Filosofia da Biologia – ABRANTES (RFA)

ABRANTES, Paulo (Org.). Filosofia da Biologia. Porto Alegre: Artmed, 2011. Resenha de: BRZOZOWSKI, Jerzy André; MÉLO, Máida Ariane de. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.25, n.36, p.361-373, jan./jun, 2013.

O livro Filosofia da Biologia, organizado por Paulo Abrantes, tem um duplo objetivo: ao mesmo tempo em que pretende realizar uma introdução aos principais problemas tratados pela filosofia da biologia, busca pôr em evidência a importância que esse campo de pesquisa vem tomando no cenário latino-americano. Para tanto, cada capítulo do livro trata de um tema da filosofia da biologia e é assinado por um ou mais pesquisadores vinculados ao chamado Grupo Bogotá de Pensamento Evolucionista1. A filosofia da biologia é uma área sui generis da pesquisa filosófica, para a qual contribuem igualmente filósofos e biólogos; o perfil dos colaboradores do livro atesta esse fato.

Assim, o livro constitui um material de referência e apoio a estudantes de graduação e pós-graduação que estejam ingressando na pesquisa em filosofia da biologia ou simplesmente que tenham interesse pela área. Na maior parte dos capítulos, a leitura pode dispensar um conhecimento prévio dos assuntos abordados, e cada um dos capítulos pode ser lido independentemente dos demais. Apesar de, ao nosso ver, o livro não constituir um livro-texto nos moldes tradicionais, a obra é de inegável importância, pois contribui para suprir a grande carência de material em língua portuguesa na área.

Na introdução, Abrantes traça inicialmente um panorama sobre o lugar da filosofia da biologia no contexto tanto da filosofia da ciência como da filosofia em geral. Na sequência, apresenta os capítulos do livro, fazendo referência às perguntas da filosofia da biologia a que cada capítulo pretende responder. Abrantes também evidencia a lógica por trás da ordem dos capítulos, a nosso ver, muito bem pensada. De certo modo, a dinâmica do livro parte de questões que se situam na interface da filosofia da biologia com a filosofia da ciência em geral, e migra gradativamente para questões que podem ser exportadas da biologia para outros campos, como a ética e as ciências sociais. Essa introdução é bastante esclarecedora, e de leitura altamente recomendável mesmo para o leitor que deseje ter uma resposta rápida à questão “o que é a filosofia da biologia?”.

Conforme mencionado, o livro inicia-se com questões que estiveram vinculadas ao estabelecimento da biologia como uma ciência autônoma aos olhos da filosofia da ciência. Assim, no segundo capítulo, “Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade”, Sergio Martínez aborda o tema do reducionismo em suas três dimensões: metafísica, epistemológica e metodológica. Na qualidade de tese metafísica, o reducionismo diz respeito à constituição do mundo; como tese epistemológica, é sobre a natureza das explicações científicas; do ponto de vista metodológico, o reducionismo pode ser entendido como um programa de pesquisa.

É na relação entre a dimensão metafísica e epistemológica que se coloca a questão da autonomia da biologia: se as teorias biológicas concebem o mundo como constituído apenas de objetos e eventos físicos, de modo que provavelmente não há leis ou forças fundamentalmente biológicas, não seria a biologia redutível à física? Em outras palavras, se os biólogos são reducionistas metafísicos, por que não o seriam nos níveis epistemológico e metodológico? Martínez analisa esse problema a partir de sua colocação histórica, no seio do positivismo lógico (Círculo de Viena), onde estava associado à tese da unidade da ciência. Martínez responde que o que confere unidade à ciência não é a possibilidade de reduzir uma teoria à outra, mas sim “a integração de processos complexos que tendem a apoiar-se mutuamente na geração de explicações e predições exitosas” (p. 43).

Em uma segunda parte do capítulo, Martínez se dedica a examinar como se dão as práticas efetivamente reducionistas no interior da biologia. Assim, analisa o reducionismo na medicina e na biologia evolutiva. Em conclusão, Martínez afirma que “[a] maneira pela qual se está tentando superar o reducionismo é, justamente, fazendo ver que não há razão para rejeitá-lo” (p. 51). Mas isso não quer dizer que devamos voltar à ideia positivista de reduzir a biologia à física; pelo contrário, reconhecer as práticas reducionistas bem-sucedidas ao interior da própria biologia é uma forma de reconhecer sua autonomia.

No terceiro capítulo, intitulado “Leis e teorias em biologia”, Pablo Lorenzano aborda a clássica questão das leis em biologia e a vincula à questão sobre como as teorias científicas têm sido formalizadas pelos lógicos e filósofos da ciência. A questão das leis tradicionalmente é colocada nos seguintes termos: há, na biologia, leis como as da física? Essa questão pressupõe, é claro, que as leis da física constituam paradigmas de leis científicas. Lorenzano começa apresentando a concepção chamada “clássica” das teorias científicas, vinculada a autores do já mencionado Círculo de Viena (Carnap, Hahn, Neurath, Schlick). Nessa concepção clássica, as leis científicas são formalizadas como os axiomas da teoria e, então, são estipuladas regras semânticas para a interpretação desses axiomas em um vocabulário observacional.

Na sequência, Lorenzano apresenta o conceito de lei que é geralmente aceito juntamente com essa concepção clássica de teoria científica. Tal “conceito clássico de lei” caracteriza as leis como enunciados universais, de alcance ilimitado, que contêm apenas termos gerais e nenhum termo particular. Diante dessa concepção, Smart argumentou que “leis” biológicas como as de Mendel não são genuínas, já que violam o requisito da universalidade, ao se referirem a mecanismos de hereditariedade que podem ser exclusivos a alguns animais e plantas da Terra. Em contrapartida, autores como Brandon, Sober e Elgin defenderam que a biologia tem leis, mas que elas não são exatamente do tipo descrito pela concepção clássica, mas sim generalizações não empíricas que ainda assim são explicativas.

No restante do capítulo, Lorenzano apresenta uma segunda maneira de formalizar as teorias científicas, adotada mais recentemente na filosofia da ciência. Trata-se da abordagem semântica, adotada pelo próprio Lorenzano, cujo principal slogan é “uma teoria é uma família de modelos”. O termo “modelo”, aqui, se refere a uma representação de um “pedaço da realidade”. A abordagem semântica propõe quatro critérios que permitem diagnosticar o que seria uma “lei fundamental” de uma teoria. Não vamos entrar em detalhes sobre esses critérios; basta dizer que, na seção final do capítulo, Lorenzano aplica esses quatro critérios à conhecida lei de Hardy-Weinberg, um dos princípios fundamentais da genética de populações, e conclui que ela não é uma “lei fundamental” no sentido preconizado pela abordagem semântica. De um modo geral, o capítulo de Lorenzano é bastante elucidativo, e é recomendado, sobretudo, para os leitores já familiarizados com os métodos de formalização de teorias científicas.

O quarto capítulo, “Função e explicações funcionais em biologia”, de autoria de Karla Chediak, trata do conceito de função e as diferentes concepções que filósofos da biologia possuem sobre o uso do termo em explicações biológicas. O significado do termo “função” é facilmente entendido quando associado à ideia de finalidade, ou seja, de forma teleológica. Dado que o raciocínio teleológico é em geral considerado espúrio na ciência, duas diferentes concepções de função foram propostas de modo a dissolver os aspectos teleológicos associados ao termo. A primeira delas, a concepção etiológica, sustenta tanto a possibilidade quanto a necessidade da utilização da teleologia nos enunciados de função em biologia, sem, no entanto, recorrer a um agente intencional. A teleologia nessa abordagem é, de certo modo, naturalizada; para seus defensores, o fato de ser resultado de um processo de seleção natural é o único critério que permite distinguir o que é funcional do que não é. Na outra concepção de função, a concepção analítica, há inicialmente necessidade de se delimitar um sistema no qual a função é desempenhada. A partir de então, a função exercida por um elemento em um sistema é analisada em termos do papel causal que esse elemento tem nesse sistema.

Ao discorrer sobre as diferentes abordagens do uso e conceito de função nas explicações em biologia, citando trabalhos como os de Larry Wright, Ruth Millikan, Karen Neander, Robert Cummins, dentre outros, a autora é concisa e objetiva, ressaltando as contribuições, particularidades e críticas de cada concepção, de modo a concluir que ambas — embora distintas — são relevantes e complementares.

Os capítulos quinto (de Favio González) e sexto (de González e Natalia Pabón-Mora) formam, de certo modo, uma unidade sobre o problema das espécies e da classificação biológica. O chamado problema das espécies, assunto do quinto capítulo, se situa na interface entre a filosofia da biologia e a prática da sistemática biológica, e pode ser expresso pela seguinte questão: qual o conceito adequado de espécie biológica? Nos últimos anos, tem-se observado uma espantosa proliferação de candidatos a “o” conceito de espécie: González enumera nada menos que treze desses conceitos.

No entanto, apesar de a definição do conceito de espécie ser o centro de gravidade do problema das espécies, há outros problemas relacionados, que são devidamente apresentados por González. Em primeiro lugar, está a questão do estatuto ontológico das espécies: seriam elas classes das quais os organismos são membros, ou entidades históricas individuais, das quais os organismos são partes? A resposta histórica a essa pergunta é que, pelo menos desde Darwin, ou pelo menos desde a publicação da obra Sistemática Filogenética, em 1966, por Willi Hennig, as espécies são consideradas entidades históricas individuais. Entretanto, González poderia ter explicitado melhor de que modo as concepções pré-darwinianas adotam a concepção de espécies como classes2

Outra questão que orbita o problema das espécies diz respeito à sua realidade: as espécies são reais ou abstrações da mente humana? González apresenta brevemente uma discussão acerca dessa questão e encaminha algumas conclusões. Para González, a complexidade e multidimensionalidade dos problemas biológicos tende a tornar o problema das espécies um problema sem solução (p. 112). Ainda assim, González parece vislumbrar certa possibilidade de unificação a partir dos conceitos filogenéticos de espécie.

No capítulo sexto, “A classificação biológica: de espécies a genes”, González retorna, desta vez com a coautora Natalia Pabón-Mora, para promover uma discussão de aspectos históricos e teóricos da classificação biológica. Os autores apresentam inicialmente uma história da classificação biológica, mostrando como as ideias do essencialismo e da classificação linear foram sendo abandonadas. O essencialismo seria a ideia de que os seres teriam de ser classificados com base em arquétipos, ou “tipos ideais”, que representariam as propriedades essenciais de um grupo de organismos. Por sua vez, a ideia da classificação linear refletiria a noção de que os seres vivos poderiam ser dispostos em uma única escala de aumento de complexidade, que iria do organismo mais simples aos seres humanos.

A segunda parte do capítulo é dedicada à discussão de problemas teóricos contemporâneos relativos à classificação de genes. Há, segundo os autores, inúmeros problemas nesse domínio, sobretudo relativos à falta de critérios claros para a nomenclatura gênica. Segundo os autores, a falta desses critérios coloca os biólogos em uma situação semelhante à da classificação das espécies no período pré-lineano. A abordagem realizada por González e Pabón-Mora sobre o problema da classificação dos genes é interessante e inovadora, estando geralmente ausente dos livros-texto de filosofia da biologia. Entretanto, a discussão está permeada de termos técnicos da genética que podem ser de difícil compreensão para o leitor que não tiver conhecimento prévio deles.

O capítulo 7, “A contingência dos padrões de organização biológica: superando a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional”, de Maximiliano Bohórquez e Eugenio Andrade, é mais uma contribuição original à filosofia da biologia do que um texto introdutório sobre o assunto. Contudo, isso não representa um problema, já que os autores apresentam, de modo bastante satisfatório, o pano de fundo da discussão, de modo que mesmo o leitor que não o conheça é capaz de captar a contribuição proposta pelos autores.

De certo modo, a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional tem relação com os temas dos dois capítulos anteriores. O pensamento tipológico, de acordo com o biólogo, filósofo e historiador da biologia Ernst Mayr é uma forma pré-darwiniana de pensar o mundo biológico como estando constituído por “essências” ou “tipos” imutáveis de organismos. Nessa visão, que teria surgido com Platão e perdurado até Darwin, cada espécie corresponde a um tipo ou classe imutável de organização (funcional e/ou morfológica), e as variações ao interior das populações são entendidas como desvios desse tipo.

