La prensa de Montevideo, 1814-1825 | Wilson González Demuro

Wilson Gonzalez Demuro La prensa de Montevideo
Wilson González Demuro | Foto:  Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación – Universidad de la República

DEMURO La prensa La prensa de MontevideoNeste livro, Wilson González Demuro analisa o papel da imprensa na criação de um espaço moderno de opinião pública em Montevidéu, integrado ao processo de des­construção do Antigo Regime na América por suas independências e construção de Estados nacionais, assentados em governos represen­tativos, baseados princípios liberais.

Um dos alvos de Demuro são as abordagens que consideram os meios de comunicação apenas como fontes ou testemunhos, e não objetos de análise. Colocando-se ao lado de outros historiadores como Noemí Goldman, Fabio Ares, Renán Silva e Fabio Wasserman, Demuro junta-se ao esforço por valorizar “la prensa como fuente his­tórica” e encará-la como “campo disciplinario”[3].

Para essa renovação da área, Demuro debruça-se sobre uma rica documentação formada sobretudo por periódicos, mas também por memórias, correspondência e documentos oficiais com o propósito de contestar análises anacrônicas e atemporais de “tipos ideais” so­bre o tema [4]. Ao tratar a imprensa como objeto de análise, e não um meio ou instrumento, o autor amplia a visão sobre esses veículos, in­cluindo a análise de sociabilidades associadas à imprensa, presente em sociedades literárias e tipografias, e leva em conta as formas de comunicação escritas e orais que incrementavam o impacto político e social das publicações periódicas. Nesta empreitada, dialoga com a Escola de Cambridge, a História Conceitual de Reinhart Koselleck, as análises de papéis públicos de Roger Chartier e o esquema de pergun­tas de Harold Lasswell para a definição de uma técnica filológica qua­litativa que também tem função quantitativa [5]. Para o contexto ibe­ro-americano, particularmente, os estudos de Fernández Sebastián lhe fornecem bases fundamentais para suas análises, não se esquiva de contribuir com a construção do conhecimento sobre os conceitos políticos publicado nos tomos do Diccionario político y social del mundo ibero-americano [6]. Leia Mais

Paris and The Cliché of History: The City and Photographs, 1860-1970 – CLARK (THT)

CLARK Catherine La prensa de Montevideo
Catherine Clarke. Foto: Comparative Media Studies – MIT /

CLARK C Paris and the cliche of history La prensa de MontevideoCLARK, Catherine E.. Paris and The Cliché of History: The City and Photographs, 1860-1970. New York: Oxford University Press, 2018. 328p. Resenha de: KERLEY, Lela F. The History Teacher, v.52, n.4, p.717-718, ago., 2019.

In this social history of photography, Catherine E. Clark demonstrates that the visual discourses and methodologies used to document the historical and urban landscape of France’s capital were constantly being reconceptualized over the course of the nineteenth and twentieth centuries. Journalists, curators, city officials, amateur and professional photographers, and societies contributed to a history of Paris that was inextricably linked with a history of photography. Woven into the book’s narrative is an institutional history of the Bibliothèque historique, the Musée Carnavalet, the Fédération nationale d’achats des cadres (FNAC), and the Vidéothèque de Paris vis-à-vis the local/national initiatives and photography contests they sponsored that punctuated, but also commemorated, larger historical shifts such as Haussmannization, the Occupation and Liberation of Paris, Americanization, and “les trente glorieuses.” By examining photographic collections spawned by these events, Clark presents a colorful portrait of how the French, but also foreign tourists, saw the city and interpreted its past, present, and future amid urban transformation.

The book begins with the overarching question: What is the history of preserving, writing, exhibiting, theorizing, and imagining the history of Paris photographically? (p. 1). These concerns are deftly addressed together in each of the five chapters, tracing the way in which understandings of the photographic image—its purpose, function, and the history it purported to communicate— shaped and were shaped by commercial and non-commercial interests. Building on earlier scholarship produced by cultural theorists such as Guy DeBord, Roland Barthes, and Susan Sontag, who view visual spectacle as a metaphor for changing relationships within the city, Clark adds her own original interpretation, arguing that the production, preservation, and use of photographs influenced, informed, and determined how people thought about Paris as a museum city and engaged with it physically (p. 216).

Chapter 1 focuses on Haussmannization, a city works project that precipitated the first major effort to document the destruction of “Vieux Paris.” Through the process of modernization, municipal authorities, archivists, and museum directors slowly shifted their reliance on more traditional forms of visual historical documentation (e.g., maps, paintings, and sketches) to the photograph as they discovered its inherent value as a piece of “objective” historical evidence. A method of scientific visual history, as Chapter 2 illustrates, came to the fore and introduced new “modes of seeing history” by the turn of the century (p. 2). Now considered “an objective eyewitness to history,” the photograph gave rise to photo-histories that were more didactic in their narration of historic events, providing explanations to viewers of how they should interpret the image.

Chapter 3 shows how the Occupation and Liberation of Paris engendered different “mode[s] of reading the photo” (p. 3). Through the practice of repicturing, heavily censored yet seemingly innocent photo-histories of famous Parisian landmarks kept the French revolutionary tradition alive by including a combination of visual forms that would recall acts of resistance embedded in viewers’ historical imagination. Seven years later, the Bimillénaire de Paris of 1951 reduced the photographic image to a visual cliché, and the subjects who figured in those pictures to typologies. Celebrating the last 2,000 years of French history, the Bimillénaire assumed a political bent and “appealed to those who sought to promote Paris as the commercial capital of Europe, backed by centuries of culture and history, not as an intellectual capital of revolutionary political thought” (p. 132). Chapter 4’s discussion of the city’s attempt to promote Paris as modern and futuristic in promotional posters, traveling exhibits, and magazines depended upon older models of seeing history and reading representations that attested to both change and continuity. Chapter 5 examines “C’était Paris en 1970,” a photo contest commissioned by the store FNAC that involved over 15,000 amateur photographers photographing everyday life within Paris (p. 174). Yet the very title of the contest underscored more of what had changed in the last 110 years of photographic documentation and collection rather than what remained the same. Whereas the historical value of a nineteenth-century photograph had taken decades to appreciate, historical value was immediately conferred the moment the photo was taken by the last third of the twentieth century.

This well-researched book will be of interest for those studying urban history, the history of Modern France, visual culture, and archival management. With over eighty illustrations, there is no lack of material with which to engage students. Its slim size and readily accessible prose is appropriate for both upperlevel undergraduates and graduate students, as it complements more in-depth theoretical discussions and debates on the politics of memory and the effects of technology in shaping national and local identities. Its interdisciplinary treatment of photography, publishing, the history of Paris, and the recording, preservation, and promotion of that history makes this an intriguing and indispensable text.

Lela F. Kerley – Ocala, Florida.

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Textquellen im Geschichtsunterricht. Konzepte – Gattungen – Methoden – SAUER (ZG)

SAUER, Michael. Textquellen im Geschichtsunterricht. Konzepte – Gattungen – Methoden. Seelze : Klett, Kallmeyer , 2018. Resenha de: KUCHLER, Christian. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 218-220, 2019.

