História e Saúde: as interfaces entre a ação pública, as iniciativas da Sociedade Civil e as inovações tecnológicas | Caminhos da História | 2021

Atencao basica a saude SUS Caminhos da história
Atenção primária à saúde em Paraisópolis | Design: Ana Paula de Lima – UFSCAR

A reflexão sócio-histórica sobre a saúde, em seus múltiplos aspectos, está diretamente relacionada à ampliação da agenda histórica experenciada desde fins do século XX, que contribuiu para a incorporação de novos temas e perspectivas de abordagem. Com a ampliação do universo da investigação histórica nas análises sobre saúde, é possível observar um movimento de inserção das dinâmicas locais e regionais aos circuitos nacionais e globais, o que refletiu na incorporação de espacialidades, atores e temáticas. A história das ações e políticas em saúde nos últimos anos, no âmbito das renovações historiográficas, incorporou diferentes tipologias de fontes históricas, impulsionando a percepção dos mais variados sujeitos imersos nesses processos e uma ampliação da análise das experiências de adoecimento e das políticas em saúde, fomentando o debate com diferentes campos do conhecimento, como a sociologia, a demografia, a saúde coletiva e a ciência política.

Nesse percurso, a perspectiva histórica vem trazendo inegáveis contribuições para o campo da saúde. A compreensão dos processos históricos no domínio da saúde e das doenças, pensado como um campo de saberes e práticas interdisciplinares, possibilita uma postura crítica acerca dos diversos elementos que compõem esses domínios, como crenças, saberes, práticas, arranjos institucionais, concepções políticas, culturais e as teias de relações que envolvem a construção de aparatos de atenção e cuidados com a saúde (PERDIGUERO, et. al., 2001). A pesquisa histórica possibilita ainda a reflexão sobre ações contemporâneas no campo da saúde, através da identificação de padrões, permanências e rupturas em diferentes realidades e compreensões contextualizadas aos âmbitos social, político e econômico, permitindo lidar com complexidades, analisando movimentos e tendências culturais (BERRIDGE, 2000; FEE and BROWN, 1997). Leia Mais

The World Health Organization: a history | Marcos Cueto e Theodore M. Brown

La obra es el resultado de la colaboración estrecha, a través de casi dos décadas, de tres historiadores importantes, de dilatada y fecunda trayectoria, que han confluido felizmente para realizar un trabajo de alta calidad y envergadura, hasta tal punto que constituye una referencia obligada no solo para el estudio del organismo sanitario stricto sensu sino, a lo largo de todo el periodo histórico que abarca de la salud internacional todas sus facetas y, aún más, de la historia, los cambios en las políticas de carácter global, como señala Randall Packard en la contraportada. Y una ausencia dolorosa: la de Elizabeth Fee, fallecida cuando la obra ya estaba completa, pero que ha dejado su impronta en la misma.

Políticos, gestores, diplomáticos, sanitarios, son actores privilegiados de esta historia. Una historia que los autores se encargan bien pronto de decir que no se trata de una historia oficial o semioficial, como las que abarcando los diferentes decenios de la Organización Mundial de la Salud se han ido publicando. El estudio se apoya en muy abundantes y muy bien escogidas fuentes primarias – muchas archivísticas e inéditas (una relación de las cuales se encuentra en p.341-351), incluyendo testimonios orales de personalidades tan emblemáticas cono Halfdan Mahler o Ilona Kickbusch. Leia Mais

História da saúde no Brasil: uma breve história | Luiz Antonio Teixeira, Tânia Salgado Pimenta e Gilberto Hochman

A obra História da saúde no Brasil: uma breve história , organizada por Luiz Antonio Teixeira, Tânia Salgado Pimenta e Gilberto Hochman (2018) chega em momento marcante do país, em meio às ameaças que cercam, de forma profunda e decisiva, a democracia brasileira. Como um espelhamento de si, aprendemos pelas análises tratadas que, se os poetas podem ver na escuridão, os estudiosos da história da saúde podem ver através da neblina dos sofrimentos humanos e dos diversos modos de se tentar aplacar essas aflições, indicando o entrelaçamento de saberes, tecnologias, políticas e práticas que moldam o Brasil e o brasileiro.