A grande novidade trazida pelo pensamento darwiniano, de acordo com Mayr, é a aceitação da variedade entre os indivíduos de uma espécie como uma característica fundamental das populações biológicas. De acordo com Mayr, é apenas sob essa perspectiva — fundamentalmente estatística, contingente, histórica — que é possível conceber a evolução. Porém, a proposta de Bohórquez e Andrade é a de reconciliar a perspectiva tipológica com a populacional. De acordo com os autores, há certas regularidades na biologia (por exemplo, relativas ao desenvolvimento dos animais) que são mais bem compreendidas como tipos de fenômenos, com a ressalva de que se trata de tipos históricos e contingentes. Entendê-los dessa maneira, longe de trair os propósitos darwinianos, ajudaria a entender a “origem, desenvolvimento e evolução da forma orgânica” (p. 157).

O capítulo 8, escrito por Claudia Sepúlveda, Diogo Meyer e Charbel El-Hani e intitulado “Adaptacionismo”, aborda as explicações evolutivas de caráter adaptacionista e as contrasta com as não adaptacionistas. O adaptacionismo corresponde, grosso modo, à visão de que grande parte das estruturas funcionais dos seres vivos surgiu por processos de seleção natural. Antes de apresentar as críticas a esse modelo explicativo, Sepúlveda e colaboradores ressaltam, exemplificando com diversos estudos empíricos, que a seleção natural é um mecanismo corroborado. Essa ressalva é importante para evitar uma possível interpretação errônea de que as críticas dos próprios biólogos ao adaptacionismo teriam por objetivo mostrar que a seleção natural não é um mecanismo real de mudança evolutiva.

Longe disso, a mais famosa dessas críticas, publicada por Stephen Jay Gould e Richard Lewontin, em um artigo de 1979, denuncia o modo como as narrativas adaptacionistas para explicar a origem de certas características eram aceitas apenas em virtude de sua coerência com a seleção natural, sem nenhuma comprovação empírica. Muitas das estruturas supostamente adaptativas podem surgir, na verdade, como subprodutos estruturais de outras mudanças que são, elas sim, adaptativas.

Outro caso é quando uma estrutura surge inicialmente em resposta a determinada pressão seletiva, e é posteriormente “aproveitada” pela seleção natural para responder a outra pressão seletiva. É esse o tipo de raciocínio que está por trás do conceito de exaptação, proposto por Gould e Vrba em 1982. Nesse sentido, os autores citam o exemplo das penas das aves, que surgiram inicialmente em dinossauros plumosos como estruturas termorregulatórias. Posteriormente, com a evolução de outras estruturas (esqueleto, musculatura), as penas passaram a ser selecionadas também como estruturas para o voo.

Em seguida, Sepúlveda, Meyer e El-Hani apresentam a teoria neutra da evolução molecular, proposta em 1968 por Mootoo Kimura, como um exemplo de teoria que propõe o mecanismo de deriva genética, e não a seleção natural, como o principal motor da evolução. Não se trata de diminuir a importância da seleção natural como mecanismo explicativo, mas apenas delimitá-lo, admitindo-se a importância de outros mecanismos no processo evolutivo. Assim, os autores do capítulo defendem uma forma de pluralismo explicativo: as mudanças evolutivas não podem ser todas explicadas por uma única força ou mecanismo. Cabe ressaltar que esse capítulo é um dos mais didáticos do livro; seus autores utilizam abundantes exemplos para elucidar os temas abordados. Além de facilitar a compreensão, tais exemplos evidenciam a necessidade de se adotar uma postura pluralista no que concerne às explicações evolutivas, dada a complexidade do assunto.

Ainda no que diz respeito à abrangência da seleção natural, no capítulo 9, a autora Estela Santilli enfoca o problema dos níveis e unidades de seleção. Quais são as unidades efetivamente selecionadas em um processo de seleção natural — genes, organismos, grupos, populações? George Williams e Richard Dawkins, embora descrevam de maneiras diferentes o processo de seleção, argumentam que os genes são seu principal foco, adotando, assim, uma posição monista. Há os que defendem que a seleção opera no nível de grupo, como Sober e Wilson, adotando um pluralismo realista. Posições filosóficas monistas, pluralistas ou intermediárias estão presentes quando se quer identificar o papel das unidades de seleção. Genes, organismos, grupos e espécies são agentes de seleção em diferentes níveis da organização biológica. Nesse debate estão implícitos vários conceitos e critérios de individualidade, de modo que ainda será necessário, além de análise conceitual, trabalho empírico. A autora do artigo salienta, citando o trabalho de vários outros autores, os aspectos polêmicos da abordagem sobre os níveis de seleção. Para tanto, discorre sobre o tema com abrangência e clareza.

O capítulo 10, “Aproximação epistemológica à biologia evolutiva do desenvolvimento”, de Gustavo Caponi, busca examinar uma disciplina biológica extremamente recente (surgida na década de 1980), a biologia evolutiva do desenvolvimento, ou evo-devo. A evo-devo estuda o modo como fenômenos do desenvolvimento de organismos pautam, em algum sentido, sua evolução. Para apreciarmos plenamente as novidades epistemológicas trazidas por essa disciplina, de acordo com Caponi, temos de levar em consideração o conceito de ideal de ordem natural, proposto por Stephen Toulmin. Um ideal de ordem natural é um conjunto de pressupostos vinculados a uma teoria que “definem o que é o caso quando nada ocorre e assim estabelecem o horizonte de permanência sobre o qual irrompem os fatos a serem explicados por dita teoria” (p. 212).

Segundo Caponi, o ideal de ordem natural da biologia evolutiva — entendida aqui tanto no sentido darwiniano clássico quanto no da Nova Síntese — ou seja, o que não merece ser explicado aos olhos dessa teoria, é a ausência de variedade entre as espécies. Onde há diversidade, aos olhos da biologia evolutiva clássica, há um fenômeno a ser explicado. Assim, a novidade apresentada pela evo-devo é justamente um outro ideal de ordem natural: para essa outra teoria, o que deve ser explicado é a permanência das formas ancestrais; é necessário explicar por que certas formas não são biologicamente possíveis, a despeito de serem concebíveis. De modo geral: por que, a despeito de estarem submetidos a pressões seletivas e outras forças promotoras de mudanças, certos grupos de organismos apresentam um alto grau de conservação em determinadas características?

O tipo de explicação mais comum na evo-devo apela a restrições desenvolvimentais, algo como “exigências arquiteturais” que não podem ser dribladas no desenvolvimento dos organismos. O fato é que, embora todas as formas de organismo concebíveis podessem, em princípio, ocorrer na natureza, essas restrições circunscrevem o domínio das formas biologicamente possíveis. Assim, essas restrições desenvolvimentais constituem uma força evolutiva adicional; antes de poderem competir entre si diante da seleção natural, os organismos têm de ser, em primeiro lugar, viáveis do ponto de vista desenvolvimental.

O interessante é que, embora possa parecer o contrário, a evo-devo não promove um retorno a modos historicamente obsoletos de explicação dos fenômenos evolutivos centrados no organismo individual, tais como a perspectiva transformacional (CAPONI, 2005)3 e o apelo às causas próximas (CAPONI, 2000, 2001)4. Com isso, Caponi conclui que a evo-devo amplia o espaço da biologia evolutiva, complementando-a sem ferir seus modelos explicativos mais fundamentais. O capítulo de Caponi é recomendado como um excelente exemplo de análise filosófica de uma disciplina biológica.

A partir do capítulo 11, “O modelo primatológico de cultura”, de Jorge Martínez-Contreras, o livro se distancia um pouco das questões predominantemente epistemológicas e se volta para as implicações éticas e sociais da biologia. Martínez-Contreras pretende discutir de maneira crítica o conceito de cultura, desenvolvendo o conceito de cultura naturalizada, de modo a descrever a produção de cultura por outras espécies de animais, primatas não humanos e chimpanzés. Essa discussão é também metafísica e tem implicações diretas no que significa “ser humano”, já que o Homo sapiens é estudado, sob a perspectiva biológica, como um animal a mais. Ao longo do capítulo são destacadas as contribuições de cientistas, para depois, confrontá-las com o ponto de vista dos filósofos, de modo a obter, nas palavras de Martínez-Contreras, “uma definição mais sólida de cultura”.

Além disso, o autor pretende destacar que a diferença entre as culturas humanas e não humanas é de grau, não de tipo: se admitirmos que cultura significa transmitir conhecimentos e comportamentos por meio da aprendizagem social, então animais com essa capacidade — como os chimpanzés — são nossos semelhantes. Após a leitura do artigo, pode-se dizer que o autor conseguiu atingir os objetivos propostos, e que também partilhamos de sua visão: o conceito de cultura precisa ser revisto para abranger outras formas de vida que não só a humana.

No capítulo seguinte, “Genes, seleção natural e comportamento humano: a mente adaptada da psicologia evolucionista”, Ricardo Waizbort e Filipe da Silva Porto destacam o desenvolvimento, nos últimos anos, da Psicologia Evolutiva (PE). Ela está apoiada em duas teses centrais: na primeira, a mente humana é entendida como um processador de informações; já na segunda, os programas cognitivos que compõem a mente humana são decorrentes da evolução biológica, por meio da seleção natural. Para a PE, os genes são o nível fundamental em que a seleção opera, sendo conceitualmente entendidos como “elementos reguladores que usam o ambiente para construir organismos”. A concepção de uma mente modularizada seria composta, além de programas cognitivos de propósito geral (PCPG), por “programas cognitivos funcionalmente especializados dependentes de conteúdo”. Segundo os psicólogos evolucionistas, tal concepção requer uma integração conceitual da antropologia com a psicologia e desta com a biologia evolutiva. Para os autores do capítulo, algumas críticas, como as feitas por Geoffrey Miller e Steven Mithen à PE, têm estimulado o seu desenvolvimento, uma vez que este é um programa de pesquisa em expansão que tem contribuído para superar a ideia de que a mente humana é uma tábula rasa.

O capítulo 13, “Evolução humana: o papel da dupla herança”, de Paulo Abrantes e Fábio Almeida, enfatiza o papel desempenhado pela cultura na evolução humana, explicitando as implicações decorrentes das várias posições assumidas por diferentes autores nessa discussão. A argumentação está embasada na teoria da dupla herança, de Richerson e Boyd, considerando processos de coevolução gene-cultura. Conforme os autores desse capítulo, a teoria da dupla herança é a que melhor explica, atualmente, a evolução humana em sua especificidade.

O que distingue nossa espécie das demais é o fato de acumularmos cultura por meio de imitação fidedigna ao longo das gerações. Ao defenderem que a seleção natural atua diretamente sobre variantes culturais, não devendo ser confundida ou reduzida à seleção natural que atua na evolução biológica, Richerson e Boyd adotam uma posição divergente com relação aos sociobiólogos e demais autores que postulam o contrário. Merece destaque a forma como esses autores conduzem o leitor: há uma preocupação constante em não perder o foco sobre o assunto tratado de modo a satisfazer os objetivos propostos, e também em apresentar minuciosamente a teoria da dupla herança.

Por fim, o último capítulo do livro, “Ética evolucionista: o enfoque adaptacionista da cooperação humana”, de Alejandro Rosas, destaca uma explicação adaptacionista do comportamento moral e de seus mecanismos subjacentes. Inicialmente, o autor aborda as reflexões contidas nos trabalhos de Charles Darwin e Robert Trivers. Ambos fizeram contribuições promissoras ao não limitar o escopo de suas teorias de modo a predizer somente a utilidade biológica de traços comportamentais cooperativos, abordando também os mecanismos psicológicos e sociais que controlam tais comportamentos. Embora os dois autores destaquem o complexo normas-emoções-sanções, em Trivers ele subjaz à reciprocidade, e em Darwin, à norma do bem comum. Adiante, Rosas analisa as contribuições da psicologia e da economia no que diz respeito à cooperação e à deserção, apresentando elementos da teoria dos jogos e experimentos. Para concluir, Rosas postula que a cooperação humana tem mecanismos psicológico-normativos, os quais devem ser o objetivo principal da explicação evolucionista da moral. Segundo Rosas, abordar assuntos complexos como a moral requer certa medida de especulação e implica algumas concepções arriscadas, considerando “uma evidência fragmentada e frugal”.

Podemos concluir, com base nos objetivos contidos na apresentação e no capítulo introdutório do livro, que ele cumpre seus propósitos com êxito. Ao abordar de modo aprofundado os principais tópicos debatidos pela filosofia da biologia atualmente, Paulo Abrantes e demais autores evidenciam de modo performático o valor do trabalho conjunto de filósofos e biólogos. Embora acreditemos que nem todos os capítulos possam ser lidos sem conhecimento prévio dos assuntos abordados, devido à diversidade de autores e ideias, o livro é, sem dúvida, a referência mais completa do gênero disponível em língua portuguesa.