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Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica | Ronaldo Amaral

O livro Santos imaginários, santos reais. A literatura hagiográfica como fonte histórica que aqui nos propomos a resenhar levanta problemáticas que concernem a relação entre hagiografia como fonte histórica e o Imaginário. O autor almeja no âmbito das manifestações maravilhosas do imaginário a mesma relevância histórica nas esferas referentes às expressões sociais, econômicas e políticas. À vista disso, Ronaldo Amaral nos propõe reflexões acerca das relações entre a História, a Literatura e o Imaginário, cuidando em seu livro de reafirmar a importância das hagiografias para que possamos vislumbra-las à luz do passado tardo-antigo e medieval, bem como mostrar alguns caminhos para que os historiadores possam recair sobre elas seus olhares e se atentar às riquezas socioculturais que esses escritos compartilham acerca de um imaginário, que bem nos conta o autor, é sempre coletivo.

Portanto, na introdução e no capítulo um intitulado A hagiografia como fonte histórica. O imaginário relegado nos é apresentada, e somos levados a entender, as discussões teóricas no campo da história e do imaginário onde ele se torna, por excelência, em ferramenta teórico-metodológico para análise da História. Os embates que concernem ao uso da literatura, em especifico a literatura sagrada, como fonte histórica foram propiciados pela descoberta de novos métodos e teorias, nesse sentido seria uma heresia não mencionarmos a importância dos bolandistas, que por sua vez, compilavam erudições críticas de textos dedicados a santos, mesmo que naquela instância almejavam dados concretos que afirmassem uma existência real. Amaral também trata neste capítulo a importância de Hippolyte Delehaye ao ampliar os métodos bolandistas em que impunham problemas ao histórico da vida dos santos e buscava fatos verdadeiramente históricos, ou seja, para além do “fictício”. Todavia, já teria esse autor chamado a atenção para a hagiografia como fonte histórica, mesmo que seus métodos o levassem para um viés positivista em almejar a verdade objetiva, por consequência, separando o histórico do imaginário, o que Amaral em seu livro não propõe a separação da vida sociomaterial do imaginário. No entanto, é impreterível analisarmos as inovações de Delehaye a sua época, possibilitando assim entender à hagiografia como fonte histórica.

Ainda neste capítulo o autor trata que a partir do imaginário surgem hábitos, costumes e comportamentos capazes de apresentar a razão humana para o homem medieval onde suas bases fundantes estão arraigadas nas sensibilidades, nas estruturas do pensamento simbólico e analógico ao invés de pensamentos idiossincráticos forjados. Nesse sentido, nos é apresentado críticas por parte do autor aos métodos de tratamento dos santos de existência literária como não históricos. No que tange ao refutamento dos santos criados pelo imaginário dos hagiográficos o autor rebate isso afirmando que todo santo fictício é um santo por excelência, pois cumpre sua razão a ausência que viria a responder, assim sendo, muitas vezes os santos são personagens ideais no caráter personificado da santidade e que os hagiógrafos não puderam lhe escolher, foram assim, impostos por suas circunstâncias espaço-temporais próprias buscando atender as necessidades materiais e mentais de seu período histórico. Desta forma, fica evidente para o autor que sua historicidade concreta pouco importa, mas sim os atributos supra-humanos do santo.

No capítulo dois A emergência do imaginário nas fontes hagiográficas o autor menciona a hagiografia como texto literário capaz de interessar ao historiador por lhe oferecer uma fonte ordenada, cujo estudo linguístico facilita o trabalho que contempla seu contexto dentro do fenômeno histórico. Amaral, tanto neste capítulo como em outros, irá inaugurar um debate historiográfico onde contrapõe historiadores que afirmam o sincero não ser histórico, mas sim o verdadeiro ser histórico. Nessa acepção o autor levará algumas páginas discutindo o que seria a verdade, sobretudo a verdade histórica, e defende que a “realidade” apresentada pelas hagiografias não devem ser julgadas por métodos, mas sim serem entendidas na categoria do verossímil ao invés do sincero e verdadeiro. Assim sendo, por tratar a hagiografia de uma história sagrada seu teor de verdade também não deve ser buscado nas circunstancias e ideários no lugar daquele que fala, senão no lugar do qual se fala. Como afirmação de seus entendimentos o autor nos diz que as realidades fundadas em imagens e situações maravilhosas concebidas pelo imaginário são uma realidade tão verdadeira como a histórica.

Amaral continua por acentuar que à hagiografia interessa ao historiador enquanto o ajude na compreensão da vida social de sua época, embora sempre esteja atrelada a um processo histórico mais amplo, visto que a hagiografia é sempre um “recriar”, no entanto, devem ser vistas para além das estruturas econômicas e políticas, ou seja, deve ser concebida pelo imaginário. No discorrer do capítulo encontramos novas críticas, tanto benévolas como nefastas, a renomados historiadores, como Peter Brown e Santiago Castellanos a exemplo, sendo este último mais questionado, pois é partidário que a hagiografia não atende ao caráter de documento histórico, mas, apenas, pode ser tratada como fonte marginal e ser “desmentida” a partir de documentos ditos “oficiais”. Para isso, o autor nos ensinou que o que se almeja nas hagiografias é uma realidade menos precisa do que a dos documentos oficiais, visto que é menos carregada de ideologias do que tais documentos. Por meio dessas considerações o autor entende que a hagiografia é uma realidade construída e constitutiva por seus autores, uma vez que o autor é sempre o porta-voz de seu meio, concretizando assim a função do imaginário coletivo e dos ideais da comunidade. Após direcionar seus entendimentos, Amaral defende que o imaginário é um modo de apresentar a História.

No capítulo Hagiografia, biografia e história o autor irá questionar em conjunto com Jacques Le Goff, Loriga, Schwob, Pierre Bourdieu e outros autores a realização das biografias antes da modernidade, pois essas não são capazes de apresentar significações históricas gerais no que concerne uma vida individual, nesse viés, o autor nos propõe utilizarmos para investigar o período medieval não a biografia, mas sim intentos biográficos. Assim, no que diz respeito ao “processo biográfico” da vitae dos santos, esse se ocupa mais com as pródigas realizações sagradas do que com o teor laico e a exatidão espaço-temporal, no entanto, Amaral não despreza que as vitae tragam informações de uma existência mais factível dos santos, porém toda informação “factível” nas hagiografias está mergulhada no imaginário, em circunstâncias fundamentadas e objetivadas no fabuloso, milagres, aparições demoníacas, curas e lugares estão ligadas por uma função simbólica que se remete mais a uma realidade transcendente do que factível. É ressaltado por Amaral que a inconsistência histórica acerca do personagem hagiográfico, quando se deseja a biografia, não está na fonte mesma, mas sim na abordagem do historiador, desta forma, a hagiografia trata de homens que deixam de sê-lo ao se tornarem, por sua escrita, santos, ou nas palavras do autor:

“O hagiógrafo cria o santo e para tanto recria sua personalidade histórica, ou seja, aquela, talvez a única, dada a conhecer pela história; assim, haverá na hagiografia sobretudo um santo e, portanto, um homem cuja história ficará, em grande medida, identificada mais com uma existência fabulosa que eminentemente profana” (p.75).

Seguindo esse pensamento, nos é apresentado uma crítica do autor acerca da pretensão da hagiografia como biografia, pois entende que seria algo faltoso, visto que é inviável “resgatar” uma personalidade histórica factível e dá-la a conhecer posteriormente, mesmo munido de fontes. É muito latente no livro a questão de quando nos referimos a vida dos santos devemos nos ater mais ao espírito do discurso do que em sua letra, pois é neste que se emerge significados mais precisos da escrita e é ainda mais arraigado quando investigado pela ótica do imaginário.

