Resistencia y Negociación. Milicias guaraníes, jesuitas y cambios socioeconómicos en la frontera del imperio global hispánico (ss. XVII-XVIII) | Pedro Miguel Omar Svriz Wucherer

Este libro del historiador argentino Pedro Miguel Omar Svriz Wucherer, adaptación de su tesis doctoral realizada en la universidad sevillana Pablo de Olavide, aborda el estudio de las milicias guaraníes de las reducciones jesuíticas y su participación e importancia en el esquema de defensa de la frontera chaqueña durante los siglos XVII y XVIII. Esto tiene una enorme importancia ya que en el particular esquema defensivo regional –donde hasta mediados del siglo XVIII los milicianos guaraníes constituían la principal fuerza militar, eran reconocidos como milicianos del rey y portaban armas de fuego con el consentimiento de los gobiernos regionales– el autor ve una de las claves para entender la forma en que el imperio hispano articulaba la defensa de la frontera en sus áreas más periféricas. En el Nordeste Rioplatense la participación de agentes “no estatales”, como jesuitas y guaraníes, en el sostenimiento de la defensa, la centralidad de la negociación y colaboración para establecer la misma y el peso determinante que tuvieron en esas negociaciones las contraprestaciones y beneficios no monetarios, le permiten al autor cuestionar la noción de un Military Fiscal State aplicable a todo el territorio americano.

Este sistema defensivo negociado, que el autor denomina “pacto conflictivo”, involucraba la articulación entre los imperios ibéricos, diversos actores locales (habitantes de las ciudades, indígenas) y agentes globales (la Compañía de Jesús). Esta integración entre espacios regionales y redes globales se muestra como un gran acierto del libro, permitiendo inscribir la problemática misionera y sus milicias en un contexto más amplio. Además, es posible advertir en estos aspectos la influencia de Bartolomé Yun Casalilla –director de tesis de Svriz y también prologuista del libro– y de toda una historiografía preocupada por las interacciones a través de los espacios transnacionales. Leia Mais

Formulário médico. Manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba | Heolisa Meireles Gesteira, João Eurípedes Franklin Leal e Maria Claudia Santiago

A interpretação e a materialidade de manuscritos da Época Moderna, conforme a preposição “da” atrás empregada, procura ressaltar que os manuscritos a serem analisados são provenientes do período situado, grosso modo, entre os séculos XVI e XVIII. Não raro esses textos chegam ao presente experimentando autorias diversas, além de intervenções de copistas, proprietários, restauradores e leitores. Portanto, os manuscritos não deveriam ser percebidos hoje como se estivessem simplesmente “na” Época Moderna – eis aí a sutil diferença. A perspectiva vincula-se ao tema da materialidade social, uma apropriação do trabalho de Donald McKenzie sobre a bibliografia entendida como sociologia dos textos (MCKENZIE, 2018). Os textos, enquanto tecidos com textura (conforme a origem latina das palavras), sejam manuscritos ou impressos, possuem uma materialidade a ser estudada. Mas sua matéria é também social e histórica, a ser considerada na análise de um artefato proveniente de outro tempo, que passa por metamorfoses até chegar ao momento atual. Decorre daí a importância de se abordar nas pesquisas o percurso dos documentos – manuscritos ou impressos – em meio a arquivos particulares ou públicos. É fundamental também lidar com as diferentes leituras, por vezes expressas no próprio corpus documental, do objeto, mediante comentários, anotações nas margens etc., ou quando os manuscritos são transcritos, editados e impressos em forma parcial ou integral e passam a ser comentados por leitores vários, assumindo divulgação mais ampla por meio de publicações. Leia Mais

The Portuguese Slave Trade in Early Modern Japan: Merchants/Jesuits/and Japanese/Chinese/and Korean Slaves | Lúcio de Sousa

No livro aqui resenhado, Lúcio de Sousa pretende atingir três objetivos. Um deles consiste na reconstrução do que denominou de sistema de tráfico de escravos japoneses, chineses e coreanos, que operou no seio de redes mercantis portuguesas estabelecidas na Ásia marítima oriental. O segundo objetivo do autor consiste na reconstituição das “comunidades japonesas” estabelecidas em territórios que estiveram sob a influência das Coroas ibéricas. O terceiro objetivo é analisar o impacto do tráfico de escravos japoneses sobre a legislação ibérica produzida nos séculos XVI e XVII, que inclui o período da união das coroas luso-espanholas (1580-1640). Leia Mais

Resistencia y negociación. Milicias guaraníes, jesuitas y cambios socioeconómicos en la frontera del imperio global hispánico: ss. XVII-XVIII | Pedro Miguel Omar Svriz Wucherer

Las misiones jesuíticas del Paraguay constituyen un tópico privilegiado del estudio de la historia colonial americana. Desde los inicios mismos de su conformación en el siglo XVII, tanto defensores como detractores de la Compañía de Jesús han escrito y difundido alrededor del globo todo tipo de relatos sobre ellas. La historiografía de los siglos XIX y XX volvió una y otra vez sobre esas historias – que se convirtieron en fuentes esenciales para la investigación sobre dichas misiones – impulsadas por preguntas estimulantes desde las más diversas miradas, pero siempre como un caso emblemático de la interacción entre colonizados y colonizadores. En esta oportunidad, Pedro Miguel Omar Svriz Wucherer estudia el accionar de las milicias guaraníes en relación con la Compañía de Jesús y las autoridades de la Monarquía hispánica entre los siglos XVII y XVIII.

El autor de Resistencia y Negociación. Milicias guaraníes, jesuitas y cambios socioeconómicos en la frontera del imperio global hispánico, ss. XVII-XVIII cursó sus estudios de grado en Historia en la Universidad Nacional del Nordeste (Corrientes, Argentina) y de posgrado en la Universidad Pablo de Olavide (Sevilla, España). Este libro es producto de su tesis doctoral dirigida por Bartolomé Yun Casalilla, quien en el prólogo destaca las preguntas generales que guiaron la investigación sobre las formas de gobierno de los imperios ibéricos y cómo, a partir de allí, Svriz pudo analizar un caso local como parte de un proceso mayor con alcance global. Leia Mais

O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758) | Carolina Rocha Silva

A obra, de autoria da historiadora Carolina Rocha Silva, sob o título de “O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758)” tem por eixo central confissões da prática de magia, por duas escravas, no sertão do Piauí entre os anos 1750 e 1758, ou seja, na época em que o Brasil era colônia de Portugal, a América Portuguesa. A obra foi escrita como dissertação de mestrado da autora e, posteriormente, foi transformada em livro. É dividido em quatro capítulos que tratam, principalmente, do relacionamento da religião frente à magia – e da Santa Inquisição, em diferentes âmbitos e períodos, na seguinte ordem de abordagem: mundial/europeu; do reino de Portugal; da América Portuguesa; e do Piauí colonial.

O capítulo I, Religião, magia e demonologia, aborda, em especial a dicotomia existente na Europa do fim da Idade Média e início da Idade Moderna. Período este marcado por doenças, revoltas, guerras religiosas e políticas, em que era preciso encontrar um responsável por tantas mazelas. A Igreja Católica e os governos europeus visualizaram o Diabo, figura antônima e complementar de Deus, como o grande inimigo da sociedade, capaz de alterar a ordem natural e causar danos à população, como a impotência da medicina da época, por meio de seus agentes. Os grupos divergentes da igreja, os não-católicos, seriam esses agentes do Príncipe das Trevas; e os fiéis e eclesiásticos, os representantes de Deus. A Igreja, intérprete oficial dos atos divinos, passou, entre os séculos XIV e XVII, a espalhar a ideia de que as mazelas eram castigos de Deus pelos pecados das pessoas (como as práticas pagãs por católicos batizados) e que, por isso, o Diabo havia ganhado mais força e poder para quase tudo.

A Reforma Protestante (século XVI) atacou toda a magia, tanto popular como eclesiástica (milagres por Santos e beatos, e a utilização de elementos sagrados) e apontou um novo caminho: o da autoajuda com orações a Deus e foco no trabalho humano e na descoberta de novas tecnologias. O mundo moderno se tornou o mundo encantado, onde o sobrenatural era comum, havia magos curandeiros, videntes, adivinhos, feiticeiros.

O Diabo católico inspirou teses de teólogos, juízes, filósofos, advogados e religiosos. A primeira obra de Demonologia, o Malleus Malleficarum, de 1486, abriu espaço para esta “ciência” na Europa, que foi usada como base para legislações e a teologia na caça às bruxas. O livro, que era uma verdadeira enciclopédia de bruxas, depreciou o sexo feminino e apontou-o como mais suscetível ao controle do demônio, como também o fez médicos e juristas, estes embasados em leis do direito romano. O Cristianismo, apesar de não ter originado o medo em relação às mulheres, o alimentou desde sempre – como fez com Eva, imperfeita, irracional e fraca, que introduziu o mal na terra ao comer o fruto, sendo a responsável por todas as desgraças desde então. Foram escritos, inclusive, manuais ensinando os padres a fugirem das tentações femininas.

A bruxaria, um crime inatingível/mental, impossível de ser provada era tida como deslealdade a Deus, já que as almas (propriedades de Deus) eram objeto de pactos diabólicos em troca de poderes, o que deveria ser revertido para que Ele não se vingasse da coletividade.

Os processos da Inquisição visavam a essa reversão. Os processos, seja em tribunais civis ou eclesiásticos (Estado e igreja unidos), eram escritos, secretos e arbitrários, os processados (iletrados e pobres, na maioria dos casos) não sabiam o motivo do julgamento, tampouco quem os havia denunciado. O processo era aberto especialmente quando da confissão, sendo que falta desta podia gerar penas ainda mais severas, caso o juiz considerasse o acusado uma pessoa falsa e dissimulada.

O crescimento numérico das obras de demonologia era proporcional a crença e, subsequente temor do povo, o que os impulsionava a denunciar. O conteúdo dos livros chegava ao público iletrado quando da leitura pública das sentenças condenatórias.

Além dos pactos, o mito do sabá (sabat), assembleia de feiticeiros, reuniões noturnas dos agentes do Diabo para a prática de infanticídio, canibalismo, metamorfose, orgias, blasfemação, voo das bruxas e abjuração dos sacramentos cristãos, tudo na presença de Lúcifer, também foi largamente difundido pela Europa.

Com o tempo, céticos apontaram a falta de provas e o medo da população diminuiu; as leis foram revogadas e a prática mágica deixou de ser delito. Historiadores, na tentativa de explicar o fenômeno da caça às bruxas, acreditam que tudo foi invenção da igreja; ou, como a própria autora, que foi resultado do encontro da cultura folclórica com a cultura erudita dos doutores. Independente disso, admitem que os processos inquisitoriais são importantes fontes para se entender a mentalidade da época.

O capítulo II, A “feitiçaria” em Portugal: prática e repressão, tem um título autoexplicativo. As feiticeiras lusitanas manipulavam atos e desejos, principalmente amorosos, além de executarem curas. Com a expansão ultramarina da Coroa, famílias frequentemente recorriam aos feiticeiros para encontrar parentes desaparecidos. A magia tinha regras, todo um sistema simbólico de tempo, espaço, dos próprios elementos utilizados e de números.

O sincretismo mágico-relogioso dos portugueses impediu uma forte tradição editorial centrada na bruxaria, o que não barrou o embasamento de legislações, tratados de teologia e medicina (existiam obras médicas dedicadas só à cura de doenças causadas por feitiços), manuais de confessores e afins, em literatura alheia.

Em Portugal, os poderes do Diabo eram limitados pela autoridade divina, aquele tinha apenas poderes de enganação e provocações sensoriais, que atingiam somente os pecadores; pensamentos influenciados por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho. Havia um certo ceticismo quanto ao sabá europeu, à metamorfose. As confissões e denúncias costumavam seguir um mesmo padrão estrutural, sempre envolvendo um pacto com o Diabo.

Em 1492 os judeus, expulsos da Espanha, escolheram Portugal para viver. O rei, em 1497, emitiu um decreto régio convertendo todos os judeus e mouros e batizando-os involuntária e coletivamente, surgia, então, a figura do cristão-novo. O rei tentou protegê-los por vinte anos, porém o Tribunal do Santo Ofício fez cessar os privilégios: os cristãos-novos deveriam seguir somente a doutrina católica.

O Tribunal do Santo Ofício de Portugal concentrava suas forças nos ditos cristãos-novos (tradição antijudaica), este foi outro motivo pelo qual muitas das denúncias, inclusive as de colônias, por feitiçaria não se tornaram processos. Os processos eram caros e demorados, então os bens dos acusados por prática de magia eram confiscados para que cobrissem duas despesas na prisão.

A partir da segunda metade do século XVIII, com o Novo Regimento da Inquisição (1774) a descriminalização da bruxaria, as bruxas passaram a habitar somente a imaginação de pessoas rudes.

Além do mais, as testemunhas eram avaliadas e juramentadas. Caso fossem inimigas do acusado, a denúncia não era considerada verossímil; os réus podiam se defender, mesmo que minimamente; e a confissão espontânea poderia livrar da pena de morte, uma vez que o objetivo era o resgate das almas, e não assassinatos em série.

O capítulo III, As crenças mágico-religiosas na América Portuguesa: entre práticas e condenações, explana a história do Brasil colônia. Para os colonizadores, o demônio havia sido expulso da Europa para terras distantes, como a América. A igreja precisava enfrentá-lo com missões catequéticas, visando a cristianização e a ordenação das populações segundo padrões culturais e religiosos europeus.

As idolatrias dos índios significavam, pelo pensamento dicotômico europeu, a aliança daqueles com o Diabo, de forma que, para salvar as almas dos ameríndios, seus ídolos precisariam ser expulsos pelos missionários. O mesmo pensamento recaia sobre os escravos africanos. Ao mesmo tempo, entretanto, a natureza das terras americanas era vista como paraíso.

As culturas se adaptaram na América Portuguesa, os feiticeiros degradados do Reino e os demais portugueses, os negros trazidos da África, os ameríndios, todos compartilharam naturalmente seus elementos religiosos e acabaram contribuindo uns com os outros na criação de uma religiosidade híbrida. De sorte que, no Brasil, o Cristianismo tomou contornos ainda mais afetivos com a esfera divina. Um Deus frio e inacessível não seria útil para quem precisava sobreviver à escravidão ou ao trabalho numa terra distante e desconhecida – o mesmo passava com os Santos e a Virgem Maria, que foram amplamente cultuados desde então; existiam poucas igrejas e sacerdotes, o que, somado à interiorização da vida religiosa nas casas e fazendas, tornou a fiscalização pela igreja ainda mais difícil e favoreceu desvios e heterodoxias. A afetividade e familiaridade propiciavam maior devoção e detração dos símbolos de fé. Os feitiços na colônia foram formas sutis de resistir e compensavam a sobrevivência dos escravos, sejam africanos ou índios.

O capítulo IV, O sabá do sertão: contextos e personagens, traz, especialmente, experiências dos missionários jesuítas no sertão. Os índios do litoral, os tupis, foram de mais fácil aldeamento, dada a sua homogeneidade cultural; enquanto os tapuias, índios do sertão, constituíram verdadeiro desafio aos missionários, graças à diversidade.

No século XVII, intensificaram-se as missões desbravatórias pelos sertões em busca de índios para apresar, visto que sua mão de obra era muito requisitada no norte; e para expandir a ocupação e aumentar a produção de gado e açúcar principalmente. Neste cenário, vários jesuítas se posicionaram contra os desbravadores, protegendo os índios, que, inclusive, foram usados no combate a outros nativos no século XVIII. A Coroa não gostou da proteção dada pelos jesuítas ou do poder econômico que haviam conseguido no norte por doações de terras, escravos, engenhos, gado. Em 1760 os jesuítas foram expulsos das terras Portuguesas, presos e remetidos para Lisboa.

Um documento com confissões de duas escravas inspirou a elaboração de um artigo por Luiz Mott. Este artigo orientou o livro de Carolina Rocha Silva. As confissões são de um sabá, característico da Europa, mas com informações do sincretismo luso-afro-brasileiro, no Piauí colonial. Elas confessaram participar de reuniões noturnas com o Diabo, com direito a orgias sexuais e metamorfoses, conforme ensinadas por Mestre Cecília, esposa do anterior senhor/dono de Joana (esta era uma das escravas confitentes). Certamente o documento sofreu alterações e adições pelo padre Manuel da Silva, responsável pela oitiva das escravas e pelo envio das confissões à Inquisição de Portugal. As mulheres se mostraram arrependidas e atribuíram o acontecido à rusticidade e à falta de igrejas e sacerdotes para orientá-las no caminho de Deus. O caso foi arquivado nos cadernos do promotor.

Por fim, a autora admite que sua pretensão era permitir a reflexão acerca das formas híbridas e diversificadas de tratar o “mundo” sobrenatural no Brasil colônia, representante das tensões sociais suportadas na época.

A historiadora consegue prender o leitor até a conclusão da leitura do livro. A obra é uma verdadeira aula de história e apresenta a importância de micro-histórias para se entender o pensamento do povo em geral, pois a história, tal como é maiormente conhecida, foi contada por uma minoria letrada; e aos demais restaram apenas documentos, como as confissões e denúncias, que sequer são somente suas. Isto demonstra, sobretudo, o poder da alfabetização.

O direito evoluiu e consigo trouxe garantias, mas as pessoas, em especial as mais pobres e iletradas, seguem sendo vítimas do Estado, que agora não é ligado [formalmente] à igrejas. O livro traz a reflexão, também, sobre a formação cultural do Brasil e a desigualdade social desde que era colônia, como bem pretendia a autora.

Entre a Alta Idade Média e o início da Idade Moderna, como apontado texto, os Estados ainda eram confessionais, ou seja, declaradamente vinculados à uma religião, qual seja a cristã católica. A Justiça Eclesiástica, isto é, a justiça da igreja atuava por seus Tribunais do Santo Ofício, conhecidos como Inquisição, no combate à heresias, que iam da não crença em Lúcifer à troca da alma por poderes mágicos, passando pela blasfemação, um “delito da palavra”, comum na América Portuguesa.

Com a Reforma Protestante e o início da Idade Moderna a caça às bruxas se intensificou, pois todo e qualquer tipo de magia passou a ser condenado. Milhares de mulheres morreram e até hoje os historiadores não sabem se as tais mágicas de fato aconteceram ou se foram apenas invenções da igreja, que estava com medo de perder fiéis e, consequentemente, força e poder.

O direito à liberdade religiosa se mostrava necessário desde a época colonial, principalmente em países como o Brasil, de proporções continentais e de formação, inclusive na seara da religiosidade, híbrida. Certamente inúmeras perseguições e mortes teriam sido evitadas. Porém, o ideal da separação entre religião e Estado é mais recente. Este Estado é conseguido através da laicidade, método de ruptura entre Estado e Igreja e, mais profundamente, entre política e religião. Tal ruptura torna o Estado autônomo frente à Igreja Católica ou qualquer outra, possibilitando uma liberdade religiosa aos cidadãos, como defendido atualmente.

Carolina Soares Hissa – Doutoranda em Direitos Humanos na Universidade Federal de Goiás- UFG. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2012). Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (2002). Professora universitária onde leciona as disciplinas de Direito Constitucional, Administrativo, Internacional Público e privado. Pesquisadora Cnpq no grupo de pesquisa Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina da Universidade de Fortaleza. E-mail: [email protected]

Veronica Trindade Costa Póvoa – Graduanda em Direito na Escola Superior Associada de Goiânia – ESUP. E-mail: [email protected]


SILVA, Carolina Rocha. O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758). Jundiaí – SP: Paco Editora, 2015.Resenha de: HISSA, Carolina Soares; PÓVOA, Veronica Trindade Costa. O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758). Contraponto. Teresina, v.9, n.1, p.810-815, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial – MASSIMI (HU)

MASSIMI, M. (org.). A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 298 p. Resenha de: DILLMANN, Mauro. Literatura religiosa e jesuítas no Brasil Colonial. História Unisinos 18(3):645-648, Setembro/Dezembro 2014.

O livro aqui resenhado é uma análise psicológica – mas também histórica – da obra História do Predestinado Peregrino e de seu Irmão Precito escrita pelo padre jesuíta Alexandre de Gusmão2 (1629-1725) e publicada inicialmente em 1682.

Organizado por Marina Massimi, professora titular do Departamento de Psicologia da USP, a obra conta com sete textos, incluindo uma grande introdução escrita pela própria organizadora, quatro textos desta em coautoria com “jovens pesquisadoras” – três alunas do curso de Psicologia da USP, Lidiane Ferreira Panazzolo, Nayara Aparecida Saran e Lívia Tieri Kuga –, com uma mestre em Psicologia pela mesma Universidade – Maira Allucham Gulart Naves Trevisan Vasconcellos – e, por fim, um texto de um pós-doutorando em Cultura Contemporânea na UFRJ – José Eduardo Ferreira Santos.

A literatura investigada é uma novela do padre Gusmão que aborda a peregrinação de dois personagens, um chamado Predestinado e outro chamado Precito, que escolhem diferentes caminhos, percursos de vida, representados, respectivamente, pela viagem do Egito a Jerusalém (o paraíso, a salvação) ou do Egito à Babilônia (o inferno, a condenação), procurando demonstrar metaforicamente que a peregrinação representa o próprio percurso existencial e as escolhas de cada sujeito ao longo da vida.

Esta novela do padre Gusmão – dedicada ao peregrino e missionário Francisco Xavier Apóstolo do Oriente (1506-1552) – se configura, segundo Massimi (2012, p. 52), enquanto um compêndio da visão antropológica e dos saberes psicológicos elaborados pela Companhia de Jesus na América Portuguesa, cujo enredo é a peregrinação como figura alegórica da vida. Os dois personagens, Predestinado e Precito, aspirando à felicidade, iniciam sua peregrinação; o primeiro em direção a Jerusalém, em busca da salvação, segue com sua esposa, a Razão, com a qual tem dois filhos, Reta Intenção e Bom Desejo; o segundo segue em direção à Babilônia, em busca de satisfações materiais, com sua esposa Própria Vontade e seus filhos, Mau Desejo e Torta Intenção. A intenção de Gusmão, segundo Massimi e Panazollo (in Massimi, 2012, p. 203), ao intitular seu livro como a história de um Peregrino, servindo aos propósitos contrarreformistas, era a de recuperar fiéis perdidos, no sentido de atrair leitores, uma vez que alguns anos antes, em 1678, John Bunyan, um autor protestante, publicou O Peregrino.

Podemos incluir o livro de Gusmão, analisado por Massimi e outros, na categoria que chamamos “manuais de devoção”, obras da literatura religiosa moderna destinadas a difundir a doutrina cristã e os modelos de comportamento moral esperados para a vida virtuosa, a boa morte e a salvação da alma. Em um dos textos (O percurso de Predestinado Peregrino: encontros, lugares e imagens edificantes na História de Alexandre de Gusmão) do livro, as autoras, Lidiane Ferreira Panazzolo e Marina Massimi, reconhecem a obra do padre como “uma espécie de manual de conduta provavelmente utilizado nos colégios jesuítas” (p. 204). Na conclusão deste artigo, as autoras destacam que “havia poucos exemplares originais do livro”.

Pude constatar, em um prévio levantamento nos catálogos de arquivos de Portugal e do Brasil, a existência de edições de 1682, 1685 e 1728. Na Biblioteca Nacional de Portugal, constam três exemplares de 1682, formato livreto de mão, como quase todos manuais de devoção do final do século XVII e do século XVIII, com 15 cm, impresso na oficina Miguel Deslandes; quatro exemplares microfilmados da edição de 1685, publicada pela oficina da Universidade de Évora, e um exemplar de 1728, indicando ser de quarta edição, impresso à custa do mercador de livros Domingos Gonçalves na oficina de Felippe de Sousa Villela. Por esta mesma oficina e mesma edição, existem exemplares na Biblioteca Joanina, em Coimbra, e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, indicando ainda pertencer à Coleção da Real Biblioteca, o que demonstra o sucesso da obra no período e a circularidade da mesma entre a América Portuguesa.3 Além da interessante análise psicológica com enfoque histórico, o livro tem o mérito de apresentar a íntegra da obra analisada, transcrita com português atualizado, facilitando o acesso e a consulta deste documento para outros pesquisadores e interessados em geral. Além disso, as autoras “traduziram” o texto do padre Gusmão em dois interessantes anexos para a compreensão do texto.

Um deles é uma árvore genealógica dos personagens, o outro são dois mapas com descrições, rabiscos, setas e desenhos literalmente feitos de modo manuscrito, esquematizando a peregrinação de cada um dos personagens.

Ainda que uma estratégia didática e criativa das autoras, tal espécie de “mapa conceitual” poderia ter sido feita com melhores recursos gráficos, podendo manter a mesma diagramação do manuscrito, a fim de apresentar ao leitor uma melhor compreensão e leitura analítica.

Na construção da novela, em que Gusmão aborda a prática da peregrinação como a busca de um sentido de vida, as autoras identificam influências de Inácio de Loyola (Exercícios espirituais) e de Antônio Vieira (sermão Undécimo do seu dia). Loyola estaria presente no exemplo do uso pedagógico que fez de imagens para veicular a mensagem cristã e para agir na subjetividade do leitor, especialmente na memória e na imaginação, de modo a facilitar a meditação (Massimi, 2012, p. 24). Já Vieira destacaria o mundo em que se anda, a peregrinação, designando-a como “aquisição de experiência da qual se tira um ensinamento, uma moral”, diferenciando-a do desterro, um simples caminhar sem aprendizagem alguma (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 222-223).

A obra do padre Gusmão foi entendida como uma “metáfora da existência humana”, imagem muito empregada no período moderno para “comunicar conceitos”, pois as alegorias atuavam como “dispositivos retóricos” (palavras eficazes na ação do dinamismo psíquico dos destinatários) capazes de provocar atividades sensitivas e imaginativas (Massimi, 2012, p. 18, 23, 28). O uso destas alegorias, metáforas e recursos retóricos estaria de acordo com a pretensão do padre de “mover a curiosidade do leitor”, muito comum nas obras devotas do período moderno.

Essa “novela alegórica” estabelece uma relação de diálogo com o leitor, enquanto manual de instrução para ser (re)lido inúmeras vezes, que exemplifica os “requisitos para chegar à salvação” com suas dificuldades e riscos, tornando-se “mais próxima da vivência dos leitores” (Panazzolo e Massimi in Massimi, 2012, p. 207). A eficácia da proposta apresentada pelo padre estaria na disposição do leitor e na importância que o mesmo atribuiria à leitura (passatempo ou proveito), de modo que somente a leitura “para proveito” seria de grande “lição espiritual” (Massimi, 2012, p. 46).

O livro organizado por Massimi é uma contribuição à História do Brasil, especialmente à historiografia do período colonial, por considerar e interpretar a sensibilidade religiosa jesuíta no contexto de expansão da moral tridentina e da retórica dual barroca (paraíso-inferno, salvação-condenação, verdade-mentira, bem-mal), bem como as práticas de leitura dos manuais de devoção e sua circulação pela América Portuguesa, como se percebe, sobretudo, nos elucidativos textos de Marina Massimi (Texto introdutório) e de Nayara Aparecida Saran e Massimi (A peregrinação como percurso anímico: o percurso da Palavra e do Entendimento). No entanto, não há muitas referências ou exploração do contexto colonial em si, sobretudo em relação aos aspectos sociopolíticos, econômicos ou culturais da Colônia, das cidades por onde possivelmente o texto tenha circulado, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife. Além disso, é possível dizer que os primeiros textos do item “Leituras da novela à luz da história dos saberes psicológicos e da história da cultura”, destacado no sumário, são construídos com repetição dos argumentos, que podem ser encarados como reforço intencional na análise da obra de Gusmão.

Na análise que empreendem do manual do padre Alexandre de Gusmão, o objetivo parece ser plenamente alcançado, qual seja, o de destacar a pretensão do manual de “evidenciar a importância do cuidado de si” e os “efeitos do descuido”, enfatizando o “conhecimento da pessoa e prática de orientação” do sujeito (Massimi, 2012, p. 34). É nesse sentido que, ao longo de todos os textos, os autores enfatizam a importância atribuída pelo padre Gusmão ao processo do desengano, que implicava o uso consciente da razão, à confiança na razão para atingir um entendimento considerado verdadeiro da realidade e para ordenar a vontade,4 levando ao discernimento. Esse processo de desengano seria facilitado na prática do exame de consciência e nas demais práticas religiosas, como a confissão, já que eram acompanhadas de recursos culturais como imagens sagradas, pinturas, músicas, etc.5 Na novela de Gusmão, “Desengano” seria um personagem que “fixa os olhos na verdade” (Massimi, 2012, p. 42, 48), e o desenganado seria aquele que reconhecesse a enganação do mundo, que conseguisse visualizar as virtudes do céu desvinculando-as das aparências e prazeres imediatos do mundo terreno (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 230).

No artigo A experiência corporal na História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito, a relação corpo e alma foi abordada por Lívia Tieri Kuga e Marina Massimi para enfatizar as metáforas do corpo que remetem aos sentimentos dos personagens (coração, olhos, carne, vestimentas/trajes e corpo/alma), baseadas na filosofia clássica e escolástica (Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), de modo a demonstrar que as escolhas feitas em vida modificam não apenas o espírito, mas também o corpo de cada um. As autoras elaboraram um interessante índice ao final do capítulo, na medida em que referenciaram todas as expressões, metafóricas ou não, em que aparecem as estruturas corporais, como, por exemplo, “coração a ouvir”, “disse em seu coração”, “coração humilde”, etc.

Esse vínculo corpo/alma aparece ao longo dos textos que compõem o livro. Massimi destacou as “dimensões do dinamismo” do sujeito que seriam o corporal, o psíquico e o espiritual. O corporal estava no “gesto físico de peregrinar”, cujo movimento se vinculava aos estudos dos corpos e às teorias médicas acerca dos temperamentos.

O espiritual, o “núcleo temático central da novela”, uma vez que a leitura implicaria “envolvimento” e atitudes espirituais como a devoção – o apelo ao “devoto leitor” – estava no aprendizado de virtudes divinas, como a piedade, a obediência e a perseverança. Por fim, o dinamismo psíquico relacionava-se ao “funcionamento das potências da alma, suas operações, suas doenças e seus remédios”. As potências principais eram o entendimento e a vontade, cujo cultivo era de fundamental importância para o “bem viver” e para identificar as “enfermidades” da alma (Massimi, 2012, p. 34-37).

Massimi destaca que, no século XVIII, foi comum a presença do médico espiritual para a ordenação da vida pessoal dos fiéis, a partir da obra de Cláudio Acquaviva (1543-1615), Normas para a cura das enfermidades do ânimo (1600), que definiu os “vários tipos de doenças espirituais e de remédios para cada doença”; daí, então, o rótulo de medicina da alma muito recorrente na literatura jesuíta.

A atuação jesuíta, aliás, estaria vinculada à medicina do ânimo, à pregação e à pedagogia. Por “medicina da alma” a autora entende “um conhecimento do ser humano e de sua dinâmica psicológica que visa à adaptação deste ao contexto social de inserção” (Massimi, 2012, p. 50).

Marina Massimi assina outro texto com Maira Allucham Goulart Naves Trevisan Vasconcellos, que analisa outra obra que trata de peregrinação. Trata-se do Compêndio narrativo do Peregrino da América, escrito pelo padre Nuno Marques Pereira (1652-1728) e publicado em 1728.6 As autoras indicam a “grande circulação” e as várias reimpressões do manual do padre Pereira, nos anos de 1731, 1752, 1760 e 1765, mas não indicam quaisquer informações sobre os arquivos em que se encontram.7 No entanto, destacam que utilizam a sexta edição, publicada pela Academia Brasileira de Letras em 1939. A novela de  Pereira conta a viagem de um peregrino da Bahia a Minas Gerais no início do século XVIII. O Compêndio teria a finalidade de instruir e divertir o leitor por meio de contos e instruções de “como se deve viver para manter corpo e alma saudáveis e salváveis” (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 263). Para persuadir quanto aos preceitos de bem viver, Nuno Pereira buscava seus argumentos na Sagrada Escritura, em São João Crisóstomo e em Santo Agostinho.

Tal como a novela de Gusmão, a peregrinação é tanto o percurso geográfico percorrido pelo personagem principal – o Ancião – quanto o caminho existencial que conduz à eternidade (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 267), no qual era oportunizado ao homem o conhecimento de si e o desenvolvimento de virtudes.

Vale uma descrição um pouco mais apurada sobre a obra de Nuno Pereira – embora ocupe apenas um artigo do livro – para demonstrar a proposta do livro, que é a de apresentar os saberes dos jesuítas no Brasil Colonial. Se havia, no Compêndio, uma relação entre o bem viver e o bem morrer, da mesma forma havia doenças do corpo e da alma. A tristeza era um mal que, por exemplo, traria efeito na saúde do corpo, levando muitas vezes à morte súbita (uma má morte). As paixões eram empecilhos ao uso prudente da razão, e a demasiada tristeza levaria a doenças como lepra, sarnas, magreza, etc., cujos remédios variavam entre conversas, cheiros, ar do campo ou do mar e música. Aconselhava-se alimentação moderada, sono adequado, consumo de vinho, exercícios físicos, penitência, paciência, jejuns e disciplina. A salvação ou condenação da alma após a morte era determinada pela conduta na existência mundana (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 271-278). O Compêndio, tal como A novela História, recebeu infl uência dos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola e se apoiava nos escritos de Tomás de Kempis.8 O último artigo a integrar o livro organizado por Massimi é de José Eduardo Ferreira Santos (Peregrinos e viajantes: o homem em movimento, rumo ao destino, através da cultura popular e da música brasileira), um pequeno texto que, exceto por tratar de um tema em comum – a peregrinação, tomada genericamente como sinônimo de viagem e de romaria – destoa do objetivo geral da obra.

O texto de Santos busca identificar o peregrino/romeiro/ viajante na “cultura brasileira”, especialmente na música popular, o que é feito não sem algum juízo de valor, como ao se referir à canção “A triste partida”, de Luiz Gonzaga, destacando ser “muito famosa” e “belíssima”, que “revela uma das características mais complexas do homem moderno, que é a perda de suas raízes ocasionada pelas difíceis condições sociais” (Santos in Massimi, 2012, p. 288-289).

A obra organizada por Marina Massimi atinge plenamente os objetivos propostos, demonstrando a contribuição de autores da Companhia de Jesus no contexto luso-brasileiro da Idade Moderna para a “criação de formas, de métodos e de justificativas de um tipo de conhecimento da subjetividade e do comportamento humano” que deram origem à psicologia moderna (Massimi, 2012, p. 17).

Mesmo sem seguir uma perspectiva metodológica estritamente histórica, o livro é uma importante refl exão e contribuição à atual historiografia dedicada às práticas de leitura e à circulação, no Brasil, de obras religiosas editadas e publicadas inicialmente em Portugal da época moderna, bem como voltada à análise dos discursos cristãos para instruir a vida devota, para conduzir o fiel no caminho do bem viver, para exemplificar as condutas morais que garantiriam uma boa morte e uma eternidade feliz.

Referências

DAVIS, N.Z. 2001. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo, Companhia das Letras, 300 p.

DELUMEAU, J. 1989. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo, Pioneira, 301 p.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2013. Os sete pecados capitais e os processos de culpabilização em manuais de devoção do século XVIII. Topoi, 14(27):285-317.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2012. “A Vossa graça nos nossos sentimentos”: a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII. Revista Brasileira de História, 32(63):83-118. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882012000100005 PERIER, A. 1724. Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma, Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 439 p.

WITTMANN, R. 1999. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: G. CAVALLO; R. CHARTIER (org.), História da leitura no mundo ocidental. São Paulo, Ática, vol. 2, p. 135-164.

Notas

2 Alexandre de Gusmão nasceu em Lisboa em 1629 (português, embora a autora se refira ao mesmo como “baiano” [p.18]), foi diretor do Colégio do Menino Jesus de Belém em Cachoeira do Campo, próximo a Salvador, na Bahia, local onde viveu e morreu em 1724. Foi autor de inúmeras outras obras sobre a “arte de viver”, como Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia [1685]; Escola de Belém, Jesus nascido no Presépio [1678]; Menino Christão [1695]; Maria Rosa de Nazaret nas montanhas de Hebron, a Virgem nossa Senhora na Companhia de Jesus [1715]; Eleição entre o bem e o mal eterno, O corvo e a pomba da Arca de Noé no sentido alegórico e moral [1734] (Massimi, 2012, p. 18).

3 É possível conferir os catálogos on-line em: http://www.bnportugal.pt; http://www.uc.pt/bguc; http://www.bn.br/portal.

4 Considerando que o público leitor (e ouvinte) das obras manuais de devoção era, em grande medida, feminino, é importante considerar a observação feita pela historiadora Natalie Davis para as características atribuídas às mulheres na França do século XVI. Elas eram caracterizadas com o termo “imbecillité”, que designava “a fraqueza mental e de vontade” (Davis, 2001, p. 126). Sobre a difusão maior da leitura entre o público feminino e para as instruções voltadas às mulheres, ver Wittmann, 1999, p. 143; Fleck e Dillmann, 2012, e Eliane Cristina Deckmann Fleck, Mauro Dillmann. “Remédios para amansar a fera”: as regras para o bem viver e as orientações para os mal casados viverem em paz em um manual de devoção do século XVIII (texto inédito).

5 Reflexões sobre o “desengano” parecem ter sido foco comum de muitos jesuítas, principalmente daqueles dedicados à pregação e à conversão. Um exemplo interessante, nesse sentido, é a obra do jesuíta italiano Alexandre Perier, que no final do século XVII atuou no Brasil, publicando em Lisboa, no ano de 1724, um manual que leva no título a palavra “desengano”. Alexandre Perier, Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma: Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 1724. Uma análise desta obra pode ser conferida em Fleck e Dillmann, 2013.

6 As autoras indicam a influência da obra de Gusmão em Nuno Marques Pereira, mas destacam que teria sido retomada “quase cem anos depois”, quando, na verdade, entre a primeira edição de História do Predestinado Peregrino [1682] de Gusmão, e o Compêndio [1728], de Pereira, não chegou a se passar meio século.

7 No catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi possível localizar quatro exemplares, dois de 1760, um de 1767 e um de 1939. Todavia, a obra continuou sendo editada, considerando que no Acervo da Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo/RS, existe edição de 1988 pela Academia Brasileira de Letras.

8 Tomás de Kempis (1379-1471) era alemão, autor da obra A imitação de Cristo, uma das que conheceu extraordinária difusão no início do período moderno, segundo Delumeau, e que recebeu impressão em diversas línguas, “umas sessenta vezes antes de 1500” (Delumeau, 1989, p. 77).

Mauro Dillmann – Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande. Campus São Lourenço do Sul Rua Marechal Floriano Peixoto, 2236, Centro 96170-000, São Lourenço do Sul, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662 – FRANZEN et. al (HU)

FRANZEN, B.V.; FLECK, E.C.D; MARTINS, M.C.B. (orgs.). Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662. São Leopoldo: Editora Unisinos/EdUFMT/Oikos Editora, 2008. 143 p. Resenha de: KARNAL, Leandro. Um documento jesuítico. História Unisinos 13(3): 312-313, Setembro/Dezembro 2009.

Pela primeira vez, é publicada no Brasil a Carta Ânua sobre a Província do Paraguai, que o provincial Andrés de Rada assinou em 1663. Esta Carta cobre o período 1659-1662 e, na edição organizada pelas pesquisadoras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, encontramos uma espécie de rascunho sobre os anos 1658-1660.

Os que trabalham com a documentação colonial jesuítica sabem o quanto esta publicação é importante. A documentação da Companhia de Jesus no período colonial é a fonte privilegiada para estudos religiosos, econômicos, políticos, antropológicos e até para os trabalhos sobre gênero. Escritores compulsivos, os membros de uma ordem que incorporou a noção moderna de texto e de sistematização de informações – a Companhia de Jesus – produziram uma pletora de cartas, relatórios, textos e imagens sobre quase tudo em sua época.

As Cartas Ânuas, síntese de muitas cartas parciais enviadas pelas unidades como colégios ou missões, constituem a atividade obrigatória de um jesuíta Provincial perante o religioso Geral em Roma, posto que fundamentam as decisões sobre a atuação dos jesuítas.

O documento publicado oferece uma rica oportunidade para as pesquisas brasileiras. Primeiro, porque fornece a visão corporativa e de conjunto da Companhia em sua ação no Novo Mundo. O texto revela um fl uxo de consciência com regras de retórica e apresenta os percalços da tarefa gigantesca que os padres enfrentavam. Entre estes se destacam o território imenso de atuação, os atritos com autoridades locais e até a defesa diante da acusação sobre a falta de empenho dos missionários.

Questões candentes como a tributação e o debate sobre o fornecimento de armas para as comunidades indígenas mostram que o olhar jesuítico concebe a Carta como um relatório amplo e não apenas religioso. Melhor dizendo: a visão sobre a eficiência da catequese parece incluir tudo que possa facilitar ou atrapalhar este projeto. O “mundo indígena e colonial em suas múltiplas facetas” (Franzen et al., 2008, p. 26) são o escopo do texto. Nesse sentido, a aspiração metafísica da Companhia de Jesus não parece excluir nada da imanência colonial.

O documento instiga o leitor, linha após linha, a reflexões e à formulação de perguntas que despertam pesquisas. De que maneira funcionavam colégios como os de Córdoba, Assunção ou Buenos Aires? Que modelos hagiográficos ou retóricos existem na descrição de cada necrológio da Carta, constituindo vidas exemplares, as quais, inclusive, poderiam conduzir a leituras mais amplas? Quais os modelos de missão descritos na obra? Como foram concebidos e implementados os projetos de evangelização dos indígenas? Qual o grau de maleabilidade tolerado pelos jesuítas em relação aos signos da cultura do outro? Como a alteridade é compreendida na pena dos padres? Quais redes de comunicação são constituídas e descritas pela Carta? Como as aparições da Virgem, indicadas pela narrativa, interagem, justificam ou corrigem a ação missionária? Que relações de gênero fluem da pena do provincial, ao descrever, por exemplo, a resistência de uma jovem índia ao assédio de um jovem tomado pela luxúria? Como as epidemias atuam nas comunidades? Quais conclusões demográficas podem ser retiradas de números registrados, como a cifra de 40 mil indígenas e 9525 famílias sob o cuidado da Companhia de Jesus na região? (Franzen et al., 2008, p. 106).

A publicação já é extraordinária pelos dois textos em si. Porém, o valor é aumentado pelo acréscimo de introdução, notas explicativas, mapas, relação de gerais, tabelas e índice onomástico final. A atual edição é a tradução realizada pelo P. Carlos Leonhardt, em 1927.