Notas

1 Disponível em: http://grupobogota.wordpress.com. Acesso em: 20 mar. 2012.

2 Nesse sentido, ver CAPONI, G.. Los taxones como tipos: Buffon, Cuvier y Lamarck. História, Ciência, Saúde, v.18, n.1, p.15-31, 2011.

3 CAPONI, G. O darwinismo e seu outro, a teoria transformacional da evolução. Scientiae Studia, v.3, n.2, p.33-42. 2005.

4 CAPONI, G. Cómo y por qué de lo viviente. Ludus Vitalis, v.8, n.14, p.67-102. 2000 e CAPONI, G. Biologia funcional vs. biologia evolutiva. Episteme, n.12, p.23-46, jan./jun. 2001.

André Brzozowski – Professor do curso de Filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Erechim, RS – Brasil. E-mail: [email protected]

Máida Ariane de Mélo – Pós-graduanda na Especialização em História da Ciência na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Erechim, RS – Brasil. E-mail: [email protected]

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Dividida em quatro partes e 17 capítulos, a obra apresenta de forma clara e didática a influência das tecnologias da informação e comunicação (TIC) não apenas nos atores da esfera educacional – estudantes, docentes – como também nos meios que tornam a aprendizagem possível, isto é, os ambientes virtuais de ensino e aprendizagem. Leia Mais

Geografia: práticas pedagógicas para o ensino médio | Nelson Rego, Antonio Carlos Castrovanni e Nestor André Kaercher

O livro é uma coletânea que reúne quatorze autores do Rio Grande do Sul, a maioria ligada à Universidade Federal daquele Estado (UFRGS), seja como docentes do Departamento de Geografia ou da Faculdade de Educação, casos dos três organizadores da obra, seja como egressos do curso de Licenciatura em Geografia ou de programas de pós- graduação em Geografia, Educação ou Geociências, alguns quando ainda mestrandos ou doutorandos. Vários desses autores atuavam também em outras instituições gaúchas de ensino superior (PUC-RS, Universidade Luterana do Brasil-Canoas-RS, Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul/Unijuí, Faculdade Cenesista de Osório-RS e Fundação Universitária de Rio Grande-RS), ou fundamental e médio em escolas públicas ou privadas.

Mais que a origem geográfica dos autores, esse dado confirma a constituição de um grupo de educadores geógrafos do Rio Grande do Sul que nos últimos anos tem contribuído com uma produção significativa sobre ensino de geografia, com várias obras individuais e coletivas publicadas. Leia Mais

Formação ética: do tédio ao respeito de si – LA TAILLE (EPEC)

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009. 315 p. (ISBN 978-85-363-1692-5). Resenha de: RAZERA, Júlio César Castilho. O ensino de Ciências entre a cultura do tédio e do sentido. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.13, n.01, p.157-164, jan./abr., 2011.

A BUSCA DA VERDADE: ESPERANÇA DE UM MUNDO MELHOR

A preocupação com os rumos tomados pela sociedade contemporânea é observada na literatura em diversas discussões. Dentre elas, incluem-se aquelas que inserem o relevante papel da educação como referencial de esperança para um mundo mais justo, digno e harmonioso. Dentro dessa perspectiva, na qual a Educação é inserida na construção de um futuro ética e moralmente modificado para melhor, encontramos nos argumentos e reflexões de Jares (2005) e La Taille (2009) subsídios de interesse para o ensino de Ciências, porque ambos colocam a verdade como valor a ser buscado na dimensão educativa escolar. Ao analisar o atual panorama sócio-político mundial, com seus sérios problemas e conflitos, Jares (2005, p. 126) coloca a Educação como sede principal da promoção de esperança, justiça e dignidade em virtude do potencial de seu trabalho sobre a busca da verdade. “Educar a partir da e para a verdade” é um de seus pressupostos. Para Jares (2005, p. 196), “precisamos de uma pedagogia de esperança que nos guie na direção do crítico caminho da verdade”. E complementa, afirmando que “a esperança se constrói por meio da busca da verdade”. A obra de La Taille, que é objeto desta resenha, também trilha por esse mesmo caminho, mas com o diferencial de conter consistentes argumentos, análises e reflexões fundados na Psicologia. Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. O conjunto de suas pesquisas e teorias constitui um referencial relevante, extrapolando a área da Psicologia Moral em que atua. “Formação ética: do tédio ao respeito de si” tem essa característica abrangente, pois encontramos nessa obra subsídios de interesse que também podemos trazer para o ensino de Ciências.

De modo especial, provoca nossa atenção quando as abordagens e reflexões do autor enfatizam a verdade como um importante valor a ser buscado na dimensão educacional, a fim de evitar a cultura do tédio. Nesse caso, o ensino de Ciências também tem o seu papel na construção daquilo que La Taille chama de cultura do sentido, cuja expectativa é de um futuro ética e moralmente modificado para melhor. Com o embasamento da Psicologia Moral, podemos encontrar neste livro argumentos proveitosos que dirigem nossa atenção para uma efetiva aproximação entre o ensino escolar de Ciências e a formação ético-moral. Uma aproximação teoricamente orientada pela autonomia que, por exemplo, pode atuar em prol do processo de compreensão crítica da Ciência e da atividade científica por parte do aluno em sala de aula. Vejamos.

O QUADRO DA FORMAÇÃO ÉTICO-MORAL EM LA TAILLE

“Formação ética: do tédio ao respeito de si” divide-se em duas partes que, respectivamente, são assim denominadas: “Plano ético” (pp. 13-156) e “Plano moral” (pp. 157-310). Cada parte é constituída por dois capítulos. No conjunto dessa obra, que tem como referência teórica e fonte inspiradora um outro trabalho seu anterior (LA TAILLE, 2006), o autor faz abordagens correlativas entre o plano ético e o plano moral, isto é, entre a “vida boa” e “os deveres” de ser justo, generoso, digno. No plano ético entram em discussão a dimensão contextual contemporânea, intitulada de “Cultura do tédio” (capítulo 1) por causa de sua característica de predominância pessimista, e a dimensão educacional, chamada de “Cultura do sentido” (capítulo 2). O plano moral segue com o mesmo formato, cujas abordagens passam pela “Cultura da vaidade” (capítulo 3) e, posteriormente, pela “Cultura do respeito de si” (capítulo 4). Nas discussões que faz de ambos os planos, La Taille segue a mesma lógica de contraposição: primeiro analisa as características da sociedade atual, nos capítulos ímpares, depois discute os aspectos educacionais para mudanças do status quo, nos capítulos pares. Em suma, o autor nos apresenta uma leitura do presente em que sobressai na nossa sociedade a cultura do tédio, da vaidade, do pessimismo. A persistir esse panorama, configurado pela cultura do tédio, não encontramos expectativa de um futuro modificado para melhor, pois essa expectativa somente é possível na cultura do sentido, por meio da Educação ético-moral. Pesquisas diversas mostram que a maioria das pessoas é heterônoma, isto é, tendem a apenas aderir às idéias e valores que circulam no meio social em que vivem. Nesse caso, uma mudança de perspectiva para um futuro melhor implica a formação moral para a autonomia: “somente uma cultura do sentido pode vencer uma cultura do tédio” (LA TAILLE, 2009, p. 79). Para tanto, a formação moral no contexto da escola e das disciplinas torna-se relevante e, até mesmo, imprescindível. Essas ideias passam pelo  potencial das escolas e das disciplinas escolares na perspectiva de mudanças, pois em qualquer cenário de futuro a Educação aparece como atividade inconteste para que a cultura do sentido seja manifestada. Concordamos com La Taille ao dizer que cabe à escola tomar parte na formação moral de seus alunos e não apenas ficar restrita a transmitir conhecimentos, sem aproveitar-se deles com vistas à melhoria do futuro. Afinal, “os próprios conhecimentos transmitidos na escola são portadores de sentido que transcendem a especificidade de cada matéria. A escola é uma verdadeira usina de sentidos, […] e não há outra instituição social de que se possa dizer o mesmo” (LA TAILLE, 2009, p. 81). Para a escola e, em especial, para a busca da verdade como valor, devemos nos voltar para a construção daquilo que La Taille chama de “cultura do sentido”, pois ela não existe sem Educação para o sentido. E para falar de uma Educação para o sentido, o autor enfatiza a relevância da busca de um valor em especial: a verdade. Ainda que haja limitações, erros e ilusões quando mencionamos o termo “verdade”, o empenho nessa busca é investimento para a cultura do sentido, ou seja, a formação moral também perpassa por esse valor (da verdade).

Em suma, eleger a verdade como valor não somente é um bem em si mesmo para a procura de sentido para a vida: a capacidade de a ela chegar é também ferramenta necessária para se situar com um mínimo de precisão em um universo político de tantas mensagens dúbias, de tantas afirmações imprecisas, de tantas análises confusas, de tantas promessas duvidosas, e também de claras tentativas de enganação. Para sobreviver em tal ambiente equívoco, se faz necessário a chamada capacidade de crítica, não entendida como disposição a julgar negativamente, mas sim como vontade de passar o que se ouve, se vê, se pensa e se diz pelo crivo da razão, para debelar possíveis erros, possíveis mentiras, possíveis ilusões. Não há crítica honesta sem amor à verdade (LA TAILLE, 2009, p. 91, grifo nosso).

PARA BUSCAR A VERDADE

Baseado em Williams (2006), La Taille aponta dois obstáculos que dificultam a busca da verdade: os interiores e os exteriores. Os obstáculos exteriores são inerentes aos objetos e os interiores são inerentes ao sujeito. Sobre a superação dos obstáculos exteriores, que se referem a objetos de pesquisa, a psicologia não tem o que auxiliar. Esse auxílio pode ser dado, no entanto, na superação dos obstáculos interiores, relacionados ao sujeito. Sobre esses obstáculos, La Taille diz que podem ser de três tipos, os quais a Educação pode ajudar a superá-los: lacunas no conhecimento, fragilidade ou insipiência das ferramentas intelectuais e ausência de determinadas virtudes.

a) Lacunas no conhecimento: Para que um sujeito busque a verdade (ou confirme o que é transmitido) sobre algum evento ou fenômeno, ele precisa lidar com informações e dados diversos, ou seja, há necessidade não apenas de apropriar-se de conhecimentos específicos, mas também correlacioná-los e observálos de maneira crítica para resolver o seu problema. Para La Taille (2009, p. 97), compete essencialmente às instituições educacionais a tarefa de trabalhar com essas lacunas e “fazer que as pessoas possuam conhecimentos variados”, especialmente no campo científico e filosófico.

b) Ferramentas intelectuais: Ter somente conhecimentos não é suficiente para desvendar verdades. De acordo com La Taille, além de conhecimentos (conteúdos) é necessário que os indivíduos também mobilizem formas precisas de raciocínio. “Para raciocinar, ou seja, para produzir conclusões fiáveis, o ser humano dispõe de duas ordens de ferramentas intelectuais: as operações e os procedimentos”. Sobre as operações, o autor baseia-se no sentido piagetiano de “ações interiorizadas reversíveis, […] porque todo pensar é uma ação”. As operações são ferramentas da mente que usamos para estruturar e promover ajustes na lógica de nosso raciocínio. “Não houvesse operações, não haveria critérios que nos permitissem afirmar que um raciocínio é válido ou não. A lógica […] garante consistência, objetividade e possibilidade de comunicação” (LA TAILLE, 2009, p. 101). Nesse caso, trabalhar operacionalmente com a verdade implica aprendizagem sobre as possibilidades de falhas nas nossas observações e conclusões para que não sejam precipitadas e falhas ou contaminadas, por exemplo, por ilusões de óptica ou por equívocos de construção de lógica. Em discussões que envolvem a natureza da Ciência temos diversos exemplos ilustrativos desses problemas. Sobre os procedimentos, são sequências de ações para se chegar a determinados resultados, que podem ou não ser interiorizadas. Podemos dizer que, enquanto a operação corresponde à lógica interna do pensamento, os procedimentos correspondem aos passos por ele percorridos. Para auxiliar o entendimento entre ambos, pode-se fazer uma analogia interessante ao dizer que “a operação está para a teoria como o procedimento está para o método”, pois, como sabemos, os métodos de pesquisa são criados e utilizados para verificar a validade de teorias. “Logo, se não há busca da verdade possível sem postura teórica, tampouco é possível chegar a ela sem procedimentos adequados” (LA TAILLE, 2009, p. 104). Isso posto, La Taille insere aspectos compreendidos por nós como úteis aos propósitos correlacionais que vislumbramos para o ensino de Ciências.

[…] embora variados procedimentos possam ser criados pelos alunos para dar vida prática a suas operações e chegar a verdades múltiplas, na maioria das vezes eles são ensinados pela escola. Melhor dizendo: aqueles atinentes à ciência são apresentados pela escola. Ou deveriam. […] para que os alunos não sejam coagidos a se limitarem a acreditar nas verdades produzidas pelos cientistas, é preciso que tenham acesso aos variados procedimentos por intermédio dos quais os pesquisadores colocam à prova suas teorias. Não se trata de desconfiança em relação a eles, mas sim da necessidade de se apoderar, na medida do possível, dos procedimentos que eles criam e empregam para chegar a suas respectivas verdades (LA TAILLE, 2009, p. 105).

Para La Taille (2009, p. 105), não existe procedimento geral possível de ser aplicado a todos os problemas. Cada um deles tem um correspondente. Contudo, quando é implementado um trabalho com o aluno que envolve busca da verdade, não há como excluir o ensino de procedimentos. “Trata-se de mostrar a ele [aluno] que a busca da verdade depende de uma ‘disciplina’ da reflexão, disciplina essa que se traduz pela criação e emprego de procedimentos”. Acaba-se demonstrando, então, que a busca da verdade não é tarefa fácil e que sua realização leva em conta a lógica e os procedimentos correspondentes dessa busca. Para reforçar esses argumentos, o autor fala sobre os resultados positivos obtidos da iniciação à pesquisa científica que dá a seus alunos, pois eles trabalham com teoria, métodos e procedimentos. E complementa dizendo que as escolas básicas, guardando as devidas proporções, poderiam fazer o mesmo.

c) Virtudes: A tese é de que sem determinadas virtudes, mesmo tendo mobilizado conhecimentos, operações e procedimentos, a pessoa não se dispõe a buscar a verdade, satisfazendo-se mais facilmente “com ideias prontas, com fatos não comprovados, com preconceitos de toda ordem, com reflexões brumosas e afirmações peremptórias”. (LA TAILLE, 2009, p. 106). Nesse caso, a verdade entendida como valor requer virtudes de boa-fé, exatidão, paciência, simplicidade e humildade para buscá-la. Apoiando-se em Comte-Sponville (1995), La Taille diz que uma pessoa dotada de boa-fé busca e respeita a verdade. As virtudes decorrem de desenvolvimento pela aprendizagem, porque não são inatas e nem correspondentes a traços de personalidade biológica. O que coloca a escola em evidência, porque é instituição em que o amor e o respeito pela verdade são (ou deveriam ser) fundamentais, desde o nível infantil até a universidade. “Um professor que não seja inspirado pelo mesmo amor [à verdade, que também os cientistas devem ter] é, além de pessoa inconsequente e alienada, um possível cúmplice de possíveis imposturas: como pode ele sem critérios de veracidade, ensinar o que quer que seja?” (LA TAILLE, 2009, p. 109). De acordo com os argumentos de La Taille (2009, p. 110), a verdade implica exatidão. Exatidão entendida “como apreço pela clareza, pela precisão, pelo rigor, pelo controle”. Portanto, quem se inspira na verdade sabe que ideias vagas, raciocínios lacunares, frases obscuras são obstáculos à sua busca. Pode-se ter uma opinião, mas que não se confunde com verdade. Nesse ponto, o autor chama nossa atenção para algumas estratégias de aula que tanto podem corresponder a ricos modelos de exatidão como permanecerem somente no nível de troca de opiniões e, nesse caso, ajudando a fortalecer o relativismo em detrimento da verdade. Vê-se, portanto, que a forma, a estratégia de aula tem papel de destaque nessa questão da busca da verdade e, ainda, que as aulas de Ciências encaixam-se igualmente nesse papel por causa das características de seu objeto, ou seja, a Ciência. Ao discutir as estratégias de aula, La Taille retoma as ideias de Piaget acerca das relações de coação e de cooperação, com a ressalva de que as relações de cooperação defendidas por Piaget não excluem aulas expositivas. Da mesma forma que o método ativo envolvendo as relações de cooperação não é garantido, por si só, no simples fato de promover discussões entre alunos. Relações de cooperação, na perspectiva piagetiana, devem apresentar as seguintes características que convergem para a participação simétrica dos membros: saber ouvir os outros; procurar expressar-se de forma clara; avisar sobre possíveis mudanças de ideia; usar os mesmos conceitos. Essa perspectiva, aliás, contém similaridades com as ideias apresentadas na teoria habermasiana da ética do discurso. Então, fica esclarecido que convencimento é diferente de imposição e, consequentemente, ambos implicam aspectos antagônicos em relação à moralidade. Ainda que tenhamos priorizado aspectos pontuais, deve ter ficado ao leitor – pelo menos essa foi nossa intenção – uma percepção de relevância dessa obra, que é completa e provocadora de muitas reflexões. Embora trabalhe com um conteúdo complexo e de certa especificidade na área da Psicologia, o conjunto de argumentos trazidos por La Taille acaba implicando importantes subsídios referenciais e de reflexão, tanto para investigadores da área de Educação em Ciência como para o trabalho do professor em sala de aula.

Referências

COMTE-SPONVILLE, A. Petit traité des grandes vertus. Paris: PUF, 1995.

JARES, X. R. Educar para a verdade e para a esperança: em tempos de globalização, guerra preventiva e terrorismos. Porto Alegre: Artmed, 2005.

LA TAILLE, Y. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.

WILLIAMS, B. Vérité e véracité. Paris: Gallimard, 2006.

Júlio César Castilho Razera – Doutorando em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Bauru, SP). Professor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Jequié, BA). E-mail: [email protected]

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Educação Crítica: análise internacional – APLLE et al. (ER)

APPLE, Michael; AU, Wayne; GANDIN, Luís Armando. Educação Crítica: análise internacional. Tradução de Vinícius Ferreira. Revisão Técnica de Luís Armando Gandin. Porto Alegre: Artmed, 2011. Resenha de: SANTOS, Graziella Souza dos. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 319-326, jan./abr., 2011.

O livro Educação Crítica: análise internacional busca, através da contribuição de diversos autores conectados às discussões educacionais em todo o mundo, discutir e problematizar a importância dos Estudos Educacionais Críticos, em diferentes realidades mundiais, à luz da sociedade contemporânea.

A obra, fruto do desejo dos autores de articular e tornar públicas alternativas educacionais criativas contra-hegemônicas e participar ativamente dos debates educacionais, inicialmente realiza uma retomada dos principais pressupostos e temáticas aos quais essa perspectiva historicamente se dedicou. Ao mesmo tempo, para além dessa tarefa, que por si só já seria importante, uma vez que as contribuições críticas têm sido um pouco esquecidas, encontramos, nessa reflexão, iniciativas sérias de diálogo com outras temáticas e áreas relevantes para o contexto educacional atual, na medida em que elas colaboram para uma análise mais sofisticada da realidade em que vivemos.

Os trinta e cinco capítulos, reunidos em sete grandes áreas, se empenham em discutir a relevância dos estudos críticos, sua apropriação e reinvenção em territórios diversos. As sete grandes temáticas iniciam com um capítulo introdutório dos organizadores e também autores da obra (Apple; Au; Gandin, 2011). Seguindo a proposta do livro, encontraremos as demais áreas apresentadas nesta ordem:
Contextos Sociais e Estruturas Sociais; Redistribuição, Reconhecimento e Poder Diferencial; O Legado Freireano; A Política da Prática e a Recriação da Teoria; Movimentos Sociais e Trabalho Pedagógico e, por fim, Métodos Críticos de Pesquisa para a Educação Crítica. A organização nessas temáticas não significa, entretanto, que os temas fiquem reduzidos aos limites de sua área. No desenvolvimento do livro fica bastante claro o diálogo entre autores e temáticas, o que, apesar da singularidade de cada texto, permite uma compreensão simultaneamente global e multifacetada do tema. Tendo em vista as grandes dimensões da obra, seguiremos a ideia da organização das áreas para apresentar os principais temas abordados em cada uma, os quais consideramos significativos para as discussões atuais. Dedicaremos algumas linhas a mais ao capítulo inicial por compreendermos que ele desencadeia as discussões que o sucedem, e expressa a tônica que será utilizada no desenvolvimento da obra.

No capítulo introdutório, intitulado O mapeamento da educação crítica, os autores expressam o sentido utilizado no livro para pedagogia ou educação crítica. De acordo com Apple, Au, Gandin (2011) os estudos educacionais críticos envolvem muito mais do que a problematização das relações de poder e das desigualdades sociais. Eles pressupõem um enfrentamento radical destas questões, rompendo com as “[…] ilusões confortadoras” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 14) e estabelecendo um compromisso individual com a transformação social. Entretanto, de acordo com os autores, essa não é uma tarefa simples, e todos aqueles que desejam assumir a responsabilidade de ser um educador, pesquisador crítico, precisam envolver-se num processo de reposicionamento, ou seja, desenvolver a habilidade de ver o mundo com os olhos dos despossuídos. O capítulo apresenta ainda oito tarefas nas quais um analista crítico deve engajar-se. Entre elas destacamos: a importância de denunciar as políticas e práticas educacionais opressivas; manter vivas as tradições do trabalho radical, criticando-as e apoiando-as quando necessário; dar visibilidade e apontar para espaços de ações possíveis e, por fim, agir juntamente com os movimentos sociais (Apple; Au; Gandin, 2011).

Como o próprio título da seção indica os autores, nesse início, propõem um mapeamento da educação crítica, retomando as suas raízes políticas que, segundo eles, datam antes mesmo dos estudos dos intelectuais da América Latina, com Paulo Freire, e de importantes autores dos Estados Unidos e da Europa. Segundo Apple, Au e Gandin (2011) existe uma longa tradição na comunidade afro-americana, afro-caribenha e em diversos grupos feministas de várias nações do mundo que colaboraram para dar vida ao que hoje reconhecemos como pedagogia crítica.

A partir da década de 1970, período central para essas teorizações, ganham expressão importantes estudiosos que forneceram novas ferramentas de análise que fortaleceram o desenvolvimento dos estudos críticos na educação. Destacamse os trabalhos dos membros da nova sociologia da educação (NSE) como Young (1971); Apple (1971), Bourdieu e Passeron (1977) e, especialmente, a obra de Bowles e Gintis (1976), que trouxe à tona a importância contemporânea das análises marxistas, neomarxistas e semimarxistas e que provocou o debate sobre suas explicações deterministas das desigualdades. A partir dessa obra, outros importantes teóricos surgem na tentativa de ampliar o debate extrapolando as versões que se baseavam apenas nas análises deterministas de classe. Gramsci (1971), Althusser (1971), Stuart
Hall (1980a), Raymond Williams (1977), Apple e Carthy (1988) e autores da escola de Frankfurt foram importantes nesse contexto, demonstrando a capilarização do poder, a mediação da cultura, bem como as contradições e resistências nas relações sociais. As discussões que seguem no livro retomam, reinventam e ampliam as discussões provocadas por esses teóricos.

Na segunda grande área do livro, Contextos sociais e estruturas sociais encontraremos uma análise sobre os contextos econômicos e sociais que cerceiam o debate educacional atual. Nessa seção estão disponíveis discussões que revelam como grupos direitistas têm estado presentes nas discussões escolares, propondo reformas e alterando os sentidos e objetivos da educação. Robertson e Dale demonstram como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial estão transformando os sistemas educacionais utilizando-se de argumentos populistas. McCarthy, Pitton, Kim e Monje denunciam como as articulações neoliberais têm se infiltrado na educação através de supostas promessas de bem público, contribuindo para o enfraquecimento do pensamento crítico, redefinindo a educação através de um discurso tão poderoso que “[…] se torna difícil imaginar uma alternativa que esteja fora da hegemonia do mercado” (Paraskeva, 2007, apud Apple; Au; Gandin, 2011, p. 59). Saltman discute a corporatização das escolas como uma forma de redistribuição do controle econômico e cultural, enfraquecendo a democracia pública e a cidadania crítica. A forma como os currículos escolares são organizados e desenvolvidos sob a influência dos princípios neoliberais através de diversas estratégias são o foco da discussão de Santomé, que encerra esse segundo eixo da obra.

Conforme dissemos anteriormente, há um grande esforço dos autores em ampliar as discussões e dialogar com temáticas que tocam o momento que vivemos. Ao mesmo tempo, há também uma forte preocupação em relembrarnos da importância de alguns pressupostos da tradição crítica que parecem esquecidos. É a isso que os autores se propõem na terceira parte do livro, na qual encontram-se bons exemplos dessas iniciativas. Entre os temas encontrados nesse bloco há as contribuições do neomarxismo na educação crítica (Au; Apple); a relação entre a luta de classe e a educação (D‘Annibale; McLaren); as questões de raça como aspecto relevante nas relações desiguais (Billings); as políticas de branquidade (Leonardo); o feminismo pós-estrutural na educação (McLeod); sexualidade (Loutzenheiser; Moore); masculinidade (Hightower); inclusão (Slee); teorias indígenas de redistribuição (Grande); e, por fim, os desafios de Foucault às teorias críticas (Fischer).

Os primeiros textos dessa seção se destinam a discutir, como vimos anteriormente, alguns aspectos da tradição crítica. Aqui, encontraremos também certas críticas a algumas vertentes pós que parecem desconsiderar, ou mesmo estigmatizar, as análises críticas. Em primeiro lugar, é importante reconhecermos de fato as contribuições que essas perspectivas têm nos trazido. Os trabalhos sobre as questões de identidade, gênero, diferença, política cultural, relações de poder, são muito valiosos e colaboram significativamente para compreendermos a complexidade das relações que se estabelecem no âmbito social e educacional. Entretanto, há aspectos que não podem ser desconsiderados. De acordo com Au e Apple, a classe, por exemplo, é “[…] um constructo analítico e também um conjunto de relações que existe fora de nossas mentes” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 110). E, mesmo que saibamos que classe e economia não explicam e determinam tudo a nossa volta, essas são questões que não podem ser marginalizadas, uma vez que é cada vez maior a ofensiva neoliberal. Concordamos com os autores que afirmam que as relações de poder são plurais e que, tanto quanto estamos subordinados a elas, também subjugamos outros, mas é bastante claro que há grupos que concentram o poder e perpetuam a sua hegemonia, enquanto há grupos marginalizados, oprimidos e silenciados. D`Annibale e McLaren afirmam que a depreciação das análises marxistas pode contribuir para abrir caminhos para “[…] a máquina capitalista canibal” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 126), e que é preciso que retomemos seriamente a crítica marxista para melhor analisar e combater as políticas neoliberais atuais.

Os capítulos, que seguem na terceira parte, trazem, como dissemos, temas que têm sido relevantes para o momento em que vivemos (feminismo, inclusão, teorias indígenas, Foucault e a educação, entre outros), num diálogo permanente com os princípios da educação crítica e enfocando a multiplicidade das relações de poder.

Não nos restam dúvidas sobre as importantes contribuições de Freire para a educação de um modo geral, e especialmente para a pedagogia crítica. Na verdade, Freire pode ser apontado como a principal referência dessa área na América Latina. Por esta razão, o livro reserva um de seus blocos para este autor que contribuiu tão preciosamente para os estudos críticos. A obra de Freire foi internacionalmente reconhecida pelo seu forte cunho político e por voltar-se às questões sociais. Por isso, suas contribuições foram amplamente discutidas, criticadas e apropriadas em diversos lugares do mundo. Os quatro capítulos dessa seção destinam-se a discutir algumas concepções centrais e polêmicas da pedagogia de Freire.

Au examina como a obra de Paulo Freire foi recontextualizada fora do Brasil e responde a algumas críticas feitas à pedagogia freireana, que, segundo ele, partem muitas vezes de leituras equivocadas da obra desse autor. Fischman apresenta respostas de estudantes sobre o sentimento em relação ao livro Pedagogia do Oprimido, uma das obras mais importantes de Freire. O relato dos alunos ajuda a entender por que a obra de Freire, apesar de receber inúmeras críticas, ainda é uma das mais conhecidas nos meios acadêmicos. Não há como ficar inerte à motivação e mobilização que emergem de seus escritos. Conforme os autores desse bloco afirmam, em muitos lugares do mundo encontraremos educadores que tentam colocar em prática a pedagogia de Freire.

Os dois últimos capítulos que compõem esse bloco expressam ainda o trabalho de Augusto Boal e o Teatro do Oprimido nas mobilizações contra a dominação (Rosa) e as contribuições freireanas para a educação crítica estadunidense (Wong). Esses capítulos demonstram que uma leitura séria e comprometida da obra desse autor, lembrando sempre do contexto e da época em que foi produzida, nos fornece ainda elementos importantes e centrais para as análises críticas.

Há questões, ponderações, críticas que merecem ser ouvidas. Certamente, o próprio Freire nos convidaria a criticar, reinventar e discutir sua teoria quantas vezes fossem necessárias. Apesar disso, é evidente que suas contribuições podem auxiliar significativamente para os estudos e teorizações críticas atuais.

A quinta grande área do livro consiste em oito capítulos que trazem à cena a implementação prática de conceitos da teoria crítica em educação, como forma de repensá-los e de entender tanto suas limitações como contribuições. Peter Mayo propõe uma discussão acerca da educação de adultos e a exemplifica através da educação para a transformação social, realizando uma ampla análise bibliográfica de autores que contribuíram no estudo dessa temática. A leitura crítica da mídia é a discussão trazida por Douglas Kellner e Jeff Share. Os autores mostram que, atualmente, vivemos um momento em que estamos em contato com a mídia quase que de forma integral, principalmente crianças jovens. Kellner e Share relatam os estudos existentes em relação à mídia e propõe uma análise a partir da perspectiva de sua não-neutralidade, de seu significado para a audiência, questões de poder e ideologia e da relação da mídia com o mundo dos negócios. Zeichner e Flessner discutem a formação de professores para a educação crítica e mostram, através de três exemplos práticos, como pode ser a formação dos professores para a justiça social, conectando a formação teórica e a prática da sala de aula. Kenneth Teitelbaum recupera a história da educação crítica, repassando autores e conceitos que são fundamentais a essa teoria. A perspectiva de uma educação em que não haja imposição sobre a cultura popular e que as comunidades sejam valorizadas como agentes educadores são temas abordados por Ramon Flecha. O autor traz a perspectiva da cidade educadora como uma forma de educação crítica e, assim como nos outros capítulos, exemplifica através da prática, trazendo casos do Brasil, Chile, Estados Unidos e Espanha. Luís Armando Gandin nos remete à perspectiva da educação crítica a partir da Escola Cidadã implementada na cidade de Porto Alegre, discutindo conceitos críticos em educação que já foram postos em prática.

O quinto bloco termina com dois capítulos que abordam as perspectivas da educação crítica no Japão e na China. Nesses capítulos, os autores do livro Apple, Au e Gandin abrem espaço para que países que costumam estar à margem das análises internacionais de educação sejam examinados com atenção a partir da perspectiva de autores dos próprios lugares. Essa quinta grande área do livro é de suma importância, pois reúne capítulos em que são trazidos exemplos práticos de diversos países em relação à educação crítica. Através desses capítulos é possível discutir de forma clara conceitos qu permeiam a teoria crítica, visualizar algumas das limitações dessa perspectiva na prática e perceber, também, suas grandes contribuições. Nessa seção, temos uma visão mais geral de mundo em termos críticos, saindo da comum limitação de exemplos estadunidenses ou ingleses, aos quais estamos tão acostumados em bibliografias internacionais. Os capítulos também possibilitam ter uma noção mais concreta do que significa a implementação das ideias críticas educacionais, já que todos os autores desse bloco trazem – às vezes de maneira mais esmiuçada, às vezes em termos mais gerais – a reflexão da prática e da teoria.

A sexta parte do livro, Movimentos sociais e trabalho pedagógico, conta com quatro capítulos que abordam exemplos de movimentos sociais em alguns países. O primeiro capítulo é de Jean Anyon e traz pontos importantes para serem pensados em relação ao que significa uma educação crítica com foco na justiça social. Ela destaca a importância de gerar oportunidades para que o estudantes exerçam a política e para que os educadores tenham espaço para a reflexão sobre sua prática em sala de aula. Mary Campton e Lois Weiner promovem uma discussão acerca dos sindicatos de professores, abordando as políticas neoliberais e suas implicações para a luta sindical. As autoras destacam alguns sindicatos que lutaram contra medidas que iam ao encontro de perspectivas neoliberais, como a privatização do sistema escolar, cortes nos gastos públicos com a educação, a importação da metodologia do mundo dos negócios para as escolas, modelo de gestão alicerçado no livre mercado e aproximação de empresas e escolas. As autoras mostram, nesse capítulo, a necessidade de tornar internacional a luta sindical como forma de uma atuação mais efetiva em termos mundiais, de reorganizar os sindicatos, tornando-os mais democráticos e a necessidade de que essas instituições tenham uma visão de educação que não apenas se contraponha ao neoliberalismo.

Hee-Ryong Kang traz a experiência da luta de professores da Coréia do Sul pelo reconhecimento, através da constituição de um sindicato de professores. O autor mostra o quanto essa conquista foi importante em temos de ação coletiva, do poder de barganha e para a melhoria das condições de trabalho. Assim como no capítulo desenvolvido por Campton e Weiner, Kang também mostra que há uma ofensiva de grupos neoliberais contra essa organização coreana, que têm como intenção reformar a educação através do padrão de mercado. A principal discussão do capítulo gira em torno das contradições que surgiram no sindicato dos professores a partir da campanha neoliberal e a forma de responder a tais ofensivas. O bloco finaliza com um capítulo escrito por Jen Sandler que aborda a educação popular, a migração e a sociedade civil no México. Nesse capítulo, Sandler estuda uma organização de educação popular e demonstra o quanto as práticas educacionais críticas podem contribuir na formação de uma identidade comunitária e o papel que “[…] podem desempenhar em relação às ideologias e estruturas hegemônicas” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 464).

Em tempos atuais, em que vemos, em termos globais, uma ofensiva da lógica de mercado ao sistema de educação, não temos dúvida quanto ao importante papel que desempenha a sexta grande área do livro. Os quatro capítulos dessa seção trazem exemplos claros de movimentos sociais que nos auxiliam a visualizar a possibilidade de lutas contra-hegemônicas a partir de uma perspectiva crítica em educação. Os movimentos sociais aqui analisados pelos autores apresentam respostas às propositivas neoliberais para a educação – algo fundamental atualmente, já que o discurso do mercado tornou-se a única alternativa para a qualificação da educação e aqueles que se opõem ao modelo de mercado nas instituições escolares parecem estar se opondo à ideia de melhoria do ensino público.

O último bloco do livro apresenta quatro capítulos em que são discutidas metodologias para as pesquisas educacionais críticas. Lois Weis, Michelle Fine e Greg Dimitriadis propõem repensar a pesquisa etnográfica, relacionando o âmbito local e o contexto global. A partir da noção de que a globalização influencia de forma complexa as diversas localidades, há a defesa, por parte dos autores, de um olhar atento de pesquisa a essa complexidade. A sugestão de uma nova metodologia de pesquisa é devido às mudanças que ocorrem em termos globais e que não permitem mais uma separação entre nível macro e micro. Daniel S. Choi propõe o uso de sistema de informação geográfica (SIG) nas pesquisas educacionais. O SIG permite não apenas a análise, mas também a apresentação dos dados coletados. No capítulo, Choi explica o uso do SIG, demonstrando, segundo o autor, o rigor metodológico que há nessa forma de pesquisa. Joseph J. Ferrare apresenta um capítulo no qual defende o uso de metodologias quantitativas na pesquisa educacional. O autor faz uma breve descrição de três formas quantitativas de pesquisa, demonstrando seu funcionamento, limitações e contribuições: a análise de rede social, escalonamento multidimensional e análise de correspondência. Ferrare propõe uma interessante discussão acerca do uso de métodos quantitativos na educação, sendo um de seus objetivos ultrapassar as identidades relacionadas às pesquisas quantitativas e qualitativas que, muitas vezes, levam a formas de não reconhecimento de determinadas pesquisas, conforme a metodologia utilizada. O autor destaca que nenhuma metodologia é capaz de explicar as complexas relações sociais em sua totalidade. Portanto, o uso de diferentes métodos pode auxiliar no entendimento do complexo social, trazendo novos elementos à tona.

O capítulo escrito por Yoshiko Nozaki encerra essa sexta área do livro. A partir de um exemplo de pesquisa sobre cultura, sociedade e educação japonesa, a pesquisadora coloca em pauta a discussão em torno das relações acadêmicas existentes no Ocidente e no Oriente. A autora faz uma séria análise sobre a oposição binária existente entre o Ocidente e o Oriente e reflete sobre o quanto essa oposição está relacionada a questões de poder. Nozaki mostra que, em geral, há um discurso relacionado às culturas orientais (os outros, na oposição binária) que as define como uma única cultura, não levando em conta as diversidades que se encontram nos contextos orientais. A autora evidencia que, inclusive, alguns pesquisadores orientais têm feito uso (em suas pesquisas) do que ela chama de japanismo (termo que se refere à homogeneização da cultura japonesa) e propõe uma discussão sobre o emprego desse termo.

Ao finalizar esta resenha, cabe ressaltar a importância do livro Educação Crítica: análise internacional para os estudos no âmbito da educação. Os 35 capítulos presentes na obra abarcam diferentes temáticas e trazem contribuições realmente internacionais, ou seja, que vão além das análises de perspectivas educacionais estadunidenses e inglesas a que estamos habituados. Essa ampla abordagem favorece discussões complexas e enriquece a noção crítica de educação. Destacamos, ainda, a importância de os autores evidenciarem a clareza que têm sobre o caráter temporário da obra, e, por isso, proporem o diálogo permanente entre educadores, pesquisadores e ativistas. Em razão de possíveis tensões e silenciamentos que poderão ser encontrados no livro, disponibilizam-se para sugestões, respostas e reflexões que mantenham “[…] a educação crítica em movimento constante” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 29).

Graziella Souza dos Santos – licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É especialista em Supervisão Educacional pela FAPA, Faculdades Porto Alegrenses. Atua como professora das séries iniciais na rede particular de ensino de Porto Alegre. Atualmente é mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. E-mail: [email protected]

Iana Gomes de Lima – licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como professora das séries iniciais na rede particular de ensino de Porto Alegre. Atualmente é mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. E-mail: [email protected]

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Geografia: práticas pedagógicas para o ensino médio | Nelson Rego, Antonio Carlos Castrogiovanni e Nestor André Kaercher

O livro é uma coletânea que reúne quatorze autores do Rio Grande do Sul, a maioria ligada à Universidade Federal daquele Estado (UFRGS), seja como docentes do Departamento de Geografia ou da Faculdade de Educação, casos dos três organizadores da obra, seja como egressos do curso de Licenciatura em Geografia ou de programas de pós-graduação em Geografia, Educação ou Geociências, alguns quando ainda mestrandos ou doutorandos. Vários desses autores atuavam também em outras instituições gaúchas de ensino superior (PUC-RS, Universidade Luterana do Brasil-Canoas-RS, Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul/Unijuí, Faculdade Cenesista de Osório-RS e Fundação Universitária de Rio Grande-RS), ou fundamental e médio em escolas públicas ou privadas.

Mais que a origem geográfica dos autores, esse dado confirma a constituição de um grupo de educadores geógrafos do Rio Grande do Sul que nos últimos anos tem contribuído com uma produção significativa sobre ensino de geografia, com várias obras individuais e coletivas publicadas. Leia Mais

Homo Zappiens: educando na era digital – VEEN; VRAKKING (C)

VEEN, W.; VRAKKING, B. Homo Zappiens: educando na era digital. Trad. de Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2009.  Resenha de: PETARNELLA, Leandro; GARCIA, Eduardo de Campos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 2, p. 175-179, Maio/Ago, 2010.

A sociedade está em permanente metamorfose. Na atualidade, a força motriz das transformações sociais são as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Por consequência, educar crianças que se desenvolvem em uma sociedade alicerçada nessas novas tecnologias se torna uma tarefa tão difícil quanto arriscada, uma vez que essas enfrentam dificuldades em se ajustar ao sistema educacional atual, dadas suas íntimas relações com a tecnologia.

Partindo das considerações acima, Wim Veen e Ben Vrakking tecem no livro Homo Zappiens: educando na era digital, suas reflexões sobre um tema atual e polêmico: o papel da escola e da educação em uma sociedade tecnológica. Reflexões essas delineadas em 137 páginas, divididas em seis capítulos: “Tempos de Mudança” como primeiro capítulo; “Conhecendo o Homo Zappiens” como segundo capítulo; “Entendendo o caos” apresentando o terceiro capítulo e como quarto capítulo “Aprendendo de maneira divertida”. “Parando a montanha russa” (5º capítulo), antecede o sexto e último capítulo “O que as escolas poderiam fazer”.

No primeiro capítulo “Tempos de mudança”, os autores discorrem sobre alguns momentos nos quais a sociedade se viu diante do terror do bug do milênio, apresentando de forma fácil a necessidade de um novo saber sobre o velho conhecimento, para que se resolvam os problemas tecnológicos atuais. Segundo os autores, o bug do milênio levou o homem a refletir sobre sua consonância vivencial com a tecnologia, em vista de que a mesma se tornou uníssona em seu cotidiano juntamente com suas responsabilidades vitais. Por meio dessa necessidade, pode-se entender por que os autores denominaram a nova geração como Homo Zappiens.

Para exemplificar a denominação e levar o leitor à reflexão, os autores propõem uma narrativa ficcional, cuja personagem é nominada como Jack. A figura dramática de Jack, ambientalizada numa situação cotidiana, se vê num cenário tecnológico cujos objetos que o circundam conduzem sua vida. Nesse cenário, encontram-se aparelhos que se tornaram íntimos demais para nos desvencilharmos de seus objetivos, ou seja, aquilo que há três mil anos era algo impulsionado pelo músculo-força-cinética hoje é tecno-mecânica-elétrica.

Por meio de Jack podemos perceber que, com o desenvolvimento tecnológico, aquilo que no passado era usufruto de alguns, hoje se massifica transcendendo fronteiras, tempo e espaço. Os autores exemplificam essa facilidade de comunicação colocando Jack numa situação corriqueira: A personagem Jack encontra-se atrasada para o trabalho e parada no trânsito, a metros de distância de seu local de trabalho. Jack, então, se comunica por meio de um celular com sua secretária e, logo em seguida, atende um cliente, tudo isso por meio de um click.

Não é só o click que nos leva às facilidades na comunicação, mas tudo o que nos cerca: televisão, rádio, computador, etc. O fato é que não basta reconhecer que a tecnologia facilita o cotidiano do homem, mas que essa tecnologia, como parte da vida do homem, faz desse homem mais homem na representação social; melhor dizendo, um homem mais sábio, atualizado, antenado, zap. Em outras palavras: a tecnologia que se apresenta é parte da personalidade, de uma essência humana tecnológica, pois o homem contagia-se e se torna complacente com a tecnologia, passando, com o uso dela, a administrar seu “eu”. Desse modo, o tempo passa a ser um estimado bem, que iminencia um tempo em que viver os segundos e produzir nos segundos faz a diferença. Nessa perspectiva, o tempo deve ser administrado de forma orbital e tecnológico, pois, no labore, a postura perante qualquer equipe de trabalho deverá desenvolver e reconhecer o capital humano como meio para se dilatarem as possibilidades de crescimento. O Homo Zappiens se revela como um ser tecnologizado, cujo cotidiano faz dele alguém renovável, flexível como os autores tratam no capítulo seguinte.

No segundo capítulo “Conhecendo o Homo Zappiens”, os autores explanam sobre o comportamento das crianças que representam esses sujeitos, cujo cognitivo é delineado pelas tecnologias e suas convergências. O Homo Zappiens, sendo sujeito hodierno, age de forma dispersa ao olhar dos educadores, que, porém são, na verdade, multifuncionais, o que os leva a observar de forma rápida alguns diferentes meios tecnológicos, tais como, o celular, o MSN, a televisão, o rádio, etc. Nesse aspecto, as gerações tecnologizadas se concebem como a geração de rede, a geração digital, a geração instantânea e, entre tantas outras nominações, a cibergeração. Nessa perspectiva, os Homo Zappiens, por meio de um click, acessam e navegam instantaneamente em qualquer lugar e em qualquer tempo e, nesse navegar, plugam-se em jogos interativos, salas de bate-papo, ciberencontros, etc.

A diferença entre o Homo Zappiens e as outras gerações, segundo os autores, é concebida por meio do modo como ambos se relacionam com as tecnologias: os Homo Zappiens se tornam íntimos da tecnologia, porque aprendem numa relação de intimidade que se contextualiza pela prática e pela experimentação da tecnologia, enquanto as outras gerações se submetem às instruções para depois efetuar operações tecnológicas. Desse modo, as novas gerações têm um desenvolvimento tecnocognitivo enquanto às outras gerações, o real se baseia na instrução para a aprendizagem.

Dando continuidade a ideia de Homo Zappiens, o terceiro capítulo: “Entendendo o caos”, aborda a forma como as crianças da atual geração se familiarizam com a tecnologia. Sendo essa facilmente utilizada no cotidiano dos indivíduos, os Homo Zappiens visualizam na tecnologia uma possibilidade de socialização, o que ocorre por meio de jogos de LAN e mensagens instantâneas, ou seja, aquilo que para muitos (de gerações passadas) pode ser considerado um caos. Para os autores é o desenvolvimento da habilidade icônica, a de tarefas múltiplas, de zapear e a de colaboração que diferencia o Homo Zappiens dos demais sujeitos de gerações passadas. Entendamos por meio da ideia dos autores que, enquanto as gerações passadas assistiam a filmes observando a história e a interpretação, os Homo Zappiens decifram e compreendem como cada cena foi elaborada. Decifrar a tecnologia empregada é o grande desafio da tecnogeração, isto é, para ela construir o conhecimento. O mesmo ocorre, por exemplo, com o processo de leitura, cujos olhos atentos aos  vários ícones nas páginas da NET saciam a ânsia de aprender desses indivíduos, pensadores digitais.

Avançando o pensar, no quarto capítulo: “Aprendendo de maneira divertida”, os autores apresentam o homem como alguém que entende o aprender e o concebe por meio de uma verossimilhança entre o jogar. A interação virtual ou real tem como essência a potencialidade investigativa. Assim, para os autores, aprender é a capacidade de observar o meio e seu entorno, é adaptar-se às transformações ocorridas, é retransformá-lo. Desse modo, o Homo Zappiens vê e vive a interação por meio do contato e do convívio com a tecnologia-interativa ou a interação-sócio-humana. Mesmo porque o novo nada mais é que velhos processos reprojetados por novos meios, novas ferramentas.

Diante do contexto até aqui apresentado, os autores referem que o processo de aprender pode advir de duas concepções: a primeira proposta parte do senso comum e concebe a aprendizagem como um processo permanente no cotidiano de cada indivíduo; a segunda propõe que a aprendizagem se efetive por meio de níveis e que nem sempre a experiência evidencia aprendizagem. O Homo Zappiens aprende de forma que sua autonomia se evidencie, inclusive, por meio da escolha daquilo que se quer aprender e como se quer aprender. Nesse aspecto, podemos considerar que a nova geração fica atenta ao que aprende, por que aprende e, principalmente, como aprende, sendo essa forma a força motivadora da conduta dos Homo Zappiens, conforme relatam os autores no quinto capítulo Parando a montanha russa.

No sexto e último capítulo: “O que as escolas poderiam fazer”, os autores propõem que a escola, sendo meio para sistematização da educação e da aprendizagem, deve atender aos interesses e às necessidades da sociedade, entre esses: a necessidade de acompanhar ou preconizar as tecnologias inerentes aos avanços da sociedade. Partindo dessa concepção de escola, os autores propõem uma leitura da metodologia utilizada na educação atual, meio de poder que linearmente se desenvolve para que as pessoas se tornem emergentes, o que denota transformar-se de dominado em dominante. Assim, se concebe a escola como um espaço que se apropria das tecnologias e evolui para que essas estejam a serviço da emancipação do homem como sujeito autônomo, que se permite experimentar o novo a todo instante.

Nessa proposta de cenários educacionais, os autores propõem uma reflexão sobre quatro eixos cênicos: inovação, marketing, perseverança e melhoria o que implica uma maior liberdade de escolha no trajeto educacional de cada indivíduo. Os respectivos eixos devem ser construídos por meio de um novo design pedagógico, cujos professores devem ficar atentos aos desafios do novo a todo instante, sendo esse novo não só conhecer as novas tecnologias, mas dar espaço às novas atitudes educacionais, dentre elas, a atitude de confiar nos alunos no que tange ao fazer, ao querer e ao cumprir com liberdade, tendo como vértebra educacional o talento e a habilidade do Homo Zappiens, de estar imerso naquilo que faz, quando se apaixona pelo que faz. Desse modo, a organização e a formatação das avaliações devem, também, se modificar para dar espaço a mudanças significativas, mudando matérias em temas, avaliações em desafios, escrita em imagens…

Transformando as reflexões em um tecido orgânico, no comentário final, os autores propõem uma reflexão sobre os assuntos abordados, não esperando que o leitor aceite passivamente as ideias explicitadas no livro, ao contrário, recorrem sabiamente a todo critério de liberdade apresentado no decorrer do livro Homo Zappiens: educando na era digital, para concluir que, enquanto a geração Homo Zappiens for julgada por meio dos velhos paradigmas, nunca compreenderemos como essa geração brinca e se comunica, o que, na verdade, representa uma fonte de informações para que possamos lidar com nosso futuro digital e criativo.

Referências

VEEN, W.; VRAKKING, B. Homo Zappiens: educando na era digital. Trad. de Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2009. 141 p.

Leandro Petarnella – Professor na Universidade Nove de Julho (Uninove/SP). Mestre. Doutorando em Educação pela Universidade de Sorocaba (Uniso/SP) e em Administração pela Uninove/SP. Desenvolve pesquisas relacionadas à tecnologia e ao cotidiano escolar. E-mail: [email protected]

Eduardo de Campos Garcia – Professor na Universidade Nove de Julho (Uninove/SP). Mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Especialista em Magistério do Ensino Superior pela PUCSP. E-mail: [email protected]

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Platão – BENSON (Ph)

BENSON, Hugh H. (ED.) Et al. Platão. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: Artmed, 2011 1.  Resenha de: BORGES Anderson de Paula. Philósophos, Goiânia, v.15, n. 1, p.197-202, jan./jun, 2010.

O público brasileiro, interessado no estudo de Platão, que queira consultar uma introdução de primeira linha conta com mais um título no mercado nacional. O professor Marco Zingano (e a editora Artmed) nos prestou um ótimo serviço ao traduzir o volume dedicado a Platão, o (37°) da coleção Blackwell Companions to Philosophy. O livro foi lançado em 2006 sob o título A Companion to Plato, com edição de Hugh H. Benson. Trata-se de um guia atualizado e abrangente na abordagem dos problemas investigados pelos estudiosos do platonismo. O roteiro de temas e o método de análise empregado vêm sendo firmados há cerca de 60 anos por meio de uma produção intensa de livros e artigos no cenário da ancient philosophy. O guia de Benson sintetiza esse trabalho em 29 ensaios inéditos produzidos por 30 especialistas em filosofia antiga.

Antes de comentar o conteúdo de alguns capítulos, quero enfatizar a linha editorial adotada. O volume se dis-tingue de outros guias similares como o The Oxford Handbook of Platonism, editado por Gail Fine em 2008 e o The Cambridge Companion to Plato, editado por Richard Kraut em 1992. O guia de Fine apresenta seus artigos em dois níveis que se complementam: uma parte dos capítulos explora tópicos filosóficos na economia interna do plato-nismo e outra parte examina a estrutura de alguns diálogos. O volume da coleção Cambridge Companions, por seu lado, traz artigos sobre temas específicos, num projeto que privi-legia a abordagem do autor do ensaio. O resultado é útil pela qualidade do time de ensaístas, mas certas lacunas fica-ram evidentes. Sente-se a necessidade de um tratamento mais profundo da epistemologia do Fédon, da República e do Teeteto. Falta também um conjunto de ensaios sobre alguns diálogos centrais. No projeto de Benson, por outro lado, optou-se por dar a cada colaborador um formato exíguo nos capítulos, permitindo explorar um domínio bem mais ex-tenso. Quem desejar garimpar os tópicos nos diálogos terá muitas opções no índice remissivo. No prefácio Benson a-nuncia seu critério editorial: selecionar os temas por sua relevância “filosófica em oposição à relevância histórica” (p. X).

Um aspecto menos virtuoso do conjunto é a opção por especialistas do circuito anglo-saxão. Com exceção das edi-ções críticas consultadas e de alguns títulos de alemães e franceses nas indicações de literatura secundária, o corpo dos ensaios pode induzir o leitor a pensar que a pesquisa de ponta no platonismo está toda concentrada nos Estados Unidos e na Inglaterra, o que é enganador. Itália, França e Alemanha possuem expoentes na atual indústria do comentário em filosofia antiga. Mais recentemente, alguns países da América do Sul, entre eles o Brasil, estão se destacando pela qualidade de seus pesquisadores na área. É interessante comparar com a edição, um pouco mais “democrática” no convite aos scholars, de Sara Ahbel-Rappe e Rachana Kam-tekar no A Companion to Socrates, também da coleção Blackwell Companions.
A seguir vou enfatizar alguns recursos e argumentos dos primeiros ensaios, sem pretender, obviamente, uma análise mais profunda. Minha intenção é temperar o interesse do leitor e induzi-lo à leitura, destes que destaco, bem como dos que não poderei mencionar devido aos limites dessa re-senha.
Após um breve prefácio no qual o editor explica sua es-tratégia na concepção do livro, três ensaios abrem o volume: “A vida de Platão de Atenas”, de D. Nails, “Inter-pretando Platão”, de C. Rowe e “O problema socrático”, de W. Prior. Nails sintetiza com habilidade traços da biografia de Platão, como a ambientação aristocrática, os irmãos, a vida política e os acontecimentos históricos que marcaram Atenas na primeira parte da vida do filósofo. Destaca-se a opção por atrelar tais aspectos a algumas obras, como Euti-demo e Carta VII, certamente uma estratégia segura para dar consistência ao cruzamento entre os acontecimentos da vi-da de Platão e a rica ambientação dramática que caracteriza sua produção filosófica. Rowe, com sua prosa sempre de al-to nível, reúne em poucas linhas a defesa de um socratismo que permearia toda a obra de Platão. Ele firma aí uma posi-ção moderada, se a comparamos com o extremismo das tendências desenvolvimentista e unitária. Já o ensaio de Prior pode parecer deslocado no lugar onde está, a apresen-tação do livro, mas não é um deslize. Como argumentou Rowe no capítulo anterior, tendemos a ver isso como um efeito do fato de que a obra platônica, em linhas gerais, não se afasta do programa filosófico socrático, nem mesmo na chamada fase “madura”.
Depois dessa abertura, o livro se divide em seis partes apresentando oito tópicos do platonismo: método, epistemo-logia, metafísica, psicologia, ética, política, estética e legado. O método e a forma do diálogo são tratados pelos ensaios “A forma e os diálogos platônicos”, de M. M. McCabe, “O E-lenchus Socrático”, de C. Yang, “Definições platônicas e formas”, de R. M. Dancy e “o método da dialética platôni-ca”, do editor. McCabe examina o gênero adotado pelo filósofo e identifica fases de maior e menor presença da forma “diálogo”. Ela especula que Platão pode ter sido ins-pirado pela própria evolução da prosa grega que, apesar de ter culminado num material de tipo argumentativo, não se desvencilhou do apreço dos gregos pelo teatro. A proposta da autora é problematizar esse quadro com a complexa tra-ma dos diálogos. Enquanto “encartados” no quadro, os diálogos não se permitem uma interpretação simplista nos moldes da que os vê, fundamentalmente, como reprodução de um método, proposto por Sócrates, de fazer filosofia.

O ensaio de Charles Young examina o elenchus. É um capítulo com duas qualidades muito úteis: explicita com fô-lego as principais passagens onde o elenchus está em ação no corpus e avalia criticamente a clássica tese de Vlastos sobre os dois tipos de elenchus. Já o artigo de Dancy persegue a i-deia de “definição” em textos como Carmides, Eutifron, Hípias Maior, Laques, Lísis, Protágoras e República I. Seu estilo é árido. O uso de acrônimos, recurso que Jonathan Barnes chamou de “SSPCU style” (in: Philosophy and Phenomenological Research, vol. 56, 1996, p. 489-491) e de símbolos da ló-gica moderna obrigam o leitor não-especialista a retomar certos parágrafos no curso da leitura. Esse detalhe não ate-nua a relevância do objetivo do autor: trata-se de identificar certos procedimentos típicos nas passagens sobre “o que é x” e retirar destes lugares as condições necessárias e sufici-entes do tipo de definição ideal que os diálogos buscam. No detalhe, porém, Dancy defende interpretações que precisam de mais argumentação (cf. a p. 84 ele está consciente disso) como, por exemplo, sua tese de que a terceira condição de uma boa definição, que ele nomeia “Requerimento de Ex-plicação”, envolve alguma conexão causal entre a definição e suas instâncias. Não está claro de modo algum no texto de Dancy que tipo de causalidade é essa.
A dialética é examinada por Benson, fechando o pri-meiro bloco. O autor apresenta soluções para resolver os impasses sobre a conexão entre o método dos primeiros di-álogos e o dos diálogos médios. Destaca-se o esforço para explicar a continuidade entre “metodologias” de hipóteses presentes em Mênon, Fédon e República.

A segunda parte aborda a epistemologia platônica. G. Matthews assina “a ignorância socrática”, C. Kahn “Platão e a Reminiscência”, D. Modrak “Platão: uma teoria da per-cepção ou um aceno à sensação?” e M. Ferejohn “O conhecimento e as formas em Platão”. Na terceira parte, dedicada à metafísica, T. Penner escreve sobre “As formas e as ciências em Sócrates e Platão”, M. L. Gill propõe “Pro-blemas para as formas”, C. Freeland “o papel da cosmologia na filosofia de Platão, D. Sedley “Platão e a Linguagem”, M. White “Platão e a matemática” e M. McPherran “a religião platônica”.

A psicologia de Platão, na quarta parte, traz os ensaios “os paradoxos socráticos” (Brickhouse e Smith), “A alma platônica” (F. Miller jr.), “Eros e amizade em Platão” (C. D. C. Reeve) e “Platão e o prazer como o bem humano” (G. Santas). Ética, política e estética são contemplados com “a unidade da virtudes”, de D. Devereux, “Platão e a justiça” de D. Keyt, “O conceito de bem em Platão”, de N. White, “Platão e a lei”, de S. S. Meyer e “Platão e as artes”, de C. Janaway. A última parte é consagrada às influências do pla-tonismo na tradição filosófica posterior. C. Shields escreve “Aprendendo sobre Platão com Aristóteles”, A. Long “Pla-tão e a filosofia helenística” e S. Ahbel-Rappe termina o livro com “a influência de Platão na filosofia judaica, cristã e islâmica”.

O livro “Platão”, de Hugh H. Benson e colaboradores, é extremamente útil, tanto para especialistas quanto para es-tudantes de filosofia. Os primeiros vão gostar de ver seus focos de interesse sendo comentados de modo inteligente e eficaz. Os demais terão no livro uma orientação que lhes permitirá conhecer o modo mais profícuo de se abordar Platão, hoje. Por isso, trata-se de um livro indispensável.

Nota

1 Tradução feita a partir do original: “A Companion do Plato”, publicado pela Blackwell e organizado Hugh H. Benson.

Anderson de Paula Borges – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás. E-mail: [email protected]

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A profissionalização dos formadores de professores – ALTET; PERRENOUD (EPEC)

ALTET, Marguerite; PERRENOUD, Phillipe; PAQUAY, Léopold e colaboradores. A profissionalização dos formadores de professores. São Paulo: Artmed Editora S.A, 2003. (Tradução do original francês “Formateurs d’enseignants: quelle professionnalisation? Copyrigth by: De Boeck & Larcier S. A., 2002, por Fátima Murad). Resenha de: VILLANI, Carlos Eduardo Porto. A profissionalização dos formadores de professores. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.11, n.01, p.192-196, jan./ jun. 2009. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências (EPEC)

Nesse texto, apresenta-se uma resenha crítica do livro “A profissionalização dos formadores de professores” de autoria de Marguerite Altet, Philippe Perrenoud, Léopold Paquay e colaboradores. No livro estão reunidos onze trabalhos de importantes especialistas originários de três países francófonos: Bélgica, França e Suíça. Os trabalhos surgiram como resultado da articulação das pesquisas empíricas e reflexões teóricas produzidas pelos autores, sobre as questões que envolvem a profissionalização, a identidade e o papel dos sujeitos responsáveis pela formação dos professores: os formadores de professores. Muitas dessas questões guardam similaridades com a situação dos formadores de professores de outros países, o que torna esta obra uma referência internacional para a área de educação.

No livro, os trabalhos estão organizados em três partes. Na primeira, “a formação contínua” (mais conhecida no Brasil como formação continuada), estão reunidos três trabalhos que investigam a profissionalização dos formadores de professores que atuam junto a professores já habilitados que lecionam no ensino fundamental e médio em diversos níveis de escolaridade.

O primeiro trabalho da primeira parte do livro, “Formadores de professores uma identidade balbuciante” de autoria da suíça Mireille Snoeckx, aborda as questões da constituição da identidade dos formadores de professores a partir da reconstrução da história de vida desses sujeitos. Snoeckx procurou evidenciar as diferentes manifestações que o processo de profissionalização desses sujeitos assumiu no decorrer dos últimos vinte anos em Genebra, para compreender melhor a identidade do formador de professores de hoje. Seu trabalho nos permite fazer uma série de analogias com a realidade dos formadores de professores brasileiros e é um convite instigante para professores e pesquisadores realizarem investigações com abordagens históricas e estudos comparativos entre o contexto da profissionalização dos formadores de professores dos países francófonos e do Brasil.

Em “Dispositivos de formação de formadores de professores: para qual profissionalização?”, o Francês Maurice Lamy apresenta uma reflexão teórica do pronto de vista de um especialista não-universitário sobre a constituição de um dispositivo de “formação de formadores de professores”. O dispositivo é cuidadosamente analisado levando-se em consideração suas referências cronológicas, seus princípios de base e seus referenciais conceituais e metodológicos. Em suas conclusões, Lamy questiona a eficácia

do dispositivo analisado e de outros dispositivos de formação. O autor nos alerta que, embora seja indispensável haver uma mediação para a formação dos formadores de professores, sua profissionalização é mais uma questão de postura e de atitude do que matéria de dispositivos e de ferramentas de formação. Nesse sentido, o texto sugere implicitamente a necessidade de estudos que investiguem a dimensão moral presente nos processos de formação de professores, assim como sua inclusão nos cursos de formação continuada.

Finalmente, o terceiro e último texto da primeira parte do livro, “Qual (quais) profissionalidade (s) dos formadores em formação contínua? Por um perfil poliidentitário” é de autoria de Marguerite Altet, uma pesquisadora francesa professora de ciências da educação da Universidade de Nantes. Nesse texto, Altet apoiou-se em uma pesquisa realizada por questionário a 117 formadores da MAFPEN1 em 1997. A maior parte dos formadores da MAFPEN são professores experientes que dedicam um terço ou meio período de seu serviço às atividades de formação. As questões suscitadas, na situação investigada sobre a profissionalidade dos formadores de professores, justificam a escolha deste texto para o fechamento desta primeira parte do livro. A natureza do instrumento utilizado para a obtenção dos dados permitiu a Altet uma análise na qual ela mesclou os resultados quantitativos advindos dos questionários com a constituição da profissionalidade específica do formador de professor a partir do seu próprio discurso. A autora buscou identificar o tipo de formação seguida pelo professor que se tornou formador de professores para compreender o modo como se constitui sua profissionalização. Em suas conclusões, a autora delineia um quadro mais otimista quanto a uma possível constituição da profissionalização dos formadores de professores que, segundo ela, já se encontra no nível de um principio de profissionalização de formadores de professores, no sentido da evolução da profissionalidade, como testemunha o perfil poliidentitário circunscrito na pesquisa.

Na segunda parte do livro, “a formação inicial”, estão reunidos seis trabalhos que abordam as questões associadas à profissionalização dos formadores que atuam nos cursos de formação inicial de professores nos institutos universitários.

O primeiro trabalho desta segunda parte “Formadores no IUFM: um mundo heterogêneo” apóia-se na idéia de que a profissionalização dos formadores de professores deve ser vista como uma dinâmica em curso, cujo resultado é sempre incerto. Vincent Lang, um professor conferencista na Universidade de Nantes, na França, é quem assina este interessante trabalho que apresenta a evolução das profissionalidades dos formadores de professores dos Institutos Universitários de Formação Inicial (IUFM). Lang investigou a dinâmica de profissionalização dos formadores a partir do olhar que os formadores lançam sobre si mesmos, sobre seu ofício e sobre suas evoluções. Em suas conclusões, o autor agrupa seus resultados em três séries de observações que, segundo ele, servem de “conclusões provisórias”: 1 – Embora, à primeira vista, os formadores do IUFM possam parecer constituir um mundo relativamente homogêneo, este mundo é na verdade bastante heterogêneo. 2 – O grupo de formadores investigados: a) insere-se em uma dinâmica de profissionalização dos ofícios de ensino b) reivindica uma imagem de professores especialistas c) tenta profissionalizar a formação em seu conteúdo. 3 – A evolução das

profissionalidades e das identidades dos formadores provém essencialmente de políticas de formação de professores.

O segundo e o terceiro trabalhos procuram evidenciar as especificidades da formação inicial de professores na Bélgica. No trabalho intitulado “A profissionalidade dos formadores de professores na Bélgica: um contexto, um dispositivo” Jacqueline Beckers, professora da universidade de Liège, expõe o contexto de formação no qual se inserem estes dois trabalhos, em um quadro-resumo sintético que facilita seu entendimento por leitores não-belgas. O quadro evidencia a persistência de um duplo sistema de formação de professores caracterizado por duas categorias de formadores: os especialistas-matéria também conhecidos como “didatas” e os psicopedagogos. O trabalho de Beckers está dividido em duas partes. Na primeira ela procura situar o contexto belga propriamente dito. Na segunda, a autora analisa e estabelece um olhar reflexivo sobre um dispositivo de profissionalização destinado aos psicopedagogos. O dispositivo constitui um módulo de formação obrigatória de 60 horas, inserido na licenciatura em ciências da educação da Universidade de Liège, articulado com base em um período de estágio de futuros professores do “ensino secundário inferior no segundo ano de formação”. As conclusões de Beckers incidem diretamente sobre recomendações para se melhorar a compreensão e o êxito do dispositivo analisado.

Já o trabalho de Léopold Paquay “Abordagem da construção da profissionalidade dos psicopedagogos formadores de futuros professores” investiga empiricamente um importante conjunto de questões associadas à profissionalização dos psicopedagogos. Segundo Paquay a formação inicial dos psicopedagogos (a licenciatura em psicopedagogia ou a licenciatura em ciências da educação) não os preparou necessariamente para todas as tarefas requeridas. Dessa forma, o conjunto de questionamentos levantados nesta pesquisa focaliza o desenvolvimento da capacidade desses sujeitos em fazer face às exigências profissionais reais em situação, ou seja, o desenvolvimento de sua profissionalidade. Em suas conclusões o autor destaca a corroboração de resultados de pesquisas anteriores sobre o desenvolvimento profissional que ocorre ao longo da carreira: os práticos desenvolvem suas competências pela experiência e pela reflexão sobre a experiência. A organização do artigo, a metodologia de investigação, e a forma de exposição dos resultados são muito interessantes, o que torna a leitura do artigo uma importante referência sobre como desenvolver uma pesquisa e produzir um relato consistente desta pesquisa.

No quarto trabalho, “Os formadores como vetor essencial na reforma dos sistemas de formação. Perfis de atores e vias de uma formação profissionalizante” Olivier Maradan, então diretor de projeto para a Escola de Altos Estudos Pedagógicos de Friburgo, apresenta um relato sobre um projeto de constituição de um dispositivo de formação de formadores de professores. Nesse trabalho o autor se abstém de analisar o dispositivo enquanto pesquisador, mas assume seu lugar como idealizador e militante de um projeto de “reforma da profissionalização dos formadores de professores” na Suíça nos proporcionando uma visão ampla do referido processo.

O quinto trabalho apóia-se em 15 anos de pesquisa sobre a identidade e o trabalho dos formadores de professores da França. Patrice Pelpel, um professor conferencista no IUFM de Créteil, analisa alguns elementos da identidade dos formadores de campo (os conselheiros pedagógicos) e os fatores que se interpuseram como obstáculo ao seu processo de profissionalização em “Qual profissionalização para os formadores de campo?”. Em suas conclusões Palpel constata que a formação de professores desenvolve-se de uma maneira relativamente incoerente em relação às mudanças associadas à profissionalização

dos formadores observadas na França, e apresenta três fortes questionamentos que provavelmente aparecerão em futuras investigações sobre este tema que são: 1- Como formar professores profissionais com formadores amadores? 2- Como recusar o empirismo em matéria de formação e convocar os práticos em função de sua experiência? E, finalmente 3 – Como se pode anunciar episodicamente o interesse pela formação de professores sem se preocupar com as condições que a tornariam possível?

O último trabalho desta parte é de autoria de Nadine Faingold, uma professora conferencista no IUFM de Versailles. Em seu trabalho “professores-tutores: quais práticas qual identidade profissional?” a autora investiga os processos a serem privilegiados no âmbito de uma formação de formadores de professores. Os professores-tutores são todos os sujeitos que se enquadram no conjunto dos profissionais encarregados do acompanhamento individualizado da formação prática dos professores. Os papéis de tais profissionais podem ser comparados aos dos professores que, no Brasil, recebem os alunos de graduação, de licenciatura ou pedagogia, em suas classes e que são encarregados de acompanhá-los nos seus respectivos estágios. Uma diferença marcante destes formadores com relação ao contexto brasileiro é que alguns deles recebem um certificado de aptidão para a função de professores formadores, o que lhes permite manter uma prática de classe exercendo suas novas funções de formador durante um terço de seu tempo de serviço. Essa especificidade é investigada no trabalho de Faingold que identifica as dificuldades encontradas por esses professores-tutores (inexperientes) no momento de sua passagem a essa nova identidade profissional de formador de adultos, e a compara com um estudo sobre o modo de intervenção por um conselheiro pedagógico experiente. A metodologia utilizada para construir suas conclusões sobre as práticas e as identidades desses profissionais foi a da “entrevista de explicitação” que permite acessar as dimensões da vivência e da ação que não estão imediatamente presentes na consciência da pessoa.

Finalmente, a terceira e última parte do livro reúne os trabalhos de dois pesquisadores suíços que envolvem temas que são comuns às questões discutidas sobre a profissionalização dos formadores que atuam tanto na formação inicial quanto na formação continuada de professores. A terceira parte é denominada de “questões transversais” e é composta pelos trabalhos intitulados “A divisão do trabalho entre formadores de professores: desafios emergentes” do sociólogo Philippe Perrenoud e “A profissionalização: entre competência e reconhecimento social” de Guy Jobert.

Perrenoud reflete sobre os papeis que os formadores desempenham analisando a divisão do trabalho entre eles e os desafios emergentes que podem constituir um sinal de profissionalização dos formadores de professores. Em suas conclusões, o autor apresenta um paradoxo: Se por um lado os formadores se recusam a reconhecer sua identidade enquanto formadores de professores, por outro lado, atualmente, é inegável o reconhecimento da existência da sua função de formador de professores. Diante da problemática da profissionalização dos formadores de professores, o autor sugere que uma possível (e talvez única) saída fosse a aproximação do ensino e da formação. Para Perrenoud “A evolução da didática como organização de situações de aprendizagem vai nesse sentido, assim como todos os trabalhos de orientação construtivistas. Um dia talvez os professores orgulhem-se de ser antes de tudo formadores, especialistas em processos de transformação de um aprendiz. Mas hoje ainda há uma distância enorme entre essa perspectiva e a identidade predominante de professores do ensino médio e do ensino superior”.

Jobert discute os significados atribuídos ao termo profissionalização concentrando-se particularmente na sua associação como desenvolvimento da competência e como luta social. Ele utiliza as considerações realizadas para examinar três questões práticas: a) Os formadores de professores são atores importantes da profissionalização dos professores? b) Como os formadores de professores podem contribuir para o desenvolvimento das competências dos professores? c) Os formadores de professores podem esperar um avanço de seu reconhecimento profissional? Como resposta a estas questões, o autor destaca que a profissionalização dos formadores de professores depende da emergência de um grupo social, profissional de formadores, fato este que ainda se encontra distante da realidade exposta nos contextos investigados.

Além dos trabalhos agrupados nas três partes detalhadas acima, Altet, Paquay e Perrenoud apresentam um capítulo de introdução, onde são colocadas as questões centrais abordadas (1 – Existe uma profissionalidade específica dos formadores de professores? Qual é? Como é construída? e 2 – Observa-se um processo de profissionalização da função e até mesmo do ofício dos formadores dos professores? Quais são os indicadores disso?) e outro de conclusão, onde estas questões são sintetizadas em termos das idéias expostas nos 11 trabalhos do livro. Nesse capítulo de conclusão fica evidenciado a existência de uma profissionalidade dinâmica caracterizada por uma grande diversidade de tarefas e pela existência de perfis variados e heterogêneos de representações de identidade dos formadores de professores. Além disso, as competências em construção, específicas aos formadores de professores identificadas em vários artigos, e as descrições, por meio de quais procedimentos elas se constroem, são indicadores consistentes da profissionalização da função de formador de professor. Entretanto, os autores deixam claro que ainda resta um longo caminho a percorrer até a constituição de uma futura profissão de “formador de professor”.

Nota

1 Mission Académique de Formation des Personnels de l’Éducation Nationale, criada em 1982 por Alain Savary e encarregada da formação contínua de todos os professores de cada academia; vinculada em 1982 a cada IUFM – Institut Universitaire de Formation des Maîtres.

Carlos Eduardo Porto Villani – E-mail: [email protected]

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