O autor utiliza esse capítulo terceiro para assentar seu modus cogitare em que à hagiografia é constituída por verdade, sinceridade e realidade, isso porque, suas narrações se assentam em tempos, lugares e acontecimentos que antes de tudo são representações, portanto, as hagiografias são constituídas de lugares e situações ideais apresentadas por signos de transcendência, estruturas simbólicas e espaços do mítico e não por meros dados factíveis e positivos. Outro ponto fulcral tratado neste livro é quando o hagiógrafo é hagiografado, ou seja, quando descreve a si mesmo, para isso o autor traz exemplos de Valério do Bierzo, monge eremita que atribuía a si virtudes das vidas de outros padres do deserto. Para Amaral, esses eremitas mostravam tanta admiração por aqueles santos de sua mesma profissão monástica que imitá-los seria algo grandioso. Há também que se considerar a apropriação literária no âmbito hagiográfico na Idade Média, que seria mais do que uma subtração de textos e palavras das fontes, seria o que o autor chama de “aggiornamento” com adequações do lido e apropriado pelo autor vivido.

Referente ao capítulo quatro A natureza do tempo e do espaço na hagiografia, é explicitado a percepção do tempo e espaço profano/sagrado no imaginário de monges primitivos onde as noções de espaço geográfico – deserto, árido ou floresta – é mais do que um lugar, é um não lugar, isto é, um lugar que rompe com lugares humanos e seu próprio mundo temporal. Desta forma, os lugares assentados nas hagiografias sempre se remetem a imagens de caráter divino transcendental do que propriamente em espaços geográficos materiais. Portanto, o autor vislumbra que os lugares mais importantes nas hagiografias são os lugares da santidade, os lugares se tornavam santos pela presença do santo propriamente dito que não carregava consigo pecados e por essa sua santidade tornava os lugares sagrados. Nesse intento, somos levados a entender que os lugares apresentados pelas hagiografias são mais do que descrições de lugares concretos passam a ser símbolos que revertem significantes profanos os tornando sagrados com efetiva participação dos santos, como os desertos.

Nos é apresentado ainda neste capítulo o quão os espaços geográficos de desconhecimento dos homens medievais eram concebidos por uma dimensão mítica e fabulosa, com isso, o autor quer ressaltar em sua obra que o espaço era pensado mais em totalidade do que parcialidade. Amaral diz ser “auspicioso” buscar nas hagiografias um estrito espaço geográfico exato, visto que na Antiguidade Cristã os espaços serviam para separar o eremita da sociedade, portanto essa cisão de espaços dentro das hagiografias é interpretada como uma cisão para com a realidade cósmica. Nesse sentido, Amaral defende neste capítulo que os santos conseguem romper com o tempo ordinário ao se transportar miraculosamente no tempo e no espaço presenciando assim lugares distintos e longínquos em tempo curto. Desta forma, cabe ao escritor da vida do santo solitário demonstrar o lugar que ele não está, ou seja, extramundano, longe da sociedade e do pecado. O autor encerra este capítulo com a reflexão em que a vida e feitos de santos se desenvolvem em uma temporalidade da santidade, e não obedecem uma dinâmica aberta, portanto, os santos estão acima e além do espaço mundano.

No que concerne ao quinto e último capítulo Hagiografia: a tradição da escrita, a escrita da tradição, o autor nos coloca como latente a perícia que historiador tem para fazer emergir de um texto uma realidade, todavia, isso é possibilitado, e Amaral defende essa possibilidade, por meio de uma interpretação hermenêutica dos textos onde se objetiva atingir e extrair o espírito do texto, ou seja, a “vivência subjetiva do autor” que corresponderia ao seu meio sociocultural e mental. Nesse sentido, entendemos que para compreensão de um texto ou uma fonte deve-se levar em consideração todas as suas possibilidades de interpretação, ou seja, a intenção do leitor, a do próprio texto e a do autor. Outro pródigo ponto do capítulo são os apontamentos acerca da dificuldade de apreender o fato histórico em si, ou seja, compreende-lo em sua essência, pois cada apreensão, seja do leitor ou do autor, deforma-o, modela-o. Em consonância a isso é discorrido pelo autor que a realidade hagiográfica tem menos uma visão positiva e materialista da história, pois não almeja suas análises dos fenômenos religiosos por meio historicista, mas sim por meio de seus símbolos, metáforas, alegorias e outros meios que constituem a linguagem religiosa.

Ainda no que diz respeito a este capítulo quinto nos é explicitado que todo santo recriado por uma nova hagiografia, antes mesmo disso, já era um santo consagrado pela tradição, todavia ao ser recriado ganha um novo corpo individual e social ao se inserir em um outro homem histórico e o hagiógrafo fica responsável por inseri-lo em um novo espaço-temporal. Esse processo, segundo o autor, se desemboca por um produto da imaginação que busca alicerçar insuficiências mundanas do presente. Esse modelo de santidade que se almeja é sempre uma construção baseada no coletivo, pois a imaginação é o ato de um ser social e obedece a esquemas de reorganização que são comuns a um grupo. O autor enfatiza que o imaginário gesta as hagiografias e exerce sobre elas um poder de realização, o poder da retomada. Amaral nos conta que todo modelo de santidade, seja qual for, partirá de Cristo, dessa forma a fonte de seu trabalho será as Sagradas Escrituras, portanto, ressalta que na Antiguidade Cristã havia interesses ideológicos, e que os seus contemporâneos leram as Sagradas Escrituras impelidos pelos acontecimentos da época, sobretudo em visões de mundo que estavam permeadas pelo maligno e influídas pela filosofia antiga – neoplatônica e escatológica.

Levando-se em conta o que foi observado, podemos entender o quão profícuo é considerar o imaginário como pedra angular de um entendimento mais pleno acerca da Antiguidade Cristã, visto que o imaginário é interdisciplinar e compreende a vida humana em seu sentido mais amplo e profundo, pois tece seu entendimento no simbólico. Portanto, essa obra de Ronaldo Amaral enalteceu as considerações, maneiras de pensar, críticas e novas caminhos para pesquisas no campo da História. Nesse sentido, sua obra torna-se por si só uma ferramenta teórica aos interessados em vislumbrar as razões sensíveis dos homens nas hagiografias, sobretudo vistas à luz do imaginário.

José Walter Cracco Junior – Graduando do curso de História da UFMS-CPTL, bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID).


AMARAL, Ronaldo. Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013. Resenha de: CRACCO JUNIOR, José Walter. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.1, p.129-138, 2016. Acessar publicação original [DR]

O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985 – MARTINS (LH)

MARTINS, Paulo Miguel, O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985. [Lisboa]: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011. 318 pp. Resenha de: SAMPAIO, Sofia. Ler História, n.62, p. 199-206, 2012.

1 O documentário industrial tem suscitado pouco interesse como objeto de estudo académico. É conhecida a tendência, nos estudos de cinema, para privilegiar o filme de ficção – e, consequentemente, a longa-metragem – a par de modelos de análise autorais assentes na ideia do realizador como génio criador e do filme como obra de arte. Os resultados dessa tendência têm sido, por um lado, a constituição de um cânone de filmes e autores e, por outro, a bifurcação disciplinar (que, no mundo anglo-saxónico, se traduz na divisão entre film studies e film history) entre abordagens textuais, que sob a influência dos estudos literários sublinham as propriedades internas dos filmes, e abordagens contextuais, que procuram produzir uma história do cinema entendida quer como história das tecnologias e das técnicas cinematográficas quer como história dos autores e dos movimentos artísticos. De fora ou nas margens, ficam os filmes de não ficção, de curta e média metragem que, paradoxalmente, representam a maior fatia da produção cinematográfica mundial.

