Construtores do Império – defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais 1823-1834

Dentre os estudos mais recentes que se debruçam sobre o processo de construção do Estado nacional no Brasil, a obra de Carlos Eduardo França de Oliveira – vencedora do 5º Prêmio de Teses da Anpuh – se destaca como inovadora e polêmica. Resultado de Doutorado defendido em 2014, ela desconfia, como escreve Cecília Helena Salles de Oliveira no prefácio, do “saber já sabido” e das certezas prévias. Isso pelo motivo de se inscrever em um movimento de renovação historiográfica que, sobretudo nas últimas duas décadas, amparando-se em exaustiva exploração de fontes e referenciais teórico-metodológicos diversos, tem contribuído para o esclarecimento de aspectos fundamentais da sociedade brasileira no século XIX.

Durante muitas décadas, a história do período imperial brasileiro foi pensada a partir de duas temáticas essenciais: a revolução liberal como projeto inacabado e a escravidão. Resguardadas suas especificidades, as leituras tradicionais sobre as origens, as instituições e o percurso do Brasil independente, baseando-se em paradigmas do ideário liberal formulados no Oitocentos e (re)configurados à luz das interpretações posteriores, apontavam ao menos para três grandes assertivas: a conservação de uma incômoda herança colonial que impossibilitou o efetivo desenvolvimento de cidadãos; o profundo desarranjo das ideias e práticas políticas europeia e estadunidense aplicadas à dinâmica do liberalismo brasileiro, marcado pelo cativeiro de africanos; e, por último, porém não menos importante, a fase imperial do Brasil como momento desprovido de perfil próprio, sendo mera etapa entre a época colonial e a republicana de sua história.[3]

Ao propor uma análise da ascensão de políticos paulistas e mineiros no processo de formação do Estado nacional brasileiro entre 1823 a 1834, enfatizando-se a criação das esferas do poder provincial em São Paulo e Minas Gerais, bem como a projeção desses agentes no cenário político da Corte fluminense, Oliveira vincula-se a um conjunto maior de estudos renovados sobre a formação do Império do Brasil. Essas interpretações, inspiradas por questões contemporâneas e pelas crescentes análises desenvolvidas nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras a partir da segunda metade do século XX, vêm repensando a supremacia do “econômico” sobre as práticas e o imaginário dos agentes históricos, fazendo cair por terra conclusões que sublinham o suposto “atraso” da sociedade brasileira em relação à modernidade, sua intangibilidade e inconsistência no século XIX, como também a incompatibilidade entre liberalismo e a lógica escravista.[4]

Desse modo, unindo-se ao rol de análises que revalorizaram os estudos políticos em uma ampla variedade de temas, da cultura política ao constitucionalismo, da formação dos espaços públicos e formas de sociabilidades às identidades e às transformações das mentalidades dos agentes que experienciaram as rupturas entre os séculos XVIII e XIX, [5] o autor coloca em outra ordem de importância o papel da cultura e das iniciativas dos indivíduos, especialmente de paulistas e mineiros, na formação da sociedade brasileira e consolidação do projeto liberal moderado. Baseando-se em repertório amplo de fontes variadas, como documentos oficiais e periódicos, assim como em uma bibliografia abrangente e atualizada, Oliveira joga luz sobre o arranjo de relações que envolveram instituições e homens, marcando a consolidação da província como novo lócus de poder.

No primeiro capítulo, Oliveira explora os vínculos entre política e economia nas províncias de São Paulo e Minas Gerais nos primeiros anos do Império, chamando a atenção para os grupos e sua incorporação no processo de construção da nova ordem monárquica-constitucional com sede no Rio de Janeiro. Esse processo, de um lado, assumiu lugar primordial ao assegurar a integridade do novo Estado e, de outro, permitiu a esses mesmos círculos a conquista de participação política na Corte. Problematizando a tese decadentista (segundo a qual as dinâmicas das duas províncias estagnou após o declínio da produção aurífera mineira), o autor defende que, mais do que redutos de nomes consagrados no processo de Independência, São Paulo e Ouro Preto foram importantes arenas de disputa e articulação política em que parcelas socioeconômicas plurais, vindas de variadas partes das províncias, batalhavam pelo poder.