O livro aqui examinado possui valores distintos, exatamente por deixar registrado o empreendimento de décadas, fundamentalmente, dos pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), em sua conjunção de esforços desde 1986. Isso pode ser acompanhado pelo leitor que reconhecerá, por meio das notas biográficas dos autores, desde os que participam da criação da Casa até os mais recentes, numa comprovação evidente da consolidação do trabalho desse grupo nesses mais de 30 anos da COC, considerada referência na produção de conhecimento e formação em história da saúde e medicina do país. A obra está dividida em 11 capítulos com dois eixos fundamentais – temporal e temático –, abarcando perspectivas que envolvem a própria trajetória profissional desses pesquisadores. Leia Mais

História da saúde no Brasil | Luiz Teixeira, Tânia Pimenta e Gilberto Hochman

Quais questões, abordagens e conceitos mobilizam o campo da história da saúde no Brasil? Quais temas já foram abordados e quais as possibilidades de expansão nesse campo de pesquisas? O que pode ser considerada uma historiografia da saúde? Como diferenciar história da medicina, história da saúde, história das doenças e história das ciências? Esses questionamentos estão na essência da coletânea “História da Saúde no Brasil”, organizada pelos pesquisadores Luiz Teixeira, Tânia Pimenta e Gilberto Hochman, todos da Fundação Oswaldo Cruz. O livro, que reúne uma visão geral sobre os diferentes trabalhos desenvolvidos na instituição em termos de pesquisa histórica, a um só tempo materializa uma visão sobre o passado da saúde no país e uma rede de pesquisadores que têm se dedicado a temas nesse espectro nos últimos trinta anos. Compreender e discutir não somente o conteúdo do livro, mas também o projeto institucional que representa, é fundamental. Leia Mais

Saúde e educação: um encontro plural – BERTICCI; SCHRAIBER (TES)

BERTICCI, Liane Maria; MOTA, André; SCHRAIBER, Lilia B.. (Orgs.). Saúde e educação: um encontro plural. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 326 p.p. Resenha de: RUELA, Helifrancis Condé Groppo. Encontros e diálogos entre a saúde e a educação no Brasil. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.17, n.1, 2019

Saúde e Educação: um encontro plural é o nome da obra organizada por Liane Maria Bertucci, André Mota e Lilia Blima Shraiber que foi publicada pela Editora Fiocruz em 2017. O livro promove o encontro de historiadores, educadores, médicos e cientistas sociais que se dedicam e dialogam com o processo histórico de construção da relação entre a saúde e a educação, sobretudo no Brasil do século XX, e que têm como referencial condutor a historiografia brasileira. Os 14 capítulos estão agrupados em três partes temáticas que trataremos na sequência, quais sejam: Formação Profissional; Campanhas e Práticas de Prevenção; e O Universo Escolar.

A primeira parte, composta por quatro capítulos, inicia com “Saúde e Educação: a formação profissional entre princípios do século XX e do XXI”. Neste capítulo a autora analisa as influências do Relatório Flexner na formação médica na América Latina e como a maioria das instituições incorporou as recomendações sugeridas pelo documento, a saber: privilégio da biomedicina, incorporação de tecnologias, ensino por disciplinas e divisão dos currículos por ciclos. Aponta também que houve uma importante mudança depois da segunda metade do século XX, quando organismos como a OPAS e a OMS passaram a sugerir uma revisão nos currículos dos cursos da área da saúde, visando uma formação que superasse a proposta de ciclos (básico, pré-clínico e clínico) e promovesse uma integração e harmonização entre os conteúdos e a inserção mais precoce dos estudantes nos serviços de saúde locais.

O texto seguinte, intitulado “Educação, Higiene e Profissão em Debate nos Congressos de Medicina Latino-Americanos e Brasileiros”, resgata a realização dos Congressos científicos de medicina no continente latino-americano na virada do século XX para o XXI e suas participações na consolidação profissional do médico no período. Com base nos documentos desses eventos foi possível demonstrar a tensão no processo de regulamentação e construção do campo de atuação enquanto áreas autônomas não só da profissão médica, mas também de outras áreas profissionais como a farmácia, a odontologia e a enfermagem.

Já o terceiro capítulo, “Diplomadas de 1946: o novo modelo de formação norte-americano e a Escola de enfermagem do Centro Médico da Faculdade de Medicina de São Paulo”, tem como objetivo contribuir para a análise histórica do movimento político e social que alterou a formação e a identidade profissional no Brasil pós-1930. Para isto foram tomados depoimentos das 16 egressas da primeira turma da Escola de Enfermagem de São Paulo.

No último capítulo dessa primeira parte, intitulado “A Cooperação Opas-Brasil na Formação de Trabalhadores para a Saúde (1973-1983): instituições, agendas e atores” são resgatadas as bases, o desenvolvimento, os desdobramentos e resultados da cooperação técnica Opas-Brasil e sua influência no cenário dos recursos humanos em saúde no Brasil. Destaca-se o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS) e o apontamento de que o legado da cooperação não se restringiu ao tema da formação de recursos humanos para a saúde e acabou influenciando e contribuindo para o próprio movimento de articulação que culminaria na formulação do Sistema Único de Saúde anos mais tarde.

A segunda parte, de uma maneira geral, trata do modo como determinadas populações enfrentaram doenças específicas e o quadro de saúde no final do século XIX e nas primeiras sete décadas do século XX. É iniciada com o capítulo “Morte aos Ratos!” que contextualiza o surgimento da epidemia de peste bubônica na Europa e sua chegada e disseminação no Brasil. São descritas também as estratégias de combate aos surtos e epidemias e suas relações com os ideais civilizatórios e de nação moderna da conjuntura do período.

O capítulo 6 da coletânea que tem como título “Os materiais educativos para a Prevenção do Câncer no Brasil: da perspectiva histórica à dimensão discursiva” discute os aspectos da educação em saúde para o controle do câncer no século XX, sobretudo através da publicação de impressos sobre o tema, elaborados entre as décadas de 1940 e 1960. Seus autores mostram como a mudança no padrão de morbidade fruto da transição epidemiológica impactou nas estratégias e práticas de combate ao câncer e como ele ganhou espaço na agenda da saúde pública brasileira depois da década de 1950.

“Saúde e educação na reforma dos Costumes dos Jovens Rurais mineiros (1952-1972): a experiência dos Clubes 4-S” é o terceiro capítulo dessa segunda parte. Os autores discutem a organização dos clubes de jovens rurais e sua ação de extensão rural em Minas Gerais, desenvolvida por funcionários da Associação de Crédito e Assistência Rural (Acar-MG). O projeto buscou uma “reforma dos costumes que tinha a sua centralidade na prescrição de preceitos morais e de saúde para uma parcela significativa da população rural de Minas Gerais, levadas à cabo por iniciativas de educação social” (p. 185).

O texto que fecha essa segunda parte é “Saúde pública, Mudança de Comportamento e Criação: da educação sanitária à emergência da inteligência coletiva em saúde” que realiza uma breve recuperação histórica da educação em saúde nas práticas de saúde pública no Brasil ao longo do século XX passando pela educação sanitária, a educação popular e a inteligência coletiva. São abordadas suas diferentes formas de interface com a comunicação, com os comportamentos e estilos de vida e como esses foram respondendo às mudanças do perfil epidemiológico de cada período.

A terceira e última parte do livro está estruturada em seis capítulos que tratam do tema da saúde no universo escolar. O texto “Saúde e Educação no Contexto Escolar” é o primeiro deles e busca demonstrar o desenvolvimento do movimento higienista e sua relação com a escola entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ele aponta como a higiene passou a condicionar os aspectos da infância, da adolescência, da organização escolar e consequentemente promover uma medicalização da escola. Segundo a autora, “a atual educação para a saúde no universo escolar herdou muitos aspectos da antiga higiene das escolas e dos escolares” (p. 224).

O capítulo seguinte, “Para a Sanidade do Corpo: ginástica e educação física nas actas e pareceres do congresso de Instrucção Publica – Rio de Janeiro, 1883”, analisa o material reunido para o congresso que, por falta de recursos, acabou não acontecendo. As Actas e Pareceres acabaram sendo publicados em 1884 pela Typographia Nacional. São feitas considerações sobre a higiene individual e da escola e a importância da ginástica para meninos e meninas como meio de moldar corpos saudáveis.

O terceiro capítulo dessa última parte é “Em Prol do Ofício, da Salvação Pública e de uma Comunidade Produtiva: higiene e saúde na formação de professoras primárias”, que se baseia no estudo de dois compêndios de higiene destinados à formação de professoras na escola normal da capital da República. O primeiro foi Noções de Hygiene, de Afrânio Peixoto e Graça Couto, e o segundo Compendio de Hygiene, de José Paranhos Fontenele. As publicações analisadas buscavam preparar as futuras professoras primárias com relação à higiene e aos conhecimentos elementares relacionados à saúde.

O capítulo seguinte “A Saúde pela Educação na Escola (Nova) Primária: artigos de José Pereira de Macedo na Revista Médica do Paraná, início dos anos 1930” traz considerações sobre os artigos publicados pelo médico professor da Faculdade de Medicina que dissertavam, entre outras coisas, sobre a necessidade de inspeção das instalações escolares como as cantinas e a “importância da instrução dos professores pelos médicos e a relevância da atuação desses professores bem formados para inculcar nos alunos noções sobre saúde e prevenção de doenças” (p. 282).

O penúltimo capítulo da coletânea é “Educação Rural, Eugenia e o Caso da Galinha Preta” que apresenta a experiência da Escola Rural do Butantã, mais especificamente da atuação da professora normalista Noêmia Saraiva de Mattos Cruz e suas estratégias de ensino que estimulavam os alunos a refletirem sobre o mundo do trabalho rural, patriotismo e higiene eugênica.

O livro termina com o capítulo “Formação de Cidadãos Higienizados para a Construção do Progresso Nacional: produção e circulação de livros escolares de higiene na primeira metade do século XX”, que segue a linha da última parte e trata da relação da higiene com o universo escolar. Nesse caso específico são abordados os livros escolares utilizados para disseminação de saberes e práticas higiênicas nas escolas primárias e nos cursos de formação de professores no referido período.

O percurso da obra que foi aqui traçado mostra o processo histórico de construção da relação entre saúde e educação sob uma perspectiva de forte base empírica. É digno de nota o rigor das pesquisas e a abrangência das experiências em termos geográficos, institucionais e áreas de atuação profissional, que são fruto do referencial teórico metodológico guia do livro.

Esse referencial, se por um lado traz uma riqueza de detalhes sobre as pessoas, os lugares e as datas, por outro pode deixar a desejar na análise conjuntural do período analisado. Ainda que em alguns momentos os autores se preocupem em relacionar a saúde e a educação com o momento político-econômico do país, em outros fica pouco evidente ou velada a relação dialética que esse binômio saúde-educação estabelece com o modo de produção social vigente do período. O referencial da determinação social do processo saúde-doença (Breilh, 2013) nos parece central para a realização dessa tarefa.

Assim, reafirmamos a importância da obra como base empírica da história da relação saúde-educação, ao mesmo tempo em que convidamos os pesquisadores para que em futuros estudos sobre o tema tenham em vista a não neutralidade e a intrínseca relação com o modo de produção social que esses dois campos de atuação possuem.

Referências

BREILH, Jaime. La determinación social de la salud como herramienta hacia una nueva salud pública (salud colectiva).Revista Faculdad Nacional de Salud Pública, Antioquia, n. 31, supl. 1, p. 13-27, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.org.co/pdf/rfnsp/v31s1/v31s1a02.pdf> [ Links ]

Helifrancis Condé Groppo RuelaFundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Brasil no Contexto Global, 1870-1945 / História Ciências Saúde — Manguinhos / 2014

Ao longo de 2013 foram comemorados 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS) com abundantes debates, reportagens e entrevistas. Esta primeira edição de 2014 de História, Ciências, Saúde – Manguinhos traz ainda algumas contribuições às análises em geral muito preocupantes sobre os rumos dessa guinada fundamental na história da saúde pública brasileira.

Ao assumir João Baptista Figueiredo o último governo (1979-1985) da ditadura militar, objeto também de balanços históricos pelos cinquenta anos decorridos desde o golpe de 1964, chegava ao fim o milagre brasileiro e começava a “década perdida”. A elevação dos preços do petróleo, a expansão descontrolada da dívida externa e da inflação e a política recessiva contribuíram para levar às ruas o movimento “Diretas já” (1982-1983). No governo Geisel começara a chamada “abertura lenta e gradual”. Entre as diversas formas de mobilização popular sobressaíam as que conjugavam a luta pela redemocratização a propostas de reforma da saúde. O primeiro Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, na Câmara dos Deputados, reuniu em 1978 as principais lideranças do movimento da reforma sanitária, aprovando-se documento com seus princípios centrais. Estavam em sintonia com tendências em curso na saúde global que traziam a primeiro plano o conceito de atenção primária à saúde. Aí também o novo pensamento médico nutria-se de processos que formariam o epílogo da guerra fria. Os movimentos de estudantes, trabalhadores e intelectuais que irromperam em 1968 contestavam não apenas o sistema capitalista e a cultura e ideologia burguesas, mas também o establishment médico, acelerando a obsolescência dos modelos verticais de erradicação de doenças e a ideologia desenvolvimentista correlata, segundo a qual os países “subdesenvolvidos” trilhariam caminho igual ao da América do Norte e Europa Ocidental se fossem providos de tecnologias médicas sofisticadas. Estudos produzidos dentro e fora do campo médico, inclusive no âmbito historiográfico, ajudaram a demolir essa visão de mundo e da saúde. O divisor de águas na saúde global foi a Conferência Internacional sobre a Atenção Primária à Saúde realizada em setembro de 1978 em Alma-Ata, na então União Soviética. A declaração lá aprovada estabelecia como princípios básicos: tecnologia adequada às necessidades das populações pobres em lugar da tecnologia sofisticada consumida por uma minoria urbana; oposição ao elitismo médico e à excessiva especialização; valorização de agentes comunitários de saúde; abertura aos saberes tradicionais; e o conceito de saúde como ferramenta para o desenvolvimento socioeconômico, por meio de ações horizontais e intersetoriais, chegando às zonas rurais e periferias pobres das grandes cidades.

No Brasil, os movimentos sociais com agenda semelhante alcançaram suas vitórias mais expressivas algum tempo depois. Em 15 de janeiro de 1985, foi eleito presidente, pelo voto indireto, o senador Tancredo Neves, que morreu antes da posse, assumindo o cargo o vice-presidente, José Sarney (1985-1990). Pressionado pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e por diversas instituições médicas e científicas, o governo nomeou o principal líder do movimento pela reforma sanitária presidente da Fiocruz. Sergio Arouca, da Escola Nacional de Saúde Pública, assumiu o cargo em 3 de maio de 1985 e em março do ano seguinte presidiu a oitava Conferência Nacional de Saúde, cujas plenárias sacramentaram o conceito de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado a ser implementado com a unificação, democratização e descentralização do sistema, compreendendo-se saúde não apenas como acesso a serviços, mas como resultado das condições de vida. Medicina previdenciária e saúde pública deviam ser integradas num sistema único que viesse a prover cobertura a todos os cidadãos.

Os deputados federais e senadores empossados em fevereiro de 1987 acumularam as funções de uma Assembleia Constituinte. Presidida por Ulysses Guimarães, do PMDB, era formada majoritariamente por representantes de segmentos conservadores, coligados no “centrão”. Ainda assim, nela foi aprovada a criação do SUS, graças a habilidosas negociações e ao acolhimento de uma emenda popular defendida por Arouca, com o apoio de vários partidos e entidades.

As regras político-eleitorais legadas pelo regime militar ampliaram o peso dos estados com menor colégio eleitoral, em que prevalecem os interesses oligárquicos, em detrimento das áreas mais urbanizadas, e facilitaram a proliferação de partidos políticos, o que dificulta a formação de maiorias no Legislativo e obriga os governos a se apoiar em coalizões conservadoras. Isso ajuda a explicar a opção da Constituinte, e das coalizões que vêm governando o país até hoje, de manter, ao lado do SUS, competindo com ele e ameaçando-o, um setor privado de saúde com privilégios fiscais e outras regalias.

Os artigos e as entrevistas publicados nesta edição da revista trazem importantes subsídios à reflexão sobre esses dilemas.

O leitor encontrará também nas páginas a seguir um dossiê com trabalhos derivados de uma conferência internacional realizada no Instituto de Estudos Latino-americanos da Freie Universität, em Berlim, em outubro de 2011, com o título “Brasil no contexto global, 1870-1945”.1 Organizada por Georg Fischer, Christina Peters e Frederick Schulze, discípulos do renomado historiador Stefan Rinke (o dossiê inclui entrevista concedida por ele), a conferência deu origem a livro preparado pelos mesmos pesquisadores sob o título Brasilien in der Welt: Region, Nation und Globalisierung 1870-1945 (Frankfurt am Main: Campus, 2013). Nem todas as comunicações aí enfeixadas estão nesta edição de HCS-Manguinhos, que reúne trabalhos submetidos à avaliação de pareceristas e a modificações às vezes consideráveis feitas pelos autores, antes de sua publicação em português.

Seguindo as linhas mestras do programa do evento, o dossiê reúne textos sobre temas que não têm necessariamente a ver com saúde. Desde os anos 1990 historiadores norte-americanos, britânicos e mais recentemente alemães vêm discutindo temas e métodos da global e da world history, assim como da história transnacional. Essas abordagens tentam superar antigas limitações resultantes da vinculação entre historiografia e Estado nacional. Inicialmente o esforço de superação se deu por comparações e história de transferências. As abordagens atuais vão além e pesquisam como espaços se constroem por entrelaçamentos e inter-relações, inclusive a circulação de saberes e atores. O dossiê reúne, assim, trabalhos que analisam, sempre no tocante ao Brasil, as referências globais do imaginário nacional; o papel de regiões e regionalismos na formação nacional e sua relação com processos globais; a transformação do significado de conceitos como nacionalidade e descendência étnica no contexto de processos globais de migração; as transferências de conhecimentos pertinentes à história do trabalho, da economia e do consumo; e, por último, as relações entre Alemanha e Brasil a partir de uma perspectiva transnacional.

Bom proveito!

Nota

1 Programa disponível em http: / / www.lai.fu-berlin.de / disziplinen / geschichte / Veranstaltungen / brasilglobal_programa.pdf

Jaime L. Benchimol – Editor científico


BENCHIMOL, Jaime L. Carta do editor. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.1, jan. / Mar, 2014. Acessar publicação original  [DR]

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