2 A partir de finais da década de 80, este cenário começou a mudar. A problematização do conceito de cânone e das conceções exclusivamente autorais do cinema (em parte, sob o impulso dos estudos culturais), veio permitir que uma série de filmes de «utilidade» – entre os quais os filmes industriais – fossem resgatados ao esquecimento. Igualmente importante foi o trabalho de preservação de filmes e organização de arquivos, que encontrou em tecnologias como a digitalização e a internet um renovado impulso. Na década de 90, cresceu o interesse pelos filmes «efémeros» (publicitários, educativos, industriais e amadores) e «órfãos» (i.e. filmes de arquivo não identificados ou negligenciados), dando origem a uma área de investigação que começou por ser marginal, mas que hoje é amplamente reconhecida: a título de exemplo, o congresso de 2012 da revista Screen foi dedicado aos «outros filmes» (um termo que não deixa de evocar a importância que o cânone continua a ter). Entre nós, a Cinemateca Portuguesa tem incluído na sua programação documentários não-ficcionais de curta e média duração, nomeadamente na rubrica regular «Abrir os Cofres».

3 É neste contexto que o livro de Paulo Miguel Martins deve ser lido. De cariz essencialmente informativo, o volume reúne, pela primeira vez, alguns dos dados mais importantes sobre os filmes industriais produzidos em Portugal entre o período de 1933 a 1985 – i.e. entre o início do Estado Novo (que coincidiu com a criação da Tobis Portuguesa) e a assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Como fontes primárias, Martins recorreu ao Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM), aos arquivos da Torre do Tombo e da Biblioteca Nacional, bem como ao testemunho oral de realizadores e técnicos envolvidos na produção de alguns destes filmes.

4 O estudo divide-se em cinco secções ou capítulos, não numerados, mas que passo a enumerar por motivos de clareza. São eles: (1) «o filme como fonte histórica», em que o autor defende a importância dos filmes industriais como documentos históricos; (2) «traços gerais da história do cinema português», cujo propósito é «situar e contextualizar em traços gerais os documentários realizados em Portugal no conjunto da produção cinematográfica do País» (p. 47); (3) «o cinema documentário em Portugal», que faz uma introdução geral à história do documentário (não apenas em Portugal, como o título indica, mas no contexto internacional), terminando com uma subsecção sobre o documentário industrial; (4) «o documentário industrial português nas palavras dos próprios autores», em que o filme industrial português é analisado a partir dos dados compilados (alguns já referidos) e das entrevistas que o autor realizou a técnicos e realizadores; (5) por fim, «os filmes em análise», onde são discutidos cinco filmes industriais, nomeadamente: Bodas de Ouro da Empresa Fabril do Norte (1957); O Pão (1959/ 1964); Trabalho de um Povo (1959-1960); As Palavras e os Fios (1962); e Um Homem – Uma Obra (1971).

5 O ponto de partida desta investigação é uma conceção do cinema como «fonte de conhecimento» da realidade social (p. 9) e, consequentemente, «fonte de acesso ao passado» (pp. 14, 32, 34). Martins afirma em vários momentos que este acesso é sempre um acesso mediado (pp. 20, 30, 33, 186), mas isso não o impede de descrever o documentário, em geral, como um «retrato da realidade» (pp. 14, 17) e o documentário industrial, em particular, como um «retrato económico, sociológico e cultural das empresas» (p. 15) e, por extensão, da realidade socioeconómica do país numa determinada época (p. 9). Do mesmo modo, apesar de reconhecer que o passado é sempre apreendido através do presente (p. 21), o autor atribui aos filmes (e aos documentários industriais em particular) um valor histórico intrínseco, que os coloca ao nível de outros documentos históricos e que lhes confere um papel central no processo de formação de uma memória coletiva.

6 Na segunda secção, Martins elabora um panorama geral da história do cinema em Portugal, década a década, desde as suas origens até 1985. Num registo predominantemente descritivo, são-nos oferecidos elementos sobre a formação e evolução do campo cinematográfico português: a rápida ascensão e falência de empresas de produção e distribuição (o que revela a extrema volatilidade do meio); a natureza e o número das salas de exibição; as revistas de divulgação especializadas; os jornais de atualidades; os principais realizadores e os seus filmes; a criação de legislação e de instituições de apoio (estatais e privadas); os prémios e os festivais de cinema. São muitas e preciosas as informações recolhidas e apresentadas; no entanto, o pendor generalista e a proliferação de pormenores (que não distingue entre o que é e o que não é diretamente pertinente para o tema) impedem o aprofundamento das questões relativas ao documentário industrial, que aparecem dispersas, sem o destaque e o tratamento que merecem. A título de exemplo, a análise comparativa do número de salas em Lisboa, Porto, Madrid e Milão, nas décadas de 1910, 1920 e 1930 (pp. 62-64) apresenta dados que são interessantes por si só, mas cujo contributo para o tópico da investigação não é claro. Por outro lado, temas como a relação do documentário com a Campanha Nacional de Educação de Adultos, a organização de festivais temáticos (pp. 95-96), os dois Planos de Fomento e o II Congresso dos Economistas e da Indústria Portuguesa (pp. 81-82) justificariam maior desenvolvimento. Dizer que os dois últimos se mostraram favoráveis ao documentário industrial, sem uma análise mais detalhada, parece-me simultaneamente óbvio e pouco elucidativo. No geral, a secção cumpre a função de contextualização; no entanto, a síntese que apresenta acaba por reproduzir uma série de ideias feitas que carecem de adequada fundamentação empírica, bibliográfica e/ou teórica (é o caso da ideia de «divórcio» entre o cinema português e o público, ou da noção de que os fundos europeus para o cinema «nem sempre foram aproveitados», p. 104).

7 O capítulo seguinte prossegue no mesmo registo, repetindo muito do que foi dito, agora a propósito do género documentário, que o autor insiste ser uma «fonte de conhecimento e informação» (pp. 107, 119). Na última parte, a subsecção intitulada «documentários industriais», é finalmente definido o âmbito da investigação, nomeadamente: os documentários industriais do período sonoro (entre 1933 e 1985) com uma duração de 6 a 20 minutos, incluindo filmes sobre artesanato, mas excluindo filmes sobre o contexto colonial, tendo sido identificados um total de trezentos e dez filmes (pp. 120-121). Munindo-se de elementos predominantemente quantitativos, Martins discute os anos de maior produção de filmes industriais, as empresas cinematográficas e os realizadores mais prolíferos, assim como as indústrias mais retratadas (classificadas por atividade económica). A quantidade de informação reunida e disponibilizada impressiona pela positiva. A análise, porém, fica aquém das expectativas, sendo notória a inclinação para se estabelecerem correspondências diretas entre tendências económicas e os filmes produzidos – como quando se conclui que «há uma forte relação entre as empresas mais representadas em determinada década e o género de atividade económica sobre a qual mais se investia nessa altura» (p. 140). Um dos exemplos que o autor dá – a incidência de documentários sobre as indústrias vidreiras e cimenteiras na década de 40, uma época de grandes obras públicas (p. 134) – não convence. Este número corresponde apenas a cinco filmes em dez anos, tendo sido largamente ultrapassado na década de 60. Para além do desenvolvimento económico setorial, haveria que considerar outros fatores, tais como a dinâmica das próprias empresas e desenvolvimentos ao nível do campo cinematográfico.

