesses tanto de um governante quanto de uma autoridade religiosa, de uma corporação urbana etc. Para o autor, esse tipo de historiografia é um instrumento que visa divulgar uma imagem positiva daqueles nela interessados – do mesmo modo, ela também pode ser escrita para contradizer uma narrativa previamente formada (KAGAN 2009, p. 3). Seu caráter agonístico, portanto, tornou o número de narrativas e contra-narrativas produzidas por cronistas, historiógrafos e outras personagens protegidas por um ou outro mecenas extremamente alto; como o próprio autor indica, adaptando a expressão de um dos autores debatidos, trata-se de um “mar de histórias” (KAGAN 2009, p.42). Essas mesmas características, argumenta o autor, frequentemente impediram uma consideração mais atenta a esta historiografia, facilmente rotulada como derivativa, pouco inspirada ou outras qualificações menos lisonjeiras (KAGAN 2009, p. 4-6). Trata-se de um dos méritos do trabalho que Richard L. Kagan consiga desfazer estes estereótipos com uma obra ao mesmo tempo sintética e informativa, que analisa a fundo seu objeto sem perder de vista os processos mais amplos nos quais ele se insere.

Esta mirada simultaneamente ampla e detalhada marca o primeiro capítulo, no qual o autor traça um quadro da historiografia hispânica entre o final da Reconquista e o reinado de Isabel e Fernando, os reis católicos. Destaca- -se, no texto, a estreita relação entre os projetos imperiais acalentados pelos mais diversos governantes castelhanos e a as características da historiografia por eles patrocinada. Serve particularmente a estes propósitos o trabalho do taller historiografico organizado por Afonso X, responsável pelas crônicas produzidas durante seu reinado, em especial a “General estoria”, uma crônica da história universal até o século XVIII, a qual apresenta a narrativa da criação de um imperium hispânico através da inserção dos feitos ocorridos na Península Ibérica numa história mundial. A visão de um império que reina sobre a Espanha mas também se alastra pelos territórios dominados pelos mouros direciona também muito das crônicas produzidas sob o reinado de Sancho IV, demonstrando a imbricação entre historiografia e projeto político.

Richard L. Kagan direciona, portanto, ainda que de maneira um tanto quanto breve, sua argumentação em direção ao debate acerca da importância da própria historiografia em período tão recuado quanto o da Reconquista.

Para o autor, ao contrário do que uma de suas interlocutoras – Gabrielle Spiegel – argumenta, o nascimento de uma historiografia em vernáculo na Espanha teve menos relação com a criação de narrativas que legitimassem as pretensões da nobreza do que “com a determinação de Afonso X de aumentar sua autoridade real e [com] seus esforços de fazer o castelhano (i.e., espanhol) a língua oficial tanto da administração quanto da lei”. O rei sábio, dessa forma, antecipou em cerca de dois séculos a preocupação de Antonio de Nebrija de que língua e império deveriam andar lado a lado (KAGAN 2009, p. 24).

O segundo capítulo, por sua vez, trata justamente de um desses governantes influenciados pela visão de império cuja semente foi plantada no século XIII, Carlos V. A historiografia oficial elaborada sob a proteção deste monarca indica um caso bastante acentuado da dinâmica que, para o autor, é uma das características da historiografia oficial hispânica: a tensão entre uma historia pro persona, centrada nos feitos do rei, e uma historia pro patria, cujo foco está nas conquistas realizadas pelo reino como um todo. O capítulo também desenvolve uma outra tensão que atravessa a história oficial, e não apenas a de matriz hispânica, qual seja, a entre as demandas de um governante, as funções de um cargo – o de cronista, no caso espanhol – e as características da formação dos letrados, personagens recrutadas para escrever essas mesmas histórias. No caso de Carlos V, a pretensão de glorificar o próprio nome choca- -se com a ojeriza de humanistas como Juan Ginés de Sepúlveda e Paolo Giovo ante os projetos imperiais e dinásticos do governante, atravancando e, no fim, impossibilitando a escrita de uma crônica de seu reinado enquanto o próprio governante vivia. A tensão entre os governantes e aqueles que compunham suas histórias indica também as transformações por que passa a historiografia, que se aproximava cada vez mais da política e da concepção de Quintiliano segundo a qual à história interessava mais a persuasão que a instrução (KAGAN 2009, p. 88).

