A experiência zapatista. Rebeldia, resistência e autonomia | Jérôme Baschet

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Jérôme Baschet | Imagem: Le Comptoir

ENTRE A PALAVRA-PENSAMENTO E A PALAVRA-AÇÃO ZAPATISTA: A BUSCA PELA AUTONOMIA

O levante zapatista tem sido uma forte experiência de luta indígena contra o esquecimento, o subjugo e a opressão colonial e capitalista, e a favor da autonomia, da memória e libertação coletiva entre os povos. A partir desta perspectiva, tem-se a proposta de construir um futuro e mundo em que todos caibam e seus próprios modos de vida em seus territórios. A insurgência zapatista, que ocupa o território mexicano desde 1994, tem como foco principal a construção de uma luta planetária a partir de um Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), hoje um movimento político de resistência e de luta comum pela causa indígena em uma organização comunitária e, por sua vez, o esforço de estabelecer redes planetárias de emancipação à dominação do capitalismo neoliberal, com uma renovada perspectiva do marxismo.

A experiência zapatista: rebeldia, resistência e autonomia, escrito pelo historiador Jérôme Baschet (2021), é também fruto de uma coletânea de obras sobre a insurgência do movimento zapatista, lançada pela N-1 Edições, cuja proposta do conjunto de obras é apresentar a experiência e a luta histórica zapatista e seu pensamento político e coletivo, a fenda que cria condições de possibilidades para um mundo justo e igualitário, uma fenda que está em permanente processo para abrir o “muro da história”, manter viva a memória e os modos de ser e estar no mundo a partir de diferentes modos de vida e temporalidades, na contramão daquelas impostas pelo capitalismo neoliberal. Por isso, como alerta Galeano (2021), “é preciso continuar sem descanso. Não apenas para aumentar a fenda, mas, sobretudo, para que ela não se feche” (Galeano, 2021, p. 31). Leia Mais

Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino superior e a sociedade em Sergipe, 1950-1985 | José Vieira da Cruz

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José Vieira da Cruz – 2019 | Foto: Tribuna do Sertão

Acaba de ser publicada a segunda edição (revista e ampliada) do livro de José Vieira da Cruz, Da Autonomia à Resistência Democrática: Movimento Estudantil, Ensino Superior e a Sociedade em Sergipe (1950-1985). O texto incide sobre o tema da cultura académica, que não está suficientemente estudado e para o qual este livro é um contributo fundamental.

Da autonomia a resistencia democraticaÉ justamente na década de 1950 que tem início o estudo criterioso e denso que José Vieira da Cruz reedita e ao qual não são alheios nem o elitismo do ensino universitário, nem o alargamento da universidade a novos públicos e novos territórios, nem a relação da universidade com o Estado e com a sociedade; nem a autonomia universitária e o estatuto do estudante. É neste complexo, perfeitamente ajustado ao Brasil em modernização acelerada, que Cruz inscreve e sistematiza o marco teórico; procede a uma revisão crítica da historiografia das universidades; faz a história do movimento estudantil. Leia Mais

Podemos gobernarnos nosotros mismos: La autonomía, una política sin el Estado – BASCHET (RTA)

BASCHET, Jérôme. Podemos gobernarnos nosotros mismos: La autonomía, una política sin el Estado. Chiapas: Ediciones Cideci, 2017, 150 p. Resenha de: GUERRA, Rodrigo de Morais. Autonomia, espacialidades e novas sociabilidades no Tempo Presente: a experiência zapatista. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.28, p.534-539. set./dez., 2019.

Consagrado pelos seus estudos sobre o medievo, Jérôme Baschet nos propõe com “Podemos gobernarnos nosotros mismos: La autonomia, una política sin el Estado” uma nova perspectiva acerca do seu trabalho como historiador, bem como, acerca das relações político-sociais do Tempo Presente. Professor da Universidad Autónoma de Chiapas, desde 1997, Baschet vivenciou o enfervecido contexto mexicano de fins do século XX e presenciou um dos momentos mais marcantes da história dos novos movimentos sociais latino-americanos: a insurgência zapatista para o mundo no 1º de janeiro de 1994. Neste livro, o historiador adentra ao complexo universo zapatista, explora suas espacialidades e nos oferece novas reflexões a respeito das (con)vivências em sociedade e seus desafios frente a uma pluralidade de mundos que coexistem em nossas ricas diferenças culturais.

Oriunda de uma verdadeira imersão intelectual e antropológica, a pesquisa de Baschet resulta em um estudo que tem como problemática central compreender de forma mais aprofundada as sociabilidades zapatistas, a partir de uma análise ampla do conceito de autonomia e seus efeitos. Para tanto, a obra gira em torno de duas perguntas basilares: “o que pode ser uma política da autonomia?” e “há outras opções frente a devastação capitalista?”. A fim de endossar este debate, temos, logo de início, uma distinção política que polariza a problemática em questão por meio de duas formas, não apenas distintas, mas antagônicas, de exercer um governo: a política de arriba e a política de abajo. Como forma política de arriba, temos uma política que segue as instituições do Estado moderno, englobando seus partidos políticos, toda a classe política e todo o seu aparato burocrático; por outro lado, como forma política de abajo, temos uma política que segue estritamente o povo. Para além de suas distinções estruturais, essas duas formas políticas diferem, essencialmente, em suas manifestações de poder e participações plenamente democráticas, assim, ambas as formas políticas apresentam-se numa condição de total incompatibilidade, de modo que, a primeira (de arriba), caracterizada, por desapropriar o povo de suas capacidades de auto-organização, por meio de seus mecanismos institucionais, não admite o pleno exercício da segunda (de abajo); que, por sua vez, não tem como ser exercida se não combater a primeira e o seu monopólio na centralidade do poder. Portanto, diante de tal cenário, a autonomia zapatista incorpora um caráter anti-institucional: uma forma política de abajo, exercida por e para o povo e constante combatente à centralidade do poder político heterônomo estatal (de arriba).

Sendo assim, a autonomia zapatista, uma configuração governamental político-popular, fruto de um processo histórico de lutas e resistências frente à imposição do poder (o que caracteriza a violência) de cima para baixo, ocupa o cerne do texto com sua conceituação e aplicabilidades práticas. A autonomia surge, destarte, não como um sonho ou devaneio dos indígenas de Chiapas, mas como uma arma de resistência, como um refúgio para a proteção de suas vidas, como uma resposta ao Estado moderno heterônomo capitalista e, incessantemente, mantém seu processo construtivo ativo, diante das necessidades de adaptação e autotransformação, a partir dos novos desafios propostos pela experiência vivida. Dessa forma, a autonomia zapatista materializa-se numa configuração que Jérôme Baschet (2017) distingue em três dimensões: a comunidade, ou seja, o modo de organização dos povos indígenas, assumindo a dimensão coletiva do viver; o território, compreendido como as partes habitadas e cultivadas, mas também bosques e montanhas, como o lugar próprio da consistência e singularidade da comunidade; e a terra, dimensão caracterizada por Baschet como “potência de vida englobante”, que seria, portanto, sua vida, sua tradição, sua cultura, sua visão do mundo, sua coesão e sua identidade (BUENROSTRO Y ARELLANO, 2002, p. 17). Em sua aplicabilidade prática, a experiência zapatista ainda propõe uma organização política articulada em outros três níveis: comunidade, município e zona, nos quais, cada um dispõe de mecanismos vigilantes de seus plenos funcionamentos enquanto política de abajo, tais como: assembleias e autoridades eleitas, Conselho municipal autônomo e Juntas de bom governo, conformando, assim, a estrutura organizativa política autônoma de abajo zapatista.

Ao ser estabelecida uma estrutura política para gerir um sistema autônomo, podemos nos indagar sobre a real horizontalidade neste governo, pois, se há instituições organizativas das sociabilidades dos sujeitos, presume-se que há hierarquias e superioridades. Entretanto, a existência de uma estrutura reguladora do poder não deve ser confundida com um sistema de dominação através do poder. O poder, em sua essência, jamais será singular, mas sempre plural, como nos advertiu Hannah Arendt (2010); o poder aparece, pois, como manifestação organizativa das aspirações coletivas. Dessa forma, a autonomia, por mais que se estabeleça sob a responsabilidade de promover uma sociedade em que todos estão em pé de igualdade e todos têm responsabilidade sobre todos, ainda assim, é um modelo político no qual as relações de poder são fundamentais para a sua existência e sobrevivência. Para lidar com essa questão, os zapatistas dispõem de mecanismos reguladores que preservem a forma política de abajo de se autogovernar, para tanto, o seu já consagrado oximoro mandar obedecendo é um dos pilares de sustentação do bem caminhar da autonomia. Algumas características fundamentais do mandar obedecendo que regulam esta dinâmica são: os mandatos se concebem como cargos realizados para servir à comunidade, sem remuneração, nem nenhum tipo de vantagem material; ninguém se autopropõe para as funções e são as próprias comunidades que solicitam a quem consideram que podem exercê-las; os cargos são assumidos sobre a base de uma ética efetivamente vivida do serviço à coletividade; e os cargos sempre são exercidos de maneira colegiada e sob o controle permanente tanto da “Comissão de vigilância”, responsável por conferir as contas dos conselhos, quanto da população, à vista que os cargos são revogáveis a qualquer momento, fazendo valer a máxima de que o poder só é efetivado quando a palavra e o ato não se divorciam (ARENDT, 2010, p. 249).

Ademais das características descritas que garantem a governabilidade autônoma, o mandar obedecendo engloba um outro aspecto de fundamental importância que consiste na “desespecialização” das tarefas políticas. A partir de uma não especialização dos representantes do povo no governo, o exercício da autoridade se cumpre desde uma posição de não saber e “asumir ese no saber es lo que permite ser una ‘buena autoridade’, la cual se esfuerza por escuchar y aprender de todos, sabe reconocer sus errores y deja que la comunidad la guíe en la elaboración de las decisiones” (BASCHET, 2017, pp. 32-33). Logo, permitindo que o mandar obedecendo constitua uma “sólida defensa contra el riesgo de una separación entre gobernantes y gobernados (BASCHET, 2017, p. 33). Por fim, “Podemos gobernarnos nosotros mismos” traz importantes contribuições para o campo teórico no estudo da autonomia. Uma primeira reflexão diz a respeito de que uma política não-estatal não exige, necessariamente, um horizontalismo puro: há momentos em que o povo manda e o governo obedece, e há momentos em que o povo obedece e o governo manda, configurando, dessa forma, o exercício coletivo do poder, como já apontamos, o que, por sua parte, não dissocia inteiramente as duas relações inversas, mas as coloca numa condição de reciprocidade. Desta forma, não se trata de um poder heterônomo e, tampouco, de uma perfeita horizontalidade, mas o exercício de uma coletividade do poder que permite o pleno funcionamento da autonomia e não põe em risco toda a dinâmica de governo. Posto isso, enquanto que o Estado heterônomo emprega um modelo de delegação dissociativa, ou seja, na articulação com a estrutura social, almeja produzir e reproduzir a separação entre governantes e governados, concentrando o “poder-sobre” em um aparato burocrático e um grupo isolado; a autonomia sugere um modelo de delegação não dissociativa, ou seja, busca restringir ao máximo a separação entre governantes e governados, através de mecanismos ativos no combate à dissociação e na manutenção do uso efetivo da potência coletiva.

Por último, mais uma importante provocação levantada por Baschet (2017) consiste na eterna condição de inacabada da autonomia, o que o autor coloca como “um processo sem fim”. A autonomia, desse modo, consiste, portanto, em uma manifestação política incompleta e, necessariamente, infinita, pois, a pretensão de se criar uma sociedade ideal que afirmaria ter alcançado seu objetivo e sua forma última, completa e realizada, significaria, imediatamente, a morte da autonomia, haja vista que a autonomia, tal qual o rio de Heráclito, está, cotidianamente, transformando e transformando-se, destacando, dessa forma, uma condição paradoxal para a sua vigência: a autonomia só existe enquanto ela não é. Diferentemente das utopias normativas, que partem de pressupostos e objetivos finais a priori, a autonomia parte das singularidades de suas vivências concretas, utilizando-se da sua inacabável capacidade de adaptar-se e reinventar-se, o que os zapatistas tratam como “buscar el modo”, ou seja, descartar toda resolução pronta, abstrata e geral. Opondo-se, drasticamente, às lógicas constitutivas do Estado capitalista, a autonomia “es una política procesual que no puede ser(pre)determinada por ningún texto; se ubica en las antípodas del fetichismo de la Constitución” (BASCHET, 2017, p. 64). Portanto, a busca pela autonomia consiste na elevação do espírito inquieto, na permanente insatisfação, na constante vigilância frente aos erros e incansáveis esforços para retificá-los. Trata-se de uma experimentação que busca seu caminho, caminhando.

Em suma, o autogoverno zapatista não é mais que uma expressão da capacidade coletiva de organizar-se e afirmar formas de vidas próprias aos avanços da coletividade e dignidade compartilhada. Muito mais do que uma utopia, a autonomia mostra-se como uma arma de resistência, como uma “potência destituinte” (BASCHET, 2017), como um caminho em busca da emancipação abarcado por uma dupla dimensão: destruição-negação do mundo capitalista que ameaça a vida indígena; e construção-afirmação de uma nova sociabilidade possível. A experiência zapatista extrapola os limites das simplistas interpretações da autonomia, nos propõe novos modelos de espacialidades e nos faz repensar as sociabilidades regidas por um Estado heterônomo: valorosas contribuições em tempos de crises políticas no Brasil, na América-Latina e no mundo.

Rodrigo de Morais Guerra Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, RN – BRASIL. E-mail: [email protected].

Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania – REGO; PINZANI (C-FA)

REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania, São Paulo: Editora Unesp, 2013. Resenha de MELO, Rúrion. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.19, n.1 Jan./Jun., 2014.

Todos aqueles preocupados com o crescimento econômico, melhora nas condições de vida e diminuição das desigualdades no Brasil deveriam reconhecer os impactos decisivos de certos programas redistributivos sobre a sociedade brasileira, em particular os programas de transferência direta de renda iniciados como estratégia de combate à desigualdade nos anos do governo FHC, mas sensivelmente intensificados durante o governo Lula.1 O Programa Bolsa Família (BF), caracterizado como um programa de transferência direta de renda que procura beneficiar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo país, certamente se destaca neste rol de políticas compensatórias.2 Porém, muita dúvida tem sido lançada quanto à eficácia e à justificação normativa deste programa. De que maneira podemos compreender o sentido de tal programa no âmbito de um projeto moderno de sociedade? E como medir suas consequências econômicas e sociais na vida de seus concernidos? Gostaria de refletir um pouco sobre tais questões tomando por base a interessante pesquisa publicada por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani em seu recente livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania.

Assumo de início junto com os respectivos autores a ideia de que o BF precisa ser compreendido de um ponto de vista crítico amplo que diz respeito às pretensões próprias de desenvolvimento, modernização e democratização do país. O programa tem um alvo principal que é o combate à pobreza, mas seus efeitos e condicionalidades são imensos, revelando assim um potencial importante para uma série de transformações sem as quais a promessa de um país moderno e democrático não poderia ser cumprida nas condições atuais: seus impactos atingem não apenas a camada pobre e menos favorecida da população em geral, mas mais precisamente as relações de gênero e suas consequências, tais como a estrutura familiar, o escasso horizonte educacional dos filhos, os déficits nutricionais das crianças e a inclusão cívico-política dos beneficiários. Efeitos consideráveis, sem dúvida, em um país dito desenvolvido, moderno e democrático, mas que convive com extrema desigualdade econômica e social, exclusão política, preconceito regional, racial e de gênero, e violação sistemática de direitos humanos, ou seja, a realidade de milhões de brasileiros que ainda estão “completamente fora das heranças mais básicas da civilização” (p. 15).

Nesse sentido, Vozes do Bolsa Família parte de uma cobrança inerente à nossa própria história política. Não deveríamos avaliar os efeitos dos programas redistributivos com a ótica da experiência europeia e americana, por exemplo. Sabe-se que desde pelos menos 1970 foram levados a cabo diversos diagnósticos sobre as crises dos modelos keynesianos e de bem-estar social.3 No caso brasileiro, mais precisamente a partir de 1988 (isto é, após o período do “nacional-desenvolvimentismo”), vislumbramos, pelo contrário, a possibilidade de concretizar a esperança de um Estado social democrático, um projeto de desenvolvimento econômico que não fosse desprovido de um “projeto democrático substantivo” (p. 159).4 Na qualidade de marco determinante de nossa história política recente, a Constituição de 1988 “enuncia um projeto de país e de sociedade” (p. 162), sublinhando a gênese democrática representada pelas demandas das lutas sociais incorporadas à Constituição, sobretudo no que concerne ao tema da “justiça distributiva” assumida então como um “elemento vinculante de todo o sistema normativo” (p. 165).

Mas não é só isso. Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani dão um passo além na medida em que escolhem explicitar um ponto de referência normativo interno aos próprios processos que pretendem investigar e avaliar. Nosso desenvolvimento político permite ser questionado, ademais, do ponto de vista do “projeto da modernidade” por excelência. Tal projeto consiste na “promessa de autonomia (individual e coletiva)” (p. 55-56), uma promessa que a própria modernidade faz e não cumpre por razões que lhes são imanentes. Esse é um déficit específico, portanto, da sociedade capitalista contemporânea, a saber, “prometer autonomia para todos e não lhes oferecer as condições reais (e não meramente formais) para desenvolvê-la” (p. 56).

Um dos aspectos peculiares da abordagem teórica proposta no livro está voltado, assim, à investigação dos efeitos morais e políticos sobre os beneficiários do programa tendo em vista mais precisamente uma concepção de autonomia individual baseada, segundo os autores, no capability approach desenvolvido por Amartya Sen e Martha Nussbaum.5 Trata-se de entender antes de tudo de que maneira uma reflexão normativa sobre a autonomia individual dependeria crucialmente das oportunidades reais que a pessoas possuem para usufruir com liberdade de suas próprias vidas. E o BF, ao atender às dificuldades das pessoas em pior situação de pobreza, toca justamente nas capacidades e oportunidades reais de seus beneficiários.

Sendo assim, o BF poderia ajudar na realização do projeto moderno brasileiro concernente à promessa de autonomia? A resposta dos autores é sim, se entendermos o conceito de autonomia de determinada maneira: “Atribuímos autonomia a um sujeito quando ele é capaz de agir conforme um projeto pessoal de vida boa […] e de considerar a si e a outros sujeitos como capazes de estabelecer relações de direitos e deveres” (p. 57). Em outros termos, o BF pode “oferecer condições reais (e não meramente formais)” para que a modernidade cumpra sua promessa. “Somos da opinião”, afirmam os autores, “de que um programa como o BF se insere justamente nesse contexto e que seu efeito primário, além de garantir a subsistência imediata, é o de fornecer uma base material necessária para que os indivíduos possam desenvolver-se em direção a uma maior autonomia” (p. 69).

O interessante é que, ao falarmos da “autonomia” como categoria normativa, não estamos assumindo a centralidade desta categoria de fora dos contextos éticos, sociais e políticos correspondentes. Os efeitos colaterais provocados pela pobreza no Brasil não são avaliados apenas em termos objetivos e, principalmente, institucionais. Ao assumir um ponto de vista ético a partir do qual é possível ancorar uma teoria crítica da sociedade (p. 24-27), salta à vista o sofrimento, humilhação e desrespeito frequentes experimentados pelas pessoas em situação de injustiça.6 As condições objetivas da pobreza criam patologias diagnosticadas no quadro dos sentimentos pessoais, resultantes, entre outras coisas, da falta de acesso à renda regular, das dificuldades para a manutenção de uma vida minimamente saudável e da exclusão da cidadania. Assim, quando ouvimos as vozes dos excluídos e dos “invisíveis” (propósito da pesquisa, aliás), salta à vista a injustiça moral vivida pelas pessoas que carecem de um grau mínimo de autonomia.

Deste modo, identificada essa forma de patologia individual causada pela realidade objetiva do mundo econômico e social, é possível então avaliar as consequências positivas e/ou negativas do programa do BF sobre a constituição de elementos básicos da autonomia moral individual, ou seja, investigar até que ponto políticas redistributivas desse tipo são capazes de fornecer as bases materiais para a formação de um projeto independente de vida boa e de relações morais concernentes a direitos e deveres, com o propósito de possibilitar a dignidade e o autorrespeito dos membros da sociedade que se encontram vivendo sob condições de pobreza e miséria.

Para tanto, é preciso ainda mostrar que o BF pressupõe uma correlação fundamental entre “renda em dinheiro” e “autonomia individual”. Aliás, eu arriscaria dizer que essa é a tese central do livro, segundo a qual “a presença de uma renda monetária regular”, ainda que reconhecidamente insuficiente, “permite o desencadeamento de processos de autonomização individual em múltiplos níveis” (p. 38).

“Múltiplos níveis”, já que o recebimento da renda em dinheiro produz importantes efeitos na autorrealização e autodeterminação de seus beneficiários, criando as condições sociais reais básicas para os dois aspectos normativos da autonomia trabalhados pelos autores: a autonomia moral individual e a autonomia cidadã (o desenvolvimento de uma percepção de si como membro de uma comunidade política mais ampla). Em outros termos, a pesquisa mostra que o recebimento da renda monetária regular traz consigo transformações éticas, sociais e políticas imprescindíveis. Muito mais do que garantia mínima à manutenção da vida, o dinheiro, dessa perspectiva, tem antes um efeito desreificante, que, entre outras coisas, desnaturaliza as relações patriarcais dominantes e dá início a processos de libertação das mulheres diante do controle masculino familiar. “O recebimento da renda monetária”, afirmam os autores, “trouxe para muitas mulheres um elemento decisivo: a dignificação das suas pessoas como sentimento pessoal” (p. 200). O desencadeamento de processos múltiplos observado em termos de autonomia implica, na verdade, desde a capacidade individual do sujeito de fazer escolhas, passando pelo sentimento moral de governar sua própria vida, se responsabilizar pelas próprias ações e ser capaz de cuidar de si e da família, até a autopercepção de ser considerado pelo próprio Estado como membro de uma comunidade política, seu reconhecimento como cidadão.

Sem dúvida, não é uma tarefa fácil fundamentar tal tese, isto é, mostrar os múltiplos níveis da relação entre dinheiro e autonomia. Por essa razão, é digno de atenção o esforço empreendido por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani para mobilizar tantos elementos, construindo de maneira criativa, por assim dizer, os referenciais metodológicos e normativos da pesquisa: o propósito interdisciplinar de realizar uma pesquisa social com pontos de vista crítico-normativos (fazendo dialogar filosofia e sociologia), mesclar dados empíricos com entrevistas (dando primazia às análises qualitativas), realizar um balanço bibliográfico extenso e atual. Embora reconheçam que a pesquisa não foi exaustiva, pode-se ver nela os indícios empíricos do papel libertador da renda em dinheiro, ancorados na interpretação complexa, delicada e, antes de tudo, experimental dos efeitos do programa sobre as subjetividades das mulheres.

O programa BF apresenta assim muitos ganhos. Não podemos menosprezar seu impacto real na vida das famílias. Mas de modo algum podemos negligenciar seus efeitos colaterais, pois é também certo que existem dificuldades. Algumas críticas internas ressaltam, com mais ou menos razão, a ambivalência presente ao longo de sua implementação. Para alguns, enquanto programa de transferência direta de renda, o BF poderia ser radicalizado.7 Deveríamos também atentar para o impacto local muito diferenciado.8 Pesquisas sobre evasão escolar, por exemplo, mesmo apontando sucesso, explicitam ainda uma grande desigualdade regional.9 Além disso, certas críticas mais contundentes ao programa são feitas por parte do próprio discurso feminista: embora o BF possua um recorte explícito de gênero, o programa estaria paradoxalmente cristalizando o papel da mulher no sistema reprodutivo e produziria efeitos adversos relacionados à participação no mercado de trabalho (já que o programa estimularia a mulher a continuar em casa cuidando dos filhos)10

Podemos aliar a tais aspectos internos o problema segundo o qual, em termos de diagnóstico mais geral, o reformismo, absolutamente necessário no Brasil, é ambíguo. Avançamos lentamente. Pois nosso “reformismo fraco”, para usar um termo empregado por André Singer, caracteriza-se basicamente pelo fato de que a redução das desigualdades no Brasil (impulsionada, vale dizer, não somente pela política redistributiva, mas pelo aumento do emprego e da renda durante o governo Lula), ocorre em doses homeopáticas.11 O horizonte verdadeiramente democrático de expectativas, potencialmente presente no BF, deveria antes ser ampliado: o “reformismo fraco” tem de ser empurrado até o ponto em que permita vincular de fato autonomia individual e política, pois o que queremos é ver realizada a ideia normativa de um enraizamento do Estado de direito na vontade dos cidadãos. Mas sem ampla redistribuição, sem medidas extremas de combate à pobreza, à desigualdade e à injustiça, só aumentamos os obstáculos que se impõem no caminho de consolidação de uma sociedade digna de ser considerada democrática.

Os autores de Vozes do Bolsa Família estão conscientes que a tese do “relativo empoderamento” das mulheres realizado pelo dispositivo de transferência direta de renda guarda dimensões ambíguas e paradoxais. Ainda assim, afastando nosso olhar de aspectos predominantemente econômicos (para não falar de preconceitos e estereótipos comuns assumidos por boa parte da opinião pública quando se trata de falar do BF ou de políticas redistributivas em geral), os autores nos deixam ver um entrelaçamento que não pode passar despercebido entre a pobreza e o sentimento pessoal ligado ao autorrespeito, às capabilitties e à autonomização. Daí a importância de uma pesquisa que nos debruce no cotidiano, subjetividades, hábitos e expectativas das mães de famílias beneficiadas, de modo a darmos ouvido às suas vozes.

A humilhação, o sofrimento e o desrespeito são vulnerabilidades objetivamente produzidas que precisam ser politicamente sanadas. Por isso, a promoção da justiça social exige a expansão das capacidades humanas, isto é, garantias reais urgentes para o exercício da liberdade e da autonomia.

Notas

1 Cf. MEDEIROS, M.; BRITTO, T.; SOARES, F. Transferência de renda no Brasil. Novos Estudos — CEBRAP, n. 79, 2007, pp. 5-21; MEDEIROS, M.; SOARES, F. V.; SOARES, S.; OSÓRIO, R. G. Programas de transferência de renda no Brasil: Impactos sobre a desigualdade. Brasília: IPEA, 2006.

2 Para uma visão abrangente em relação ao Programa Bolsa Família, cf. SILVA, M. O. S.; LIMA, V. F. S. A. (Orgs.).Avaliando o Bolsa Família: unificação, focalização e impactos. São Paulo: Cortez, 2011; CASTRO, J. A.; MODESTO, L.(Orgs.).Bolsa Família 2003-2010: Avanços e desafios.Brasília: IPEA, 2010.

3 Cf. O’CONNOR, J. The Fiscal Crisis of the State. New Brunswick/London: Transaction Publishers, 2002; HABERMAS, J.Legitimationskrise im Spätkapitalismus.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973; CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Trad. de Iraci Poleti. Petrópolis: Vozes, 2009.

4 Marcos Nobre sugeriu recentemente o termo “social-desenvolvimentismo” para sublinhar um novo modelo de sociedade consolidado (mas não plenamente realizado) a partir do período de redemocratização do Brasil. “Segundo o novo modelo, só é desenvolvimento autêntico aquele que é politicamente disputado segundo o padrão e o metro do social, quer dizer, aquele em que a questão distributiva, em que as desigualdades — de renda, de poder, de recursos ambientais, de reconhecimento social — passam para o centro da arena política como o ponto de disputa fundamental” (NOBRE, M. Imobilismo em movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 24).

5 Cf. NUSSBAUM, M. Women and Human Development: The Capabilities Approach.Cambridge, ma: Cambridge University Press, 2000; NUSSBAUM, M, Creating Capabilities. The Human Development Approach. Cambridge, ma: Belknap, 2011; SEN,A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; SEN, A A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

6 Cf. a abordagem sobre as bases sociais e morais da experiência de “injustiça” em MOORE Jr., B. Injustiça: As bases sociais da obediência e da revolta. Trad. de João Roberto M. Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987. De maneira semelhante, ver MILLER, D. Principles of Social Justice. Cambridge, ma: Harvard University Press, 2001. Cf. também HONNETH, A. Philosophie als Sozialforschung.Zur Gerechtigkeitstheorie von David Miller. In: ______.Das Ich im Wir. Berlin: Suhrkamp, 2010, e ANDERSON, J.; HONNETH, A., A. Autonomia, Vulnerabilidade, Reconhecimento e Justiça. Tradução de Nathalie Bressiani.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo: Crítica e Modernidade, n. 17, 2011, pp. 81-112.

7 Cf. SUPLICY, E. M. O direito de participar da riqueza da nação: do Programa Bolsa Família à Renda Básica de Cidadania. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, 2007, p. 1623-1628. Cf. ainda a nova edição de SUPLICY, E. M., Renda de cidadania : A saída é pela porta. São Paulo: Cortez, 2013.

8 Cf. ROCHA, S. O Programa Bolsa Família. Evolução e efeitos sobre a pobreza. Economia e sociedade, v. 20, n. 1, 2011, pp. 113-139.

9 Cf. AMARAL, E. F. L.; MONTEIRO, V. P. Avaliação de impacto das condicionalidades de educação do Programa Bolsa Família (2005-2009).Dados, v. 56, n. 3, 2013, pp. 531-570; CACCIAMALI, M. C.; TATEI, F.; BATISTA, N. F. Impactos do Programa Bolsa Família federal sobre o trabalho infantil e a frequência escolar. Revista de economia contemporânea, v. 14, n. 2, 2010, pp.269-301.

10 Cf. MARIANO, S. A.; CARLOTO, C. M. Gênero e Combate à Pobreza: Programa Bolsa Família. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, 2009, p. 901-8; GOMES, S. S. R. Notas preliminares de uma crítica feminista aos programas de transferência direta de renda: o caso do Bolsa Família no Brasil. Contextos. Porto Alegre, v. 10, n. 1, 2011, p. 69-81; TAVARES, P. A. Efeito do Programa Bolsa Família sobre a oferta de trabalho das mães. Economia e sociedade, v. 19, n. 3, 2010, p. 613-35.

11 “O que estamos vendo, portanto, é um ciclo reformista de redução da pobreza e da desigualdade, porém um ciclo lento, levando-se em consideração que a pobreza e a desigualdade eram e continuam sendo imensas no Brasil” (SINGER, A.Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 195).

Referências

AMARAL, E. F. L.; MONTEIRO, V. P. Avaliação de Impacto das condicionalidades de educação do Programa Bolsa Família (2005 e 2009). Dados, v. 56, n. 3, 2013, pp. 531-70.

ANDERSON,  J.;  HONNETH,  A.  Autonomia,  Vulnerabilidade, Reconhecimento e Justiça. Tradução de Nathalie Bressiani. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo: Crítica e Modernidade, n. 17, 2011, pp. 81-112.

CACCIAMALI, M. C.; TATEI, F.; BATISTA, N. F. Impactos do Programa Bolsa Família federal sobre o trabalho infantil e a frequência escolar. Revista de Economia Contemporânea, v. 14, n. 2, 2010, pp. 269-301.

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Rúrion Melo – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Movimento camponês, trabalho e educação – liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação humana – RIBEIRO (TES)

RIBEIRO, Marlene. Movimento camponês, trabalho e educação – liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação humana. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 456 p. Resenha de: PREVITALI, Fabiane Santana. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.1,  jan./abr. 2013.

Importante obra escrita pela professora Marlene Ribeiro, resultado de seus estudos de pós-doutoramento realizados na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana em 2008, sob a supervisão do professor Gaudêncio Frigotto. Marlene Ribeiro é graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (1973), mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1987), doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995). Atualmente é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), na Faculdade de Educação, tendo já desenvolvido trabalhos ligados à docência e à pesquisa na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e na Universidade Católica de Pelotas (UCPEL).

A obra Movimento camponês, trabalho e educação – liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação resulta não apenas de um denso esforço teórico, mas também da experiência política da autora como militante junto aos movimentos sociais populares por 19 anos. Essa combinação entre experiência prática e acuidade teórica permitiu à autora oferecer uma contribuição de inestimável importância sobre os movimentos sociais populares rurais/do campo e de seus projetos educacionais.

O livro está dividido em seis capítulos ao longo dos quais a autora analisa de maneira instigante a história e a organização dos movimentos sociais no Brasil, tendo como foco de discussão os movimentos sociais populares rurais/do campo, suas lutas e reivindicações, avanços e retrocessos enquanto sujeitos políticos coletivos de um projeto de educação fundado na liberdade, autonomia e na emancipação humana. Em suas pesquisas, a autora destaca as experiências pedagógicas realizadas pelas Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), as Casas Familiares Rurais (CFRs), existentes em todo o país, os diferentes cursos oferecidos pela Fundação de Ensino e Pesquisa da Região Celeiro (Fundep) e pelo Instituto de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), no Rio Grande do Sul, e pela Escola de Formação Florestan Fernandes, em Guaracena, no estado de São Paulo. Apesar de a discussão centrar-se nos movimentos sociais populares rurais/do campo no Brasil, desde o século XIX até os dias atuais, a autora lança luzes também sobre as experiências histórico-concretas do movimento camponês em países como o México, a Rússia, a França, a Inglaterra e a Alemanha.

No capítulo primeiro, cujo título é “Sujeitos sociais e educação popular”, a autora analisa os conceitos de movimentos sociais populares, educação rural/do campo e educação popular a fim de identificar os movimentos sociais enquanto sujeitos sociais históricos propositores de um projeto de educação que se contrapõe “ao modelo civilizatório de escola, imposto pela modernidade” (p. 28).

No capítulo segundo, “Movimento camponês é ou não sujeito histórico?”, a autora envereda para o exame crítico das noções de liberdade, autonomia e emancipação, as quais estão incorporadas às experiências pedagógicas dos movimentos sociais populares rurais/do campo. Aqui a autora destaca as contradições presentes na realidade rural, na qual há “situações distintas de trabalho e propriedade que explicam interesses e ideologias diferentes” (p. 75).

O terceiro capítulo, intitulado “Educação rural/do campo: contradições”, traz a discussão da educação rural no conjunto das políticas públicas educacionais e, em contrapartida, as ações dos movimentos sociais populares rurais/do campo no sentido de garantir uma educação como princípio de cidadania, mas, ao mesmo tempo, reivindicar uma educação que contemple os interesses desses trabalhadores. Cabe aqui explicitar o conceito de meio rural no qual se pauta a autora: “conjunto de regiões e territórios em que as populações desenvolvem atividades diferentes, tais como: a agricultura, o artesanato, as indústrias pequenas e médias, o comércio, os serviços, a pecuária, a pesca, a mineração, a extração de recursos naturais e o turismo, entre outros” (p. 74).

No capítulo quatro, “Liberdade, autonomia, emancipação: uma construção histórica”, a autora explora os conceitos de liberdade, autonomia e emancipação por meio da retomada dos acontecimentos histórico-sociais de onde eles emergem, bem como das correntes de pensamento que os explicam, explicitando assim as visões de mundo e os posicionamentos de classes. Nesse sentido, a autora esclarece que a escolha dos autores examinados no capítulo, de Locke a Stuart Mill, passando por Kant, Hegel e Tocqueville, Marx e Engels, não foi aleatória, mas “visou responder às experiências pedagógicas dos tempos/espaços alternados de trabalho e educação” (p. 200).

A questão da relação trabalho-educação é dissecada no quinto capítulo, sob o título “Trabalho-educação no movimento camponês: origens e contradições”. A autora debruça-se sobre as origens, francesa e italiana, da pedagogia da alternância para em seguida analisar sua apropriação e recriação nas EFAs, nas CFRs, nos cursos oferecidos pela Fundep e pelo Iterra, destacando o processo de formação dessas organizações, bem como o papel desempenhado pela Igreja e pelo Estado.

A idéia de alternância, esclarece a autora, “compreende uma formação em tempo pleno com uma escolarização parcial” (p. 335). Enquanto método, a pedagogia da alternância articula, em tese, teoria e prática, “na medida em que se alteram situações de aprendizagem escolar com situações de trabalho produtivo, exige uma formação específica dos professores que as licenciaturas de um modo geral não oferecem” (p. 292). Destaca-se, portanto, que a característica fundante desse método é o “trabalho como princípio educativo de uma formação humana integral, que articula dialeticamente o trabalho produtivo ao ensino formal” (p. 293). Nesse sentido, a pedagogia da alternância vem sendo apropriada pelos diferentes movimentos sociais populares vinculados ou não à luta pela terra e também por diversas organizações sindicais de trabalhadores, explicitando “as divergências relacionadas aos projetos sociais que sustentam as experiências pedagógicas enfocadas” (p. 329).

Como exemplo dessa divergência, a autora evidencia a alternância entre escola e empresa, “tendo essa o significado dos tempos/espaços alternados entre ensino na escola e trabalho de estágio na empresa, com remuneração, porém sem amparo em direitos sociais” (p. 334), explicitando a divergência de interesses entre capital e trabalho, especialmente em um contexto marcado pelo desemprego. Outro elemento de destaque na argumentação da autora refere-se à formação dos trabalhadores assentados, vinculados ao Movimento dos Sem Terra (MST), uma vez que se trata da formação para permanência no campo sem que haja a garantia de posse da terra. Nesse contexto, “apesar do esforço realizado pelos movimentos sociais populares, buscando uma educação voltada para os seus interesses, essa formação é inócua se os jovens não dispuserem de terra para desenvolverem um trabalho e organizarem uma família” (p. 338).

O sexto e último capítulo da obra, “Liberdade, autonomia, emancipação – EFAs, CFRs, Fundep e Iterra”, tem como objeto a problematização da compreensão dos conceitos de liberdade, autonomia e emancipação pelos movimentos sociais populares rurais/do campo, especialmente no âmbito das EFAs, CFRs, do Fundep e do Iterra. De acordo com a autora, prima-se assim por ressaltar as práticas desenvolvidas nessas organizações, seus avanços e limites no seio da ordem capitalista. Para a autora, as EFAs e as CFRs apresentam diferenciais conceituais e metodológicos em relação ao Fundep e ao Iterra, uma vez que são inspirados por teorias pedagógicas distintas. No entanto, apesar das diferenças e para além delas, as práticas pedagógicas estão, segundo a autora, fundadas na crítica da apropriação privada da produção de bens materiais e culturais presente na sociedade capitalista. Assim, “esboços de um projeto de educação integral1 integram o projeto social dos movimentos sociais populares, sinalizando para uma sociedade em que as classes populares possam exercer a liberdade, ter autonomia em seus processos organizativos e conquistar a emancipação verdadeiramente humana” (p. 418). Apesar das diferenças teórico-metodológicas, a autora destaca a presença de Paulo Freire nas experiências de tempos/espaços alternados de trabalho agrícola e educação escolar realizadas pelas EFAs, CFRs, do Fundep e do Iterra.

Portanto, tratando de temas relevantes de forma instigante, o livro da professora Marlene Ribeiro é um dos mais qualificados e densos estudos sobre a relação trabalho-educação nos movimentos sociais rurais/do campo no Brasil atualmente, resultado de uma pesquisa rigorosa e de sólida análise. A autora demonstra com particular competência a sua tese: como a educação popular construída pelos movimentos sociais populares, em particular o movimento camponês, assume, como processualidade, uma possibilidade emancipatória2, isto é, um projeto coletivo de transformação social, para além das concepções de liberdade e de autonomia presentes no seio da sociedade burguesa.

Pela atualidade e importância do tema, esse livro é uma leitura indispensável aos estudiosos e todos os demais interessados em não somente compreender o processo social em curso mas também transformá-lo.

Notas

1 Grifos da autora.
2 Grifos nossos.

Fabiane Santana Previtali – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais, Brasil. E-mail: [email protected]

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[MLPDB]

Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo – FORS (NC-C)

FORST, Rainer. Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Trad. Denilson Luis Werle. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: MELO, Rúrion. Automonia, justiça e democracia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.88, Dez, 2010.

Um dos traços mais característicos da “renovação” da teoria crítica hoje é o enfrentamento dessa tradição de pensamento com o problema da legitimidade e da dimensão normativa das instituições políticas1. Cada vez menos os temas considerados pelas teorias críticas da sociedade permitem que se conclua pela “impossibilidade da democracia”2, levando antes à formulação de novos diagnósticos vinculados a uma concepção de crítica social mais radicalmente política e pluralista. Quando Seyla Benhabib alerta que “a negligência quanto a uma tal teoria política e democrática é um dos principais pontos cegos da teoria crítica da Escola de Frankfurt”3 e Jean Cohen e Andrew Arato chamam atenção insistentemente para o fato de que “a teoria crítica não pode mais manter seus propósitos práticos sem uma teoria política”, uma vez que “a crítica da razão funcionalista precisa ser complementada por uma teoria da democracia”4, esses autores sintetizam uma mudança fundamental na relação entre teoria social e filosofia política partilhada por diversos autores explicitamente filiados à tradição de pensamento que, desde Theodor Adorno e Max Horkheimer, se tornou conhecida como teoria crítica da sociedade5. Essa mudança teórica no projeto original esteve orientada, em linhas gerais, à investigação das “bases normativas da teoria crítica”6, ao vínculo entre o “potencial radical da democracia” e o “legado da Escola de Frankfurt”7, à retradução do núcleo crítico-emancipatório no interior da “programática democrática”8.

Para entendermos melhor o que estaria em jogo nessa mudança de projeto teórico, podemos recorrer brevemente à caracterização do que Axel Honneth chamou de “fraqueza teórica” da primeira geração da teoria crítica, ou seja, àquela formulação ligada principalmente aos nomes de Horkheimer e Adorno. Embora ambos tivessem recusado a referência de Marx à categoria do “trabalho” como conceito determinante da análise crítica da sociedade e da respectiva orientação emancipatória, os principais representantes da primeira geração permaneceram fechados diante de “todas as tentativas de considerar o processo histórico de um ponto de vista outro que não o do desenvolvimento do trabalho social”9. Esse fechamento acabou levando à desconsideração da dimensão da ação social, na qual convicções morais e intuições político-normativas se constituem independentemente, e priorizou, na interpretação dos processos sociais, as funções de expansão e reprodução do trabalho social. Em suma, subsistiria um “reducionismo funcionalista”, já presente em Marx, responsável por restringir a história humana a uma concepção instrumental de ação. A segunda geração começou a questionar decisivamente os déficits teóricos nos fundamentos normativos da primeira teoria crítica, lançando mão, sobretudo, de outro tipo de ação social que pudesse ao menos ser concebido ao lado do trabalho, e assim abrir caminho à análise da integração social e da dimensão normativa da interação social.

Jürgen Habermas foi o autor dessa tradição que primeiro trouxe à consciência teórica o diagnóstico de que “se esgotou a utopia da sociedade do trabalho”10 e pensou explicitamente o projeto futuro da teoria crítica segundo a necessidade de “superar o paradigma produtivista, sem abrir mão das intenções do marxismo ocidental”11. Representante mais importante da segunda geração da teoria crítica, Habermas desenvolveu diagnósticos significativos sobre a esfera pública e temas da moral, do direito e da democracia, buscando eliminar o que entendeu ser o déficit nos fundamentos normativos da crítica social. Também Axel Honneth, não obstante procurasse superar vários aspectos da teoria habermasiana, seguiu explicitamente a crítica ao paradigma produtivista, estabelecendo, agora na terceira geração, uma rica articulação entre crítica e filosofia social. Sua teoria do reconhecimento pretende compreender as formas de reivindicação política assim como a natureza específica dos conflitos e das lutas existentes nas sociedades contemporâneas. Uma das preocupações centrais de seu principal livro,Luta por reconhecimento, consistiu em investigar a lógica dos conflitos sociais, insistindo na necessidade de apresentar a dinâmica de tais conflitos a partir de sua gramática moral implícita12.

A renovação representada pelas segunda e terceira gerações da teoria crítica implicou, portanto, a inclusão de categorias que permitissem explicar mais adequadamente as novas formas de luta política e de mobilização cultural que ampliaram os sentidos da emancipação e configuraram atualmente os dilemas e os desafios da democracia contemporânea. Abandonaram-se necessariamente as orientações emancipatórias presas ao paradigma produtivista e se estabeleceu um rico diálogo entre a crítica da sociedade e concepções normativas preocupadas com questões de justiça política e social, com a dinâmica política de esferas públicas autônomas, com a participação da sociedade civil e com as lutas por reconhecimento (em que estão envolvidos os dilemas criados por diferenças culturais, orientação sexual, gênero, raça etc.) , ou seja, âmbitos de conflitos sociais que requerem uma reflexão renovada sobre a moral, a política e o direito.

Essa rápida e esquemática referência à história da teoria crítica tem o intuito de posicionar o livro de Rainer Forst, Contextos da justiça, no interior dessa mesma tradição teórica. Podendo ser considerado membro de uma “quarta geração” da teoria crítica, Forst voltou-se essencialmente para as questões do pensamento político contemporâneo e foi responsável por uma rigorosa reconstrução de um dos mais importantes debates filosóficos da atualidade no campo das teorias normativas. Suas preocupações teóricas giram em torno da articulação entre crítica social e filosofia normativa, da reconstrução dos temas clássicos do pensamento político moderno e do enfrentamento dos dilemas contemporâneos ligados às questões de justiça, tolerância, cidadania e direitos humanos13. Esse rico estoque de problemas indica de certo modo que aquele ponto cego denunciado por muitos autores entre a filosofia política e a tradição da teoria crítica vem sendo superado desde a segunda geração14. O passo inicial mais significativo de Forst resultou no exaustivo estudo sobre a justiça política e social a partir de uma visão sistemática e crítica do conhecido debate entre liberais e comunitaristas.

Contextos da justiça, que acabada de ser publicado no Brasil em rigorosa tradução de Denilson Luis Werle, procura analisar criticamente as respostas oferecidas à questão da justificação das normas que tornam legítimas relações jurídicas, políticas e sociais no interior de uma comunidade política. Além de contribuir para o esclarecimento dos conceitos fundamentais das teorias da justiça, Forst pretende também superar a oposição consolidada entre liberalismo e comunitarismo, apresentando uma proposta de solução conceitual própria. Seguindo uma rígida oposição entre os dois polos que compõem o debate analisado, os liberais procuraram fundamentar moralmente uma teoria da justiça abstraindo os contextos sociais concretos e priorizando as liberdades individuais em face de concepções substantivas do bem. Os comunitaristas, por sua vez, criticaram essa tese liberal da prioridade do justo perante o bem e enfatizaram o enraizamento da justificação normativa de concepções de justiça em autocompreensões e tradições constitutivas das comunidades políticas, de modo que só poderiam ser considerados justos aqueles princípios que resultam de um determinado contexto comunitário, e somente ali podem pretender validade. Todas as teorias que sublinham a prioridade do justo diante do bem acabam se mostrando “indiferentes ao contexto”, ao passo que a teoria comunitarista reforça uma posição “obcecada pelo contexto” (p. 11). Forst, indo além dessa oposição, acredita ser necessário formular uma teoria crítica da justiça capaz de justificar o ancoramento dos princípios normativos nos valores, nas práticas e nas instituições da comunidade política, compatibilizando dessa maneira os aspectos universalistas com a reivindicação de validade daqueles princípios para a autocompreensão e instituições sociais específicas.

A solução conceitual de Forst para os dilemas criados no interior do debate sobre a justiça leva em consideração quatro “contextos de problemas teóricos” em que aspectos da justificação normativa oferecidos por liberais ou comunitaristas podem se mostrar mais ou menos adequados. O próprio conteúdo do livro, portanto, divide-se nesses quatro planos conceituais críticos. Primeiramente, abordam-se criticamente a constituição do self e os pressupostos de uma concepção atomista de pessoa, típicos da formulação liberal; em segundo lugar, Forst critica a neutralidade do direito diante de visões de mundo e concepções sobre a vida boa que caracteriza a tese liberal da prioridade do justo sobre o bem; em seguida, o texto apresenta uma análise crítica da aposta comunitarista na força eticamente integradora da comunidade política; em quarto lugar, por fim, analisa criticamente a teoria moral universalista e seu vínculo a contextos concretos de justificação. Em cada um desses planos se esclarecem as posições antagônicas de justificação da justiça, as quais permaneceriam, numa “perspectiva horizontal”, meramente excludentes.

Forst pretende mostrar a possibilidade de “superar” tais oposições tradicionais segundo uma “perspectiva vertical” a partir de sua tese dos “contextos da justiça”. Uma teoria crítica da justiça precisa antes considerar as necessidades que podem surgir no contexto de socialização dos indivíduos e serem justificadas publicamente em dimensões ao mesmo tempo diferenciadas e interrelacionadas. Argumentos universalistas, pretensões de neutralidade jurídica e dimensões axiológicas compõem os contextos de reconhecimento e de justificação pública nos âmbitos da moral, do direito, da ética e da política. “Eles formam”, comenta Forst,

[…] quatro “contextos” de reconhecimento recíproco – como pessoa ética, pessoa do direito, cidadão(ã ) com plenos direitos, pessoa moral – que correspondem a diferentes modos de justificação normativa de valores e de normas em diferentes “comunidades de justificação”. A análise do debate entre teorias deontológico-liberais “que se esquecem dos contextos” e teorias comunitaristas “obcecadas pelo contexto” levou, com isso, a uma diferenciação de quatro contextos normativos nos quais as pessoas estão “situadas” (p. 275).

Desse modo, aquelas clássicas oposições entre “eticidade” e “moralidade”, bem e justiça, são vinculadas a processos de justificação da normatividade em que formas de vida culturais e políticas e determinações substantivas da justiça encontram-se atreladas a direitos e procedimentos imparciais. “Portanto”, segue o autor, “princípios de justiça são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que correspondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos daqueles atingidos por eles” (p. 276). Pretende-se assim evitar uma “cegueira” em face dos contextos, bem como apontar os limites das orientações contextualistas que desconhecem o núcleo universalista das reivindicações por justiça. A harmonização desses diferentes contextos requer uma teoria da justiça que possa reuni-los de um modo mais adequado.

A reconstrução do debate entre liberais e comunitaristas apresentada no livro evita, por conseguinte, a mera defesa de uma ou outra posição, privilegiando avaliá -los como abordagens parciais para o problema da justiça. Para que seja suficientemente abstrata e concreta ao mesmo tempo, uma teoria crítica da justiça assume o vínculo essencial entre pessoas e comunidades e parte do ancoramento dos princípios de justiça a toda comunidade política. A oposição normativa entre universalismo e contextualismo só pode ser superada se trouxermos para o centro da discussão a questão de quais conceitos de pessoa e comunidade estão em jogo. A solução conceitual de Forst complementa criticamente as proposições globais tradicionais ao distinguir quatro conceitos de pessoa (pessoa ética, pessoa de direito, cidadão e pessoa moral) e de comunidade (ética, jurídica, política e moral) que correspondem a quatro contextos normativos diferentes e entrelaçados de modo complexo:

A identidade ética das pessoas é reconhecida e protegida juridicamente numa sociedade e, na verdade, por meio do direito estatuído de modo político autônomo no interior de uma comunidade política de membros com plenos direitos – direito esse que possui um conteúdo moral em seu cerne, que respeita a integridade de pessoas morais (p. 276).

O propósito crítico da diferenciação e da articulação dos diversos contextos consiste menos na separação entre o plano ético, jurídico, político e moral, do que na possibilidade de “comprovar a compatibilidade dos direitos individuais com o bem da comunidade, da universalidade política com a diferença ética, do universalismo moral com o contextualismo”, permitindo desse modo “evitar oposições falsas” (p. 13).

Podemos chegar às diferenciações internas que compõem os contextos aludidos considerando as relações entre pessoa e comunidade. A teoria liberal tendeu a desvincular o indivíduo de seus contextos de socialização ao priorizar uma concepção abstrata de pessoa como portadora de direitos ou como pessoa moral. As críticas republicanas e comunitaristas mostraram, ao contrário, que toda pessoa se individualiza nas comunidades em que são integradas. Porém, não sabemos ainda a quais comunidades pertencem as pessoas e quais são as normas e os valores que as integram. Se para o liberal a justiça está fundada num conceito abstrato de pessoa de direito – como portadora de direitos subjetivos e como sujeito de direito -, para o defensor do contextualismo toda pessoa está integrada eticamente a uma determinada comunidade de valores. Embora Forst também não acredite ser necessário reduzir um âmbito ao outro, “verticalmente” é possível justapô -los de acordo com contextos de justificação diferentes e igualmente legítimos: enquanto considero a comunidade político-jurídica e sua integração normativa segundo uma concepção política e pública de justiça, compreendo os indivíduos como pessoas que portam direitos; já as comunidades éticas se integram por diferentes tipos de concepções do bem – e não com base na imagem abstrata e universal da pessoa de direito -, de modo que a pessoa ética se torna, dessa perspectiva, membro de determinadas comunidades com as quais a identidade do self está vinculada. As relações éticas (constituídas por visões de mundo e concepções de bem ) não substituem relações jurídicas (em que se trata de atentar para direitos e deveres que formam a estrutura de relações reguladas juridicamente). Como diz Forst, “uma coisa é reconhecer uma pessoa como igual portador de direitos; outra coisa é reconhecê -la em todas as suas qualidades” (p. 40). O direito igual justifica-se segundo normas e princípios que pretendem ser universalmente válidos sem que recorramos a concepções de bem e valores particulares. Não importa quais concepções éticas e valores estão em jogo, normas jurídicas (bem como normas morais) têm de valer “para todos”: no caso do direito, as normas jurídicas valem para todos os parceiros do direito considerados membros de uma comunidade jurídica; normas morais, por sua vez, valem para todas as pessoas morais consideradas membros da comunidade dos seres humanos. A validade de normas éticas, contudo, depende da identificação dos indivíduos com determinados valores que formam suas identidades do ponto de vista de sua história de vida.

Um dos principais conceitos utilizados por Forst nas quatro dimensões como mediação para redefinir os conceitos de pessoa de direito, cidadania ou de uma moral universalista em contextos intersubjetivos diferenciados é o de autonomia. “Segundo esse conceito”, afirma Forst,

[…] as pessoas como agentes são, no sentido prático, seres “autônomos” autodeterminantes quando agem de forma consciente e fundamentada. Como tais são responsáveis por suas ações: podem ser questionadas acerca das razões pelas quais agiram. Como pessoas responsáveis, são aquelas “que se justificam” e esperamos que tenham considerado suas razões para agir, sendo capazes de justificá -las. Nesse sentido, as pessoas autônomas são razoáveis em termos de razão prática: possuem razões para agir que podem ser justificadas para elas mesmas e comunicadas e defendidas diante de outras, de modo que essas razões […] possam ser compartilhadas (p. 305).

Contudo, também uma diferenciação nos “contextos da autonomia” poderá nos mostrar quais questões práticas e quais respostas autônomas podem se apoiar em razões capazes de ser publicamente reconhecidas. A “autonomia ética” está ligada à validade de valores éticos e à autorealização da pessoa; a “autonomia jurídica” é característica de pessoas de direito e é assegurada a todos os destinatários do direito; a “autonomia política” é exercida pelo cidadão considerado autor dos direitos; e a “autonomia moral” é pressuposta nas pessoas como autoras e destinatárias de normas morais. A justificação normativa exercida nos distintos contextos pode validar argumentos e princípios de justiça em referência à autorealização ética, à liberdade pessoal de ação, à autolegislação política ou à autodeterminação moral. Em tais contextos novamente a própria constituição do self (em que a pessoa ética é considerada membro de uma comunidade constitutiva da identidade) pode se distinguir da pessoa de direito (membro de uma comunidade de direito), bem como o cidadão (que pertence à comunidade política) desempenha um papel diferente daquele da pessoa moral (pertencente à comunidade moral de agentes moralmente autônomos). Liberais e comunitaristas não compreenderam justamente que nenhuma dessas concepções de autonomia pode pretender ser a única válida como base da justiça. Por essa razão, a tarefa da análise crítica é saber como integrá-las, compatibilizá-las e perceber quando entram em conflito “de modo que uma dimensão não seja sacrificada em nome das outras” (p. 306).

O livro não se limita à analise crítica dos argumentos normativos sobre a justiça. Há também um importante balanço sobre os princípios de legitimação do poder político em sociedades complexas e pluralistas. Forst amplia o quadro de discussão analisando princípios de justificação pública ao debater com as correntes deliberativas da democracia, com a crítica feminista do liberalismo, dilemas multiculturais e com a literatura sobre a sociedade civil. Sua intenção é pensar criticamente os pressupostos socioculturais das sociedades democráticas, ou seja, entender como os cidadãos se compreendem como membros de uma comunidade política e sob quais condições justificam publicamente normas que retiram sua legitimidade de discursos democráticos. A crítica de Forst implica pensar a relação entre cidadania e justiça social a partir de um ethos democrático constitutivo das práticas de justificação da normatividade sem cair, contudo, na oposição liberal/comunitarista. Mesmo que os próprios cidadãos precisem se compreender como participantes e responsáveis na regulação e na ação políticas, não são os valores éticos compartilhados que orientam legitimamente suas pretensões por reconhecimento e realização de direitos. Orientam-se antes pelo ideal de cidadania ativa, de modo que ethos da democracia não consiste senão na realização das dimensões da própria autonomia do cidadão.

Forst mantém, assim, uma atitude crítica diante das teorias normativas existentes. Na verdade, Contextos da justiça não pretende ir além dessa análise exaustiva das justificações normativas contidas nos discursos teóricos que compõem o amplo debate entre liberais e comunitaristas, ficando para seu outro livro a tarefa de compatibilizar uma reconstrução teórica com a dimensão histórica, como no caso, por exemplo, dos fenômenos da tolerância15. De todo modo, não há teoria crítica sem que se enfrente as teorias capazes de representar da melhor maneira os problemas de nossa época. Assim como fez Marx em seu tempo ao empreender uma “crítica da economia política”, a tarefa atual implica necessariamente uma crítica das mais importantes correntes teóricas vigentes – embora não mais da economia política, mas sim da filosofia política contemporânea com sua pauta de problemas e desafios ligados à moral, ao direito e à democracia.16 E para tanto, a análise crítica não oferece uma “nova” teoria da justiça, apenas acusa a parcialidade das oposições vigentes, reconstruindo seu sentido. Nessa relação com a filosofia política, a teoria crítica também não precisa abrir mão dos fundamentos normativos em que se apoiam tais teorias, bastando justificá -los de forma mais adequada em face dos complexos contextos da justiça.

Notas

1 Cf. NOBRE, M. “Teoria crítica hoje”. In: KEINERT, M. e outros (orgs.). Tensões e passagens: filosofia crítica e modernidade. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, pp. 265-83.
2 AVRITZER, L. “Teoria crítica e teoria democrática”. Novos Estudos Cebrap, nº 53, 1999, pp. 167-188. [Links] 3 BENHABIB, S. Critique, norm, and utopia: a study of the foundations of critical theory. Nova York: Columbia University Press, 1986, p. 347. [Links] 4 ARATO, A. eCohen, J. “Politicsand the reconstruction of the concept of civil society”. In: HONNETH, A. e outros (orgs.) .Zwischenbetrachtungen: Im Prozess der Aufklärung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1989, p. 493. [Links] 5 Cf. HONNETH, A. “Teoria crítica”. In: GIDDENS, A. e TURNER, J. (orgs.) . Teoria social hoje. São Paulo: Editora da Unesp, 1999, pp. 503-52. Ver também Nobre, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
6 BENHABIB, op. cit., p. ix. [Links] Ver também BAYNES, K.The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls, Habermas. Nova York: Albany, 1991. [Links] 7 BOHMAN, J. Public deliberation: pluralism, complexity, and democracy. Massachussetts: MIT, 1996, p. 20. [Links] 8 WELLMER, A. “Bedeutet das Ende des’realenSozialismus’auchdasEnde des Marxschen Humanismus?”. In: Endspiele: Die unversöhnliche Moderne. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1993, p. 91. [Links] 9 HONNETH, op. cit., p. 517. [Links] 10 Cf. HABERMAS, J. “Volkssouveränität als Verfahren”. In:Faktizität und Geltung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1998, p. 602.
[11] Ibidem. “Ein Interview mit der New Left Review“. In: Die Neue Unübersichtlichkeit. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1985, p. 217.
12 Cf. HONNETH. A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
13 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003; Ibidem. “Os limites da tolerância”. Trad. Mauro Soares. Novos Estudos Cebrap, nº 84, 2009, pp. 15-29; Ibidem. Das Recht auf Rechtfertigung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2007; Forst e outros (org). Sozialphilosophie und Kritik. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2009. Ver também seu programa de pesquisa social desenvolvido ao lado de Klaus Günther, “Innenansichten: Über die Dynamik normativer Konflikte”. In: Forschung Frankfurt 2/2009. O subtítulo de seu próximo livro (no prelo) remete a uma junção explícita entre filosofia política e teoria crítica, a saber, “perspectivas de uma teoria crítica da política”. Cf. Forst. Kritik der Rechtfertigungsverhältnisse: Perspektiven einer kritischen Theorie der Politik. Frankfurt/M: Suhrkamp (no prelo).
14 Os limites existentes nessa “virada normativa” não foram desconsiderados mesmo por aqueles que se preocupam com uma renovação da tradição da teoria crítica. Cf. Honneth. “Das Gewebe der Gerechtigkeit. Über die Grenzen des zeitgenössischen Prozeduralismus”. In: Das Ich im Wir: Studien zur Anerkennungstheorie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2010, pp. 51-77.
15 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt, op. cit.
16 Cf. o programa de pesquisa apresentado em Forst e Günther, op. cit.

Rúrion Melo – Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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Brazilian Foreign Policy in Changing Times: the quest for autonomy from Sarney to Lula | Tullo Bigevani e Gabriel Cepaluni

Ao final da primeira década do século XXI, a visibilidade do Brasil no sistema internacional tornou-se mais evidente, graças, em grande medida, ao sucesso alcançado pelo país nos campos econômico e político-diplomático. Percebeu-se, em contraste, a existência de uma grande carência na literatura internacional, a qual, muito ocasionalmente, desvia seu foco dos países centrais do sistema internacional. Neste sentido, a obra de Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni aqui apresentada preenche uma importante lacuna editorial não apenas por ser publicada em língua inglesa, mas sobretudo por permitir que o público estrangeiro conheça as grandes linhas da política externa brasileira tanto do ponto de vista teórico quanto empírico, por meio do estudo de vasta literatura produzida por pesquisadores latino-americanos.

O tema central do livro é a busca brasileira por autonomia, desde a segunda metade dos anos 1980 – com a inauguração do regime democrático – até 2009. Segundo os autores, a noção de autonomia (capítulo 1) é entendida pelos latino-americanos como a capacidade de se proteger contra os efeitos mais nocivos do sistema internacional e dos constrangimentos impostos por países poderosos. Vigevani e Cepaluni explicam que a autonomia se expressa por meio de três táticas distintas: pela distância perante países dominantes; pela participação ativa em instituições internacionais; e pela diversificação de parcerias e fóruns de atuação. Leia Mais