8 Estes aspetos acabam por emergir nas duas últimas secções que constituem (juntamente com a subsecção que as precede) a parte mais importante e original deste estudo. Com a entrevista a doze realizadores e técnicos e a análise de cinco filmes, o autor acede a um nível de análise que lhe permite, por exemplo, corrigir afirmações generalizantes (p. 179). Entramos no domínio das relações entre cineastas (produtores e realizadores), as entidades estatais e privadas que encomendavam os filmes e os organismos supervisores, e eventualmente controladores, como o SNI. Baseando-se nas entrevistas que realizou (cujo guião nos é fornecido, em anexo), Martins caracteriza os diferentes processos de encomenda, os objetivos das empresas/instituições contratantes, os modos de produção (duração do processo, margem de manobra criativa, seleção da equipa e acesso ao equipamento) e algumas questões de foro laboral (contratação, orçamentos, carreiras profissionais). O último capítulo retoma e, nalguns casos aprofunda, esta caracterização. Com o auxílio de uma grelha de análise (que consta do anexo) e recorrendo pontualmente às entrevistas para ilustrar um ou outro pormenor, o autor discute cinco documentários industriais em relação a cada um dos seguintes parâmetros: recursos estéticos e técnicos mobilizados; contexto; objetivos; significado e impacto causado (p. 188). Este nível de análise consegue colocar em evidência a variedade que caracteriza o documentário industrial (designadamente, no que diz respeito a objetivos, estética, circuitos de distribuição e exibição). Um dos estudos de casos – o documentário Trabalho de um Povo (1959-60), uma encomenda do SNI e da Inspeção Superior do Plano de Fomento que visava a divulgação do II Plano de Fomento Nacional – vem demonstrar a importância de fazer acompanhar as análises de conteúdo dos filmes com outros documentos históricos. Através do material consultado (disponibilizado nos anexos) – que inclui o contrato firmado entre o SNI e o produtor, a correspondência oficial entre os principais intervenientes, o guião anotado por um dos inspetores do Plano de Fomento, e o registo do percurso de exibição do filme – o autor consegue retirar conclusões mais sustentadas e, consequentemente, mais convincentes. A análise comparativa entre o guião do filme e os comentários do responsável pela encomenda revela-se particularmente útil na difícil tarefa que é compreender de que forma fatores como a entidade contratante e os constrangimentos orçamentais interferem na composição final de um filme.

9 O Cinema em Portugal é um estudo de cariz essencialmente informativo que tem o mérito de reunir, pela primeira vez e num único volume, dados sobre o documentário industrial que, para além de escassos, têm estado dispersos e fora do alcance dos investigadores. É de louvar o esforço, inédito no nosso país, de levantamento e inventariação do filme industrial, que faz desta obra uma referência obrigatória para investigações futuras. Porém, a tendência para pormenores irrelevantes, para a repetição (frequentemente sinalizada pelo autor – cf. p. 114, p. 115) e, em menor grau, para a duplicação de dados (o quadro nº 17 é repetido no anexo B.1. – pp. 148 e 250), sugere que o texto teria beneficiado de uma revisão mais atenta. Do ponto de vista analítico, teria sido mais frutífero (para a investigação) e estimulante (para a leitura) um envolvimento mais direto, desde as primeiras páginas, com o tópico de análise. É dececionante verificar que as partes mais importantes do livro – a subsecção sobre o documentário industrial e as duas últimas secções – representam apenas um terço (pp. 120-221) da totalidade das páginas. Do mesmo modo, o nivelamento de diferentes camadas de informação faz com que alguns dos contributos mais valiosos não tenham a força e o destaque que mereciam.

10 Se o livro é forte em conteúdo informativo, é consideravelmente mais fraco em termos teóricos e analíticos. A escolha dos cinco documentários a analisar reflete problemas deste tipo. O corpus de análise, que inclui filmes posteriores a 1957 e anteriores a 1971, deixa de fora grande parte do período em estudo. A justificação do autor – que os autores destes filmes eram vivos à data, podendo ser entrevistados – é pouco convincente, até porque, não obstante o título da penúltima secção, são poucas «as palavras dos próprios autores» a que temos acesso (e quando temos, pouco acrescentam ao que vem sendo dito). Não há dúvida que o critério decisivo foi um critério artístico, e não histórico: todos os filmes foram escolhidos por serem «documentários indicados pelos próprios cineastas e críticos do cinema como os mais representativos de diferentes décadas e de diferentes realizadores» (p. 185). Daí a exclusão do trabalho de Maria Luísa Bívar, a realizadora que mais documentários industriais produziu, mas que Martins não considera um caso paradigmático (p. 149). Daí, também, outros enfoques analíticos: o papel que os documentários industriais desempenharam como terreno de experimentação para os cineastas do «novo cinema»; a importância atribuída (sobretudo na primeira parte) às salas de cinema convencionais, em detrimento de outros públicos e circuitos de exibição (ex. Casas do Povo, cineclubes, escolas, sanatórios, igrejas, as próprias empresas, que Martins, de resto, refere, mas não desenvolve – pp. 89-90, 126, 206); e a sobrevalorização de dois dos muitos usos a que o filme industrial se prestava, nomeadamente, o prestígio e a construção de uma memória coletiva, cujas ramificações e implicações sociais não são suficientemente exploradas.

11 Apesar de proclamar o filme industrial como uma fonte histórica e de acesso à realidade, Martins acaba por abraçar uma visão estetizante do filme industrial, que radica na noção (tendencialmente a-histórica) do cinema como arte. Esta é, aliás, a surpreendente conclusão que o autor retira no final da quarta secção – que «o cinema é uma arte» (p. 183) – uma secção que, pelo contrário, colocara em evidência as densas relações sociais – pessoais e profissionais; materiais e simbólicas; formais e informais – que tornaram possível a produção destes filmes. Contrariando a tendência teórica dos estudos mais recentes sobre o filme industrial, o autor acaba por convergir com perspetivas autorais que tendem a valorizar o documentário industrial pelo seu contributo, sobretudo ao nível formal, para o cânone ficcional, ou a ver em alguns destes filmes os contornos de um novo cânone (em ambos os casos, a grande referência de Martins é, sem dúvida, o «novo cinema» dos anos 50 e 60).

12 Na base destas opções e confusões teóricas está também um entendimento pouco sofisticado da relação entre cinema e história, arte e realidade – um tema complexo que tem feito correr rios de tinta. A defesa do valor histórico dos filmes não é nenhuma novidade (esteve, por exemplo, na base da formação de instituições como as cinematecas e os arquivos de imagem), e é relativamente consensual. Mais difícil é aferir como é que este valor histórico se manifesta nos filmes: leituras simplistas, que procuram estabelecer correspondências diretas ou relações de causa-efeito entre os filmes e a realidade/ história, têm hoje pouca credibilidade. No entanto, Martins facilmente resvala para este tipo de leitura, por exemplo, quando pretende ver nos filmes analisados reflexos das políticas económicas vigentes (p. 192) ou, de forma mais geral, retratos de uma época. Não podemos esquecer que, para além de submetidos a uma ordem ficcional e narrativa (como qualquer filme), os documentários industriais são moldados por fins, se não abertamente publicitários, pelo menos manifestamente promocionais (daí o descrédito a que gerações de historiadores os tinham votado). Uma das formas mais interessantes de contornar este problema é através da atenção ao que não é incluído – as ausências e lacunas do filme, que Martins, a dada altura, também refere (p. 221), mas às quais não dá a devida importância nas suas análises.