O autor, dessa forma, insere-se diretamente no debate acerca da escrita da história na passagem do século XVI para o XVII, colocando em questão a conotação muitas vezes negativa dessa mesma passagem.4 Richard L. Kagan faz questão de frisar a impossibilidade de se separar as razões pelas quais a história é escrita das formas que ela irá assumir e, por conseguinte, também a indistinção entre forma e conteúdo da narrativa da historiográfica. Como afirma, “as negociações do imperador com Giovio tratavam tanto da substância […] quanto do estilo, ou seja, da maneira particular na qual os fatos eram apresentados” (KAGAN 2009, p. 89).

A tensão entre a historia pro patria e a pro persona e a difícil relação os monarcas e seus escribas enquadra a discussão dos três capítulos seguintes, não por acaso dedicados à historiografia durante o reinado de Filipe II. No terceiro capítulo, o autor aborda a recusa do monarca de patrocinar uma obra de história com os contornos de uma historia pro persona, laudatória de sua figura; a atitude, muitas vezes interpretada como sinal de modéstia, na verdade indica que frente ao “mar de histórias”, Filipe II procurava escapar à natureza agonística da história oficial. Para isso, segundo Kagan, o rei espanhol apoiava a escrita de uma história que celebrasse os feitos antigos dos espanhóis e, ao mesmo tempo, defendesse a unidade de seu reino resultando dos acontecimentos passados.

Não deixa, portanto, de se situar no âmbito dos projetos imperiais, como já abordara anteriormente. A recusa de Filipe II, entretanto, não pôde se estender à totalidade de seu reinado, já que frente aos ataques à sua monarquia, ele passou a se inclinar em direção ao apoio de uma história de sua própria época. Essa transformação no pensamento de Filipe II, objeto do quarto capítulo, é enquadrada, no quinto capítulo, no debate relativo às possessões hispânicas na América e na Ásia.

Richard L. Kagan estuda a criação do cargo de cronista das Índias tendo em vista justamente o pano de fundo dos ataques à monarquia universal de Filipe II, argumentando mais uma vez pela ligação entre as políticas relacionadas à história e a própria produção historiográfica. Significativamente, tendo em vista as preocupações do monarca espanhol em sustentar uma historiografia que não fosse mera rival de suas contemporâneas, o próprio cargo de cronista das Índias demonstra a união entre preceitos políticos e os princípios elaborados pelos historiadores para certificarem e justificarem suas histórias. Segundo o autor, o ocupante do cargo não se dedicava apenas ao registro das ações que tomassem lugar no Novo Mundo, pelo contrário, pois

seguindo os trabalhos de de historiadores tão influentes como Francesco Guicciardini e os ditados do gênero da ars historicae, ele [o cronista] também tinha de refletir sobre as causas dos eventos e sobre os motivos por trás das ações individuais e incluir, por motivos didáticos, exemplae de vários tipos (KAGAN 2009, p. 151).

A conjunção de todas estas preocupações – à maneira peculiar que lhe era possível de realizar tendo em vista ocupar um cargo oficial – está presente no trabalho do primeiro cronista das Índias, Antonio de Herrera y Tordesillas, personagem central deste quinto capítulo.

É neste momento que a proposta do autor rende mais frutos, pois Kagan consegue tecer de modo mais detido a trama entre todos os fios de sua obra: o imperativo dos monarcas, as necessidades de um gênero e as capacidades – tanto intelectuais quanto políticas – daqueles dele encarregados. Se na introdução de seu livro o autor afirma que, no cenário intelectual da época, era o historiógrafo a pessoa mais autorizada para escrever sobre o passado, pois apenas ele tinha acesso aos documentos necessários para tal (KAGAN 2009, p. 6), a análise que faz da obra de Antonio de Herrera, cronista das Índias entre 1596 e sua morte, em 1626, permite justamente compreender como trabalhava esse mesmo historiógrafo. Taxado muitas vezes de plagiário (KAGAN 2009, p. 172- 173), a fina análise de Kagan permite reconstruir a imagem do autor como um leitor judicioso das obras que utilizava para compor sua própria história – mais do que como um investigador em busca de informações novas; simultaneamente, permite compreender que a tarefa à qual se dedicava enquanto cronista não era tanto a escrita de uma nova história quanto a reelaboração das narrativas já existentes, de modo a adequá-las à defesa daquele para quem escreve. Se se tornou um tanto quanto comum fazer o paralelo da figura do historiador com aquela do juiz, Richard L. Kagan, através do exame do trabalho de Herrera, faz um sonoro argumento a favor da comparação – que já aparece na introdução de seu livro (KAGAN 2009, p. 6) – entre o historiógrafo e o advogado. Para ambos não se trata nem de garimpar informações novas nem de inventar fontes, isto é, de revolver os materiais da história imbuído de má fé; pelo contrário, o que está em questão é utilizar as possibilidades do trabalho histórico para manipular seus enunciados a favor ou contra aqueles a quem a narrativa se endereça (KAGAN 2009, p. 5). Tarefa que, mostra Kagan, depende tanto das regras de verificação do discurso histórico, então objeto de um intenso debate, quanto qualquer outra narrativa pertencente ao mesmo gênero. Ressalta, também, a compreensão da obra do historiador oficial como uma empresa coletiva mais do que resultado da iniciativa individual, algo que também a historiadora francesa Chantal Grell destaca em obra recente (GRELL 2006, p. 13).

A trama dessas tensões constitui, sem dúvida, o aspecto mais importante do livro, e é apenas de lamentar que, por vezes, tentando costurar entre os mais diversos autores e contextos, Richard L. Kagan aborde demasiado rapidamente estes temas, sem reproduzir análise como a que faz a respeito de Antonio de Herrera. Mesmo assim, ele é feliz ao tratar, no sexto capítulo, a incapacidade de Filipe IV e de seu ministro, o conde de Olivares, de controlarem a circulação de obras históricas no interior da fronteira de seu próprio reino como indício da existência, já no século XVII, de uma opinião pública capaz de contradizer a propaganda oficial (KAGAN 2009, p. 204). A intersecção entre a legitimação perante o público e a atividade do historiógrafo adiciona outra camada de significação ao trabalho do autor no livro.

Também no sétimo e último capítulo o autor aborda parcela dessa dinâmica, ao demonstrar que a proposta de uma renovação intelectual feita pelos novatores e pela Real Academia de la Historia acaba por sucumbir às pressões e às intrigas da vida cortesã. A assimilação das pretensões críticas desta última instituição ao funcionamento da máquina administrativa da qual a história oficial faz parte resultou na própria perda de sua importância. Ao cabo, a Real Academia de la historia foi ultrapassada – assim como a história oficial (GRELL 2006, p. 16) – pela evolução da própria historiografia.

A dinâmica entre a história oficial e as demais províncias da história é o aspecto que garante a relevância da obra de Richard L. Kagan. Para além da preocupação com o estudo da historiografia do período – uma área particularmente forte no meio historiográfico de língua inglesa –, Clio and the crown também se insere, como se tentou demonstrar aqui, num debate que começa a ganhar corpo a respeito das relações entre a história dos historiógrafos e a narrativa de constituição da própria historiografia. Para Kagan, autores como Grafton e Kelley acabam por definir de forma demasiado rígida a linha divisória entre a historiografia oficial e a daqueles autores não ligados a qualquer cargo.

Em passagem carregada de ironia, na qual faz um inventário dos celebrados historiadores que foram também historiógrafos – uma lista que vai de Fernão Lopes a Voltaire –, Kagan destaca a dificuldade de situar a fronteira entre a historiografia “acadêmica” – isto é, motivada pela comunidade de historiadores e destinada a ela – e a historiografia “polêmica”, ou seja, a história oficial, direcionada a leigos e submetida a inúmeras flutuações políticas (KAGAN 2009, p. 4). Da mesma forma, ser um historiador oficial não significava necessariamente ser um mau historiador.

Conforme a historiografia avança para a era dos cronistas e historiógrafos, a obra de Richard L. Kagan lembra que para analisá-la não é o bastante reproduzir os limites disciplinares modernos como conceitos analíticos da historiografia passada. Se a necessidade de situar os discursos em seus contextos é cada vez mais premente, perguntar-se pelo que há de oficial ou patrocinado em muitas das obras historiográficas do período moderno pode ser maneira de historicizar o próprio trabalho do historiador. À medida que a historiografia brasileira avança, por sua vez, rumo ao século XVIII, é interessante perguntar como conectar uma história do método histórico a uma história social da historiografia, preocupações por vezes tão distantes. Seja qual for a pergunta, considerar o lugar da história oficial na história da própria historiografia passa pela resposta que Richard L. Kagan acabou de dar.

Referências

GRAFTON, Anthony. What was history? The art of history in early modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

GRELL, Chantal. Les historiographes en Europe de la fin du Moyan Âge à la Revolution. Paris: Presses de l’Université Paris-Sorbonne, 2006.

KAGAN, Richard L. Clio and the Crown: Writing History in Habsburg Spain. In: KAGAN, Richard L.; PARKER, Geoffrey. Spain, Europe, and the atlantic world: essays in honor of John H. Elliot. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 73-99.

KELLEY, Donald R. Versions of history from Antiquity to the enlightenment. New Haven: Yale University Press, 1991.

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: EDUSC, 2004.

SPIEGEL, Gabrielle. Romancing the past: the rise of vernacular prose historiography in thirteenth-century France. Berkeley: University of California Press, 1993.

RANUM, Orest. Artisans of glory: writers and historical thought in seventeenthcentury France. Chappell Hill: University of North Carolina Press, 1980.

Notas

1 Para ficar numa obra de fácil acesso pelo leitor brasileiro, ver MOMIGLIANO 2004.

2 A contribuição de Kagan ao volume compartilha o título com o livro aqui analisado, demonstrando a permanência das preocupações do autor ao longo de sua atuação, muito embora a ênfase e a extensão temporal do capítulo – restrito ao reinado de Filipe II – sejam muito mais limitadas que no livro que publica cerca de quinze anos depois; ver KAGAN; PARKER 1995, p. 73-79.

3 Refiro-me a SPIEGEL 1993 e também a RANUM 1980.

4 Como transparece, por exemplo, no trabalho já referenciado de Anthony Grafton, para quem, no século XVII, a história era uma narrativa política escrita por estadistas ou funcionários – historiógrafos profissionais –, dos quais muitos poucos preocupavam-se com as maneiras a partir das quais escolher, justificar e examinar as evidência (GRAFTON 2007, p. 230-231).

Pedro Telles da Silveira – Mestrando da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected] Rua Novo Hamburgo, 238 – Passo d’Areia 90520-160 – Porto Alegre – RS.

The Emergence of a Scientific Culture | Stephen Gaukroger || Nature, Empire and Nation | Jorge Cañizares-Esguerra

O objetivo da presente resenha é apresentar e discutir dois livros publicados em 2006, porém de pouca repercussão no meio acadêmico brasileiro. O primeiro é The Emergence of a Scientific Culture, do historiador britânico Stephen Gaukroger, enquanto o segundo é Nature, Empire and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra, estudioso da América hispânica colonial na chamada primeira modernidade ou early modern period. A pequena recepção das duas obras não deixa de ser estranha visto serem ambos os autores já conhecidos do público brasileiro; de Stephen Gaukroger se publicou em 2000, pouco após sua edição original em língua inglesa, uma biografia intelectual de René Descartes [2] , enquanto Cañizares-Esguerra é o autor de How to write the history of the New World, livro ao qual, se não se lhe pode dar a pecha de influente, não obstante encontrou seu caminho nas bibliografias de alguns artigos e importantes estudos [3] . Ao longo do texto, contudo, não procurarei entender os dois livros aqui estudados com relação às trajetórias acadêmicas dos seus autores, e sim os lerei a partir das concepções – e, por que não, projetos – acerca da história da ciência que ambos veiculam. Apresentarei, portanto, primeiro o livro de Gaukroger, apontando algumas das problemáticas em que se envolve e algumas questões que podem ser tratadas nele, para, num segundo momento, discutir a obra de Cañizares-Esguerra e algumas reflexões que podem ser feitas a partir dele, procurando pontos de contato e distanciamentos entre os dois.

The Emergence of a Scientific Culture faz parte de um projeto maior acalentado por Stephen Gaukroger visando retraçar a “transformação dos valores cognitivos e intelectuais na era moderna”, do qual este é apenas seu primeiro livro. Com relação à história da ciência, sua proposta é perceber como a ciência passou a moldar os valores sociais, culturais, políticos e/ou morais da sociedade contemporânea, constituindo-se, ao menos em sua auto- imagem, como parte intrínseca da modernidade. Com isso, procura atender à condição que coloca de escrever uma “história conceitual e cultural da emergência de uma cultura científica no Ocidente” e, embora não problematize explicitamente o que considera ser uma “cultura científica”, ela não obstante está presente no modo como redescreve seu objeto de estudos. Desse modo,

Este estudo trata a ciência no período moderno como um tipo particular de prática cognitiva e como uma espécie particular de produto cultural, e meu objetivo é mostrar que se explorarmos as conexões entre esses dois, nós podemos aprender algo acerca das preocupações e dos valores do pensamento moderno que não poderíamos aprender de ambos separadamente (GAUKROGER, 2006, p.3) [4].

Ao perceber a ciência imbricada na cultura de sua época, o autor se coloca a questão de explicar a singularidade da Revolução Científica ocidental, contrapondo-se a outras culturas e civilizações que tiveram culturas científicas avançadas, mas não conseguiram imprimir a elas o mesmo caráter de expansão e inovação constantes tampouco conseguiram remodelar suas culturas a partir da ciência. Por isso, sua caracterização da ciência, percebe o autor, é ao mesmo tempo uma confirmação e uma refutação da conceituação oferecida por Thomas Kuhn. Seu objeto quebra com a lógica kuhniana porque apesar de se articular em torno às sucessivas mudanças de paradigmas, sempre influenciadas pela sociedade, também advoga a ruptura entre os desenvolvimentos científicos ocidentais e os dos demais lugares do mundo. Sua problemática, logo, escapa da mera escrita da história da ciência e entra no domínio das discussões acerca da modernidade, metamorfoseando seu objeto no da percepção da inter-relação entre um contínuo desenvolvimento da ciência e rupturas estruturais mais profundas, as quais explicam a singularidade da ciência ocidental. Não deixa, portanto, de se incluir no mesmo programa já perseguido pelo historiador italiano Paolo Rossi, em especial em seu Naufrágios sem espectador [5], livro que também procura correlacionar – embora sem determinar um e outro de forma causal – o desenvolvimento da ciência e o de certos aspectos da modernidade. Da mesma forma, também a obra de Frances Yates, em especial os volumes sobre Giordano Bruno e sobre o movimento rosacruz, [6] são referencias para a compreensão do projeto de Gaukroger, embora se deva destacar com relação a ambos os autores tanto a atualização dos debates nos quais se inserem por este último como também o fôlego de seu projeto, que afeta o próprio estatuto da história da ciência por dedicar igual atenção às doutrinas científicas elaboradas por suas personagens e à condição social do filósofo natural – muito embora se possa questionar se a delimitação temporal de seu livro, terminando no final do século XVII, dá conta de explicar esses desenvolvimentos decisivos ou se se trata apenas de um prelúdio para uma abordagem mais direta dessas questões [7].

O livro, dividido em cinco partes, começa sua narrativa propriamente dita em sua segunda seção, a qual trata da própria colocação em cena da filosofia natural pelo encontro da tradição cristã com a filosofia aristotélica. Nesse sentido, seu segundo capítulo descreve a solução agostiniana para o problema da interpretação do mundo na esteira do fim da Antiguidade e o desafio que representou a essa solução a introdução do aristotelismo no Ocidente. O terceiro capítulo trata do desafio à nova “amálgama” aristotélica representada pelo neoplatonismo renascentista e, por fim, o quarto capítulo aborda a transformação interior à própria filosofia natural no que toca a seus critérios de validade. Se antes a leitura do mundo tentava captar o significado religioso do que nele estava presente, as transformações na leitura das Escrituras, derivadas de desenvolvimentos na filologia, na história e no direito implicaram que a própria filosofia natural sofreria mudanças. Essas mudanças, aliadas às descobertas do Novo Mundo, abrem espaço para a inserção da experiência e da observação direta nos domínios da ciência, fazendo-a deixar de ser apenas a dedução de princípios primeiros a partir da realidade sensível. Percebe-se, nessa segunda parte de seu livro, a preocupação do autor de relacionar as transformações da ciência a mudanças maiores que acontecem no âmbito da cultura, o que lhe permite sustentar seu argumento mais recorrente, o de que ao invés de uma autonomia com relação ao mundo religioso, a ciência nascente se modela e se pensa através da própria religião.

É tendo esses problemas em vista que se articula a terceira seção do livro. Os capítulos cinco, seis e sete do livro são seus capítulos centrais porque são onde mais claramente se apresenta sua proposta de perceber a ciência como parte de uma cultura mais ampla. Dessa forma, os capítulos questionam, respectivamente, a prática da filosofia natural, seu praticante e o lugar que ele ocupa na sociedade. Quanto à primeira, o autor descreve o movimento da filosofia natural de se afirmar a partir de sua relação com a verdade para sua relação com a utilidade; quanto à segunda, demonstra como são transferidas as características do filósofo moral para o filósofo natural, isto é, para aquele que virá a ser o cientista, do qual se espera agora comportamento condizente com sua ocupação. Esse comportamento, que lhe faz ocupar o papel de sábio, é modelado pelas virtudes morais e religiosas. Por fim, quanto ao lugar do filósofo natural, ele problematiza a afirmação de que as universidades eram o ambiente mais propício a estes, reconstruindo a partir, sobretudo, do exemplo de Galileu Galilei a importância do mecenato aristocrático com relação à prática científica. Concernentes à epistemologia científica, as transformações estudadas implicam, primeiro, que a preocupação com a verdade passa a ser uma preocupação com a objetividade, ou seja, da defesa de modelos de conhecimento se passa à defesa (e ao ataque) dos procedimentos científicos; em segundo lugar, que o modelo medieval do magister de um colégio de artes universitário, o qual pensava a si mesmo livre de dogmas, podendo discutir uma mesma questão de diversas maneiras, é colocado de lado em favor de um intelectual preocupado em oferecer conhecimento útil à sociedade ou, em termos da primeira modernidade, à coroa. A ciência, portanto, estava afastada de um ideal atemporal de verdade e inserida em sua época.

A quarta parte, que ocupa a maior parte do livro, e a quinta problematizam os desenvolvimentos internos à ciência. De um lado, as relações entre os diversos modelos de explicação da natureza disponíveis no século XVII – a história natural, o mecanicismo e, por fim, a aplicação prática da matemática ao estudo da natureza –, deixando em aberto a disputa em torno à compreensão dominante do mundo. Essa inconclusão com que termina o livro – embora dependa de seu caráter de ser parte de um projeto maior – visa ressaltar a inexistência de uma teleologia guiando o desenvolvimento científico, mostrando que não existia (ainda) um ordenamento consensual de suas disciplinas. Ao mesmo tempo, mostra como todos os modelos explicativos visavam apoiar-se na religião ou em alguma concepção de conhecimento revelado para assegurarem sua posição. A quinta e última parte é, por sua vez, um breve excurso sobre as tentativas de unificar a ciência e o conhecimento no século XVII, questão candente e que também é deixada em aberto.

Mesmo que se possa pensar que por vezes Stephen Gaukroger esteja demasiadamente preso a discussões e problematizações epistemológicas, uma vez que discussões acerca de doutrinas científicas ocupam a maior parte do volume, seu livro é bem-sucedido em re- situar a emergência da ciência ou, como chama, de uma cultura científica na história ocidental; também é importante por estar atento às rupturas estruturais com as quais as continuidades culturais, num contexto amplo e de grandes transformações, se relacionam. É a partir deste ponto que se pode problematizar o livro de Jorge Cañizares-Esguerra.

O livro do historiador americano compila artigos escritos num intervalo de mais de dez anos que tocam no tema da história da ciência. Seu principal objetivo é discutir as proposições que afirmam o atraso cultural e científico da Península Ibérica e de seus impérios coloniais. Segundo o autor, o desprezo da história da ciência – e aqui se pode incluir também Gaukroger, pois embora ele afirme que seu projeto partiu de algumas leituras e comparações com o mundo ibérico, ele só o trate marginalmente em seu livro – é derivado de uma auto- narrativa do Norte da Europa com relação à Revolução Científica, que percebe no Sul da Europa apenas o atraso e que, por conseguinte, reafirma apenas as ciências que a teriam encabeçado – matemática, física, astronomia –, deixando de lado os desenvolvimentos, resultado dos impérios coloniais, que os reinos da Península Ibérica fizeram com relação à cartografia, à metalurgia, à engenharia, entre outros conhecimentos, agrupados normalmente como conhecimentos técnicos.

Dessa preocupação resulta também o seu segundo problema de pesquisa. Percebendo que os reinos ibéricos não se opunham ao conhecimento científico – embora tivessem políticas que não combinam com a percepção que hoje temos de ciência, como é o tema de seu primeiro capítulo, o qual aborda a figura do cavaleiro-cientista –, ele passa a demonstrar como esse conhecimento era ressignificado pelos sujeitos coloniais, enfatizando como as elites crioulas se apropriavam do conhecimento científico para defenderem seus privilégios e imporem uma idéia de América frente às metrópoles coloniais. Tendo isso em vista, ele enfatiza os modos pelos quais essas elites crioulas percebiam o mundo, modos os quais, em sua maior parte, enquadram-se numa concepção barroca de ciência e sociedade. Os “cientistas” crioulos participavam e reafirmavam a existência de uma coletividade social, participando de seus rituais e celebrações e, principalmente, eles também procuravam defender sua posição.

Assentado nas doutrinas neoplatônicas e herméticas, o clero crioulo constantemente buscava na natureza assinaturas escondidas e subliminares com significado patriótico. Para eles, o corpo humano, a Terra, e o cosmo eram todos “teatros” barrocos (nos quais os objetos eram reduzidos a uma linguagem de imagens) com analogias micro e macroscópicas inter-relacionadas. Todos os objetos tinham significados polissêmicos e as habilidades exegéticas do clero lhes ajudavam a descobrir sua importância subliminar, revelando um cosmos pleno de desígnios providenciais que favoreciam as colônias. (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006, p.50) [8].

E, principalmente, no capítulo seguinte, “New World, New Stars”, onde procura demonstrar a gênese do conhecimento racial nas tipologias corporais formuladas a partir do Novo Mundo. Essas tipologias – tentativas de lidar e simplificar a heterogênea realidade americana –, criadas sobretudo pelos crioulos, procuravam defender, de um lado, a primazia da América e, de outro lado, a subserviência dos indígenas a esses mesmos crioulos.

É com relação a este segundo propósito de seu livro que Jorge Cañizares-Esguerra faz suas afirmações mais contundentes e, também, controversas. Embora não se possa rejeitar sua argumentação, pode-se questionar, por exemplo, sua percepção muitas vezes simplificada dos elementos sociais presentes na América hispânica, que percebe os mesmos crioulos, peninsulares, ameríndios e negros por toda a extensão de seu território. Um segundo elemento que pode ser problematizado é a ênfase na reapropriação pelas elites coloniais do conhecimento ibérico visando à construção de uma identidade própria – o revisionismo do autor acerca das posições normalmente aceitas da história ocidental está presente também nos últimos capítulos do livro, onde tenta demonstrar a primazia pelos pintores mexicanos da pintura de paisagens (capítulo sete) e também a origem mexicana das preocupações ecológicas de Alexander von Humboldt (capítulo seis). O revisionismo, sempre bem-vindo, não é, contudo, problemático por si só, pois a argumentação de Cañizares-Esguerra é sólida e sua discussão e revisão bibliográficas bastante bem-feitas. O problema específico que pode trazer sua obra é na consideração das rupturas existentes entre um momento onde essa ciência era formulada – a primeira modernidade trabalha por Stephen Gaukroger – e o momento que lhe é o referencial para contrapor sua visão, a Revolução Científica que tomou forma em contexto e época diferentes. Ao tratar das causas pelas quais o conhecimento racial ibero-americano não deu origem ao racismo oitocentista europeu, o autor refere apenas a motivos secundários, tais como a rejeição da tradição hipocrática-galênica de medicina ou o rechaço da filosofia aristotélica. Dessa forma, Cañizares-Esguerra, ao não conseguir dar conta das transformações estruturais pelas quais passou o conhecimento científico europeu – objeto do livro de Gaukroger – e no qual, se seu argumento pretende adquirir toda a sua importância epistemológica, também o conhecimento ibérico estava inserido, acaba por reiterar a visão que pretende questionar, pois deixa intocado o construto conceitual “Revolução Científica”. Da mesma forma, o principal mérito de sua argumentação – demonstrar que, mesmo de maneiras diferentes, espanhóis peninsulares e americanos participavam do mesmo contexto intelectual – pode ser elemento a jogar contra o autor, uma vez que para sustentar seu argumento ele frequentemente subsume a identidade dessas elites crioulas no orgulho que, frisa ele, sentiam frente à incompreensão de sua realidade por aqueles que tinham a Europa como base de onde partia seu olhar. Pensando nos debates que aconteciam na Espanha bourbônica, pode-se pensar se Cañizares-Esguerra, em seu afã de desestabilizar concepções tradicionais acerca da história iberoamericana não acaba por aceitar demasiadamente fácil a imagem que essas elites crioulas fazem de si mesmas; problema candente ao se considerar as guerras de independência que se avizinham do recorte temporal que escolhe para seus estudos.

Apesar dessas críticas, a contribuição de Cañizares-Esguerra, historiador que procura sempre novas formas de abordar velhos problemas [9], é uma importante adição a uma revisão substantiva da história da ciência. Junto com Gaukroger, ambos os autores fornecem uma reestruturação importante e significativa de seu objeto, a qual certamente servirá de base para historiadores futuros.

Notas

1. Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]

2. GAUKROGER, Stephen. Descartes – Uma biografia intelectual. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. Publicado originalmente em 1997.

3. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. How to write the history of the New World. Stanford: Stanford University Press, 2001; refiro-me, por exemplo, a Esquecidos e Renascidos, de Íris Kantor, livro seminal para o estudo recente da historiografia luso-brasileira setecentista, assim como seu estudo em Júnia FERREIRA FURTADO. Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas, África. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2008.

4. “The study treats science in the modern period as a particular kind of cognitive practice, and as a particular kind of cultural product, and my aim is to show that if we explore the connections between these two, we can learn something about hte concerns and values of modern thought that we could not learn from either of them separately” (GAUKROGER, 2006: 3; todas as traduções são do autor).

5. ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador. São Paulo: UNESP, 2000; o original é de 1995.

6. YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995; The Rosacrucian Enlightenment. Nova York: Routledge, 2004; sendo os originais, respectivamente, de 1964 e 1972.

7. O que não significa que o autor reifique as diferenças através de um estudo estrutural estanque, pelo contrário. É significativa, nesse sentido, sua crítica ao que chama de “abordagem weberiana” da história da ciência, a qual, segundo ele, ao ficar apenas no âmbito da contraposição entre epistemologias de diferentes civilizações, perde de vista “o valor das dimensões extra de análises, e logo se torna evidente que precisamos ir além do que acabam sendo distinções formais oferecidas por este tipo de abordagem” (GAUKROGER, 2006: 35). Sua abordagem, dessa forma, insere-se em debates recentes acerca do estudo da história política e da história dos discursos; em especial, parece reiterar proposição de Yves-Charles Zarka, em contraposição a Quentin Skinner, para quem a necessidade de relacionar os sujeitos a seus contextos não deve deixar de lado a discussão das idéias que – no interior da história da filosofia – eles esposam. No caso de Gaukroger, a dupla ênfase nas doutrinas científicas e nas condições sociais implica que a história da ciência não pode se resolver facilmente aceitando apenas uma dessas opções e não outra. ZARKA, Yves-Charles. “Que nous importe l’histoire de la philosophie?” in ZARKA, Yves-Charles (dir.). Comment écrire l’histoire de la philosophie? Paris: PUF, 1999, pp. 19-32.

8. “Steeped in Neoplatonic and hermetic doctrines, the Creole clergy constantly searching in nature for underlying hidden signatures with patriotic significance. For them, the human body, the Earth, and the cosmos were all baroque “theaters” (in that objects were reduced to a language of images) interlocked by micro- and macroscopic analogies. All objects held polysemic meanings, and the exegetical skills of the clergy helped discover their underlying import, revealing a cosmos suffused with providential designs that favored the colonies” (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006: 50).

9. Refiro-me, por exemplo, a Puritan Conquistadors, também do autor, o qual procura demonstrar as semelhanças entre o discurso puritano de conversão dos indígenas e expansão britânica nas América com a “demonologia” indígena veiculada pelos espanhóis. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Puritan Conquistadors – Iberianizing the Atlantic, 1550-1700. Stanford: Stanford University Press, 2006.

Pedro Telles da Silveira – Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]


GAUKROGER, Stephen. The Emergence of a Scientific Culture – Science and the Shaping of Modernity, 1210-1685. Oxford: Clarendom Press/New York: Oxford University Press, 2006. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Nature, Empire and Nation – Explorations of the History of Science in the Iberian World. Stanford: Stanford University Press, 2006. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Reescrevendo a história da ciência: The Emergence of a Scientific Culture, de Stephen Gaukroger, e Nature, Empire, and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.240-247, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]