Evitando intepretações rígidas que unem segmentos socioeconômicos específicos a orientações políticas particulares seguindo um fio único de interesses, o autor convida o leitor a olhar para a diversidade de situações e fidelidades que coloriam um quadro mais amplo de relações políticas, econômicas e sociais da época. Assim, como contraponto à vertente mais tradicional, Oliveira implode categorias como “centro” e “província”, “interesse nacional” e “interesse local”, enfocando as formas negociadas com que mineiros e paulistas foram concebendo suas províncias como espaços essenciais de articulação política e poder.

No segundo capítulo, o autor detém-se na exposição pormenorizada dos principais aspectos dos conselhos provinciais – Conselho da Presidência e Conselho Geral – em São Paulo e Minas Gerais, principalmente seu funcionamento, ação política e participação na composição do poder nessas regiões. Oliveira trata, primeiro, da dinâmica do Conselho da Presidência e da atuação dos presidentes de província, relativizando a historiografia que caracteriza o Primeiro Reinado como momento “centralizador”, no qual os chefes do Executivo provincial seriam meros “delegados” a serviço de D. Pedro. O autor tece sua problematização com perícia, apontando como a atuação dos vice-presidentes – sujeitos escolhidos nas próprias localidades – e do Conselho da Presidência serviram de contrapeso ao poder dos presidentes. Ademais, o autor afirma que os Conselhos da Presidência paulista e mineiro, ultrapassando o papel de órgãos consultivos a serviço dos presidentes de província, se elevaram a âmbito privilegiado de prática política, seguindo os moldes de um regime representativo preocupado com a defesa dos preceitos monárquico-constitucionais.

Na segunda parte, Oliveira apresenta o processo de instalação dos Conselhos Gerais nas províncias de Minas Gerais e São Paulo, conforme previsto na Carta de 1824. A partir da exposição da relação entre esses órgãos, câmaras municipais e finanças provinciais, o autor delineia um panorama em que aponta como o aparelhamento político-administrativo das províncias, ligado às realidades locais e certa margem de autonomia para geri-lo, foi chave para a manutenção e consolidação do Estado monárquico-constitucional.

Para dar conta das formas como políticos paulistas e mineiros ocuparam o Legislativo do Império a partir de 1826, Oliveira apresenta e discute os aspectos fundamentais da representação e do encaminhamento dos assuntos provinciais na Câmara dos Deputados e no Senado. Na primeira parte, ele aborda a composição das bancadas mineira e paulista na Câmara dos Deputados. Explanando uma temática pouco explorada, o autor matiza o enfrentamento que ocorreu no Parlamento, especialmente na câmara baixa, como simples embate entre os herdeiros de um suposto conflito entre “portugueses” e “brasileiros” na Independência. Afirma que o âmbito da Câmara dos Deputados se configurou como espaço de matizes e nuances, no qual a distinção entre os grupos políticos não pode ser compreendida como elemento preexistente à luta política. Tampouco havia uma simetria entre inserção econômica e posicionamento político, como também uma dicotomia entre províncias e Corte.

Há que mencionar ainda que o autor aborda um dado importante não desenvolvido por muitos estudos: o de como os grupos políticos parlamentares teriam se inserido no sistema eleitoral das províncias paulista e mineira, forjando-se no espaço local para, a partir dele, se rearticular na Câmara dos Deputados. Longe de estabelecer uma simplificadora correspondência entre fidelidades de origem, representação e aprovação de pautas provinciais, baseada em uma relação de causa e efeito, Oliveira põe em exibição uma realidade mais cambiante, em que a composição das bancadas paulista e mineira nas três legislaturas da câmara baixa dependeram da convergência de um emaranhado de fatores como distintas concepções de representação e projeto de Estado, questões político-institucionais, alianças (inter)provinciais, rivalidades entre os grupos políticos, tensões sobre perspectivas diversas a respeito dos negócios e de ocupações dos espaços administrativos. Portanto, conclui que o encaminhamento das necessidades provinciais na Câmara dos Deputados foi um processo complexo que não se diluía na transposição automática das demandas das províncias para o Legislativo.