13 Por fim, ao fazer coincidir «realidade» e «passado» (incorrendo num certo essencialismo), Martins tende para uma conceção do documentário industrial como um «lugar de memória» (p. 30). O que o documentário industrial foi, na sua época, confunde-se com o que o documentário industrial é, na nossa – segundo o autor, um garante de acesso, a cada visionamento, a um passado que ficou preservado em filme (p. 19). De um ponto de vista teórico, teria sido útil separar estes dois momentos de receção, a fim de preservar uma das características mais importantes do filme industrial: o seu profundo enraizamento no «presente». Como vários autores têm vindo a demonstrar (veja-se o trabalho de Vinzenz Hediger, Patrick Vonderau e Thomas Elsaesser), os filmes industriais foram produzidos para responder a necessidades específicas e imediatas, encontrando-se presos a determinada ocasião, objetivo e destinatário – a tríade AuftragAnlassAddressat1, que se sobrepõe ao autor, e que cabe ao investigador recuperar, identificar e teorizar. O Cinema em Portugal toca em muitos destes aspetos (o livro de Hediger e Vonderau é citado), mas não de forma aprofundada, sistemática e teoricamente consequente.

14 A questão do que estes filmes representam hoje, para nós, fica igualmente por equacionar. Martins concentra os seus esforços numa discussão relativamente longa (pp. 22- 30) sobre o cinema e a memória coletiva (estranhamente explicada à luz da memória individual), deixando de fora um problema, a meu ver, mais interessante: como compreender que, numa época como a nossa, descrita como pós-industrial, o filme industrial venha a despertar a atenção de críticos e espectadores? Ou seja, como compreender que, no contexto atual de pós-industrialização, a memória coletiva se venha a congregar em torno de uma memória industrial? Ao lançar as bases para a cartografia do que tem sido, até agora, um vasto «território não cartografado»2, não há dúvida de que o livro de Paulo Miguel Martins representa um bom ponto de partida para a resolução destas e de outras questões, sendo a sua leitura, também por esta razão, de recomendar

Notas

1 O termo é de Thomas Elsaesser, em ‘Archives and Archeologies: The Place of Non-Fiction Film in Cont (…)

2 A expressão é de Vinzenz Hediger e Patrick Vonderau, na introdução a Films that Work, p. 10.

Sofia SampaioInvestigadora de pós doutoramento do CRIA, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Pesquisa sobre a indústria cultural, o cinema, com enfoque nas questões do turismo. E-mail: [email protected]

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História da educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI – XAVIER (RBHE)

XAVIER, Libânia; TAMBARA, Elomar; PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira. História da educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: CARVALHO, Fábio Garcez de. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011.

O leitor interessado em conhecer os caminhos que a pesquisa em História da Educação vem trilhando nesse curto século XXI encontrará nos dez volumes da Coleção Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil uma rica coletânea de artigos representativos do debate intelectual no campo. Aos organizadores coube a difícil tarefa de selecionar e organizar uma amostra dessa produção, que tem como marca identitária a pluralidade de abordagens teórico-metodológicas, fruto das mudanças de paradigmas nas Ciências Humanas.

Tal tendência renovadora se faz representar na seleção e organização do volume 5, denominado História da Educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. O sumário é dividido em três partes que abrange o largo espectro de mudanças da historiografia da educação brasileira nas últimas décadas. A primeira parte é reservada às matrizes interpretativas. Nelas encontraremos os grandes sistemas de pensamento, que forjaram as tradições intelectuais que ainda hoje se fazem presentes no debate acerca da escrita da História em Educação. Na segunda parte privilegia-se o debate sobre métodos, onde são apresentados resultados de pesquisas em curso a partir do uso de diferentes fontes: oralidade, estatísticas educacionais e livro didático. Por último, a temática das novas abordagens se faz representar com a seleção de algumas pesquisas, representativas de tendências renovadoras.

No que se refere à primeira parte, o artigo Matrizes interpretativas da história da educação no Brasil republicano, de Libânia Xavier, nos oferece um painel apropriado da trajetória da historiografia da educação em relação com o pensamento social brasileiro mediante a operacionalização da definição de matrizes, proposta por Wanderley Guilherme dos Santos. Assim, dispomos de uma grade interpretativa que se propõe a analisar a construção da disciplina História da Educação em sua relação com os intelectuais e sistemas de pensamento que influenciaram de alguma maneira o próprio campo da educação no Brasil, a saber: 1) matriz político-institucional; 2) matriz sociológica; 3) matriz político-ideológica; 4) matriz histórico-cultural (p.20). Além de servir como texto orientador para a organização e seleção dos textos da primeira parte, representa também uma iniciativa de contribuir para o debate acerca das relações da historiografia da educação com o campo educacional, propriamente dito.

Assim sendo, cada um dos textos refere-se a uma matriz específica, diferenciando-se entre si no tipo de abordagem, questão e recorte temático proposto. É o que podemos constatar na leitura de O centenário de Sérgio Buarque de Holanda diz respeito à história da educação, de Marcos Cezar de Freitas. O autor explora as possíveis conexões entre o pensamento educacional de Anísio Teixeira e a historiografia de Sérgio Buarque de Holanda, na concepção intelectual do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Proposta de análise fecunda uma vez que nos remete a uma reflexão acerca de quão complexas foram as imbricações intelectuais que percorreram a construção do campo da pesquisa educacional no Brasil.

Outra análise centrada no intelectual representativo de uma respectiva matriz está presente em Florestan Fernandes e a construção de um padrão científico na educação brasileira, de Marcelo Augusto Totti. Evidencia-se no artigo a função desempenhada por Florestan Fernandes em tornar a sociologia uma disciplina norteadora dos padrões de cientificidade a que carecia, a seu ver, o campo educacional brasileiro. Os artigos supracitados tratam, portanto, de tradições intelectuais que se forjaram no interior do campo da educação brasileira a partir da interseção entre diferentes áreas de conhecimento.

Já os dois artigos seguintes, espelham uma das vertentes de pensamento presente no campo da educação: o marxismo. Em Marxismo e culturalismo: reflexões epistemológicas sobre a pesquisa em História da educação, de Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Jr., o percurso do marxismo na pesquisa educacional – paradigma representativo da matriz político-ideológica – é abordado à luz de uma proposta interpretativa que leva em consideração a militância política e a formação teórica dos respectivos pesquisadores. Perspectiva que se evidenciou fecunda uma vez que os autores articularam a sua condição de testemunho da história com a sua prática de pesquisa no interior da Universidade. O marxismo, assim, torna-se um problema de pesquisa, conforme podemos atestar na própria opção em investigar a presença desse referencial teórico nas dissertações de mestrado da UFSCar entre os anos de 1976-1993. Tal pesquisa resultou no balanço crítico da produção fundamentada no corte temático das instituições escolares, que tem marcado intensamente o campo da história da educação no contexto da renovação historiográfica.

O leitor encontra outras considerações críticas acerca das tendências renovadoras da historiografia educacional em História cultural e educação: questões teórico-metodológicas, de Sérgio Castanho. O autor é claro em sua inquirição à influência da História Cultural na pesquisa em educação na medida em que sugere uma reflexão sobre os seus possíveis limites na abordagem de temas relativos “[…] à profissionalização docente, a temporalidade e a espacialidade escolar, o impacto da passagem da cultura ágrafa à alfabetização e outros âmbitos educacionais específicos” (p.109).