Como indicação final, resta sonhar com a ampliação da clareira aberta pelas pesquisadoras. Pensando no céu sobre esta estrada, resta também almejar que surjam outras publicações com a reprodução fac-similar do texto, sua transcrição paleográfica e tradução. Pensando na terra simples do chão do terreno, que despontem edições com a versão em português para o grande público. A lufada de ar fresco trazida pelo esforço das pesquisadoras Beatriz Vasconcelos Franzen, Eliane Cristina Deckmann Fleck e Maria Cristina Bohn Martins permite imaginar horizontes ainda maiores. Os pesquisadores sobre o período colonial agradecem.

Leandro Karnal – Doutor em História Social pela USP. Atualmente é RDIDP da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp). Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária Zeferino Vaz, s/n, Caixa Postal: 1170 13083-970, Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Tão longe tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada – DOMINGUES (HU)

DOMINGUES, B.H. Tão longe tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada. Rio de Janeiro: Museu da República, 2007. 260 p. Resenha de: PINHO, Leandro Garcia. Comparando ocidentes. História Unisinos 13(3):308-311, Setembro/Dezembro 2009.

Autora de outros livros originários, respectivamente, de sua dissertação e tese, os textos apresentados nesta obra resultam de compilações de artigos publicados por Domingues nos últimos quatro anos e derivados de pesquisas realizadas em diferentes contextos acadêmicos nacionais e internacionais. Os temas desses estudos são entrelaçados a partir de um assunto que remete ao período em que foram escritos e que, por muito tempo, estão em voga em parte do pensamento Ocidental: a polêmica do Novo Mundo. Tema caro, certamente, à historiografia – como lembra Fleck em comentário a esta obra de Domingues –, mas visto aqui por meandros e graus de comparação até então pouco vistos.

O grande mote de Tão longe tão perto é, por certo, interligar e relacionar a produção jesuítica – inserida na chamada Ilustração Católica – à produção iluminista presente em autores ibéricos, britânicos e franceses da mesma época. Além disso, a produção textual jesuítica dos Setecentos na colônia brasílica ganha inserção na e correlação com a muito discutida textualidade dos inacianos da Hispano-América.

Autorizando-nos a pensar de forma complexa e plural o fenômeno da Ilustração, Domingues, na primeira parte da obra, discute, num texto inicial, as diferenças marcantes entre os chamados árcades e os jesuítas na clássica tópica colonial sobre a defesa do Novo Mundo. Ao fazê-lo, a autora evidencia que, para além dessas diferenças, pombalismo e jesuitismo podem não ser pensados apenas numa relação contraditória ou dicotômica.

Compondo a chamada “cidade letrada” – termo tão largamente associado a Angel Rama – da colônia lusitana na América, jesuítas e árcades possuíam tanto temáticas e propostas diferentes entre si como possíveis de aproximações. Domingues autoriza tal argumento, recorrendo à análise de textos de Pombal e Basílio da Gama – como integrantes de uma Ilustração Civil – e comparando-os com textos como o de João Daniel e Clavijero – membros da vertente católica e jesuítica do iluminismo. Assim, mesmo após a expulsão dos jesuítas dos impérios ibéricos – o que desencadeia forte literatura contestatória da ação dos inacianos – e a produção letrada de acirrada defesa de seus próprios argumentos por parte dos Soldados de Cristo, podemos encontrar resultados semelhantes em intenções e argumentos diferentes no que tange à relação desses textos com o tema do Novo Mundo.

Árcades e jesuítas enaltecem a América e se contrapõem a uma visão negativa presente entre a maioria dos ilustrados europeus acerca de nossas terras, habitantes, fl ora e fauna.2 Inseridos na Polêmica do Novo Mundo, os textos analisados por Beatriz Domingues descortinam-se como capazes de “encontrar ‘resultados’ relativamente semelhantes em escritos motivados por razões praticamente opostas” (Domingues, 2007, p. 45). Tanto os árcades, ao reagirem contra uma visão negativa acerca da América por parte dos ilustrados europeus, quanto os jesuítas são capazes – cada um a seu modo, claro – de contribuírem, segundo a análise da autora, para a constituição de uma incipiente consciência patriótica nas colônias d’além-mar.

Os jesuítas, “mesclando uma visão religiosa de mundo com idéias seletas da Ilustração europeia”, “estavam, a seu modo, forjando suas interpretações sobre a singularidade brasileira” (Domingues, 2007, p. 53), contribuindo, como faziam os árcades, para a afirmação da identidade política luso-americana.

Desse modo, Domingues diverge da proposta de Martins, que limita ao grupo dos acadêmicos brasílicos a exclusividade de formarem essa identidade já diferenciada da matriz europeia. Entre os pesquisadores de nossa literatura, é uma constante associar a produção letrada dos árcades luso-brasileiros dos Setecentos à formação de uma particularidade brasílica. E é exatamente neste ponto que reside, nesta primeira parte da obra em análise, o grande salto analítico de Domingues, pois “a atitude enaltecedora do projeto português no Brasil não pode ser generalizada” (Domingues, 2007, p. 54).

Em um terceiro momento desta primeira parte, ao recorrer ao texto de João Daniel – jesuíta desconhecido de seu tempo, que passou boa parte de sua vida na Amazônia e, posteriormente, foi expulso e preso por conta da ilegalidade da Companhia a partir da segunda metade do século XVIII –, Domingues apreende as formulações do inaciano, ao descrever as benesses do Norte da colônia brasílica. De acordo com a autora, a proposta do jesuíta em questão é tentar tirar máximas de comportamento para servirem de exemplo aos católicos e, ao mesmo tempo, oferecer informações detalhadas sobre o uso medicinal das plantas nativas, para melhor exploração da região e também da possível coexistência do homem com o meio.

Sem desautorizar tal análise de Beatriz Domingues, é possível acrescentar que desde os primeiros escritos de inacianos sobre nossas terras, já no século XVI, esta também parece ser parte da intenção de jesuítas como Anchieta, Soares e Cardim, ao tentarem caracterizar positivamente as terras lusitanas na América3.

A segunda parte do livro inclui a discussão realizada pela autora acerca de algumas “Histórias da América espanhola escritas por jesuítas exilados” e a infl uência/ contato destas com o universo letrado da Ilustração. Complemento interessante da proposta do livro, esta sessão é inaugurada pelo texto que versa sobre as duas Histórias da Califórnia escritas por Miguel de Venegas e por Francisco Javier Clavijero (in Domingues, 2007).

Domingues destaca que o primeiro tentou, em seu texto, trazer informações sobre a história passada e presente da região, no intuito de explicar o sucesso da empreitada jesuítica, tanto com argumentos espirituais quanto com temporais. A grande diferença entre as duas obras se faz pelo fato de que Venegas (in Domingues, 2007) escreve seu texto no momento em que ocorre a implementação das Reformas Bourbônicas na região americana. Já Clavijero, no momento em que compila sua Historia de la Antigua or Baja California (in Domingues, 2007), não vivia na região retratada, mas se encontrava no exílio, no status de ex-jesuíta. A Ordem foi suprimida pelo papa em 1773.

Enquanto Venegas (in Domingues, 2007) tentava convencer alguma autoridade metropolitana sobre o valor de se manter a obra missionária na Baixa Califórnia, Clavijero (in Domingues, 2007) não se preocupava com o que já pareciam “águas passadas”. Às autoridades espanholas parecia sem sentido qualquer apelo de reestruturação da Companhia de Jesus. Cabia, então, na visão desse ex-inaciano, entreter o público europeu com informações sobre um exótico novo mundo chamado América. Inseridos em tópicos de discussão que impregnavam seu tempo, a Polêmica do Novo Mundo e Ilustração Católica europeia, Clavijero e Venegas estavam envolvidos numa tentativa de oposição à campanha anti-jesuítica que, irradiada da Europa, transformava o mundo colonial na América.

Apesar disso, tinham, na percepção de Domingues, relações afetivas diferentes com a Califórnia. No afã de seu tempo – antes de atos sumários que eliminaram a ação inaciana na América – Venegas (in Domingues, 2007) aposta na intensificação do povoamento e na importância da missão na região em destaque, enquanto Clavijero (in Domingues, 2007), escrevendo alguns anos depois, estava bem menos seguro nesta aposta. Seus textos nos remetem hoje menos ao que poderia ter-se dado na Califórnia, caso se aceitasse o que os autores almejavam, do que uma visualização da “complicada relação entre a Companhia de Jesus e o Estado espanhol do século XVIII” (Domingues, 2007, p. 181).

O segundo artigo desta parte traz uma análise sobre outro escrito de Francisco Javier Clavijero (in Domingues, 2007) em sua tentativa de compilar uma História do México. Este jesuíta volta ao foco central de Domingues em outro escrito, a Historia antigua de Mexico (Clavijero in Domingues, 2007). Cristianismo, indigenismo e patriotismo são marcas indeléveis desta obra de Clavijero apreendida pela autora. Toda essa empreitada deve ser entendida como inserida no que a autora entende por “Ilustração Católica”. Clavijero rompia com os chamados “esquemas da historiografia oficial espanhola” (Domingues, 2007, p. 196) e enfrentava os preconceitos e erros da História Filosófica dos detratores da América.

Foram exatamente estas características que fizeram do jesuíta em relevo ser incluído na Ilustração Católica. Seu catolicismo patriótico estava, dessa forma, inserido nos áureos ventos que, no século XVIII, modificavam pensamentos ao mesmo tempo em que reformulavam os já existentes.

A terceira e última análise textual de Domingues chega até os rincões sul-americanos e nos apresenta a visão de Josep Perramás acerca das missões jesuíticas no Paraguai. Publicado em Faenza, na Itália, em 1793, a obra Platón y los Guaraníes (in Domingues, 2007) é percebida pela autora de Tão longe tão perto como um texto que deixa ao leitor um tom memorialístico e saudosista. Mas esta não é a chave de leitura que Domingues usa para penetrar neste estudo comparativo e sistemático, que Perramás (in Domingues, 2007) escreveu sobre as reduções jesuíticas do Paraguai. Recorrendo a uma abordagem diferenciada, a autora estabelece um paralelo entre o texto do jesuíta, que viveu entre essas missões na América do Sul, e as utopias católicas renascentistas.

Contrapondo-se ao que o discurso dessa utopia europeia concluía e propagava, Perramás (in Domingues, 2007) enfatizava que o exemplo de Estado e Sociedade cristãos no continente americano serviam como uma utopia concretizada dos inacianos em pleno coração do território sul-americano. Trazendo à tona as refl exões de Platão, segundo Domingues, o método desse jesuíta consistia em compendiar o que o grego antigo pensava sobre cada assunto, passando a descrever um determinado aspecto e recorrendo a relatos sobre os guaranis. Por fim, sua ideia se concentra em “deixar que o leitor decida” se “existiram mais afinidades ou discrepâncias entre os escritos de Platão e a vida concreta dos índios guaranis” (Domingues, 2007, p. 213).

Destacando a “utopia concretizada” (in Domingues, 2007) dos guaranis em relação à platônica e às renascentistas, Perramás (1793) se torna mais um contundente crítico das proposições que denegriram a montagem do mundo construído pelos Soldados de Cristo na América e de sua visão sobre os povos americanos. Não só mais uma voz em prol da empreitada missionária dos jesuítas pelo nosso continente, Domingues ressalta que o inaciano faz uso de um filósofo ilustrado de primeira grandeza entre os que tinham uma visão pejorativa sobre o continente americano contra outros do mesmo grupo.

Assim, o jesuíta – diferentemente de outros membros da Companhia, como Clavijero e João Daniel – se ampara em Buff on, para fornecer um julgamento positivo dos pueblos guaranis, ou seja, ele usa o mestre Buff on contra os discípulos De Pauw e Raynal (Domingues, 2007, p. 234).

Em Tão longe tão perto, ficam claras as lições atuais ditadas pela historiografia nesse início do século XXI e não ignoradas pela autora. Uma delas é tentar apreender o que dizem os autores discutidos, reconhecendo que eles possuem uma competência própria para analisar sua situação. A historiadora coloca-se “à escuta dos autores”4. Outra infl uência marcante do texto – esta já com referência explícita em trechos da obra de Domingues e não necessariamente distante da proposta acima referida – está em seguir a trilha do movimento intelectual conhecido como linguistic turn, ou virada linguística. Compreendendo os pressupostos dessa corrente, Beatriz Domingues consegue perceber os escritos jesuíticos e não jesuíticos dos Setecentos – sejam eles a favor ou contra o papel dos inacianos – longe dos maniqueísmos muito comuns na historiografia, tais como “pombalismo X jesuitismo”, “ilustração X escolástica”, “razão X religião”.

O intrigante da obra de Domingues é ver que os textos jesuíticos escritos no século XVIII e, principalmen te, os redigidos após a expulsão dos inacianos do mundo ibérico, mostram a capacidade dos inacianos de lerem o mundo ilustrado sem desconsiderarem a referência religiosa e a noção de Estado que possuíam. E, ao fazerem dessa forma, os jesuítas também são capazes de contribuir com a até então incipiente noção de identidade nacional que foi a motivação crucial para as muitas páginas escritas nos séculos seguintes, principalmente no XIX, momento de afirmação da nacionalidade brasílica e das demais regiões ibéricas na América.

Dessa forma, a compilação de artigos publicados pela autora aqui e no exterior está à altura da sagacidade do leitor ávido por novas descobertas e possibilidades analíticas acerca do tema proposto. A obra interessa tanto aos que procuram compreender a complexidade do fenômeno da Ilustração, quanto àqueles que se mostram capazes de perceber a necessidade de interligarmos o pensamento europeu ao americano, sem reduzirmos um ao outro.

Partindo da premissa de que discursos e textos são partes constitutivas de contextos históricos, Domingues faz jus ao prometido ao leitor já no tema do livro (empréstimo da obra cinematográfica de Win Wenders): analisar a expressão letrada do pensamento que se faz na e sobre a América é oscilarmos entre algo que ora nos parece tão longe de uma matriz europeia ocidental, ora nos faz tão próximos, sendo capazes de quase nos sufocar.

Referências

DOSSE, F. 2007. O método histórico e os vestígios memoriais. In: E.

MORIN (org.), A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 6ª ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, p. 394-407.

PINHO, L.G. 2006. Jesuítas e pensamento mestiço: adaptação e ocidentalização nos escritos quinhentistas luso-americanos de Anchieta, Soares e Cardim. Juiz de Fora, MG. Tese de Doutoramento. UFJF-MG, 175 p.

Notas

2 Conferir tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião (PPCIR) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) realizada em 30 de junho de 2006 (Pinho, 2006).

3 Sem fazer menção a Dosse (2007), Domingues faz jus a esta ideia (de colocar-se “à escuta dos autores”) apresentada por ele ao analisar a historiografia atual que tenta romper com pressupostos defendidos por uma corrente estruturalista ou por um “paradigma crítico”.

4 Sem fazer menção a Dosse (2007), Domingues faz jus a esta ideia (de colocar-se “à escuta dos autores”) apresentada por ele ao analisar a historiografia atual que tenta romper com pressupostos defendidos por uma corrente estruturalista ou por um “paradigma crítico”.

Leandro Garcia Pinho – Doutor em Ciência da Religião (UFJF-MG), Mestre em História (UNICAMP-SP), Graduação em História (UFJF-MG). Professor do ISE Itaperuna (FAETEC-RJ), Vice-Reitor e Coordenador do Curso de História do Centro Universitário São José de Itaperuna. Rua Major Porphírio Henriques, 41, Centro 28300-000, Itaperuna, RJ. E-mail: [email protected].

Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição – VAINFAS (Tempo)

VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384 p. Resenha de: SANTOS, Maria Cristina dos. Lições da Traição: a redução da escala na análise histórica. Tempo v.14 no.27 Niterói  2009.

Desde a década de 1980, a quantidade de traduções e publicações acerca das discussões sobre os novos paradigmas teóricos e metodológicos da pesquisa histórica supera em muito os títulos resultantes de pesquisas que ousaram aplicar os novos paradigmas em discussão, indicação clara de que, na produção do conhecimento histórico no Brasil, muito se discute sobre como fazer, mas pouco se arrisca ao realizar uma pesquisa documenta. Esta particularidade pode ser observada no boom editorial que ocorreu nas publicações sobre a História das Mentalidades, História Cultural, de Gênero, da Vida Privada, entre outras.

Algo semelhante ocorria, até então, com a metodologia da redução da escala de análise histórica. Entre as inúmeras discussões realizadas, alguns autores tentaram vincular à metodologia da microanálise os restritos resultados de suas pesquisas locais e/ou regionais. Nada mais distante. Essas tentativas cômodas, oriundas de leituras superficiais, foram usadas para justificar pesquisas, ou melhor, recopilação de documentos, sem alcance analítico para ultrapassarem os limites locais onde foram realizadas. O impulso metodológico da microhistória não é small is beautifull; não é a pequenez do gesto, mas a análise, a escala de observação.1 Conforme Medick, é importante destacar a perspectiva de conhecimento microanalítica como um, mas de forma alguma o único, método específico de investigação. Mas só ele permite – partindo das ações, experiências e condições de vida de pessoas individuais – localizar, de uma maneira nova, seu envolvimento em redes sociais, culturais e econômicas, incluindo seus efeitos e limites nos contextos globais.2

Não foi por mera coincidência que Vainfas iniciou seu ensaio sobre Os Protagonistas Anônimos da História, apresentando de forma crítica a micro-história em meio a uma “teia de equívocos”, evidenciando, assim, o que ela “não é”.3

Entre os inúmeros debates realizados no âmbito acadêmico, Sandra Pesavento não titubeou ao afirmar: “realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método, mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste recorte de escala”.4 A peremptória afirmação beira o desafio: dizer mais sobre um recorte do real. Isso pressupõe que realizar uma pesquisa documental, conforme os paradigmas conceituais e metodológicos da micro-história, não é tarefa fácil, tampouco para principiantes. Tal constatação fica demonstrada na forma, no conteúdo e nos enlaces descortinados por Vainfas na Traição.

A construção da narrativa seduz o leitor, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Sobre a forma, cabe salientar que Vainfas subverte o formato da narrativa histórica clássica, ao começar pela descrição do ambiente das cenas finais da trama urdida por Manoel de Moraes, tal como num romance policial. A realização de uma exaustiva pesquisa histórica não é, nesse caso, justificativa para apresentar os resultados em textos longos, aborrecidos e recheados de um vocabulário hermético. As aventuras e desventuras desse protagonista, até então quase anônimo, são apresentadas numa sequência de quarenta capítulos, em sua maioria, curtos e construídos literariamente de maneira a prender o leitor e desconcertar o historiador, sobretudo aquele mais tradicional. Mas, o que parece inusitado na forma avança ainda mais no conteúdo.

Vainfas reconstituiu a história de Manoel de Moraes em uma narrativa envolvente que não abandona em nenhum momento o necessário rigor acadêmico. O prazer da leitura de um texto literariamente sedutor traz consigo vários questionamentos teóricos e metodológicos sobre a historiografia do período colonial.

Manoel de Moraes nasceu em São Paulo, tornou-se jesuíta e atuou como missionário em Pernambuco. Participou de forma ativa, junto com Felipe Camarão, das guerras entre Portugal e Holanda, na primeira metade do século XVII. No posto de Capitão do Gentio, Manoel atuou, com armas em punho e em uso, na frente de batalha. “O lado paulista de Manoel de Moraes veio à tona com força máxima nos combates contra o holandês […] na verdade, lutava e matava com garra, agindo como autêntico paulista nos matos, esquecido dos mandamentos de Deus e de suas obrigações como sacerdote”(p. 43-45). Mas, ao perceber a iminente derrota, Manoel cruza o campo de batalha e se oferece aos holandeses. O limite entre a rendição e a traição no final da guerra da Paraíba é quase invisível – o que, segundo Vainfas, dá quase no mesmo. Manoel de Moraes passou para o lado dos holandeses e levou consigo todos os índios que comandava. “No mínimo salvou a própria vida e logo vislumbrou novos horizontes”(p.65).

A partir daí, o leitor, seja alheio ao assunto ou um especialista, será levado a caminhos inimagináveis, traçados tanto pela trajetória oblíqua do personagem, como pela habilidade de Vainfas como narrador. Manoel de Moraes passa, então, a protagonizar uma sequência de traições – que estão para muito além de gregos, troianos e pernambucanos.

Depois de trair os princípios contrarreformistas do Concílio de Trento, onde havia começado sua formação religiosa, mudou-se do Brasil para a Holanda. Foi aí que se casou por duas vezes, dentro dos rituais calvinistas. O primeiro casamento foi por conveniência política e econômica; já o segundo, nosso Manoel acabou por ceder “às fraquezas da carne e aos excessos contra o sex[t]o mandamento”(p.126-154). Foi também na Holanda que ele se escondeu do primeiro processo da Inquisição portuguesa, quando foi julgado e condenado à fogueira. Na ausência do réu, uma estátua deste foi queimada em praça pública (p.180), conforme as determinações do Santo Ofício. Tornou-se um informante privilegiado dos holandeses contra os portugueses, inclusive na questão da forma de como atuar junto aos indígenas no Brasil. Entre as várias obras que produziu, elaborou um “Plano para o Bom Governo dos Índios”, utilizando o modelo jesuítico, porém sem jesuítas (p.121). Trocou uma Companhia (de Jesus) por outra (a das Índias Ocidentais), como um padre troca de batina.

missa de Manoel, no entanto, não está nem na metade. Surpreendentemente, ele faz o caminho de volta. Atormentado pelos dramas de consciência, talvez resquícios de sua formação jesuítica, empreende uma viagem de retorno ao Brasil e ao catolicismo, porém não à vida sacerdotal strictu sensu. Nesta circunstância é que Manoel de Moraes se converte num traidor perfeito.

Traiu os jesuítas, traiu os portugueses na guerra de resistência; voltou a traí-los, prometendo servir a D. João IV em troca de mercês e perdões, enquanto arrancava dos holandeses o contrato do paubrasil; traía, ao mesmo tempo, a WIC [West International Company], oferecendo-se aos embaixadores portugueses para combater os holandeses no Brasil; traiu Adriana Smetz, não nos esqueçamos dela [e de sua beleza estonteante], ao abandoná-la com três crianças em Leiden. Não haveria de ser como brasileiro que Manoel honraria algum contrato (p.230).

De volta a Pernambuco, com um empréstimo da WIC, Manoel torna-se senhor escravista, negociante de pau-brasil, e passa a viver provavelmente amancebado à “negra Beatriz”, que desempenhava nada menos do que a função de feitora [!] (p.232). Durante seus últimos anos no Brasil, consegue algumas outras façanhas, tais como: enriquecer como negociante, passar o calote na Companhia das Índias e ainda conceber “a peculiar e absurda perspectiva de vir a ser uma espécie de predicante católico. Católico na fé, com direito a pregar e oficiar missas, mas sem o voto de obediência (exceto a militar), muito menos os de pobreza e de castidade. Uma espécie de mescla entre o predicante calvinista e o padre católico”(p.259). Tanto fez que, por fim, foi preso e levado ao Tribunal do Santo Ofício da metrópole lusitana.

Em Lisboa, encarcerado na Casa Negra do Rocio, Manoel de Moraes começa uma terceira e derradeira etapa de suas estratégias. Será durante seu segundo julgamento que as habilidades retóricas e as artimanhas mais audaciosas desse memorável personagem terão mais espaço.

Atitudes, propósitos e convicções, aparentemente contraditórias, são constantes na tortuosa vida de Manoel de Moraes. Pelo texto de Vainfas, tais contradições convertemse em luzes sobre um passado cristalizado pela historiografia tradicional, como blocos homogêneos, quase sempre antagônicos. De um lado está o Ocidente católico e civilizador; de outro, os nativos a serem cristianizados e cooptados pelas forças colonizadoras. Nesta historiografia de antagonismos, não há espaço para fraturas, para desvios de comportamento ou para qualquer exceção.

Não foi pouco o esforço teórico e metodológico que a academia empreendeu, em particular, na última década para demonstrar as diversidades internas de supostos conjuntos sócio-religiosos-econômicos e culturais dos nativos, com os quais um Ocidente se enfrentou. Vainfas apresenta muito além da vida de altos e baixos de Manoel de Moraes e ressalta a importância de uma pesquisa séria como base de uma análise histórica consistente. Por meio das traições de Manoel de Moraes, Vainfas constrói uma audaciosa trilha até então minoritária na academia. Ao longo do texto, são apontados inúmeros elementos para relativizar a suposta constância do Ocidente nas Américas. Em particular, a pretensa homogeneidade de uma instituição como a Companhia de Jesus, criada com o intuito de atuar como elemento de coesão do mundo católico ameaçado pelas fraturas provocadas pelos diversos movimentos reformistas, tais como o Luteranismo, Anglicanismo e Calvinismo.

Ao leitor leigo, as peripécias de Manoel como Capitão dos Gentios, Fantasma, Calvinista, Delator, Pertinaz Valentão, ou entre Paixões Flamengas, despertará curiosidades e dúvidas no conhecimento sobre a América Portuguesa, o Brasil Holandês e as disputas europeias do século XVII, disseminadas no senso comum. Ao leitor acadêmico, a trajetória deste personagem, aliada ao refinamento teórico-metodológico de Vainfas, evidencia por que e como a rigorosa pesquisa documental ainda se mantém como o grande diferencial entre o pensar, fazer e escrever História e o escrever sobre História.

Todas as afirmações estão documentalmente comprovadas e a cronologia incluída no final da obra contextualiza os eventos narrados. Se para alguns leitores tais informações podem servir como bússola das intrigas na qual Manoel esteve inserido, para outros servirá também para evidenciar que o período moderno, tanto na Europa Ocidental quanto em suas ramificações coloniais, não pode ser explicado somente como a transição do feudalismo ao capitalismo, ou como a época de ouro do pensamento mesti ço. Manoel de Moraes é tudo isso e muito mais.

Ao longo do texto, no século XVII, Espanha, Portugal, Holanda e Brasil aparecem formando complexas redes de poder e de conflito que possibilitaram circunstâncias nas quais as lealdades eram naturalmente volúveis. Manoel de Moraes, com suas aventuras e dramas pessoais, é utilizado para expor os conflitos religiosos, os ambientes em que viviam os personagens e os processos de mediação cultural que desenham uma conjuntura colonial muito mais complexa do que aquelas estabelecidas pelas macroanálises.

No ofício da pesquisa, o historiador deve questionar suas fontes e estabelecer conexões, por meio do cruzamento de informações. Se o momento vivido por Manoel de Moraes assim o exige, Vainfas não se abstém de ampliar a escala de análise, demonstrando, assim, como esse exercício é fundamental na pesquisa histórica.

Em contrapartida, o Santo Ofício desconhecia completamente o que se pode alcançar noutras fontes, a exemplo das preciosas informações que Manoel dera aos holandeses logo depois de se render na Paraíba, as quais, sem dúvida, adensavam suas culpas. Se soubessem disso, ou do que Manoel tinha contado ao irlandês O’Brien em Amsterdã, em junho de 1635 (!), os inquisidores talvez estreitassem a relação entre traição e heresia, percebendo essa última já nas ações do ex-padre desde fins de 1634. Não deixa de haver, portanto, alguma semelhança entre o mameluco paulista e o irlandês aventureiro, seja na audácia das atitudes, seja no ânimo irrefreável de romper fronteiras, seja ainda na fluidez das lealdades e compromissos (p.186).

Nesta ocasião, entre outras, Vainfas evidencia as particularidades da aplicação metodológica na pesquisa, pois

é próprio do método da microhistória estabelecer esta rede de relações […] na medida em que estas relações pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria um método que jogaria com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto com o contexto5 .

Portanto, seja qual for o intuito do leitor ao se aproximar da mais recente obra de Vainfas, encontrará muito mais que os caminhos da construção/compreensão das intrigas do passado, tal como já advertiu Paul Veyne, no clássico texto Como Escrever História.6 Com toda a certeza, entenderá que o mérito de o verdadeiro métier do historiador pode ser tão, ou mais, encantador que o do curioso que se apropria de temas históricos com o intuito de popularizar a História. As constantes traições cometidas por Manoel de Moraes foram utilizadas também para mostrar como a produção do conhecimento histórico tem avançado na forma e no conteúdo. É bem verdade que nosso Manoel não chegou a questionar as origens do Universo como Menocchio.7 Entre este último e Manoel de Moraes há mais de um século e um oceano que os separa. Mas, os resultados apresentados por Vainfas são exemplares para demonstrar como fazer a redução da escala de análise, constituindo-se assim, numa referência historiográfica made in Brazil. Como oposição complementar, Vainfas manteve-se fiel a sua vinculação acadêmica e transformou uma rigorosa pesquisa documental num texto sedutor. A Traição traz várias lições; basta tentar aprendê-las.

1 Brad S. Gregory, “Is small beautiful? Microhistory and the history of everday life”, History and Theory Studies, Middletown, Wesleyen University, vol. 38, nº 1, p. 100 -110, 2002.         [ Links ] 2 Hans Medick, “Quo Vadis Antropologia Histórica? A pesquisa histórica entre a ciência histórica da Cultura e a Micro-História”, Aula Inaugural na Faculdade de Filosofia de Erfurt, 03 jul. 2000. Tradução René Gertz, Métis: história & cultura, Caxias do Sul, EDUCS, vol. 2, nº 3, p. 199-216, 2003, p. 209.         [ Links ] 3 Ronaldo Vainfas, Micro-história: Os Protagonistas Anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 07-51.         [ Links ] 4 Sandra Jatahy Pesavento, “O corpo e a alma do mundo. A micro-história e a construção do passado”, História Unisinos. Dossiê: Teoria e metodologia da História, São Leopoldo (RS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, vol. 8, nº 10, 179-189, 2004. p. 180.         [ Links ] 5 S. J. Pesavento, op. cit. 2004, p.183.
6 P. Veyne, Comment on écrit l’histórie, Paris, Editions du Seuil, 1971.         [ Links ] Tradução portuguesa: Como escrever História, Lisboa, Edições Anos 70, 1987, p. 107-136.         [ Links ] 7 Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pel a Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Edição original: 1976.         [ Links ]

Maria Cristina dos Santos – Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773) | Manoel Marzal e Luis Bacigalupo

Desde a renovação historiográfica de que a Companhia de Jesus foi objeto − agora há mais de vinte anos −, sua história esteve especialmente relacionada à questão da modernidade. Isso porque o movimento que consistiu no désenclavement [1] da história da Ordem (até então controlada quase exclusivamente por seus membros e limitada a um enquadramento nacional de cunho apologético) resultou em sua apropriação por historiadores leigos, na qualidade de um “observatório” do período moderno. O que se procura, desde então, não é mensurar a contribuição dos jesuítas, mas antes questionar a modernidade por meio da história da Companhia de Jesus. Instituição essa que, de fato, se apresenta como campo privilegiado de observação, por uma dupla razão: seu apostolado universalista, e a sua organização institucional responsável pela formação de um corpus documental contínuo, capaz de trazer elementos de resposta a muitas das questões sobre o período moderno [2].

Esse renovamento atendeu em parte ao anseio de abordar a história moderna da Europa a partir de um espaço supranacional, correspondendo à identidade e forma de operação da Ordem inaciana [3]. Contudo, se teve ares programáticos primordialmente na França e Itália, rapidamente o debate adquiriu uma dimensão internacional e, dos vários campos em que se desenvolveu, sem dúvida o da história da ciência e educação e o das missões e evangelização confirmaram-se os mais dinâmicos [4].

Assim, a pergunta que de imediato se coloca a respeito de uma publicação que leva o nome de “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica” é a de saber qual a sua relação com esse contexto de renovação historiográfica. O livro foi publicado em 2007, e traz a lume as atas de um colóquio internacional de mesmo nome realizado no Peru, em 2003. A proposta dos organizadores − um dos quais ele próprio jesuíta [5] − aos participantes do encontro era a de avaliar a contribuição da Companhia de Jesus para o desenvolvimento da modernidade na América. Em outras palavras, solicitou-se aos colaboradores a tarefa de delinear algumas características da modernidade na tradição cultural americana, a partir dos diferentes âmbitos em que atuaram os jesuítas, partindo da hipótese inicial segundo a qual a produção intelectual e a atividade educacional e missionária de “alguns padres” da Companhia de Jesus teriam representado o “primeiro e decisivo resplendor da cultura moderna no mundo católico” [6]. Colocada nesses termos, a questão de fato não parece atender ao novo delineamento metodológico acima referido. Porém, como se explicita na própria introdução, ela foi superada pelas contribuições que, em muitos casos, fizeram realmente valer os ganhos da, ainda recente, renovação. Optou-se então por uma organização da publicação em função das questões levantadas no encontro, e é justamente esse o aspecto mais interessante do livro a se observar.

A obra tem dois volumes: o primeiro, um impresso de portentosas dimensões (pouco mais de quinhentas páginas), conta com uma introdução e vinte e dois artigos. O segundo, em suporte eletrônico (mini-cd) que acompanha o volume impresso, conta com dezessete artigos, além de um apêndice onde foram publicados dois documentos de interesse para os estudiosos da Companhia de Jesus na América Latina: uma apresentação do projeto de reconstituição do acervo histórico da Universidade Javeriana de Bogotá e uma extensa bibliografia sobre os jesuítas na história do Peru. Em ambos os tomos, os artigos foram distribuídos em três seções. A primeira pretende ser uma relação dos textos que tratam dos aspectos teológicos e filosóficos da contribuição jesuíta à construção da modernidade (Los jesuitas y la razón moderna). A segunda reúne os artigos que tratam, em seus múltiplos âmbitos de atuação − ciências naturais e humanas, educação, missão, tecnologia, economia, arte, arquitetura etc. −, a inserção “multifacetada” dos jesuítas no contexto histórico e cultural das colônias americanas (Los jesuitas y la patria criolla). Por fim, a terceira seção agrupa artigos que abordam temas relacionados à expulsão dos jesuítas das colônias americanas, englobando aspectos econômicos, políticos e culturais (Los jesuitas y la crisis de la expulsión).

É compreensível que numa obra que traz a contribuição de quase quarenta autores, de várias áreas e relações diversas com a instituição objeto do debate, as visões sobre a mesma questão sejam defasadas, e revelem a presença tanto de autores que se vêem diretamente engajados nessa renovação historiográfica quanto de outros que lhe são visivelmente alheios. Com efeito, é difícil encontrar nesse livro um eixo que dê realmente conta de todas as contribuições. Mas o fato é que, independentemente da qualidade desigual dos artigos, essa publicação permite-nos esboçar algumas tendências na maneira como a história da Companhia de Jesus vem sendo emprestada pelos pesquisadores interessados na modernidade, especificamente ibero-americana.

Modernidade é, pois, o conceito-chave deste livro. A partir daí, dois problemas de definição se apresentam: um relativo à sua cronologia, e outro, ao delineamento dos seus principais traços característicos. Cada autor opera com uma concepção distinta da modernidade, ora associando-a ao Renascimento, ora à Ilustração, e às vezes ao século XVII. Alguns não consideram o problema, outros o colocam claramente, explicitando seu posicionamento, outros, ainda, o tomam como principal objeto de reflexão. Porém, para Luis Bacigalupo, autor da introdução, o termo moderno abarca menos o sentido do período que se inicia no fim da Idade Média e termina com a Revolução Francesa do que aquilo que representa o pensamento questionador do consuetudinário, sendo que a modernidade se caracteriza, então, como uma era da “cultura em crise” (p. 24). Ainda segundo o organizador, um dos seus principais traços característicos é o fato de ser expansiva, isto é, de tender a aplicar os êxitos da razão a todos os campos do conhecimento e das atividades humanas; a ciência e a educação revelando-se, pois, âmbitos importantes de sua definição e veiculação. Assim, o eixo escolhido no livro para caracterizá-la é o da tensa relação entre princípios de ações divergentes: se por um lado, a razão moderna impele o homem a se emancipar das irracionalidades que o “escravizavam”, por outro, estimula o Estado a ações que visam o seu fortalecimento, pela expansão comercial, industrial e burocrática, gerando forças paradoxais entre a liberdade do indivíduo e a soberania do Estado.

Nessa encruzilhada, a Companhia de Jesus que, justamente por conta do seu apostolado universal, sempre ocupou um lugar central, do ponto de vista social, político e cultural, no processo de expansão do velho mundo e de formação das novas sociedades americanas [7], desempenhou um papel importante, tanto na sistematização de estruturas do colonialismo quanto na formação dos quadros que posteriormente foram responsáveis pela emancipação das colônias. Entendida nesses termos, a atuação da Companhia de Jesus na América revela uma contradição crucial para a modernidade americana, na sua relação com a Europa, e parece ser esse paradoxismo do sistema colonial o eixo em torno do qual se reúnem as questões colocadas pelas diversas, e heterogêneas, contribuições.

Em uma apreciação alheia à distribuição dos artigos nas seções definidas pelos organizadores, é possível notar a presença marcante de duas classes de contribuições: artigos que aproximam o tema da modernidade ao da formação das sociedades coloniais, e outros que determinam ênfase na construção da “pátria criolla”. Quanto a esta última, duas questões são nomeadamente abordadas: a responsabilidade dos jesuítas na educação da elite nativa e seu papel na construção de uma identidade nacional.

Assim, o debate teológico-jurídico, que por uma reavaliação do aristotelismo, procurou justificar moralmente a escravidão, é explorado nos artigos de Josep Ignasi Saranyana e de Francisco Moreno Rejón. No que concerne à formulação de um modelo e aos aspectos relacionados à empresa missionária propriamente dita há que se conferir, por exemplo, as contribuições de Jeffrey Klaiber, S.J., Javier Baptista, S.J., Ignacio del Río e Norberto Levinton. Já o texto de Antonella Romano − que se destaca por chamar a atenção para a missão como espaço de produção de ciência, por conta da mobilização de técnicas e saberes que visavam ao domínio territorial − submete a relação entre centro e periferia a uma perspectiva mais ampla, mostrando que a América não somente importou e mestiçou, mas também foi protagonista na construção da cultura moderna. Nesse mesmo sentido vai o argumento de Carmen Salazar-Soler, em seu artigo sobre o desenvolvimento de técnicas mineradoras no Peru nos séculos XVI e XVII.

O tema das atividades educativas dos colégios administrados pelos jesuítas é especialmente mobilizado pelos autores desse livro, e responde a interrogações de enquadramento nacional, desde a abordagem da educação dos caciques, por Monique Alaperrine-Bouyer, até a organização e consolidação de uma estrutura de ensino e formação dos espanhóis e filhos de espanhóis. Nesse sentido, para Maria Cristina Torales Pacheco, os jesuítas teriam assentado na Nova Espanha as bases de uma “esfera pública burguesa” [8], na qual se teria formado a geração que posteriormente foi responsável pela emancipação política “e construção do México como país independente” (p. 158).

Porém, adverte Pacheco, não foi apenas na formação de uma classe social que a Companhia de Jesus desempenhou um papel importante: os jesuítas também se implicaram diretamente na construção da identidade nacional. É o que procuram revelar, por exemplo, os estudos sobre os conflitos no seio da própria Ordem, entre os jesuítas nativos e aqueles oriundos da Europa. Bernard Lavallé demonstra que, embora tenha tentado, a cúria generalícia romana não conseguiu coibir a entrada, na instituição, de membros americanos, que acabaram se impondo: pouco tempo depois da chegada dos jesuítas, conclui o autor, os criollos instruídos em seus colégios chegaram a dominar os postos do clero secular em suas respectivas dioceses, gerando conflitos. Pedro Guibovich Pérez identifica no Poema hispano-latino, do jesuíta peruano Rodrigo de Valdés (1619-1682), uma exaltação nacionalista: evidenciando as disputas entre nativos e estrangeiros dentro da própria Companhia, segundo o autor, Valdés mostrava erudição como estratégia de defesa da capacidade intelectual dos criollos, e fazia uso do gênero corográfico como instrumento de exaltação da “pátria chica”.

Também Clavijero (1731-1787) é apresentado, por Beatriz Domingues, como um dos construtores do “patriotismo” mexicano. Como ele, outros jesuítas exilados na Itália, após as expulsões de 1767, contribuíram à construção de uma identidade nacional ao contradizer as teorias de Buffon e De Pauw sobre a degenerescência da natureza americana. Este mesmo assunto passa por vários outros artigos, um dos quais trata especificamente do jesuíta Juan de Velasco, com relação à história equatoriana (Carmen-José Alejos Grau). Quanto a isso, é de se notar as referências obrigatórias aos estudos de Antonello Gerbi e Miguel Batlori [9].

A questão dos nacionalismos levantada pela análise da “literatura de exílio” aproxima-nos então de outro importante tema tratado em artigos que também lhe fazem referência, e que acabou originando uma seção à parte: os contextos das expulsões (José del Rey Fajardo, S.J., Francisco de Borja Medina, S.J., Manuel Marzal, S.J., Sandra Negro). Porém, não só essa literatura do exílio, como igualmente aspectos econômicos da expulsão (Guillermo Bravo Acevedo e Kendall W. Brown), relativos aos conflitos no Paraguai (Martín Maria Morales, S.J. e Barbara Ganso) e à definição das fronteiras amazônicas (Fernando Rosas Moscoso) são assuntos levantados, deixando patente a predominância da questão nacional no tratamento da história da Companhia de Jesus na América.

Ora, a correspondência dos marcos cronológicos da história do período moderno e da colonização da América com os da história dos jesuítas (1540-1773) não é fruto de mera coincidência. Se a história da Companhia de Jesus nos momentos de sua fundação e consolidação institucional possibilita questionar o período moderno por um enquadramento supranacional, entretanto, no contexto da sua supressão, a história da Ordem proporciona fecundo campo de análise da questão nacional. E, se o debate franco-italiano privilegiou os séculos XVI e XVII − de construção da identidade jesuíta e definição do apostolado universalista e missionário −, abrindo espaço para a análise da atuação dos padres no âmbito das ciências e das missões, nos meios acadêmicos hispano-americanos (onde aliás a presença de jesuítas historiadores se faz notar de maneira mais evidente), os temas permanecem associados sobretudo ao século XVIII, contexto em que se encadeou uma série de fenômenos que desembocaram na expulsão dos jesuítas dos domínios imperiais europeus e, por fim, na supressão da Ordem. Sob o aspecto historiográfico, então, o livro “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica”, parece confirmar uma tendência própria ao debate hispânico, em que as circunstâncias, causas e conseqüências das expulsões constituem objetos privilegiados de estudo [10].

Não é de pouco interesse notar, quanto a isso, um desequilíbrio na publicação que, se reúne na sua maior parte textos referentes à história do México e Peru, conta apenas com a colaboração de Rafael Chambouleyron no que diz respeito aos jesuítas na América portuguesa (embora a baliza cronológica da publicação se inicie em 1549, ano da fundação, no Brasil, da primeira missão jesuíta americana). Se incorporasse a vertente brasileira desse debate, o livro talvez apresentasse um outro tom − contudo ainda em vias de se delinear [11].

Notas

1. Termo que, em francês, significa desenclausuração; foi cunhado por Luce Giard, curadora de um volume considerado marco desse novo significado conferido aos estudos jesuítas. Les jésuites à la Renaissance. Système éducatif et production du savoir, dir. Luce GIARD, Paris: Presses universitaires de France, 1995.

2. ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, Présentation, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, pp. 247-260.

3. CANTÚ, Francesca. I gesuiti tra vecchio e nuovo mondo. Note sulla recente storiografia, in Carlo OSSOLA, Marcello VERGA & Maria Antonietta VISCEGLIA (eds.), Religione cultura e política nell’Europa dell’età moderna. Studi offerti a Mario Rosa dagli amici, Firenze: Leo S. Olschki, 2003, pp.173-187.

4. FABRE, Pierre-Antoine. L’histoire des jésuites hors les murs. L’état de la recherche em France. Annali di storia dell’esegesi. Anatomia di un corpo religioso: l’identità dei gesuiti in età moderna, 19/2, 2002, pp. 357-367. Citamos apenas algumas das publicações coletivas mais recentes sobre missão, ensino e ciência: CAROLINO, Luis Miguel & CAMENIETZKI, Carlos Ziller (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência. Séculos XVI-XVIII, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. CHINCHILLA, Perla & ROMANO, Antonella (coord.), Escrituras de la modernidad. Los jesuitas entre cultura retórica y cultura científica, Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2008; FABRE, Pierre-Antoine & VINCENT, Bernard (comp.), Missions religieuses modernes. “Notre lieu est le monde”, Roma: École française de Rome, 2007. Não se pode deixar de mencionar a contribuição dos Estados Unidos a esse renovamento historiográfico, da qual podemos citar, ainda restringindo-nos a publicações coletivas, O’MALLEY, J., BAUILEY, G.A., HARRIS, S.J. & KENNEDY, T.F. (eds.), The Jesuits: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 1999 e, dos mesmos organizadores, The Jesuits II: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2006. Também na relação entre poder e religião, a Companhia de Jesus inspirou sólidas pesquisas, como se pode conferir em MOLINIÉ, Annie, MERLE, Alexandra & GUILLAUMEALONSO, Aracelo (dir.), Les jésuites en Espagne et en Amérique. Jeux et enjeux du pouvoir (XVIe-XVIIIe siècles), Paris: PUPS, 2007.

5. Esse colóquio foi organizado pela Universidade Católica do Peru, por Luis Bacigalupo e Manuel Marzal Fuentes, S.J. († 2005).

6. “La hipótesis general que motivó la convocatoria a este coloquio es que la producción intelectual y la obra educativa y misionera de algunos padres da Compañía de Jesús habrían sido el primer y decisivo resplandor de la cultura moderna en el mundo católico. Para explorar esa hipótesis, la comisión organizadora del coloquio invitó a académicos de prestigio, quienes aceptaron delinear algunas características de la modernidad en la tradición cultural iberoamericana, partiendo de los diferentes ámbitos en que actuaron los jesuitas entre 1549 y1773”, BACIGALUPO, Luis E. Introducción, in Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica. 1549 y 1773, p.15.

7. ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, “Présentation”, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, p. 255.

8. No seu artigo intitulado “Los jesuítas novohispanos, la modernidad y el espacio público ilustrado”, a autora se diz tributária dos estudos de Roger Chartier e Jürgen Habermas.

9. BATLORI, Miguel. La cultura hispano-italiana de los jesuítas expulsos, Madrid: Biblioteca Românica Hispánica 1966. GERBI, Antonello. La disputa del Nuovo Mondo. Storia de una polemica. 1750-1900, Milano-Napoli, Ricciardi, 1955.

10. De fato, os organizadores do livro Les jésuites en Espagne et en Amérique (cf. supra n. 4) notam que temas relacionados ao destino dos jesuítas no século XVIII ou as missões do Paraguai constituem uma parte importante dos estudos referentes à influência da Companhia de Jesus no mundo ibero-americano. Alguns trabalhos recentemente têm procurado outros caminhos: além do livro em questão, ver, por exemplo, Julian J. LOZANO NAVARRO. La Compañía de Jesús y el poder en la España de los Austrias, Madrid: Cátedra, 2005.

11. Embora pesquisadores brasileiros se dediquem aos estudos jesuítas há vários anos, os empreendimentos coletivos são bastante recentes. Em 2007, também foram publicadas no Brasil as atas de um colóquio referente à Companhia de Jesus, por iniciativa dos próprios jesuítas: BINGEMER, M. C. L., MAC DOWEL, J. A. & NEUTZLING, I. (orgs.), A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos. Anais do Seminário Internacional realizado entre 25 e 29 de setembro de 2006 na PUC-RJ, Unisinos-RS e na Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia (FAGE), de Belo Horizonte, São Paulo: Loyola, 2007. Apesar de o próprio título da publicação expressar uma diferença importante com relação ao debate hispano-americano, não é suficiente para definir o tom das discussões brasileiras. Acompanhado deste presente volume e da edição, que deve sair em breve, das atas do colóquio internacional realizado em 2007 na Universidade de São Paulo, “Contextos missionários: religião e poder no Império português”, seus contornos se tornarão mais claros. Este último colóquio, embora não estivesse centrado especificamente nos jesuítas, contou com a colaboração de alguns importantes especialistas em história da Companhia de Jesus. De todo modo, importa aqui salientar o recorte imperial atribuído ao objeto, como indicado no próprio título do encontro.

Camila Loureiro Dias – Doutoranda EHESS, Paris.


MARZAL, Manuel; BACIGALUPO, Luis (Eds.) Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773). Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú; Universidad del Pacífico; Instituto Francés de Estudios Andinos (IFEA), 2007. Resenha de: DIAS, Camila Loureiro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.1, p. 417-425, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]

Señores de la tierra … los empresarios jesuitas en la sociedad colonial | Guillermo Bravo Acevedo

“Señores de la tierra … “ constituye un trascendental aporte, tanto para la historiografía de la América hispana, como para los estudiosos de Historia Moderna, dedicados a estudiar las múltiples actividades desarrolladas por los jesuitas en las regiones incorporadas al dominio europeo desde el siglo XVI.

La aparición de este libro no puede sorprendemos, pues, sin lugar a dudas, Guillermo Bravo es el más destacado investigador en Chile sobre las temporalidades jesuitas y su variado quehacer misionero, económico y educativo. Leia Mais

Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620 | Charlotte de Castelnau-L’Estoile

Em maio de 1583 dois padres vindos de Lisboa” desembarcaram em Salvador da Bahia. Eram eles Cristóvão de Gouvêa, encarregado pelo Geral da Ordem Jesuíta, o italiano Claudio Acquaviva, de visitar a Província do Brasil, e o jovem Fernão Cardim, seu companheiro e secretário. Por essa época, encerrava-se a primeira fase da história da Companhia, o tempo heróico da fundação, e ingressavase na era da redefinição de sua administração, pois o generalato de Acquaviva (1581-1615) seria marcado pelo esforço central da Ordem por ‘regularizar’ e unificar “as práticas intelectuais, espirituais e administrativas das diferentes províncias, ou seja, a da ação missionária na periferia, em busca da afirmação de uma identidade jesuíta” (p. 20). Leia Mais

Les Ouvriers D’Une Vigne Stérile. Les jésuites el la conversion des Indiens au Brésil 1580-1620 | Charlote Castelnau-L’Estoile

Nas últimas décadas, índios e jesuítas têm ganhado espaço pesquisas interdisciplinares que procuram repensar suas relações de contato. Nestes estudos, os índios, em geral, surgem como principal foco de interesse dos pesquisadores que em procuram refletir sobre as mudanças por eles vivenciadas, considerando-os também agentes destas mudanças. O aspecto religioso costuma ser priorizado e os jesuítas aparecem como importantes atores com os quais interagem os índios nestes processos de metamorfose. Cristina Pompa, Eduardo Viveiros de Castro, John Monteiro, Manuela Carneiro da Cunha e Ronaldo Vainfas são alguns exemplos de historiadores e antropólogos que, dos anos 1990 para cá, têm abordado o tema nesta perspectiva. Nestes trabalhos, bem como em outros que os antecederam, em perspectiva diversa, os inacianos desempenham papel essencial como agentes transformadores das culturas indígenas e, sobretudo, como produtores de fontes primárias fundamentais para o tema, porém não constituem o foco central de suas abordagens. Mais recentemente, José Eisemberg inovou ao abordar as missões, privilegiando o pensamento político da ordem jesuítica e refletindo sobre suas mudanças a partir da prática missionária. Leia Mais

Jesuítas e inquisidores em Goa – TAVARES (RBH)

TAVARES, Célia. Jesuítas e inquisidores em Goa. Lisboa: Roma Editora, 2004, 298p. Resenha de: FRANCO, José Eduardo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51  jan./jun. 2006.

Em torno da complexa problemática da Inquisição moderna no quadro da história cristã ocidental paira um amontoado de noções, visões, imagens, umas distorcidas, outras ambíguas, a maioria delas hipertrofiadas. Estas percepções resultam de ilações simplistas, de associações temáticas e institucionais imprecisas, e ainda de muitos juízos que desconsideram o contexto mental do tempo histórico em que emergiu e vigorou o Santo Ofício como máquina judicial poderosa ao serviço da Igreja e dos poderes políticos que exigiram e subvencionaram a sua erecção.

Entre essas visões cristalizadas e “pré-conceitos” acríticos podemos recordar alguns dos mais recorrentes que não são mais do que o produto de intensivos tempos de propaganda e polémicas que teceram uma “lenda negra” do Santo Ofício e de instituições que colaboram ou conviveram com este tribunal. Essa marcante cultura de propaganda e polémica deu origem a avaliações desfasadas na integração e valorização da Inquisição naquilo que podemos chamar a história universal da repressão.

Eis algumas dessas hiper-focalizações. A exagerada concentração dos juízos em torno dos tribunais da Inquisição ibéricos como sendo muito mais temíveis, violentos e repressivos do que os seus pares de outros países católicos europeus, visão apriorística que tornou os outros tribunais aparentemente mais benignos e mais inofensivos. A excessiva valorização dos tribunais do Santo Ofício como as instituições judiciais que mais usavam de métodos repressivos violentos e atrozes, esquecendo-se que no mesmo período histórico as instituições judiciais do Estado usavam paralelamente de práticas e métodos repressivos tanto ou mais injustos e esmagadores. E ainda a hiper-focalização da atenção crítica nas formas institucionais de Inquisição católica, sonegando-se ou obnubilando-se que nas sociedades protestantes e em sociedades e culturas estruturadas por outros sistemas religiosos também coexistiram e se desenvolveram, naquela mesma época, sistemas e formas de controlo com semelhante grau de vigilância repressiva.

Além destas percepções simplificadas e hiper-focalizadas nos Tribunais da Inquisição católicos, sedimentou-se uma visão mitificada que merece especial menção no quadro da apresentação deste livro. A associação íntima entre Inquisição e a Companhia de Jesus, ou se quisermos, a ideia da jesuitização da Inquisição. Ou seja, a tese de que sempre existiu uma cumplicidade plena entre os Jesuítas e a Inquisição, uma aliança terrível para a ruína do país, para opressão do povo e para o retrocesso do Estado. Esta ideia foi desenvolvida em Portugal pela literatura antijesuítica produzida sob os auspícios do marquês de Pombal e, em particular, ficou bem patente no novo regimento pombalino da Inquisição publicado em 1774, o qual se apresentava como o antídoto desse jesuitismo inquisitorial.1 Essa visão do jesuitismo inquisitorial foi muito reproduzida e propalada pela propaganda antijesuítica ao longo do século XIX e primeiras décadas do século XX. Os Padres da Companhia eram vistos como os mais impiedosos conspiradores contra as liberdades do povo, sendo a sua Companhia uma máquina de guerra lançada contra a nação portuguesa, tendo sido a Inquisição uma criação sua (um decalque judicial da estrutura da Ordem de Loyola). A Companhia de Jesus a teria imposto ao país, e no país se desenvolveu e perdurou sob o controlo férreo da Ordem de Loyola.2

Especialmente a Inquisição atrai com um magnetismo extraordinário, como nenhuma outra instituição, a projecção dos nossos juízos mais recriminadores. No seu repúdio não deixamos de projectar, como que se de uma deflagração do inconsciente se tratasse, os nossos medos e angústias. Nela projectamos o receio bem nosso do regresso dos tempos da tirania, da repressão social, da ausência de liberdade enquanto valor mais caro ao ser humano, o que mais o realiza e o que mais o torna autêntico.

A emergência da Inquisição Moderna, com todo o seu aparato repressivo e a sua ambição omni-controladora desde as práticas sócio-culturais e comportamentais externas até ao fundo mais secreto das consciências, pode ser entendida como uma reacção exacerbada e violenta à fractura crescente que se começou a operar na modernidade entre a esfera espiritual e a esfera secular temporal. As instâncias estruturantes e garantes do regime político-social e mental de Cristandade impuseram um organismo de controlo para fazer face às consequências da ameaça real da perda progressiva do poder unificador do religioso que tudo tecia — as atitudes, os pensamentos, os valores, as opiniões, os afectos — sob um mesmo horizonte de sentido.3

Pensamos ser fundamental reflectir a expansão dos tribunais da Inquisição como reacção poderosa a uma revolução de mundividências que a modernidade trouxe consigo como ponto de chegada de um longo período de gestação medieval da reflexão sobre o homem, o cosmos, a deriva da história e sobre a própria Igreja e o seu julgamento enquanto herdeira (fiel ou infiel) do legado de Cristo. A valorização antropologizante do indivíduo e das suas possibilidades e faculdades de iniciativa e de pensamento, a construção (proporcionada pelas viagens marítimas dos portugueses e espanhóis) da ideia de universalidade e da complexa diversidade cultural, étnica e religiosa do mundo, e paralelamente a agudização de uma consciência histórica teleológica de matriz apocalíptica acentuaram e hegemonizaram a posição dos sectores que alimentavam a tentação uniformizadora de um sistema de ortodoxia doutrinal que o catolicismo da Contra-Reforma enfatizou até ao extremo da intolerância mais anticristã que alguma vez se conheceu na História da Igreja.

Por outro lado, o projecto de constituição de uma instituição judicial com carácter centralizado foi muito desejado por alguns príncipes católicos. Em particular, destacaram-se neste processo os monarcas das coroas ibéricas da época em que curiosamente prosperava o Renascimento e o Humanismo. Esses movimentos culturais que abriram as portas do mundo moderno suscitaram da parte dos “profetas” do puritanismo e da ortodoxia mais vigilante a crítica ao paganismo que teria tomado conta de alguns dos mais destacados produtores culturais dentro da própria cristandade, muitas vezes a expensas dos próprios príncipes eclesiásticos, seus mecenas. Essa onda de “paganização” que invadia os próprios antros da Igreja significou para muitos o prelúdio da vinda do Anticristo e a aceleração do epílogo desastroso da própria história que seria coroada com um severo juízo final, como asseveravam as profecias antigas.

Só na complexidade sócio-mental do dealbar da modernidade é que se pode entender plenamente as razões de fundo que levaram à montagem de um tribunal dessa natureza e dessa dimensão. No fundo, a criação de um tribunal desse género no seio da cristandade moderna traduz a dificuldade dessa mesma cristandade em lidar com a emergência cada vez mais palpável, diversificada e concorrencial do Diferente, quer o Diferente interno (judeus, protestantes, esotéricos…), quer o diferente que se apresentava nos limites das suas fronteiras (gentios, infiéis…).4 Essa “perigosa” aparição e afirmação do Outro, enquanto radicalmente diferente do Nós, como colectividade grupal, étnica, cultural, religiosa ou doutrinal fez tremer a cristandade de tradição medieval que ficou possuída pelo medo de que o seu edifício sócio-religioso e mental fosse seriamente corroído. A Inquisição é a face mais agressiva e violenta desse medo.

No que a Portugal diz respeito, o empenho diplomático de D. João III e dos seus sucessores, à semelhança do que tinham feito os vizinhos reis católicos de Espanha, conseguiu que fosse instalado e subsidiado no país e no ultramar, com a legitimação suprema do poder papal através de bulas, breves e privilégios de vária ordem, a imensa rede de vigilância activa do Tribunal do Santo Ofício e dos seus tentáculos com uma eficácia repressiva sem par na história deste reino. O projecto bem-sucedido de imposição dessa instituição judicial sobre as instituições e forças vivas seculares e religiosas do país não deixou de transportar consigo, para além do desejo de “purificação” doutrinal e moral, o desiderato íntimo de o emergente Estado moderno português possuir uma instância de controlo da consciência colectiva para serviço de um ideário centralizador do poder monárquico que pretendia reforçar-se perante os outros pólos de poder.

De facto, o controlo social, mental, comportamental generalizado através da montagem de uma teia de medo por toda a monarquia, embora sustentada sobre pilares de ordem teológica, não deixou, por isso, de servir de algum modo o ideário centralista monárquico, que assim passou a usufruir de um poderoso instrumento de regulação das formas de pensar, de agir, de manifestar-se publicamente… Também aqui a questão económica não foi uma questão de somenos importância. A prática do confisco de bens permitiu a transferência de capital de bolsos dos investidores e produtores de riqueza para elites de poder tradicionais e para a própria instituição estatal que passavam por dificuldades de adaptação numa época de revolução das fontes clássicas de enriquecimento.5 Da Inquisição, o Estado centralizado moderno e a elite que o sustentava tiraram benefícios em termos de controlo do capital crítico e do capital a ele inerente de desestabilização social, favorecendo a sedimentação de um comportamento colectivo domesticado através de uma implacável pedagogia do medo que veio substituir a genuína pedagogia evangélica da misericórdia como denunciava na cara e na casa do Santo Ofício de Lisboa, Fernando Oliveira (c.1507-c.1582), uma das figuras mais notáveis e originais do humanismo português.6

A realidade histórica é sempre mais complexa do que aquilo que a fazem as simplificações muitas vezes maniqueístas dos nossos juízos. E quando da Inquisição e dos Jesuítas se trata, tanto mais vasta e impetuosa é a tentação simplificante das nossas conclusões.

Mas acima de tudo, o terreno historiográfico do estudo das questões inerentes ao Tribunal do Santo Ofício é aquele em que as análises mais podem correr o risco de serem enfermadas pela paixão do historiador de hoje e pelas marcas da sua mundividência, isto é, do seu horizonte mental e ideológico. Trata-se, com efeito, de um terreno altamente movediço.

A complexidade da análise da problemática que representa a história da Inquisição deve considerar como tarefa crítica preliminar a integração da configuração institucional desse tribunal e da compreensão da sua larga base de apoio sociológico no contexto e na mentalidade do tempo e da sua avaliação no quadro da história comparada das instituições. O esforço de interrogação e de complexificação que o conhecimento histórico exige para abrir horizontes mais largos de compreensão não nos deve impedir, todavia, como pessoas do século XXI, de repudiar e de lamentar a desumanidade que semelhantes instituições promoveram. Mas ficar por aí e não procurar o distanciamento que se exige para fazer uma história complexizante, é acrescentar pouco à construção do conhecimento histórico que deve ser “esse conhecimento das sociedades vivas, nunca o seu julgamento e enquadramento doutrinário”.7

A história é um campo de conhecimento sempre em construção. Para tal urge perfilar cada vez mais corajosamente uma história aberta capaz de integrar e usufruir sem preconceitos dos contributos de outras áreas de conhecimento que possam levá-la mais longe na percepção do homem e do seu percurso através do tempo. A história joga o seu futuro precisamente nesta atitude “ecuménica” de saber aceitar e lidar com os métodos e conteúdo das outras ciências humanas e sociais. Assim a história poderá realizar o sonho de Fernand Braudel que idealizava a disciplina historiográfica como o ponto nodal, o lugar de cruzamento, onde se poderá realizar melhor a síntese interdisciplinar no quadro alargado das ciências do homem.

O historiador é por excelência aquele que deve ter a consciência “antidogmática” de que as suas conclusões são passíveis de serem reformuladas e que os seus juízos são transitórios. A história que ele constrói deve estar sempre aberta a novas abordagens que fazem da historiografia uma realidade dinâmica e aberta. É, por isso, tão actual e tão extraordinária a definição daquela que deve ser a melhor atitude do historiador perante o seu métier e perante os resultados da tecelagem da história estabelecida por Vasco de Magalhães Vilhena há quase cinquenta anos:

Ser historiador, é repudiar a falsa segurança, a certeza tranquila; é nunca renunciar a um íntimo recomeço, jamais desertar da obrigação de um perpétuo reajusto fundamentado que responda a necessidades novas de inteligibilidade. O historiador tem hoje, como nunca tivera até agora, a consciência de não criar para a eternidade … Só há história do imperfeito, do inacabado, do que tende incansavelmente a superar-se. Na medida em que é possível restituí-lo, o “passado” que é ainda presente, sempre se reconstrói.8

A tese de doutoramento de Célia Cristina Tavares que aqui é publicada na íntegra em forma de livro é exemplar à luz daquilo que se espera de um historiador contemporâneo, sério e aberto ao trabalho interdisciplinar. Ousando abordar um objecto difícil e complexo como a Inquisição de Goa na sua relação de colaboração/conflito com os Jesuítas e com outros actores em presença na construção da sociedade cristã goesa, a historiadora oferece uma abordagem inovadora, mostrando as diferentes faces da problemática em questão e, especialmente procurando desconstruir as visões simplificantes que chegaram até nós. As questões estão bem colocadas e a autora procura dar, de diferentes ângulos de visão, um panorama das instituições em estudo de uma forma arguta e com notável espírito se síntese. Assim, Célia Tavares apresenta-nos vários quadros problemáticos que permitem abrir um novo horizonte de compreensão da cristandade indiana: as diferentes metodologias e modelos pastorais em confronto, as divergências existentes entre as ordens religiosas, as visões exógenas das práticas institucionais e sociais da Inquisição. Procura, de um modo sagaz, analisar a formação da lenda negra do Santo Ofício através de narrativas de viagens, os conflitos entre a Inquisição e a Companhia de Jesus e a colaboração dos Jesuítas com a Inquisição, os conflitos no próprio seio da Inquisição e no seio da própria Ordem de Santo Inácio…

Escrita de uma forma elegante e clara, mas sem descurar o rigor, este livro, apesar de ter sido elaborado para servir de prova de doutoramento, apresenta-se de leitura agradável capaz de encantar um público mais alargado que não só os especialistas na matéria, que muito poderá usufruir com esta síntese bem elaborada e documentada de aspectos importantes da presença portuguesa no Oriente.

A leitura desta obra aguça-nos a consciência de que a verdade histórica é uma verdade sempre em construção,9 uma verdade inacabada que cada geração faz e refaz à luz dos seus quadros epistemológicos e dos seus métodos e interesses científicos próprios.

Ao concluir a leitura deste livro que o leitor agora tem entre mãos fiquei com o sabor estimulante de que “a história permanece paixão, empenho e deslumbramento”.10 Por isso, a história enquanto ciência do passado continua com muito futuro.

Notas

1 Cf. FRANCO, José Eduardo; ASSUNÇÃO, Paulo de. Metamorfoses de um polvo: religião e política nos regimentos da Inquisição Portuguesa (séculos XVI-XIX). Lisboa, 2004.

2 Para uma desconstrução desta imagem perfeita da cumplicidade entre os Jesuítas e a Inquisição ver FRANCO, José Eduardo. “Jesuítas e Inquisição: cumplicidades e confrontações no Brasil e no Oriente (Sécs. XVI-XVII)”, in Relações Luso-Brasileiras. Revista Convergência Lusíada, v.19, 2002, p.220-34; e FRANCO, José Eduardo; VOGEL, Christine. Monita Secreta (Instruções secretas dos Jesuítas): história de um manual conspiracionista. Lisboa: Roma Editora, 2002.

3 Cf. MOURÃO, José Augusto. “Da funesta liga do trono e do altar — A afecção (anti)clerical”, in ABREU, Luís Machado de; MIRANDA, António José Ribeiro (Coord.) Actas do colóquio sobre Anticlericalismo Português: história e discurso. Aveiro, Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2001. p.27.

4 Ver BETHENCOURT, Francisco. “Rejeições e polémicas”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.) História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. p.49ss.

5 Cf. TORGAL, Luís Reis. A Inquisição: aparelho repressivo e ideológico do Estado. Separata da Revista Biblos, Coimbra, n.51, 1975, p.637; e COELHO, António Borges. Cristãos-novos judeus e os novos argonautas, Lisboa: Caminho, 1998.

6 Cf. FRANCO, José Eduardo. O mito de Portugal: a primeira História de Portugal e a sua função política, Lisboa: Roma Editora, 2000. p.57.

7 MACEDO, Jorge Borges de. “Dialéctica da sociedade portuguesa no tempo de Pombal”, in Como interpretar Pombal? Lisboa/Porto: Edições Brotéria e Livraria A.I, 1983. p.16.

8 VILHENA, Vasco de Magalhães. Filosofia e história, Separata do capítulo publicado em Panorama do pensamento filosófico. Lisboa: Cosmos, 1956. p.181-2.

9 Cf. GOODMANN, Nelson. Modos de fazer mundos. Porto: Edições Asa, 1995.

10 ALMEIDA, A. A. Marques de. “A escrita da história: questões de teoria e de problematização”, in Clio, v.5, 2000, p.17.

José Eduardo Franco – Centro Faces de Eva – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa.

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Jesuítas e Inquisidores em Goa: a cristandade insular (1540-1682) | Célia Cristina da Silva Tavares

O livro de Tavares é resultado de sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sob a orientação de Ronaldo Vainfas. Para quem se interessa ou pesquisa a história de Portugal, seus domínios e as questões que emergem desse contexto, Jesuítas e Inquisidores em Goa é um texto atrativo, agradável, denso e, por tudo isso, interessante.

O tema do livro é a relação do Ocidente com o Oriente no período de domínio dos portugueses sobre a Índia. O título do livro já evidencia qual o objeto trabalhado: a cristandade na ilha de Goa num período determinado, utilizando-se para explicar o conceito de cristandade a atuação da Companhia de Jesus e do Tribunal da Santa Inquisição. A autora apresenta como justificativa para a delimitação histórica o espaço de tempo entre o recrudescimento da repressão portuguesa à religião hindu, com a destruição de templos (1540), até a criação de uma congregação religiosa masculina exclusiva de padres nativos – Congregação do Oratório da Santa Cruz dos Milagres (1682), período esse em que tanto a Companhia de Jesus como a Inquisição são bastante atuantes no Oriente como um todo e em Goa de forma particular. A fundação da nova ordem religiosa simbolizou “a atitude do clero nativo diante dos problemas de enquadramento na vida eclesiástica local, mais especificamente, no anseio de participação nas actividades missionárias, e desnuda as grandes contradições do processo de cristianização que se desenvolveu na capital do Estado da Índia” (p. 29). Leia Mais

Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos | Paulo de Assunção

Negócios jesuíticos é um livro atrativo. O titulo sugere um tratamento inovador a respeito de um tema já bastante estudado, como a Companhia de Jesus. A edição é muito bem cuidada, com uma bela apresentação gráfica. O sumário predispõe o leitor para uma fruição “redonda” do assunto. A documentação referenciada é vasta. Assim, foi com avidez por melhor conhecer a atuação econômica da Companhia que nos dedicamos a uma atenta leitura dessa obra de quinhentas e seis páginas

No prefácio desse alentado e atrativo volume, Mary del Priore afirma:

Negócios Jesuíticos abre um vasto campo de reflexão e de pesquisa sobre a ordem religiosa que mais marcou a história de nossa colonização. O livro completa inteligentemente o grande canteiro de pesquisas internacionais que o tema dos jesuítas inspirou e segue ensejando. Ao mesmo tempo rigorosa e lúcida, sua narrativa traduz conhecimentos sobre a sociedade, a política, e a economia do período em questão, introduzindo-nos a uma história social da ordem religiosa. Obra obrigatória para conhecer um período-chave de nossa história, ela ainda confirma o talento de um refinado e arguto historiador. Leia Mais