Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929) – MAUCH (RTF)

MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2017. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 2, ago.-dez., 2019.

O trabalho desenvolvido por Cláudia Mauch se apresenta como uma importante referência para o estudo da História da polícia. Nele o leitor encontrará uma análise minuciosa sobre a história policial e o trabalho dos policiais na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, entre os anos de 1896 e 1929. Embora não seja a pretensão dessa obra, ela preenche uma lacuna deixada pela historiografia que versa sobre a temática, sobretudo devido a perspectiva escolhida pela autora para discutir o papel dos policiais no processo de policiamento desse universo.

Logo no início dessa obra, a autora desempena um balanço historiográfico a respeito da história da polícia, pontuando nesse processo algumas considerações que sugerem novas possibilidades de trabalho referente à temática. Para tal, a pesquisadora aponta um conjunto muito diversificado de documentos, cuja variedade de fontes e as metodologias utilizadas no seu tratamento se traduzem numa riqueza em detalhes do universo sociocultural analisado. Nesse sentido, o volume documental utilizado para a realização do trabalho, juntamente com a capacidade de análise da autora é algo invejável a qualquer pesquisador.

As considerações presentes no livro, a respeito da história da polícia, nos ajudam a pensar que a decisão tomada por um policial acerca do que deveria ser feito na sua prática cotidiana estava prevista não só na lei e nos regulamentos. Amparada em algumas referências importantes sobre essa questão, a obra nos leva ao entendimento que essa prática era balizada tanto pela lei e regulamentos da instituição a qual os policiais pertenciam, quanto pelas avaliações que os mesmos faziam dos acontecimentos e dos indivíduos neles envolvidos.

Com certa maestria, a autora nos induz ao melhor entendimento acerca do estudo da História da polícia. E amparada num referencial bibliográfico temático atual e muito rico, Cláudia Mauch desenvolve uma significativa contribuição, envolvendo discussões teóricas, reflexões conceituais muito pertinentes à temática. Além disso, seu trabalho apresenta um amadurecimento metodológico que possibilita novos horizontes aos estudiosos dessa área.

A obra é organizada em três capítulos, com os quais a autora apresenta uma argumentação mais sistematizada sobre a história da polícia e do trabalho dos policiais na cidade de Porto Alegre, entre os anos de 1896 e 1929. A autora analisa mais especificamente o sistema policial organizado e montado pelo governo do estado do Rio Grande do Sul a partir de 1896. Para além dessa tarefa, o objetivo é nos mostrar o funcionamento desse sistema policial montado no final do século XIX, sobretudo os seus desdobramentos na Primeira República. Nesse sentido. Longe de fazer uma história puramente descritiva, Cláudia Mauch aponta alguns elementos muito importantes para melhor entender como ocorreu esse processo, pois as tensões políticas da época estavam circunscritas nessa implantação. Isso induz o leitor ao entendimento das dificuldades vivenciadas pelas autoridades para a implantação das polícias dessa capital, bem como dos limites orçamentário e outros problemas que foram enfrentados nesse projeto, tendo em vista as disputas políticas daquele contexto.

Esta análise aponta como as instituições policiais de uma forma mais ampla e os policiais em suas particularidades eram vulneráveis aos conflitos políticos da sociedade na qual estavam cincunscritos. Na realidade por ela estudada, a polícia se inseria num jogo político local, o que, em alguns momentos, tornava o ambiente de trabalho muito tenso e, de certa forma, pode ter comprometido a função das instituições policiais no que diz respeito ao zelo pela segurança pública.

A argumentação da autora sugere que naquele contexto, os governantes e as autoridades policiais definiam algumas prioridades específicas para atuação das polícias estadual e municipal. E neste caso, tais prioridades se definiam a partir dos interesses políticos do grupo que governava. Em meio a uma explanação dos esforços para se montar esse sistema policial, a obra destaca como ele buscou responder aos desafios que a urbanização e sua transformações impunham a esse projeto de policiamento. Além dessas questões urbanísticas, o livro mostra as tensões enfrentadas no relacionamento entre Polícia Judiciária e Polícia Administrativa, como algo que limitava o policiamento local.

A sugestão dos argumentos apresentados ao longo o primeiro capítulo, indica que o sistema policial projetado pelas lideranças republicanas do final do século XIX não era algo estático. Esse projeto de policiamento, embora influenciado por toda carga ideológica e política das elites locais, fora implantado com alguns objetivos específicos, mas se reformulou e adaptou aos desafios impostos naquele contexto.

Cláudia Mauch constrói uma história social dos policiais, enfatizando esses sujeitos como um grupo de trabalhadores. Ao fazer isso, a autora sugere uma perspectiva historiográfica que se baseia em novas interpretações referente aos sujeitos históricos. Para tal, ela recorre a um estudo quantitativo dos registros pessoal da Polícia Administrativa de Proto Alegre, tomando como ponto de partida para sua investigação histórica, os registros contidos nos livros de matrícula desses indivíduos. E com base nessa documentação, mais especificamente em alguns aspectos fornecidos pela fonte referente à vida desses sujeitos, a saber, procedimentos de recrutamento, percentual de renovação dos quadros, punições e promoções, bem como o tempo de permanência de seus ingressantes, a historiadora, de forma muito competente, traça um perfil social dos policiais municipais, bem como da instituição em questão.

Em meio a um vasto universo numérico, o leitor se depara com uma articulação entre uma análise quantitativa muito substancial e um um conjunto de críticas sobre esse universo quantitativo. Suas explanações quantitativas são conectadas a alguns casos que a autora busca mostrar ao leitor como algumas questões se davam na prática. Longe de ser um capítulo meramente descritivo sobre o perfil social dos policiais municipais e das ações da instituição, Cláudia Mauch nos presenteia com uma bela articulação entre uma perspectiva quantitativa e uma análise mais reflexiva sobre esse universo. Para tal, a autora recorre à alguns gráficos e tabelas que destacam o universo numérico que ela encontrou, sobre idade, escolaridade, origem, estado civil, profissão anterior, conduta profissional na polícia, tempo de permanência na instituição, dentre outras questões que são pontuados no livro.

Ao logo do texto, a autora nos mostra uma proeza muito importante para os estudos da história da polícia, quando a mesma destaca a trajetória desses policiais, seus dramas, indisciplina, relações de apadrinhamento, personalidades. Elementos estes que apontam para perfis dos homens que compunham aquela polícia; indivíduos que formavam o corpo policial de Porto Alegre no contexto em análise. Com base numa vastidão numérica, a historiadora enfatiza os limites e incongruências que faziam parte do corpo policial dessa cidade, destacando que poucos faziam da polícia uma carreira ou profissão.

Nesse sentido, o livro proporciona ao leitor, compreender como funcionava o recrutamentos daqueles “agentes da ordem”, suas origens sociais, bem como a trajetória de muitos deles. A partir desse perfil mais amplo desenhado pela obra sobre esses indivíduos, é possível identificar algumas trajetórias de certos policiais.

Baseada nos relatórios judiciais, registros de ocorrências e inquéritos administrativos, Cláudia Mauch discorre sobre os inúmeros conflitos e situações em que os policiais se envolveram. Seu propósito é analisar as condições de vida e trabalho desses sujeitos. Em meio a essa questão, a autora discute elementos que fundamentavam as representações policiais sobre “autoridade” e masculinidade. Para tal, Cláudia Mauch recorre a uma gama de referências para discutir questões referentes à ambiguidade da posição de classe dos policiais e da cultura policial, sobretudo a partir das relações que esses policiais estabeleciam com a vizinhança. A obra destaca que era muito comum os conflitos envolverem questão da honra masculina, algo que catalizava as relações desses indivíduos.

Uma das intensões da autora é entender até que ponto as relações estabelecidas pelos policiais refletiam distanciamento daqueles grupos que as autoridades buscavam vigiar. Ela salienta que em meio a esse suposto distanciamento havia uma forte aproximação, pois, geralmente, eles faziam parte do mesmo universo sociocultural policiado. Vigiar a vizinhança não era uma tarefa tão simples, pois é possível que os problemas desse universo mais aproximavam os policiadores que os afastavam dos grupos menos privilegiados. Circunscrito em meio aos problemas cotidianos, a honra se tornava um elemento que impulsionava a violência e dificultava mais as relações. Em alguns momentos, a noção de “autoridade” é apontada pela autora como algo que acirrava essas relações, motivando confusões e mortes.

“Dizendo-se autoridade” é uma obra na qual o leitor encontrará uma mescla entre rigor acadêmico e leveza na escrita. No término da leitura, temos o entendimento que se trata de uma grande contribuição para a História da polícia, presente numa obra de fácil compreensão para a o público em geral. Portanto, fica o convite para que o leitor tire suas próprias conclusões referente a este significativo livro.

Wanderson B. de Souza – Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Possui graduação pela UNEB. Tem experiência na área de História, com ênfase nos seguintes temas: História da Polícia e da Criminalidade, Identidade, Violência Urbana, Relações de Poder, Diversidade e Cidadania; Tenho atuado como formador em cursos de capacitação/atualização de professores para ao Ensino de História, com ênfase em História da África e Cultura Afro-Brasileira. Colaborador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afro-brasileiros – AFROUNEB/UNEB.

O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862) – CARATI (HU)

CARATTI, J.M.. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2013. 454 p. Resenha de: VOGT, Debora Regina. Os limites da fronteira na posse dos cativos após o fim da escravidão no Uruguai. História Unisinos n.20 n.3 – setembro/dezembro de 2016.

A história do cotidiano, das disputas internas que muitas vezes não estão claras nos documentos, durante muito tempo passou alheia à historiografia. Interessava-nos a história global, das estruturas do sistema e do movimento maior que a tudo envolvia. O fenômeno da micro-história demonstra a mudança de visão sobre o passado. Nesse sentido, não é mais somente a grande estrutura que nos interessa, mas os indivíduos que fazem parte do jogo e que sentido eles deram para os contextos em que viveram. O Menocchio2, de Carlos Ginzburg, tornou-se inspiração para muitos personagens que desvendam uma faceta historiográfica que há algum tempo era desconhecida.

No entanto, é preciso salientar que o acesso a esses “homens e mulheres comuns” em geral não ocorre por suas falas autorais. Nós os encontramos nos documentos da justiça, no julgamento da Inquisição – caso de Menocchio – ou em outras fontes em que suas falas aparecem como testemunhos. Isso não invalida essa narrativa, mas demonstra a busca por esses sujeitos, que, por não representarem a elite letrada, muitas vezes estiveram distantes da historiografia.

Essas histórias são excepcionais ao mesmo tempo em que são normais, ou seja, ao mesmo tempo em que têm seus dramas particulares, também são coletivas, já que compartilham experiências com inúmeros indivíduos contemporâneos. No caso da pesquisa em questão, os indivíduos compartilharam a vida fronteiriça, sofrendo os impactos das relações do império com o Prata, especialmente o Uruguai.

Tais fenômenos estiveram presentes também na historiografia sobre a escravidão, e o livro de Jônatas Caratti se insere nessa linha. Assim, autores como Azevedo (2006), Grinberg (2006) e Pena (2006) são exemplos na visão do escravo como personagem, que tem desejos, voz e luta também por sua liberdade. Esses trabalhos analisam, por exemplo, a atuação de advogados abolicionistas nos pleitos através das ações de liberdade, de manutenção da liberdade e da reescravização.

Nesse contexto, são analisadas as disputas, acomodações e transformações da vida escrava e suas diversas formas de luta pela liberdade. Da mesma forma como Menocchio, os personagens em geral nos falam indiretamente através das fontes – a fala dos escravos é terceirizada –, mas nem por isso são perdidas, já que são capazes de demonstrar as lutas cotidianas e as possibilidades de liberdade no mundo atlântico.

Além dos mencionados, Paulo Moreira (2003, 2007), João José Reis (Reis e Silva, 1989), Márcio Soares (2009) e Hebe Matos (1995) são outros historiadores que problematizam o papel do escravo, as disputas envolvidas nas leis abolicionistas e as noções de propriedade e direito.

Entre a visão de concessão e conquista escrava é de se destacar o papel da alforria como veículo de disputas entre os senhores “homens de bem” e os escravos. Essa luta pela liberdade, representada pela busca da alforria, é a inspiração do livro e resume o objetivo do livro, sendo o país fronteiriço “o solo da liberdade”. Os dois personagens do livro escrito por Jônatas Caratti, embora crianças ainda são representativos dessa conjuntura que, dentro do sistema preestabelecido, busca os espaços possíveis de negociação, conciliação e até luta jurídica.

Desta forma, Jônatas Marques Caratti, em sua dissertação de mestrado, transformada em livro – O solo da liberdade – percorre o caminho da micro-história, procurando apresentar as relações, disputas e esperanças de liberdade na sociedade escravista brasileira. Seu ponto de partida são as leis abolicionistas uruguaias e seu impacto na região de fronteira no Rio Grande do Sul. No território de fronteira, senhores e escravos negociam e tomam parte do jogo de relações e acordos em busca de seus objetivos.

O historiador elege dois personagens, representativos em suas fontes, e, através deles, procura mostrar o contexto social e a luta pela liberdade dos negros escravizados. Faustina e Anacleto são duas crianças que desde cedo conhecem a escravidão e, embora talvez não soubessem, são também reflexos dessa sociedade que, escravocrata, convive de forma muito próxima com o vizinho Uruguai, que havia colocado fim à escravidão, transformando a região pós-fronteira no “solo da liberdade”. É importante destacar que as trajetórias tornaram-se excepcionais pela quantidade de fontes documentais encontradas, o que permitiu que se produzisse uma narrativa verossímil e plausível para os sujeitos; já quanto a outros, não revelados pela documentação, jamais teremos conhecimento de sua existência. De acordo com Jônatas, os dois processos lhe chamaram inicialmente atenção pela quantidade de anexos e por tratarem de questões mais amplas que somente o tráfico de escravos na fronteira, demonstrando a vida social que se estabelecia dentro dessa dinâmica.

É importante destacar que a reflexão sobre crianças escravas é, de certo modo, ainda recente na historiografia. A própria ausência de fontes e o descaso com que eram tratadas, muitas vezes, fazem com que a pesquisa e análise de suas condições sejam ainda incipientes. Além disso, a mortalidade infantil era alta, fazendo com que muitos não chegassem à vida adulta3. Desta forma, a própria possibilidade de refletir sobre a situação de duas crianças escravas torna o trabalho instigante e aberto a novas reflexões.

O livro une pesquisa séria de um historiador que escreve com rigor e ética com a vida pessoal de alguém que também vive na fronteira, já que, hoje, Jônatas é professor na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).

No final do livro há um diário de bordo, escrito de forma pessoal, com o relato de suas caminhadas pela região sul do estado e os encontros com sua pesquisa, as esperanças e os desafios de um historiador. Por meio de uma narrativa cativante, Jônatas permite ao leitor caminhar com ele, perceber suas escolhas, as limitações apresentadas pelas próprias fontes e as descobertas no caminho rico e intrigante que é a pesquisa histórica.

Os personagens escolhidos pelo pesquisador são exemplos de situações que ocorriam de forma expressiva no período analisado. A escravização de sujeitos que podiam ser considerados livres foi comum nesse período. Sendo assim, a importância de Anacleto e Faustina não se restringe à situação em que viveram, mas mostra o contexto social da época e propicia perceber as lutas pela liberdade e as formas como os acordos e arranjos ocorriam.

Esse horizonte, de certa forma ainda novo na historiografia, dá vida e complexidade a sujeitos que em nossos documentos se restringiam a números de escravizados. No texto de Jônatas, eles estabelecem relações, sonham com a liberdade, juntam dinheiro para consegui-la, fazem acordos, são complexos e demonstram as formas como os indivíduos reagiram a situações em que eram colocados.

Uns dos principais documentos analisados por Jônatas, assim como outros historiadores, são os judiciais, são eles que mais fornecem informações ao pesquisador. Ali é possível perceber a visão não só dos personagens principais, mas quem presenciou o ocorrido e também os réus, que apresentavam sua própria defesa. Ou seja, demonstram a complexidade das relações dentro da sociedade escravista e quais os caminhos encontrados pelos que faziam parte desse contexto. Cada argumento é analisado pelo pesquisador, demonstrando a riqueza de detalhes da narrativa e aproximando-nos da visão desses sujeitos do passado. Documentos como esses, por sua vez, abundam nos arquivos, como afirma Paulo Roberto Moreira – orientador e autor da apresentação do livro – faltava, contudo, alguém que com atenção de debruçasse sobre essa documentação com questionamentos plausíveis e tecesse a narrativa historiográfica.

O livro, por sua temática e também pela metodologia do pesquisador, caminha em várias frentes, que vão do micro ao macro, abrindo várias formas de reflexão e interpretação. No texto, transparece tanto o contexto nacional como a realidade regional, com suas particularidades, transpassada pela fronteira. Além disso, aspectos políticos, econômicos e sociais são explorados, demonstrando a dinâmica das relações, no aspecto particular e global. Seus personagens foram escolhidos entre dezenas de outros, e, por meio deles, observamos a sociedade do oitocentos: foram eles as lentes escolhidas pelo autor em sua narrativa.

Faustina nasceu livre em Cerro Largo, no ano de 1843, filha da preta, descrita como “gorda e velha” da Costa da África, Joaquina Maria, que era de Jaguarão. Sua mãe havia fugido através da fronteira para o Uruguai e lá viveu como livre até o encontro com os que raptaram sua filha. No outro país, Joaquina Maria encontrou um companheiro, Joaquim Antônio, sendo Faustina fruto dessa união. A menina foi arrancada de seus pais em uma noite de 1852 por um homem chamado Manoel Noronha, que se descreveu nos depoimentos como “capitão do mato”, lavrador, Capitão da Guarda Nacional e agarrador de negros fugidos. Quando preso, ele apresentou ao júri uma lista com 266 cativos fugitivos que pretendia perseguir e devolver aos respectivos senhores, em troca de recompensa.

Anacleto, por sua vez, nasceu em Encruzilhada do Sul como propriedade de Antônio de Souza Escouto, até que este o enviou para trabalhar em sua fazenda em Tupambahé, Uruguai, por volta de 1858. É importante lembrar, no entanto, que por lá a abolição já havia ocorrido, ou seja, do outro lado Anacleto era um homem livre. O menino teria ido ao Uruguai com 7 anos, idade considerada como fim da infância e início da vida de trabalho, já que se vivessem até essa idade, as crianças escravas demonstravam sobreviver ao elevado índice de mortalidade infantil. No Uruguai, Anacleto foi carregado por dois homens e trazido de volta ao Brasil; em 1860, foi vendido como escravo.

A história de Jônatas tem enredo, personagens e acontecimentos. Seu relato nos envolve e nos aproxima dos personagens, fazendo-nos torcer pelo sucesso de suas empreitadas e a conquista da liberdade. Isso não significa que a narrativa seja simplificadora; pelo contrário, ela é complexa e demonstra o rigor da pesquisa com documentação produzida pelo autor.

Faustina e Anacleto foram levados como cativos a Jaguarão, local estratégico na fronteira do Império e ali foram vendidos como escravos. O capitão do mato Noronha legalizou a posse de Faustina, comprando-a da senhora de sua mãe. Noronha revendeu-a em Pelotas com lucro considerável, o qual posteriormente a vendeu ao Capitão José da Silva Pinheiro. O historiador demonstra, por meio de suas fontes, que a crença de que a sociedade era composta por grandes senhores de escravos em muitos casos não se sustenta. Assim, boa parte dos compradores tinham poucos escravos que eram, por vezes, dados como heranças a herdeiros, fazendo parte do patrimônio da família. No entanto, mesmo numa sociedade tão desigual para esses sujeitos, conseguimos perceber as possibilidades de ação e a luta constante pelo sonho da liberdade.

Anacleto transformou-se em Gregório e foi vendido a Francisca Gomes Porciúncula, que o adquiriu na ausência do marido, o português Manoel da Costa. “Dona Chiquinha” e “seu Maneca” foram cúmplices desse sequestro, comprando Anacleto mesmo sabendo que ele era roubado. “Seu Maneca” era funileiro e viajava pelos centros urbanos provinciais alugando seus serviços; assim, quando foi a Rio Grande, repassou Gregório ao negociante de escravos José Maria Maciel, que o vendeu para o charqueador Miguel Mathias Velho. Uma mistura de sorte com coincidência fez Anacleto visto por um tropeiro o reconheceu como filho de Marcela e escravo furtado de Escouto.

Após essas desventuras encontramos as autoridades públicas, o uso da lei, a procura pelos criminosos, suas justificativas e a forma como a sociedade escravocrata se organizava. Os que são chamados a depor apresentam suas escrituras de compra e venda e, na ausência delas, passa-se a suspeitar de crime de compra ou venda ilegal de cativos. Através do método comparativo usado por Jônatas, percebemos e reconhecemos as proximidades e diferenças entre os personagens escolhidos pelo pesquisador.

A trajetória de Faustina ocorreu no contexto do Tratado de Extradição de Criminosos e Devolução de Escravos, assinado em 1851 entre o Império Brasileiro e a República Oriental; por isso, contou com o apoio dos chefes políticos e de autoridades uruguaias. Como ela nasceu em Cerro Largo, o Estado a defendeu como um caso de soberania e resistência ao imperialismo brasileiro.

Seus sequestradores, no entanto, foram absolvidos, marca de uma sociedade que ainda não questionava a escravidão. Contudo, ela voltou para seus pais, diferentemente do que ocorreu com Anacleto. Os dois processos são semelhantes e demonstravam, segundo o professor, a possibilidade de uma análise de comparação. A própria sentença que os réus receberam era a mesma, baseada no art. 179 do Código Criminal de 1830: “reduzir pessoa livre à escravidão”. Os réus responderam pelo mesmo crime e as vítimas eram crianças entre 10 e 12 anos. Esses são dois movimentos que aproximam o leitor da sociedade escravocrata sul rio-grandense em suas relações com o Uruguai. No entanto, há diferenças entre os dois casos, e isso, de acordo com Jônatas (Caratti, 2013, p. 57), o instigou a estabelecer a narrativa de forma comparada. Relacionar as experiências foi um caminho frutífero e promissor para a história social não só para a região da fronteira, mas também para a compreensão do Brasil nesse momento.

Anacleto nasceu no Brasil, de ventre escravo, e trabalhou no Uruguai como cativo, mesmo após a abolição da escravidão nesse país. Nesse caso, o promotor do caso, Sebastião Rodrigues Barcell, usou a ideia de “solo livre”, ou seja, vivendo em Estado onde havia sido abolida a escravidão, Anacleto seria considerado livre. Contudo, não sabemos exatamente por que – e aqui está o ponto em que a própria documentação limita o pesquisador – ele aparece no inventário de seu senhor Escouto, em 1865, então com 15 anos de idade. Possivelmente parecesse radical aplicar a lei, já que havia dezenas de fazendeiros que estariam nessa situação, além do potencial subversivo dentro da escravaria local.

Tendo como base os dados que encontrou nos arquivos, o autor recria contextos, compõe cenários e imagina cenários plausíveis diante do que suas fontes demonstram sobre seus personagens. Todos eles, é importante salientar, produzidos com base em intensa pesquisa na documentação, cruzamento de fontes e de leituras realizadas pelo historiador. Não à toa, Jônatas compara seu texto a uma peça de teatro e nos agradecimentos refere-se a si mesmo como diretor: “[…] Qualquer tropeço do diretor, e o fracasso ou sucesso de sua peça, é de sua inteira responsabilidade […]” (Caratti, 2013, p. 12). Sua narrativa e análise é um múltiplo labirinto que se abre e se transforma, demonstrando as multifacetadas vivências dos indivíduos que fazem parte de sua peça.

São várias as metodologias utilizadas por Jônatas em seu texto, já que ele trabalha com fontes diversas.

Assim, encontramos reflexões sobre as alforrias, sobre o mundo do trabalho escravo – com dados de compra e venda e leitura de pesquisadores da área –, escolha dos padrinhos, tráfico de escravos e comércio de cativos.

A narrativa do professor é instigante por colocar um elemento que, muitas vezes, está ausente na historiografia: a imprevisibilidade. Ao mesmo tempo que Anacleto e Faustina tinham seus próprios objetivos, suas vidas se entrecruzam com a visão de outros, que relacionavam-se entre si e por vezes determinaram seu futuro. O indivíduo e a sociedade, representada pela vontade de vários, são também reflexões possíveis da trama apresentada pelo professor. Segundo o próprio historiador, sua metodologia, inspirada na micro-história, trata de questões “inesperadas” e também as analisa de forma “experimental”; além disso, seu objetivo é explorar as fontes e os dados encontrados, mesmo quando poucos (Caratti, 2013, p. 55).

Se a narrativa por vezes esfria os conflitos que eram inerentes ao momento em que foram narrados, podemos afirmar que na narrativa de Jônatas por vezes afloram paixões, já que ele nos aproxima, como poucos, dos personagens por ele tratados. Assim, quando Joaquina Maria foi levada para depor, estava em “estado de alienação” e “chamava por sua filha”. Faustina estava no rancho de seus pais, escondida em um barril, quando dois homens a levaram. Mesmo que a mãe afirmasse que juntava dinheiro para a compra de sua liberdade, os homens, num cálculo frio, raciocinaram que a menina daria mais lucro e suportaria mais a viagem que a mãe e resolveram levar a garota. O que sentia essa mãe? Como isso a alterou emocionalmente ao ponto de não conseguir depor? A aflição dessa mulher demonstra não só a rede de relações entre senhores e escravos, as tentativas de fuga, mas também a sensação de completa instabilidade vivida pelos cativos nesse contexto.

De um lado, os donos de escravos, que viam como fundamental a utilização de mão de obra escrava em suas estâncias no lado uruguaio. De outro, o medo de que os escravos usassem a lei a seu favor e garantissem sua própria liberdade. A descrição das trajetórias de Anacleto e Faustina procura elucidar essas questões, que são o eixo principal da pesquisa do historiador.

Essa reflexão sobre os personagens, seus anseios e desejos faz com que o trabalho de Jônatas se insira na historiografia recente sobre escravidão, que não os trata como “coisas” ou como engrenagens de uma estrutura. Eles têm nomes, desejos, sonhos e lutam pela liberdade diante das possibilidades apresentadas.

Anacleto e Faustina não foram vítimas de um crime comum, mas estiveram envolvidos em conflitos sobre posse de escravos, fronteira e limites do Estado. Passaram por Melo, Jaguarão, Pelotas, Encruzilhada, Tupambahé e Rio Grande. Assim, o limite da pesquisa de Jônatas não é local, mas temporal, procurando perceber as diversas interfaces que permeiam a vida dos protagonistas de suas tramas. No decorrer do livro, o autor nos leva a cada um desses lugares, com dados levantados dos arquivos e bibliografia especializada, apresentando um quadro social amplo da sociedade sul-rio-grandense. A mobilidade é uma constante em sua obra: “[…] Tropeiros tocando o gado pela fronteira, escravos fugindo estrategicamente em embarcações, juízes e delegados retirados e colocados em vilas, como se fossem peças de um jogo de xadrez: tudo indica que essa gente não vivia na monotonia” (Caratti, 2013, p. 64).

Tal como em uma peça teatral, acompanhamos os personagens na narrativa de Jônatas, envolvemo-nos com suas trajetórias e percebemos suas vidas como mostras de um tecido social. O historiador, desta forma, nos abre outras cortinas: da complexidade do social e da dinâmica das relações que se dão entre o micro e macro. Um livro instigante, que poderia ser filme e que mostra que é possível unir boa narrativa com rigor acadêmico.

Referências

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Notas

2 Domenico Scandella ficou conhecido como Menocchio graças a Carlo Ginzburg, que procurou compreender o mundo do moleiro através dos arquivos da Inquisição. Seus ensinamentos renderam-lhe a qualificação de herege, sendo morto e torturado na fogueira (Ginzburg, 1987).

3 “Poucas crianças chegavam a ser adultos, sobretudo quando do incremento dos desembarques de africanos nos portos cariocas […] no intervalo entre o falecimento dos proprietários e a conclusão da partilha entre os herdeiros, os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos, dentre estes dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até os cinco anos” (Góes e Floretino, 2002, p. 180).

Debora Regina Vogt – Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Analista técnico educacional da rede SESI/SP. Av Paulista, 1313, 01311-923, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Destino, providência, predestinação. Do mundo antigo ao Cristianismo – MAGRIS (V)

MAGRIS, Aldo. Destino, providência, predestinação. Do mundo antigo ao Cristianismo. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2014. (Coleção Ideias). Resenha de: FEILER, Adilson Felicio. Veritas, Porto Alegre, v. 60, n. 1, e47-e54, jan.-abr. 2015.

Aldo Magris é um dos mais destacados pesquisadores do gnosticismo antigo. É professor de Filosofia na Universidade de Trieste, onde ministra cursos sobre religião.

O livro começa com um Prefácio em que o autor apresenta as dificuldades que teve em traduzir sua vasta pesquisa em torno ao tema do Destino reunida na obra A ideia do destino no pensamento grego, em uma obra mais acessível e, ao mesmo tempo, com um caráter mais amadurecido, crítico e preciso. Vale recordar a inigualável riqueza das fontes reunidas pelo autor num único volume sobre um tema tão denso. Além de tratar especificamente sobre o destino, o autor realiza uma ponte com temas a ele ligados que é o da providência e da predestinação, percorrendo o universo do pensamento mítico, a tragédia grega, os pré-socráticos e o iluminismo filosófico com Platão e Aristóteles para então adentrar no providencialismo estoico e culminar na predestinação judaico cristã em Paulo e Agostinho. Entre os temas do destino, da providência e da predestinação fica patente, pela abordagem, que longe de serem considerados temas fechados em um determinismo fatalista há uma íntima conexão com a liberdade.

Destino

O fatum, o destino, não é algo isolado, mas em ligação a um vaticínio sobre o futuro, ao porvir. Daí o termo fatum derivar de Fada, a deusa

que assumiu a função de parturiente, padroeira dos obstetras, capaz de prever o fado, que é todo o percurso da vida do indivíduo. Os próprios deuses estavam submetidos ao fado, porém nesta mesma situação profetizavam o futuro, pronunciavam a sorte e enviavam aos homens o seu destino. Por isso, o destino é o enviado, que em alemão se chama Schicksal. Este mesmo destino, vaticinado pelas moiras, revela a finitude da natureza daqueles que o recebem, inclusive os deuses. Nos textos de Homero o destino, como sorte de cada indivíduo, não é tido como algo rigorosamente determinista, pois os eventos todos podem ser concebidos em movimento, dentro de um programa universal. A adoção posterior do destino pelo Cristianismo é concebida como algo normativo ou punitivo, a serviço da providência divina. Esta, contudo, não é um poder incontrolável, externo e que oprime, mas algo que está no interior de cada um, aquilo que se é e se escolhe ser.

O destino na tragédia grega tem, em Dionísio, pela dialética entre o eu e o outro, o visível e o escondido, a verdade e a aparência, a sua máxima expressão na máscara, o evento da universalidade como totalidade aberta. Este aspecto da tragédia grega é retomado pelo romantismo, no qual o ser humano “decide”, porém dentro do conjunto da lógica divina ou fatal das coisas. Mesmo na tragédia grega “Deus” e “destino” são sinônimos, mostrando que o destino não é um fator isolado, mas uma forma de manifestação do divino que se dá de maneira enigmática, numa dialética que se move da verdade à aparência: o herói trágico que, na sua emergência, se depara com o “tarde demais”. Hölderlin, um grande expoente do romantismo alemão, entende o trágico como a fusão do ser humano com a totalidade. Nietzsche, inclusive, constrói sobre a ideia do trágico uma concepção filosófica inteira. Na visão trágica hegeliana o saber aparente se deixa arrancar do seu verdadeiro para que apareça o verdadeiro em si, como natureza heroica. Em Nietzsche a tragédia sofrida não é tida como simples catástrofe, mas como algo que tem, no seu destruir-se, a sua realização. Por outro lado, Platão em seu positivismo da verdade, que é fonte da certeza, propõe uma reflexão filosófica antitrágica.

A sofia, também desempenha um papel importante na tragédia, correspondendo àquela necessidade individual de ver, ou saber sobre o mundo e si mesmo, também apresentando uma formulação conceitual do destino, ou seja, abrindo uma fenda na aparente confusão do caos da qual resulta uma sucessão de eventos preestabelecidos em uma lógica, no destino do seu concretizar-se, na fatalidade da sucessão teogônica (Ananké). Nessa fatalidade vai se atravessando limites (poros) que nada mais é senão uma experiência, Erfharung, cuja raiz é Fahrt, viagem, pois fazer uma experiência equivale a viajar até o princípio (ápeiron) e

descortinar a fysis, uma totalidade omni-abrangente, um organismo vivo que, na metáfora do círculo, é governada pelo destino para alcançar a perfeição, a integridade e o equilíbrio. No processo de alternância dos contrários vai aparecendo a totalidade na sua verdade, como aparência, eis como o espírito da tragédia heraclitiana compreende o destino. Por isso, este se caracteriza como contrários que se enfrentam, num embate que não ocorre por acaso, mas é orientado por uma lei e uma necessidade, como um princípio cósmico que define limites aos seres, colocando-os na perpétua instabilidade do conflito, em meio a um drama trágico. Este drama, para os fisiólogos se dá através de uma circularidade cósmica, que é um processo dinâmico, em que o início está ligado ao fim, denominado por Nietzsche de “eterno retorno”: a cada epiciclo findado decorre a destruição para daí dar espaço a um novo nascimento e, assim, infinitas vezes a fysis, como unidade global em movimento, vai perfazendo inúmeros epiciclos. Cada intervalo desta harmonia geral, que é uma espécie de oitava, os fenômenos serão reapresentados não exatamente como foram. Pois, pelo contrário, seria apenas mera eterna repetição do idêntico, não podendo justificar a responsabilidade ética das ações dos seres humanos. Da sequência de cada destruição segue, sempre, um desenvolvimento diferente, e não uma mera repetição. Se em Heráclito o destino se caracteriza como um princípio de regularidade física, em Parménides é uma consequência lógica estabelecida para se pensar o todo. A circularidade do retorno nos conduz à busca da verdade, não como algo a ser descoberto, mas construído e reconstruído de acordo com uma racionalidade (logos), uma necessidade (ananké) da fortuna (tyché). O estoicismo, escola sucessora da escola de Atenas, caracteriza-se basicamente como a escola do viver bem conforme o logos, cuja ordem se manifesta na natureza. Daí a necessidade de se adequar a ela, por um princípio racional universal, cuja eficácia manifesta-se como destino. O destino é, assim, uma instância superior em relação ao conflito entre liberdade e necessidade, porém não é contrário à liberdade. Contudo, há uma parte que deve ser entregue ao destino, que suportamos assim como é, frente ao qual nada se pode fazer para modificar. Constitui-se o destino, mais que uma fatalidade, um projeto de vida ao qual devemos aderir mais pelo coração que pelo cérebro. Portanto, o amor ao destino vai ao encontro da fórmula “amor fati” que utiliza com outros matizes. Discordamos dessa interpretação, pois amor fati em Nietzsche nada mais é senão amor ao destino, acolhida jubilosa.

O destino não é um mecanismo externo mediante o qual somos meros expectadores passivos, como uma potência que age contra os seres humanos; este é sim uma lógica que coliga os atos humanos espontâneos em uma totalidade; e dentro deste processo fatal o ser humano não pode

deixar de empenhar o seu papel, a sua aprovação pessoal. Por isso, o destino conta com a iniciativa humana, o seu caráter (ethos) que funciona como um princípio ativo; diante disso a liberdade é considerada como algo que se conquista cotidianamente, a cada intervalo da circularidade cósmica, que ganha sentido como parte orgânica de um todo composto pelas causas eternas entre passado, presente e futuro. Esta totalidade cósmica é o ser, que não se constrói e sim se revela, reconstrói e repete, já que está implícito desde sempre segundo o destino: a lógica que coliga os vários momentos da totalidade orgânica.

Providência

Se, para os fisiólogos, a verdade aparece por trás da aparência, movida pela força do destino, para os iluministas gregos, os modernistas da Antiguidade, a verdade não é imediata mas dado fatual que empenha competência prática: o saber e a técnica. Assim, a concepção iluminista da experiência articula três fatores: a iniciativa humana (techné), a regularidade da natureza (ananché ou fysis) e a fortuna, o acaso (tyché). Desprovida de qualquer motivação reconhecível ao raciocínio humano, (a verdadeira alma do mundo do iluminismo) essa articulação opera como um destino inato a determinar a concretização na vida, a sua índole (ethos), faz surgir a concepção nascente de providência. Se, por um lado, a técnica em tudo procura reduzir o poder da necessidade e o arbítrio da fortuna, a necessidade e o acaso, por outro, põe limites à pretensão humana de dominar o mundo, já que o ser humano está inserido em uma ordem prefixada das coisas geridas pelo destino. Contudo, o destino não é mais aquela explicação omni-abrangente, pois rivaliza com a iniciativa humana enquanto techne, que não é propriamente uma liberdade, mas o ambiente do ser humano onde este se encontra dependente. É com Sócrates, contudo, que a techne é considerada com otimismo, introduzindo no pensamento ocidental a antítese “liberdade-necessidade”. Com Platão a estrutura lógico-matemática do real toma o lugar do destino. O bem viver (a convivência civil ordenada) para Platão depende do correto equilíbrio entre techné, tyché e ananké. Para Aristóteles, antes de mais nada, é preciso distinguir o que é substância daquilo que é acidente, para assim buscar observar como e porque os respectivos acidentes vêm a suplantar a substância. O campo da fysis é constituído pelo devir, de modo que tudo é pervadido pela relação potência (dynamis) e ato (enérgeia). Neste processo de devir a dynamis é sempre uma iniciativa humana autônoma em que a necessidade está sempre subordinada à finalidade. Parece, todavia paradoxal que o conceito de Providência tenha a sua origem no contexto do iluminismo grego, em que o ser humano é a medida de

todas as coisas, pois é o mesmo ser humano que, com base nas próprias exigências, vê e provê os fenômenos naturais seguindo modalidades que lhe são intrínsecas. Em síntese, a fysis é uma projeção da techné que opera sobre a base da ananché, mesmo permanecendo sempre exposta à eventualidade da tyché. Neste aspecto, o destino se caracteriza como encadeamentos causais do logos com o cosmos e a providência divina que dispõe tudo segundo a sua vontade (plano). Assim, tudo está dentro do ciclo do destino que inevitavelmente se repete, num fluxo vital.

O destino no estoicismo, embora goze de determinismo, superando inclusive demonstrações de eventos reais, apresenta uma diferença entre a necessidade da natureza extrínseca e o “destino” como instância superior de coordenação entre fatores extrínsecos e intrínsecos, na sequência rígida e imutável de eventos passados e futuros, perpassados pelo filigrama cósmico que é o destino. Neste período da modernidade da antiguidade também a inexorabilidade do destino esteve ligado a práticas divinitórias e a astrologia (horóscopo). O nexo incindível com a astronomia imprime a fatalidade, a determinação férrea e inexorável dos eventos na terra por parte dos astros. Com isso, a vida de um indivíduo fica inteiramente preestabelecida desde o seu nascimento. Contudo, esse cunho fortemente fatalista difere da ideia de destino, pois o fatalismo coloca o indivíduo numa posição de mera passividade diante dos eventos que se sucedem. Embora a astrologia seja questionada pela sua inexorabilidade, passa a ser incorporada pela noção de providência, típica em diversas religiões.

Todas as concepções deterministas estão alicerçadas na relação causa-efeito, contudo o livre arbítrio corresponde a possibilidade de o sujeito realizá-la ou não, como é o caso do aristotelismo. Na concepção estoica, apesar de as ações humanas enquadrarem-se na lógica do destino, este não consiste numa obrigação externa, mas uma autodeterminação, em virtude da própria natureza. Assim, conseguirá atingir a serenidade para além de conflitos consigo mesmo, resultantes da incapacidade de autodeterminação. O epicurismo abre para um espaço de liberdade constituído pela techné, combinada pelo autocontrole do sujeito e pela influência da educação externa, a livre escolha humana e a causalidade do devir (tyché). Contudo, o determinismo monista estoico ao negar que o ser humano é o único responsável pelas suas ações, retira o fundamento do ser humano, favorecendo a preguiça e a submissão. Aristóteles vai enfrentar esta posição estoica afirmando que as doutrinas que minam a autodeterminação do ser humano o desresponsabilizam ocasionando consequências no plano da sociedade e do direito. Pois, nada neste mundo pode ser determinado: a própria necessidade da natureza e diversos fatores imprevisíveis se põem contra o destino. Assim, se o ser humano

é o princípio das ações, lei e destino são incompatíveis. O estoicismo fundamenta a liberdade na capacidade humana de se realizar o que é concreto. Xenócrates foi o primeiro filósofo grego a escrever sobre o destino. Segundo ele, o destino é uma normativa ética que o ser humano deve respeito, bem como respeito a sua livre escolha. O destino, aqui, limita-se à esfera da práxis moral. Mas na tese dos platônicos o destino é a lei e o ser humano é o princípio totalmente autônomo de suas ações, a sua liberdade. Contudo, entra em jogo com a noção de liberdade humana, o problema da providência divina, portanto o jogo entre liberdade e destino.

A concepção platônica de alma é chave para a compreensão da providência divina, pois esta é o princípio do movimento. É Deus quem viabiliza a prática da virtude ou o vício; a responsabilidade fica a critério da escolha humana. É este pensamento providencialista platônico-estoico que posteriormente é assumido pelo Cristianismo, e a providência entendida é também logos e destino, pois reconhecer a providência é aceitar o destino. Enquanto, para o estoicismo, a providência é a lógica interna do curso do mundo, para o platonismo é um ente externo ao mundo. Para este último, o destino está subordinado à providência. Esta mentalidade vem de encontro do Deus dos hebreus e dos cristãos, um poder que ultrapassa as forcas cósmicas, de modo que o plano divino prevê todos os acontecimentos e suas fatais consequências. Se o destino atribuído por Deus jamais poderá ser diferente, qual o espaço da liberdade humana como fator que é expressão do eu? Daqui decorre uma relação difícil entre ética e destino.

Predestinação

No contexto cristão da providência deriva-se, também, um outro conceito importante em nosso estudo, o de predestinação, que diz respeito a uma trama de coisas postas para além da esfera do ser humano; é uma decisão tomada por Deus em relação ao ser humano. Assim, tanto o destino quanto a predestinação têm que defrontar-se com o mesmo problema, o do espaço da autonomia do ser humano. Na dinâmica judaica a liberdade é reservada ao plano do reconhecimento do senhorio do Deus criador, com poder de tomar decisões, aí está o contexto da liberdade humana. Os livros de Jó e Eclesiastes conservam similaridades com a tragédia grega, segundo o qual cada coisa e cada situação tem o seu próprio tempo delimitado por um fim inevitável que fatalmente acontece. O destino que é inserido na relação entre Deus e o ser humano, é a porção atribuída como a moira (tyché). Contudo, ao lado da predestinação entra a exigência do livre arbítrio, de modo que a responsabilidade do ser humano depende unicamente de sua escolha

pela virtude e não pelo vício, virtude esta que é plantada no mesmo ser humano por Deus. Enquanto os saduceus negavam o destino, alegando que tudo estava no ser humano, os fariseus o admitiam, de modo que tudo dependia do destino e de Deus. Contudo, a ação de agir, ou não, está no ser humano. Assim, embora exista a predestinação do justo há também os méritos para os quais exige o responsável exercício da liberdade. Um gênero literário bastante difundido no séc. III a. C. é a apocalíptica, segundo a qual os anjos, seres intermediários entre os seres humanos e Deus, dirigem os destinos. As tábuas celestes são, portanto, uma metáfora típica da apocalíptica, segundo a qual no céu estão escritos os nomes dos justos desde a eternidade. Portanto, essa eleição divina dos justos inspira-se no profetismo, o pequeno resto de Israel. Neste sentido, a predestinação é a expressão fundamental da autoconsciência sectária, que instaura o destino entre o bem e o mal, produzindo assim a história. E Deus governa a história em seu domínio universal, o que corresponde ao destino. É claro que existe, nesse processo, o empenho humano, em que Deus permite que este mantenha seu agir livre. Aqui entra a Teologia do Pacto entre Deus e o ser humano, típica de antigas fórmulas qumrânicas e das cartas paulinas em que, de um lado, está a justificação e a predestinação e, de outro, a exigência rigorosa de uma práxis moral. Contudo, a justificação é apenas obra de Deus, o qual não depende de qualquer ato humano, mas sim de um reconhecimento por parte do crente na pessoa de Jesus Cristo como Salvador; e é por isso que o justo viverá pela fé, mediante a graça se inicia a ruptura com o Judaísmo, do qual deriva o Cristianismo nascente.

Em Paulo o Cristianismo tem sua marca principal, guiada pelo absolutismo da graça e a abertura a um uso seletivo da cultura grega. Desta última provém a gnose, que é o reconhecimento do ser humano em Deus e o mútuo reconhecimento no ser humano. É Cristo quem traz a salvação, ou seja, traz a gnose, mediante a fé do crente, a condição intrínseca (ousía), uma natureza, (fysis) para se elevar aos pneumáticos. Neste processo de predestinação gnóstica se exclui o ideal iluminista da autonomia do sujeito. Com o tempo o Cristianismo, pela influência do iluminismo grego e hebraico, entra num período de filosofização . Assim, como em muitas formas de gnosticismo, uma rigorosa ideia de predestinação não existe, já que a salvação depende do empenho moral do ser humano. Neste contexto, Agostinho, mediante uma releitura cristã de Platão afirma que a salvação do cristão depende da fé, pelo livre arbítrio, que é obra da graça. Assim, se a salvação é em última análise, a obra da graça, então não é possível falar em predestinação divina. Mas é uma predestinação da graça a determinar o caráter e a práxis humana e não algo exterior; sua conduta é governada pela escolha que depende

da vontade, mas é uma vontade que quer, algo que deveria ter poder para querer e não tem, e é aí que reside a sua falta original: o poder de querer. Logo, na interpretação agostiniana do Cristianismo há um nexo entre o destino (livre arbítrio) e a predestinação (da graça).

Assim, por mais que o determinismo fatalista, do qual se expressa o destino desde a mitologia, passando pela antiguidade moderna e confluindo no pensamento cristão, tenha muitas vezes sido considerado como um determinismo inexoravelmente fechado, é possível verificar que este tem dado o devido valor na autonomia do ser humano, que é a tese do autor e ao qual manifestamos nosso assentimento. Pois o destino, que é essa condição do ser humano, lançado diante do fato, exige dele que atue sobre este, um projeto de vida que acolhe o fato, um porvir, pois é assim que ele mostra o seu caráter, seu ethos. Da mesma forma, sua posição diante da providência, nada estranha ao ser humano, reconhece a parcela humana de responsabilidade e, finalmente, a postura do ser humano diante da predestinação, em que lhe é reservada a capacidade de optar livremente potenciado pela graça. Logo, o destino, a providência e a predestinação somente encontram a sua razão de ser no espaço da liberdade do ser humano, que age para constituir um projeto de vida dando seu assentimento, com amor, ao fatum.

Adilson Felicio Feiler – Doutor em Filosofia, Professor da Unisinos. Escola de Humanidades Universidade do Vale do Rio dos Sinos Av. Unisinos, 950 – Cristo Rei São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Prontos a contribuir: guardas nacionais, hierarquias sociais e cidadania (Rio Grande do Sul – século XIX) | Miquéias Henrique Mugge

A obra enfoca o tema da Guarda Nacional de São Leopoldo articulando muito bem as contribuições teóricas do método das redes sociais sob perspectiva histórica à extensiva pesquisa empírica realizada nas fontes acerca da milícia. Ao anunciar sua abordagem e as possibilidades da história política do cotidiano, Miquéias Henrique Mugge afirma seu propósito de pesquisa: recuperar vivências, comportamentos e estratégias diárias de seus personagens em foco, os guardas nacionais de São Leopoldo. Para tanto, além dos já conhecidos fundos documentais usualmente utilizados pelos historiadores como, por exemplo, as correspondências entre os oficiais e autoridades do Estado Imperial como Presidentes de Província e ministros de Estado, Mugge tem o mérito de acrescentar à análise inventários, processos-crime, entre outras fontes, contribuindo inestimavelmente para o que se propôs, ou seja, recuperar as vivências cotidianas, como sujeitos políticos, dos guardas nacionais de São Leopoldo, tanto do oficialato, mas também daqueles que compunham a hierarquia baixa da milícia, os simples guardas. Cumprindo muito bem tal objetivo, Mugge também revisa a discussão historiográfica sobre o papel dos imigrantes alemães na construção do Estado nacional brasileiro do XIX, resgata muito bem os eixos explicativos da historiografia acerca da imigração alemã, destacando que tais imigrantes não foram “apolíticos”, pelo contrário, viveram e atuaram politicamente na defesa de seus direitos, resistindo ou aderindo a “milícia cidadã” conforme seus interesses. Diga-se que esta questão é apresentada a partir de um pertinente diálogo com a historiografia recente da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Leia Mais

Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662 – FRANZEN et. al (HU)

FRANZEN, B.V.; FLECK, E.C.D; MARTINS, M.C.B. (orgs.). Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662. São Leopoldo: Editora Unisinos/EdUFMT/Oikos Editora, 2008. 143 p. Resenha de: KARNAL, Leandro. Um documento jesuítico. História Unisinos 13(3): 312-313, Setembro/Dezembro 2009.

Pela primeira vez, é publicada no Brasil a Carta Ânua sobre a Província do Paraguai, que o provincial Andrés de Rada assinou em 1663. Esta Carta cobre o período 1659-1662 e, na edição organizada pelas pesquisadoras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, encontramos uma espécie de rascunho sobre os anos 1658-1660.

Os que trabalham com a documentação colonial jesuítica sabem o quanto esta publicação é importante. A documentação da Companhia de Jesus no período colonial é a fonte privilegiada para estudos religiosos, econômicos, políticos, antropológicos e até para os trabalhos sobre gênero. Escritores compulsivos, os membros de uma ordem que incorporou a noção moderna de texto e de sistematização de informações – a Companhia de Jesus – produziram uma pletora de cartas, relatórios, textos e imagens sobre quase tudo em sua época.

As Cartas Ânuas, síntese de muitas cartas parciais enviadas pelas unidades como colégios ou missões, constituem a atividade obrigatória de um jesuíta Provincial perante o religioso Geral em Roma, posto que fundamentam as decisões sobre a atuação dos jesuítas.

O documento publicado oferece uma rica oportunidade para as pesquisas brasileiras. Primeiro, porque fornece a visão corporativa e de conjunto da Companhia em sua ação no Novo Mundo. O texto revela um fl uxo de consciência com regras de retórica e apresenta os percalços da tarefa gigantesca que os padres enfrentavam. Entre estes se destacam o território imenso de atuação, os atritos com autoridades locais e até a defesa diante da acusação sobre a falta de empenho dos missionários.

Questões candentes como a tributação e o debate sobre o fornecimento de armas para as comunidades indígenas mostram que o olhar jesuítico concebe a Carta como um relatório amplo e não apenas religioso. Melhor dizendo: a visão sobre a eficiência da catequese parece incluir tudo que possa facilitar ou atrapalhar este projeto. O “mundo indígena e colonial em suas múltiplas facetas” (Franzen et al., 2008, p. 26) são o escopo do texto. Nesse sentido, a aspiração metafísica da Companhia de Jesus não parece excluir nada da imanência colonial.

O documento instiga o leitor, linha após linha, a reflexões e à formulação de perguntas que despertam pesquisas. De que maneira funcionavam colégios como os de Córdoba, Assunção ou Buenos Aires? Que modelos hagiográficos ou retóricos existem na descrição de cada necrológio da Carta, constituindo vidas exemplares, as quais, inclusive, poderiam conduzir a leituras mais amplas? Quais os modelos de missão descritos na obra? Como foram concebidos e implementados os projetos de evangelização dos indígenas? Qual o grau de maleabilidade tolerado pelos jesuítas em relação aos signos da cultura do outro? Como a alteridade é compreendida na pena dos padres? Quais redes de comunicação são constituídas e descritas pela Carta? Como as aparições da Virgem, indicadas pela narrativa, interagem, justificam ou corrigem a ação missionária? Que relações de gênero fluem da pena do provincial, ao descrever, por exemplo, a resistência de uma jovem índia ao assédio de um jovem tomado pela luxúria? Como as epidemias atuam nas comunidades? Quais conclusões demográficas podem ser retiradas de números registrados, como a cifra de 40 mil indígenas e 9525 famílias sob o cuidado da Companhia de Jesus na região? (Franzen et al., 2008, p. 106).

A publicação já é extraordinária pelos dois textos em si. Porém, o valor é aumentado pelo acréscimo de introdução, notas explicativas, mapas, relação de gerais, tabelas e índice onomástico final. A atual edição é a tradução realizada pelo P. Carlos Leonhardt, em 1927.

Como indicação final, resta sonhar com a ampliação da clareira aberta pelas pesquisadoras. Pensando no céu sobre esta estrada, resta também almejar que surjam outras publicações com a reprodução fac-similar do texto, sua transcrição paleográfica e tradução. Pensando na terra simples do chão do terreno, que despontem edições com a versão em português para o grande público. A lufada de ar fresco trazida pelo esforço das pesquisadoras Beatriz Vasconcelos Franzen, Eliane Cristina Deckmann Fleck e Maria Cristina Bohn Martins permite imaginar horizontes ainda maiores. Os pesquisadores sobre o período colonial agradecem.

Leandro Karnal – Doutor em História Social pela USP. Atualmente é RDIDP da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp). Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária Zeferino Vaz, s/n, Caixa Postal: 1170 13083-970, Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

História do Rio Grande do Sul dos dois primeiros séculos | Carls Teschauer

A reedição da historiografia colonial há muito esgotada é um dos desafios do presente para o setor editorial acadêmico brasileiro, pois a maioria das bibliotecas não possui acervos completos. Esse é um dos fatores que influenciam no desequilíbrio entre as pesquisas realizadas sobre cada um dos períodos em que tradicionalmente é dividida a História do Brasil (colônia, império e república), na qual os estudos coloniais detêm um percentual médio de 14% nas últimas duas décadas. Certamente, com bibliotecas bem abastecidas, existiria mais incentivo para atrair novos talentos e aumentar a produção da historiografia colonial, cuja renovação e construção são muito necessárias.

Contribuindo para superar os limites da escassez de obras antigas, a Editora da Unisinos presta mais um grande serviço ao publicar a segunda edição da obra magna de Carlos Teschauer, considerado o pai da história gaúcha pela historiografia tradicional. Publicada originalmente no intervalo de 5 anos, veio ao lume em 1918 (406 p.), 1921 (446 p.) e 1922 (509 p.), sendo um marco editorial no Rio Grande do Sul e mesmo no Brasil, onde poucas obras dessa envergadura haviam sido publicadas. Sua importância, além do conteúdo, foi a criação de uma narrativa baseada em vasta quantidade de documentos inéditos, muitos publicados ali pela primeira vez, levantados em diversos arquivos do Brasil, Argentina e Uruguai. Também pelo uso das principais obras sobre o tema, as quais foram tratadas com uma perspectiva bastante crítica e rara para a época, conforme declara Teschauer na introdução da obra: “Grande parte dos nossos historiadores ainda está – o que parece incrível e não tem razão de ser – sob a influência e pressão da historiografia do século XVIII. Esta levantou, no correr dos tempos, uma espécie de muralha de inverdades, inexatidões e prevenções e criou uma tradição falseada quase insuperável, que se alteia entre o nosso tempo e a verdade histórica”. Leia Mais

História do Rio Grande do Sul dos dois primeiros séculos | Carlos Teschauer

A reedição da historiografia colonial há muito esgotada é um dos desafios do presente para o setor editorial acadêmico brasileiro, pois a maioria das bibliotecas não possui acervos completos. Esse é um dos fatores que influenciam no desequilíbrio entre as pesquisas realizadas sobre cada um dos períodos em que tradicionalmente é dividida a História do Brasil (colônia, império e república), na qual os estudos coloniais detêm um percentual médio de 14% nas últimas duas décadas. Certamente, com bibliotecas bem abastecidas, existiria mais incentivo para atrair novos talentos e aumentar a produção da historiografia colonial, cuja renovação e construção são muito necessárias.

Contribuindo para superar os limites da escassez de obras antigas, a Editora da Unisinos presta mais um grande serviço ao publicar a segunda edição da obra magna de Carlos Teschauer, considerado o pai da história gaúcha pela historiografia tradicional. Publicada originalmente no intervalo de 5 anos, veio ao lume em 1918 (406 p.), 1921 (446 p.) e 1922 (509 p.), sendo um marco editorial no Rio Grande do Sul e mesmo no Brasil, onde poucas obras dessa envergadura haviam sido publicadas. Sua importância, além do conteúdo, foi a criação de uma narrativa baseada em vasta quantidade de documentos inéditos, muitos publicados ali pela primeira vez, levantados em diversos arquivos do Brasil, Argentina e Uruguai. Também pelo uso das principais obras sobre o tema, as quais foram tratadas com uma perspectiva bastante crítica e rara para a época, conforme declara Teschauer na introdução da obra: “Grande parte dos nossos historiadores ainda está – o que parece incrível e não tem razão de ser – sob a influência e pressão da historiografia do século XVIII. Esta levantou, no correr dos tempos, uma espécie de muralha de inverdades, inexatidões e prevenções e criou uma tradição falseada quase insuperável, que se alteia entre o nosso tempo e a verdade histórica”. Leia Mais