As questões propostas tornam-se instigantes em face da hegemonia da História Cultural nos estudos em História da Educação. Ao propor debater as relações entre os respectivos campos, o autor explicita a sua crítica às concepções que elevam a cultura à causa primeira dos acontecimentos sociais, subordinando o processo histórico a sua dinâmica. De modo geral, é uma questão teórica fundamental que tem colocado em lados opostos defensores e críticos da História Cultural.

Quanto à segunda parte da coletânea, dispomos de quatro textos representativos do impacto das tendências historiográficas renovadoras na escrita em História da Educação. O primeiro deles, Fontes e métodos na história da educação, de Elomar Tambara & Avelino Rosa Oliveira, segue na linha de questionamentos, a partir de uma abordagem marxista, à influência da Nova História. Concordando ou não com as concepções esposadas pelos autores sobre a construção do conhecimento histórico e as críticas às novas tendências historiográficas, o leitor tem em mãos os argumentos críticos às novas metodologias em história da educação que tem resultado na fragmentação do objeto de estudo e o ‘(…) relativo afastamento da idéia de totalidade”(p.160).

Por outro lado para demonstrar a vitalidade da renovação dos estudos em história da educação, o leitor dispõe de A História da Educação conjugada à história Oral em Imagem videográfica, de Bernadeth Maria Pereira. De acordo com a sua análise, a oralidade contribui para a renovação historiográfica sob três perspectivas: 1) destaca-se por sua especificidade metodológica à medida que problematiza a relação entre entrevistado e entrevistador; 2) a oralidade pode trazer à baila a voz dos “excluídos” e dos “esquecidos” para o âmbito da pesquisa acadêmica. Outrossim, a autora demonstra que a contribuição da história oral para a renovação da historiografia educacional não é tão recente quanto se parece, mas remonta aos anos 1970, a exemplo do trabalho de pesquisa de Zeila Dermatini (1979), que focado no estudo da memória de professores, “objetivou trazer à luz o conhecimento de um período ainda bastante desconhecido naquela época sobretudo no tocante ao aspecto educacional em áreas rurais no estado paulista” (p. 182)

Se uma das virtualidades do uso da história oral foi a deampliar o escopo documental dos pesquisadores para além dos dados quantitativos, no artigo Os limites das estatísticas educacionais por aqueles que os produziram, de Natália de Lacerda Gil, somos convidados a uma reflexão crítica sobre um tipo de fonte tradicional, que os historiadores de ofício denominam de fonte serial. No caso do estudo em questão, a autora se debruça sobre as estatísticas educacionais. As certezas quanto a sua objetividade e infalibilidade para orientar as políticas educacionais são postas em cheque a partir de uma investigação de alguns trabalhos estatísticos realizados pelo estado brasileiro no final do século XIX e a primeira metade do século XX. Ao explorar essa produção, a autora, tece a sua argumentação em duas direções: 1) as lacunas que envolvem os problemas técnicos de seleção e operacionalização de dados estatísticos; 2) analisa os discursos, fundamentados no universo simbólico de certezas científicas, que acompanha a construção do saber estatístico em sua aplicação na área da educação. As tensões advindas da interseção entre duas áreas distintas de conhecimento são exploradas com competência, a ponto de, ao final da leitura, ser possível refletir acerca da complexidade do campo educacional. Aliás, convite sugerido pela própria autora ao advogar uma postura crítica dos pesquisadores frente à “apropriação no meio educacional de qualquer conhecimento produzido no meio científico” (p.215).

A segunda parte da coletânea é finalizada com a apresentação de uma pesquisa de doutorado em andamento. O artigo: Pesquisa em História da Educação: localização e seleção de livros didáticos de história do Brasil no contexto republicano, de Kênia Hilda Moreira, é um relato de pesquisa cujo foco é a apresentação dos procedimentos metodológicos para a busca, seleção e construção do corpus documental que, no caso em questão, são os livros didáticos de História. Aliás, uma fonte que apresenta um enorme potencial a ser explorada, conforme defende a autora. Dispomos, então, de um artigo representativo da produção atual em história da educação que, por sua vez, segue os caminhos de renovação historiográfica a partir da incorporação de novas fontes.

Ao chegarmos à terceira parte da coletânea referente às abordagens, encontramos em As novas abordagens no campo da história da educação brasileira, de Antônio Carlos Ferreira Pinheiro, um texto-síntese acerca dos percursos da renovação da História da Educação. Esta é relacionada às mudanças no campo historiográfico, em que despontam três segmentos: a Nova História Cultural, a História Social inglesa e a Micro-história italiana; lugares a partir dos quais os historiadores da educação brasileira têm buscado os seus referenciais teóricos. As experiências de pesquisa com a história oral, de acordo com o autor, têm contribuído para os estudos de história de vida, bem como possibilitado uma “aproximação com as temporalidades mais contemporâneas, ou seja, produzir na perspectiva da história do tempo presente’. (p.257). Este insight nos faz refletir acerca das possibilidades futuras que envolvem o diálogo com a História do Tempo Presente – território ainda inexplorado na comunidade de historiadores da educação.

Em seguida, nos deparamos com dois artigos que corroboram a tendência marcante do uso da oralidade na pesquisa em História da Educação nos últimos dez anos. Sem dúvida é uma metodologia que vem norteando o debate e configurando linhas de pesquisa na pós-graduação. No entanto, o que chama a atenção são os distintos usos a que foi submetida. Em Histórias de vida de destacados educadores no contexto espaço-temporal da história do Rio Grande do Sul, de Maria Helena Menna Barreto Abrahão, a História Oral serve como suporte para a construção da metodologia em História de Vida. Ao advogar a relevância teórico-metodológica dos estudos em História de Vida, a autora trata das implicações desses estudos para a própria formação e profissionalização de professores. Ou seja, a História da Educação imbrica-se com a pesquisa educacional, conforme se explicita no diálogo com a produção bibliográfica de estudos de currículo e de formação docente. Já no artigo História oral e processos de participação nas culturas do escrito, de Ana Maria de Oliveira Galvão, há o relato do desenvolvimento da pesquisa sobre osprocessos de inserção de indivíduos e grupos sujeitos à oralidade na cultura escrita, onde são tecidas algumas considerações críticas acerca das potencialidades e limites dos testemunhos orais. “Afinal, se a ‘história’ oral tem o poder de desmistificar, pode também ser objeto de mistificação, como qualquer outro tipo de fonte” (p. 316). A pesquisa em questão estrutura-se em torno de forte diálogo com a História Cultural.

Seguindo na trilha desse diálogo, o artigo A teoria sobre associações voluntárias como matriz interpretativa das instituições escolares protestantes no Brasil, de Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento, reafirma a riqueza de possibilidades que a História Cultural oferece ao realizar uma pesquisa inovadora sobre as escolas protestantes no Brasil à luz dos escritos de Norbert Elias. Tendo a preocupação de romper com uma visão excessivamente mecânica da circulação das missões protestantes na América latina – vistas como representativa da crescente hegemonia norte-americana no continente -, a investigação traz questões instigantes referentes às conexões entre a dinâmica do protestantismo nos Estados Unidos e a sua expansão no Brasil.