Dando prosseguimento à discussão sobre a maneira como os representantes provinciais deram vazão às demandas das suas províncias, um segundo movimento, ainda relacionado à primeira parte, dá conta da análise do engajamento do Senado no tocante às demandas que partiam de São Paulo e Minas Gerais. De novo, o autor rompe com afirmações prévias, relativizando a ideia de um Senado fechado em si mesmo, atento apenas às estratégias de contenção da câmara baixa. Pelo contrário, Oliveira assume que tais assertivas desembocaram em deduções simplistas e perigosas. Apesar do envolvimento menor do Senado com as propostas dos Conselhos Gerais, não se pode dizer que a casa vitalícia era desalinhada das causas provinciais. Mesmo diante da sua maior autonomia frente às bases eleitorais das províncias, perceber o Senado superficialmente como instrumento político em prol do monarca e de seus ministros, provoca o autor, seria cair no jogo retórico dos liberais, produzido especialmente pelos moderados da época.

Na segunda parte, o autor tematiza a questão do comprometimento dos deputados com as propostas dos Conselhos Gerais, sobretudo daqueles que ocuparam as duas instituições, a fim de encarar se eles eram “homens da província”, ou seja, seus representantes no Parlamento. No fim da análise, o autor conclui que as pautas dos Conselhos Gerais serviram para os parlamentares como instrumento de luta e negociação política, no qual assegurar os interesses provinciais nem sempre foi o objetivo final. Além do mais, essa dinâmica teria sido permeada por um encadeamento complexo de relações entre os eleitores, conselheiros-gerais, deputados e senadores, perpassado por outros fatores como enfrentamentos políticos, heterogeneidade das bancadas provinciais, autonomia dos legisladores em relação às bases eleitorais e existência de tópicos considerados mais relevantes do ponto de vista nacional. Nesse sentido, Oliveira esvazia categorias como “interesse local” e “interesse nacional”, já que para esses legisladores ao fazer política provincial, direta ou indiretamente, eles estavam dando conta também da política nacional e vice-versa.

Dividido em cinco partes, o quarto e último capítulo é o maior do livro. Na primeira parte, o autor apresenta em linhas gerais o clima de tensão e redefinição de forças que caracterizou o contexto político após a saída de D. Pedro, um quadro marcado pelas discussões em torno de uma reforma constitucional do país nascente. O autor faz uma ponderação metodológica relevante, recomendando ao especialista que evite descrições estanques, tendo em vista a fluidez que os termos “moderados”, “exaltados” e “caramurus” possuem. A coerência programática desses grupos, forjada pelos próprios coevos, pesava menos do que sua função política influenciada pelas tensões em jogo.

Na segunda parte, Oliveira sugere que a elaboração de um movimento de reforma constitucional atrelou-se à intensificação da investida liberal contra o governo pedrino no Primeiro Reinado, o que também gerou uma fratura entre os grupos liberais, particularmente acerca das relações entre Legislativo e Executivo. Nessa lógica, os debates sobre a reforma da Carta de 1824 travados depois da abdicação de D. Pedro I, em 1831, retomariam, sob nova luz, questões já presentes no triênio de 1821 a 1823, sobretudo as relações entre centro e província, as atribuições que caberiam ao Poder Moderador, a existência do Conselho de Estado e a vitaliciedade dos senadores, solapadas com o fechamento da Constituinte por D. Pedro. Toda essa discussão não se restringiu só aos setores oficiais da luta política. Ela alargou o espectro social de ação política, como aponta o autor na terceira parte, percebida nos debates levados a cabo pelos círculos dos alunos do Curso Jurídico de São Paulo e vários periódicos mineiros e paulistas. Toda a tensão em torno da reforma constitucional desencadeou uma restruturação do campo de luta política.

Na penúltima parte, o autor não economiza esforços para demonstrar que as discussões em torno do projeto de reforma constitucional propunham mudanças radicais na estrutura política do Império, permeada pelas ideias de federação que seriam exploradas a fundo pela imprensa e pelos heterogêneos grupos políticos. Com o adensamento da inevitabilidade da reforma, tanto ela quanto o sistema federativo em si acabaram ganhando uma conotação positiva em meio à então resistente ala moderada, que via na ampliação dos poderes provinciais, especialmente de cunho legislativo e fiscal, uma maneira para se garantir no poder, resguardando a continuidade da monarquia-constitucional. Na última parte, o autor apresenta as discussões que culminaram no Ato Adicional, apontando que as maiores polêmicas em relação à reforma constitucional repousaram nas atribuições das Assembleias Legislativas. Aqui o pesquisador, mais uma vez, assume uma postura revisionista, amparando-se em autoras como Miriam Dolhnikoff e Maria de Fátima Gouvêa, encarando a execução da reforma como parte de um arcabouço legal maior que vinha sendo gestado anteriormente.

Baseado em uma bibliografia vasta e atualizada, como também em variedade de fontes de natureza diversas, Carlos Eduardo França de Oliveira tece apontamentos e questionamentos pertinentes sobre um momento complexo da história do estabelecimento do Estado nacional brasileiro. Sem se deter em um único segmento social em São Paulo e Minas Gerais e, muitas vezes, apontando o que acontecia em outras províncias do Império, o autor esboça o emaranhado de relações múltiplas e cambiantes que esses indivíduos teceram, sem que tal dinâmica se restringisse à cooptação de forças pelo poder central na Corte ou outras associações unilaterais. Desse modo, ancorado nesse processo de ampla complexidade, o autor ressignifica episódios importantes do período, fazendo cair por terra ideias pouco fluídas como “centro” vs. “província” e “interesse nacional” vs. “interesse provincial”.

Notas

1. Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Guarulhos – São Paulo.

2. Graduada em História e mestranda do Departamento de Pós-graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista FAPESP, processo nº 2018/11696-0. E-mail: [email protected]

3. MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In: ______ (orgs.) Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 10-11.

4. Ibidem, p. 11.

5. GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 183, 2. Semestre 2013.

Referências

GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 183, 2. Semestre 2013.

MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In: MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (orgs.) Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017.

Claudia de Andrade1-2 – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Guarulhos – São Paulo. Graduada em História e mestranda do Departamento de Pós-graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista FAPESP, processo nº 2018/11696-0. E-mail: [email protected]


OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017. Resenha de: ANDRADE, Claudia de. O império negociado: agentes provinciais no ajuste da ordem no Brasil independente. Almanack, Guarulhos, n.22, p. 619-626, maio/ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

An Economic and Demographic History of São Paulo – 1850-1950 – LUNA; KLEIN (RBH)

Este livro é continuação do volume anterior, que tratava dos períodos colonial e imperial. Nesta nova obra, os autores estabelecem como balizas temporais os anos de 1850 e 1950. Juntos, os dois volumes buscam analisar as histórias econômica e social de São Paulo, desde o período colonial até a primeira metade do século XX. Leia Mais

O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo | Elcilene Azevedo

Elciene Azevedo na obra “O direito dos escravos” tem por objetivo compreender o processo que envolve a luta abolicionista em São Paulo durante as últimas décadas do século XIX, atentando não apenas para as rupturas no decorrer do processo, mas também para as continuidades e reelaborações.

A autora vai além de uma compreensão, por muito tempo cristalizada em nossa historiografia, sobretudo pela “Geração de 1930”, a qual entendia que o escravo devido a constância dos maus tratos a que era submetido se tornava alheio a sua própria vontade. Sob essa leitura eram então sujeitos amorfos que não resistiam à violência, quando não eram ainda interpretados como inertes à escravidão pela benevolência de seus senhores, necessitando de homens brancos e ilustrados, repletos de sentimentos humanitários capazes de tirar-lhes da escura escravidão. Leia Mais

Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845) | Fernanda Sposito

A temática indígena ainda não entrou de maneira firme na história política do Império. É essa, pelo menos, a impressão deixada por algumas obras coletivas publicadas recentemente. Ao não tratarem dos índios e das nações indígenas, essas historiografias, que se apresentam como visões panorâmicas sobre o século XIX, terminam ajudando a propagar a falsa ideia de que os índios não eram uma preocupação política dos contemporâneos, ou não representavam uma ‘variável’ importante para a análise da experiência histórica brasileira do período. Em Nação e cidadania no Império: novos horizontes, [1] por exemplo, existem 17 capítulos e nenhum deles se dedica aos índios e às suas experiências durante o Oitocentos. O mesmo acontece em Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade, [2] com 23 capítulos, nenhum dos quais enfocando a questão indígena como eixo central da análise. Não é aceitável, contudo, continuar discutindo a formação do Estado, a consolidação do território nacional e a cidadania, durante o Império, sem considerar de maneira clara, direta e corajosa o problema dos índios, das comunidades indígenas já integradas à ordem imperial e das inúmeras nações independentes que, progressivamente, foram conquistadas ao longo do próprio século XIX. A recente publicação de O Brasil Imperial, coleção em três volumes, com 33 capítulos, um deles dedicado aos índios,[3] é digna de menção, pois representa um avanço significativo. Leia Mais

Cidade das Águas: Usos de Rios, Córregos, Bicas e Chafarizes em São Paulo (1822-1901) | Denize Bernuzzi de Sant’Ana

Tema original, pouco apresentado na Historiografia contemporânea brasileira, onde pelos caminhos próprios de um estudo crítico, a competente e jovem historiadora Denise Bernuzzi de Sant´Anna nos apresenta este ousado e sugestivo trabalho, resultado de uma criteriosa e brilhante pesquisa, que foi objeto da sua Livre Docênci, defendida em Dezembro de 2004, no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Obteve para tanto financiamento do CNPq, além de bolsas concedidas a alunos de Iniciação Científica e Aperfeiçoamento Técnico, sendo uma parte das investigações sobre higienismo realizada durante o curso de Pós-Doutorado na École de Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, Financiado pela CAPES.

Agora, esta pesquisa é transformada em livro pela Editora SENAC, para alegria de seus leitores/alunos, e como uma substanciosa contribuição para aqueles estudiosos da temática Cidade, como é o caso dos integrantes do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – do Departamento e do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da referida, acima citada Universidade, e por nós coordenado, além de outros interessados no tema.

Desde a primeira década do Século XIX, os habitantes da feia e provinciana São Paulo utilizavam-se de rios, bicas, chafarizes, córregos, tanques e regatos para suas necessidades básicas, até os inícios dos primeiros anos da República, quando foram construídas as usinas no rio Tietê. Com essa baliza cronológica, que surgiu inspirada no momento da Independência do Brasil realizada por Dom Pedro, o príncipe regente, às margens do Riacho do Ipiranga (1822), até o estabelecimento da Hidrelétrica de Parnaíba (1901), no Rio Tietê, variados reflexos sobre esse imenso “continente aquático” fazem das páginas deste livro uma história muita bem narrada e interpretada do abastecimento ou não de água na cidade, que hoje é uma megalópole.

Enriquecidas reflexões são trazidas pela autora sobre usos, costumes e abusos sobre a água, suas funções, seus hábitos de higiene do corpo, da casa, das ruas e das calçadas, quando ainda não havia a tecnologia dos séculos que se seguiram. Personagens desfilam, e o olhar atento da pesquisadora não os perde de vista, embora alguns não sejam conhecidos na atual conjuntura. E, se o foram, jazem esquecidos pela maioria da população, que sequer imagina que esta cidade tinha o dom de ter um rico mapa geográfico de águas. Até o Estado a que pertence é atravessado por um dos importantes rios paulistas que, nascendo em Salesópolis, interior do Estado de São Paulo, vai despejar suas águas no rio Paraná, e não no Oceano Atlântico, como a maioria dos outros rios, que despejam suas águas no mar. Uma premonição da importância do deslocamento de fronteiras paulistas, pela interiorização do homem, transformando-as em locais de sociabilidade. A cidade de são Paulo tinha um imenso volume de águas, e uma rica cultura gerada pela presença delas no espaço público.

A historiadora transporta o seu leitor para períodos difíceis da vida da cidade, pois apesar dessa imensa turbulência aquática, houve momentos em que o racionamento da água gerado por períodos de seca, ou problemas de saúde pública, gerados por imensos temporais que alagavam e castigavam a pobre urbe, transformavam a pacata cidade em um caos social, fato que até hoje ainda ocorre.

As águas da cidade contribuíram para as mudanças dos hábitos higiênicos e da cultura do cidadão, pois vão trazer novas crenças, curiosidades no cotidiano, e preocupações de médicos em relação a doenças, e de engenheiros que tentam “dobrar” a natureza.

Muito rica e interessante é a narrativa construída pela autora, que leva de forma envolvente o leitor a refletir junto com ela as mazelas relativas ao abastecimento urbano da água, e os desafios políticos para resolvê-lo. Do uso dos banhos nas bacias domésticas às sofisticadas casas de banho que surgiram com os primeiros restaurantes no decurso do Século XIX (sobretudo, no período após a criação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco), até às pescarias onde pululavam peixes os mais variados, a atenta historiadora documenta as agravantes cenas do cotidiano urbano relativo às águas, à eletricidade e ao seu consumo, além de captar o comportamento social dos moradores na cidade de São Paulo, como as noções de higiene, as novas condições de vida, oriundas de um progresso quase que “homeopático”. Diferente do olhar do paulistano de hoje, cujo comportamento social rotineiro não é sustentado pelos cursos fluviais. Difícil entender que esta “terra da garoa” de ontem, burgo de estudantes, foi durante décadas “um lugar com muitos veios de água, apoiada por uma rica cultura material, relacionada à construção de samburás, barcos, moringas de barro, fontes, pinguelas e pontes de madeira” (Sant´Anna, 2007, p. 13). Vai cuidadosamente a autora desvelando as ruas que foram portos, como a Ladeira Porto Geral, da Tabatinguera e a da Figueira, no rio Tamanduateí, hoje pavimentado. Além dos pequenos riachos que, soterrados, deram origem às ruas que hoje abrigam importantes centros comerciais, livrarias, cafés etc.

Muitas enchentes destruíram valores acumulados, mas em contrapartida, do fundo desses rios saíram materiais úteis, que edificaram esta cidade. Um exemplo desse progresso arquitetônico foi o Edifício Martinelli, durante muitos anos o mais alto de São Paulo, erguido em 1922, e finalizado em 1929, em plena crise da Bolsa de Nova York, que utilizou areia e outros materiais extraídos do rio Tietê e trazidos ao porto por barqueiros.

As águas paulistanas contribuíram para momentos fundamentais da vida dos habitantes desta cidade. Tristezas, alegrias, vidas em construção, devoções profanas e sagradas. Mas também trouxeram os miasmas que preocupavam os higienistas, que os combatiam com estudos e projetos para a saúde pública, tendo suas origens nas primeiras leis de Saúde Pública, assunto por nós já rastreado.

A Professora Doutora Denise Bernuzzi de Sant´Anna utilizou uma farta documentação, entre as quais se destacam as Atas da Câmara Municipal; queixas e reivindicações dos moradores, localizadas na Coleção dos Papéis Avulsos do Arquivo Municipal; Ofícios e Requerimentos enviados ao Governador da Província; Artigos dos jornais O Correio Paulistano e o Diário Popular; processos criminais; teses sobre Higiene e Salubridade; memorialistas e viajantes.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, a autora trabalha com A Visibilidade da Água, que ocupa uma deslumbrante narrativa que se estende da página 15 à página 185. Na segunda, Do Visível ao Invisível, que se inicia à página 187 e se completa de forma inteligente e eloqüente à página 296. No total, com Agradecimentos, Introdução, Bibliografia e Fontes, o livro contém 318 páginas, além de uma belíssima capa, que ostenta um Óleo sobre Tela de José Wash Rodrigues de 1922, retratando a Igreja e Pátio da Misericórdia em 1840, Acervo do Museu Paulista da USP fotografado por Hélio Nobre e José Rosael.

Esta obra, além de ser uma rica leitura para pesquisadores da área, uma excelente fonte para estudos de temas semelhantes na cidade de São Paulo, é um incentivo à leitura para jovens paulistanos que desejam conhecer a história de sua cidade, que é narrada em estilo simples, que foge ao academicismo, sem prejudicar o seu rigor científico, pois se apresenta de forma ainda profunda e inédita.

Estamos nós todos da Academia Paulistana de parabéns, por recebermos esta excelente contribuição de uma historiadora cuja carreira promissora muito ajuda a difundir a história  desta cidade de São Paulo, e a contribuir para o enriquecimento da Historiografia nacional contemporânea, onde tal temática foi pouco explorada até então.

Yvone Dias Avelino – Professora Titular do Departamento e Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP. Possui experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando principalmente nos seguintes temas: Cidade, Cultura, História, Memória e Literatura. Coordena o Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – da PUC-SP, existente há mais de 15 anos.


SANT´ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das Águas: Usos de Rios, Córregos, Bicas e Chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo: SENAC, 2007. Resenha de: AVELINO, Yvone Dias. Narrativas Citadinas: São Paulo das Águas. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.1, 2008. Acessar publicação original [DR]