A abordagem em História Cultural, a partir do conceito de representação de Roger Chartier, se faz presente no artigo Arquivo pessoal como fonte para a História da educação: Coleção professor Jerônimo Arantes, Uberlândia-MG (1919-1961), de Sandra Cristina Fagundes de Lima. Nele, a autora discorre sobre a formação do arquivo histórico da cidade de Uberlândia a partir do acervo pessoal do professor Jerônimo de Albuquerque; acervo esse que abrange documentos iconográficos, impressos variados, correspondências e documentos escolares. Esta dimensão da pesquisa, relatada pela autora, motiva uma reflexão acerca da relevância dos arquivos públicos municipais em cidades médias e pequenas em sua tarefa de preservar e organizar documentos locais. Tarefa indispensável para viabilizar os estudos em História Local, ainda ser explorado no País, bem como ampliar as possibilidades de diálogo da História da Educação com essa área de pesquisa.

A despeito das diferenças teórico-metodológicas e de suas polêmicas, cada um dos artigos, a seu modo, contribui para uma reflexão mais ampla sobre os aspectos teórico-metodológicos da escrita em História da Educação. Da mesma maneira que nos permitem refletir sobre questões específicas que acompanham as diferentes matrizes interpretativas.

Por tudo o que foi apresentado, podemos afirmar sem sombra de dúvidas que esta Coleção é um retrato da dimensão a que os estudos em História da Educação assumiram para a pesquisa educacional brasileira. Concordamos com Ângela de Castro Gomes, no prefácio da obra, quando afirma que este “[…] crescimento quantitativo e qualitativo é um ‘fato social’ a ser remarcado, seguindo-se a linha de se pensar a historicamente a História da Educação […]” (p. 13). Nesse sentido, é mister reconhecer a relevância da iniciativa editorial que cumpre o papel estratégico de apresentar para um público mais amplo um panorama do rico e complexo campo da produção intelectual realizada nos programas de pós-graduação em educação das universidades brasileiras.

No tocante ao volume cinco, este objetivo foi amplamente alcançado, pois algumas tendências podem ser destacadas após o término da leitura. A primeira refere-se ao estreitamento do diálogo com a produção historiográfica internacional como fato relevante na reconfiguração da escrita em História em Educação. Fato que se pode constatar de imediato após a consulta aos referenciais bibliográficos, geralmente vinculados à denominada Nova História, mas não exclusivamente. A segunda refere-se à vitalidade da produção nacional, oriunda dos programas de pós-graduação que tem servido como parâmetro para a elaboração de novos projetos, formulação de novas questões e uma reflexão sobre si mesma que demonstra o amadurecimento intelectual e a criatividade imperante nas pesquisas em curso.

Fábio Garcez de Carvalho – Doutorando em História da Educação na Universidade Federal do

Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662 – FRANZEN et. al (HU)

FRANZEN, B.V.; FLECK, E.C.D; MARTINS, M.C.B. (orgs.). Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662. São Leopoldo: Editora Unisinos/EdUFMT/Oikos Editora, 2008. 143 p. Resenha de: KARNAL, Leandro. Um documento jesuítico. História Unisinos 13(3): 312-313, Setembro/Dezembro 2009.

Pela primeira vez, é publicada no Brasil a Carta Ânua sobre a Província do Paraguai, que o provincial Andrés de Rada assinou em 1663. Esta Carta cobre o período 1659-1662 e, na edição organizada pelas pesquisadoras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, encontramos uma espécie de rascunho sobre os anos 1658-1660.

Os que trabalham com a documentação colonial jesuítica sabem o quanto esta publicação é importante. A documentação da Companhia de Jesus no período colonial é a fonte privilegiada para estudos religiosos, econômicos, políticos, antropológicos e até para os trabalhos sobre gênero. Escritores compulsivos, os membros de uma ordem que incorporou a noção moderna de texto e de sistematização de informações – a Companhia de Jesus – produziram uma pletora de cartas, relatórios, textos e imagens sobre quase tudo em sua época.

As Cartas Ânuas, síntese de muitas cartas parciais enviadas pelas unidades como colégios ou missões, constituem a atividade obrigatória de um jesuíta Provincial perante o religioso Geral em Roma, posto que fundamentam as decisões sobre a atuação dos jesuítas.

O documento publicado oferece uma rica oportunidade para as pesquisas brasileiras. Primeiro, porque fornece a visão corporativa e de conjunto da Companhia em sua ação no Novo Mundo. O texto revela um fl uxo de consciência com regras de retórica e apresenta os percalços da tarefa gigantesca que os padres enfrentavam. Entre estes se destacam o território imenso de atuação, os atritos com autoridades locais e até a defesa diante da acusação sobre a falta de empenho dos missionários.

Questões candentes como a tributação e o debate sobre o fornecimento de armas para as comunidades indígenas mostram que o olhar jesuítico concebe a Carta como um relatório amplo e não apenas religioso. Melhor dizendo: a visão sobre a eficiência da catequese parece incluir tudo que possa facilitar ou atrapalhar este projeto. O “mundo indígena e colonial em suas múltiplas facetas” (Franzen et al., 2008, p. 26) são o escopo do texto. Nesse sentido, a aspiração metafísica da Companhia de Jesus não parece excluir nada da imanência colonial.

O documento instiga o leitor, linha após linha, a reflexões e à formulação de perguntas que despertam pesquisas. De que maneira funcionavam colégios como os de Córdoba, Assunção ou Buenos Aires? Que modelos hagiográficos ou retóricos existem na descrição de cada necrológio da Carta, constituindo vidas exemplares, as quais, inclusive, poderiam conduzir a leituras mais amplas? Quais os modelos de missão descritos na obra? Como foram concebidos e implementados os projetos de evangelização dos indígenas? Qual o grau de maleabilidade tolerado pelos jesuítas em relação aos signos da cultura do outro? Como a alteridade é compreendida na pena dos padres? Quais redes de comunicação são constituídas e descritas pela Carta? Como as aparições da Virgem, indicadas pela narrativa, interagem, justificam ou corrigem a ação missionária? Que relações de gênero fluem da pena do provincial, ao descrever, por exemplo, a resistência de uma jovem índia ao assédio de um jovem tomado pela luxúria? Como as epidemias atuam nas comunidades? Quais conclusões demográficas podem ser retiradas de números registrados, como a cifra de 40 mil indígenas e 9525 famílias sob o cuidado da Companhia de Jesus na região? (Franzen et al., 2008, p. 106).

A publicação já é extraordinária pelos dois textos em si. Porém, o valor é aumentado pelo acréscimo de introdução, notas explicativas, mapas, relação de gerais, tabelas e índice onomástico final. A atual edição é a tradução realizada pelo P. Carlos Leonhardt, em 1927.

Como indicação final, resta sonhar com a ampliação da clareira aberta pelas pesquisadoras. Pensando no céu sobre esta estrada, resta também almejar que surjam outras publicações com a reprodução fac-similar do texto, sua transcrição paleográfica e tradução. Pensando na terra simples do chão do terreno, que despontem edições com a versão em português para o grande público. A lufada de ar fresco trazida pelo esforço das pesquisadoras Beatriz Vasconcelos Franzen, Eliane Cristina Deckmann Fleck e Maria Cristina Bohn Martins permite imaginar horizontes ainda maiores. Os pesquisadores sobre o período colonial agradecem.

Leandro Karnal – Doutor em História Social pela USP. Atualmente é RDIDP da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp). Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária Zeferino Vaz, s/n, Caixa Postal: 1170 13083-970, Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected].