História das Ideias do Ensino da Dança – VIEIRA (Urdimento)

VIEIRA M S História das ideias do ensino da dança TOPO História das Ideias do Ensino da Dança

VIEIRA M S História das ideias do ensino da dança História das Ideias do Ensino da DançaVIEIRA, Marcilio de Souza. História das Ideias do Ensino da Dança na Educação Brasileira. Editora Appris, 2019. 183p. Resenha de: NASCIMENTO, Diego Ebling do; RICHTER, Sandra Regina Simonis.  Urdimento, Florianópolis, v.1, n.37, p. 456-462, mar/abr 2020.

No livro História das ideias do ensino da dança na educação brasileira, o professor, pesquisador e artista da dança Marcilio de Souza Vieira apresenta o resultado das investigações realizadas em seu pós-doutoramento na Universidade Federal da Paraíba. Na obra, o autor apresenta conteúdos de documentos – Leis, Resoluções, Minutas, Diretrizes, Parâmetros e Base Curriculares – com o objetivo de realizar uma reflexão crítica do pensamento pedagógico brasileiro a partir do percurso histórico da frágil presença da Dança na educação brasileira.

Como afirma o autor, ao destacar sua opção metodológica pela “nova história” como contraposição às grandes narrativas ou teorias de cunho positivista, há que “desfazer a mitologia do olhar isento e indicar o sentido e a intenção do olhar do estudioso em/da Dança” (Vieira, 2019, p. 20). Para tanto, propõe uma obra em três atos – As Bases da Arte, Os Sistemas e As Problemáticas: A crise revelada – compostos por 14 cenas que permitem situar distintas concepções de arte e políticas para o ensino da dança no pensamento educacional brasileiro, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, incluindo os Cursos Técnicos de Dança. As cenas propostas são pautadas por uma revisão analítica sustentada na perspectiva da historiografia da dança moderna brasileira e ocidental.

A relevância da investigação realizada por Vieira em torno da presença – ou não – da dança na educação brasileira está em contribuir para compreendermos com Jorge Larossa (2006) que a produção, legitimação e controle de determinados modos de pensar, acessar e constituir conhecimentos refletem, indistintamente, na formulação de políticas educacionais que favorecem certos modos do corpo linguageiro aprender a estar sendo no e com o mundo. Em outros termos, implica compreender que a legitimação e o controle educacional de distintas experiências de linguagem produzem diferença na corporalidade, na sensibilidade, nas possibilidades singulares de imaginar e sonhar, de perceber e agir na pluralidade mundana.

Nesta compreensão, em sua revisão analítica do ensino das artes no Brasil, sem a intenção de esgotar a amplitude do tema, o autor discorre sobre o lugar da dança nas instituições de ensino e demonstra que ela sempre esteve à margem nas políticas educacionais em nosso país até a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n. 9.394/96, ou seja, apenas há pouco mais de duas décadas. Essa conquista, destaca Vieira, decorre da constituição de associações de arte no Brasil e dos movimentos em prol das artes na educação que emergiram na década de 1970.

Tais movimentos exerceram relevante força política para garantir o debate em torno da inserção do componente curricular “educação artística” nas escolas e na formação de professores, sendo os propulsores para a inclusão das diferentes dimensões das linguagens da arte nas LDBEN de 1971 (Lei n. 5692/71) e de 1996 (Lei n.

9394/96). Porém, se a formação em dança no ensino superior e técnico é garantida na LDBEN de 1971, é apenas com a LDBEN de 1996 que será afirmada como ensino obrigatório na educação básica brasileira. Mesmo assim, destaca o autor, não há hoje garantias satisfatórias para a presença da linguagem da dança nas escolas de educação básica e na formação superior.

Não há garantias para a presença da dança nos currículos escolares e na formação de professores de artes pois, de acordo com o autor, hoje, o ensino de Artes na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017) “é relegado à subcomponente e à unidade temática, favorecendo uma aprendizagem polivalente da área e negando a produção de conhecimento de cada uma das linguagens que o aluno da educação básica tem direito” (Vieira, 2019, p. 135). O autor destaca que a implementação da BNCC, na especificidade do ensino das Artes/Dança, consiste em uma retroação que empobrece os currículos escolares e, consequentemente os de formação de professores, por equiparar-se “aos problemas não muito diferentes daqueles associados ao passado” (Vieira, 2019, p. 133). Ou seja, a histórica instabilidade do acesso à Dança na escola é dada pelas opções políticas voltadas para a formação específica de profissionais habilitados a exercerem o ensino das diferentes dimensões linguageiras da arte. As artes na escola continuam sendo um tenso campo de disputa.

Nesse sentido, a legitimidade da temática emerge do momento histórico da BNCC (Brasil, 2017) se encontrar em fase de implementação e o próprio contexto escolar se constituir como um espaço eficaz de resistência à permanência das artes nos currículos da Educação Básica. Resistência que aponta a relevância educacional de manter a insistência em fomentar uma educação estética e poética que potencialize a vida e os modos de existir.

A ausência da dança em diversos registros de diferentes períodos da história da educação brasileira faz com que até a “Cena 5” do livro o autor se debruce na discussão do encontro entre artes e educação escolar focalizando o ensino das artes do desenho e da música. Tal ênfase indica que o ensino da Dança ocorria prioritariamente em espaços não escolarizados, porém não explora como este ensino acontecia. A Dança, por inúmeras vezes, é tratada apenas como um “assunto” que de quando em quando é resgatado.

Neste sentido, é um livro que anuncia, pelo seu título, a especificidade da dança na educação, mas que muitas vezes não fala sobre ela, nela ou dela. A constatação decorre de um percurso histórico que demonstra, no resgate realizado pelo autor, a resistência à presença da dança nas políticas educacionais do país e, consequentemente, na escola e na formação de professores.

No “Terceiro Ato”, voltado para “As problemáticas: a crise revelada”, há uma tentativa de focalizar a Dança a partir da interrogação pelo “lugar reservado às Artes/ Dança na Base Nacional Comum Curricular” (Vieira, 2019, p. 129), porém, mais uma vez, muitos parágrafos são dedicados a trazer conceitos e discussões que evitam ou driblam a proposta da “História das Ideias do Ensino da Dança na Educação Brasileira” ao priorizar a diluição da área Arte – e suas consequências na formação de professores de Arte – com o campo da Dança.

Ainda neste Terceiro Ato, Vieira (2019) aponta diferentes políticas educacionais implementadas nos últimos anos para a garantia da Dança nos diferentes níveis de ensino: Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior. No entanto, esquece o Ensino Técnico. O que é bastante intrigante, pois em momentos políticos como o nosso discutir a formação técnica nos parece extremamente relevante.

Será que o Ensino Técnico em Dança também não estará em crise? Outro apontamento que consideramos importante sublinhar nesta resenha é a desconsideração pelos estudos contemporâneos em Arte e Educação os quais vêm, cada vez mais, legitimando modos de fazer/pensar/viver dos povos originários do Brasil. O que aqui questionamos é a manutenção da ampla tendência da abordagem eurocêntrica na história do encontro político entre artes e educação no Brasil – desencadeado pelos Jesuítas e reduzido à cognição pelo ensino pragmático de listagens de conteúdos formulados como “direitos e objetivos de aprendizagem” na terceira versão da BNCC (Brasil, 2017). Ao seguir tal tendência, o autor expõe não apenas a intencionalidade política no apagamento da forte presença popular das matrizes culturais africanas e indígenas como a tensão conceitual gerada pela opção educacional de conceber arte como cognição passível de ser formulada em prévios conhecimentos ou “objetivos de aprendizagem” a serem ensinados.

A tensão é dada pelo esquecimento de que “se pensa sempre com o corpo” (Zumthor, 2007, p. 77), ou seja, pela desconsideração conceitual de que, primordialmente, “arte não faz sentido, faz sentir” (Nancy, 2016, p. 18). Talvez, essa tensão ou imprecisão nas concepções de arte no processo formativo de crianças, jovens e adultos, antes de ser limitadora, possa impulsionar outras interrogações que permitam expor o esquecimento pedagógico de que o enigma da força poética da arte/dança emerge da impossibilidade de apreender a transfiguração do sensível pois, como já disse Merleau-Ponty (1999), esta emerge de uma intencionalidade do corpo que independe de “representações”. Aqui, o paradoxo da ludicidade e lucidez que traduz os perigos da linguagem (Richter, 2016).

A publicação do livro de Vieira contribui para fomentar o debate em torno das memórias de dança no meio acadêmico e artístico ao sistematizar documentos orientadores do ensino da arte. Sua escrita cria condições para que possamos compreender, de modo amplo, a constituição histórica das políticas públicas para a área da Arte e da Educação, na qual a dança ocupa um lugar periférico no texto, evidenciando que necessita encontrar o seu lugar na educação brasileira.

Por fim, a importância da análise histórica realizada por Vieira na especificidade da presença da arte/dança no país está em expor o tenso percurso da disputa política pelos modos como educacionalmente definimos quais saberes optamos em apresentar aos novos que chegam no mundo e com qual atitude pedagógica nos posicionamos frente a eles. Nesse sentido, a publicação contribui para ampliar uma bibliografia tão escassa quanto relevante para o inadiável debate em torno do encontro entre artes e educação.

O livro é recomendado para estudantes, professores, pesquisadores e artistas que têm por objetivo adentrar nos paradoxos dos percursos históricos do ensino da Arte no país. O texto é acessível ao possibilitar a todos e todas, independente de sua área de atuação, realizar uma instigante leitura sobre as políticas educacionais brasileiras e suas relações com o ensino da arte/dança na escola e no ensino superior.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Base Nacional Comum Curricular. Secretaria de Educação Básica e Conselho Nacional de Educação. Brasília: SEE/CNE, 2017.

LARROSA, Jorge. Uma lengua para la conversación. In: MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten (Eds.). Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie. Traducción de María Rosich. Barcelona: Laertes, 2006, p. 45-56.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NANCY, Jean-Luc. Demanda. Literatura e filosofia. Florianópolis: Ed. UFSC; Chapecó: Argos, 2016.

RICHTER, Sandra R.S. Educação, arte e infância: tensões filosóficas em torno do fenômeno poético. Revista Crítica Educativa, v. 2, n. 2, 2016, p. 90-106, Dossiê: Infância e Educação Infantil: abordagens e práticas.

VIEIRA, Marcilio de Souza. História das Ideias do Ensino da Dança na Educação Brasileira. Editora Appris, 2019.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Diego Ebling do Nascimento – Doutorando em Educação na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). [email protected].

Sandra Regina Simonis Richter – Doutora em Educação, professora e pesquisadora da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UNISC, líder do grupo de pesquisa Estudos Poéticos: Educação e Linguagem UNISC/CNPq. [email protected].

Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe – BIANCO (RFMC)

BIANCO, Giuseppe. Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe. Paris: PUF, 2015. Resenha de: SOUZA, Herivelto P. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 141-146, n.1, 2016.

  1. Como se escreve a história (da filosofia)?

Em Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe, o pesquisador Giuseppe Bianco apresenta uma versão reduzida e modificada de seu trabalho de doutorado, no qual a recepção da obra de Henri Bergson no pensamento francês contemporâneo — com especial ênfase à “prosa de ideias”, ou seja, ao âmbito filosófico — é exposta de maneira minuciosa e bem documentada, destrinçando e alinhavando os mais diversos fatores que compõem aquilo que se pode chamar de “a herança intelectual” dessa que se tornou uma figura maior do cânone filosófico. O assunto convoca logo de saída questões metodológicas que podem perturbar adeptos de uma historiografia da filosofia mais, digamos, ortodoxa (à la Gueroult ou Goldschmidt), uma vez que experiências intelectuais que deram ensejo a importantes posicionamentos filosóficos são retratados não em sua coerência sistêmica autorreferenciada, mas em meio a teias de relações reconstruídas e analisadas a partir de uma abordagem que retoma instrumentos da história das ideias e da sociologia do conhecimento1 . Uma das conquistas mais evidentes desse tipo de postura é a de se retirar o discurso filosófico de um suposto lugar aquém (primeiro, mais fundamental) ou além (último, mais acabado) de outras formas discursivas, de modo tal que conceitos possam mostrar a amplitude de sua eficácia histórica e teórica. Nesse sentido, é feliz a escolha de submeter o caso Bergson a esse tipo de escrutínio, já que se trata de um autor que mobilizou os mais diversos tipos de reação; e embora possa-se perguntar com qual grande filosofia o mesmo não ocorreu, fato é que o século XX francês foi palco de uma profusão teórica muito significativa, no qual comentário de texto e reflexão original não se apartaram, tendo a obra bergsoniana constituído aí um referencial incontornável. Mas para compreender adequadamente tal cenário, noções como as de autor, obra ou escola não podem não ser problematizadas, pois se não se leva em conta os modos pelos quais são remanejadas em cada caso, perde-se de vista boa parte das nuançadas vicissitudes pelas quais uma experiência intelectual pode mostrar seu impacto, sem que aí esteja pressuposto qualquer resquício de teleologia, o que tornaria inevitável a leitura de que a tal “glória” de Bergson estivera já prenunciada por tal ou qual fator que se queira destacar.

Dessa forma, o estudo de Bianco distanciase também de um tipo de reconstrução que se restringe a interlocuções privilegiadas, aquelas nas quais se tenta mostrar como a influência mais decisiva de um determinado autor é um determinado outro autor. Isso deverá causar uma certa estranheza a quem possa estar muito habituado a algo que se encontra de maneira recorrente em trabalhos de história da filosofia; logo nos primeiros parágrafos do livro explicita-se essa escolha metodológica:

A despeito da problematização de noções como as de autor, obra e de continuum biográfico, introduzida em história intelectual por Foucault, Barthes e Bourdieu, a ideia desacreditada de que a produção filosófica seja redutível a uma performance solitária vinculável a uma subjetividade criadora e cujo objetivo é o de construir uma obra ou um sistema permanece tenaz quando se chega à metodologia realmente utilizada pelos historiadores da filosofia. Nestas páginas, os personagens se comportam diferentemente: eles pensam e falam sempre, para retomar a expressão de Judith Schlanger, “com a boca cheia”. Cada um deles fala em seu nome, mas com a boca cheia das noções, dos conceitos, das torções, das expressões, dos tiques de linguagem, das posturas de outros. Tenta-se assim seguir um programa forte que visa fazer desaparecer, do ponto de vista metodológico, a distinção entre personagens principais e personagens secundários, entre os grandes e os pequenos, entre os indivíduos e os “dejetos’”, para retomar a terminologia de Böll. (BIANCO, 2015: 4)

Qualquer leitor do livro perceberá com qual seriedade o compromisso com tal programa metodológico é seguido, e a que ponto se adensa conceitualmente a imagem do campo intelectual no qual o bergsonismo se inscreve, ou melhor, o campo que o mesmo ajudar a compor, de maneira decisiva.

Temos, portanto, uma história da filosofia cuja temporalidade não é linear, marcada pela regularidade de uma sucessão (de autores, doutrinas, etc.), mas plural, com diferentes escalas ou ritmos, uma temporalidade na qual o surgimento e consolidação de “-ismos” ou de “modas” podem ser postos em confronto com “a história dos programas, das instituições e das disciplinas” (2015: 7). O que muda? Para citar apenas um emblemático exemplo, a opinião um tanto aceita e repetida de que Bergson, até a publicação do livro de Deleuze de 1966, seria um “cachorro morto”, cuja obra sequer era lida ou vista como relevante, pode ser vigorosamente problematizada, se não rechaçada, mostrando-se 1) como antes mesmo de toda a celebração do centenário, em 1959, desde os anos 1940 aliás, obras como A evolução criadora e Matéria e memória já figuravam no programa da agrégation, e que, para professores “como MerleauPonty e Jean Hyppolite, os cursos de agrégation representam uma oportunidade para colocar Bergson em relação a outras correntes filosóficas contemporâneas” (2015: 258); 2) mostrando-se também que, mesmo durante os anos da hegemonia estruturalista, é possível encontrar menções a conceitos bergsonianos no interior de debates centrais. Ora, o livro oferece suficientes elementos de que seria muito mais justo falar em uma espécie de presença subterrânea de Bergson do que em sua ausência ou falta de relevância, pois fica claro que os conceitos bergsonianos foram sempre bastante frequentados e, é claro, muito criticados. Mas alguém ainda acredita que o impacto de uma experiência intelectual, ou a relevância de uma herança conceitual, efetiva-se apenas pela via do elogio? A frequentação de textos filosóficos fornece sem dificuldades exemplos de como, às vezes, quem se pretendeu o mais fiel seguidor tenha acabado por constituir, por assim dizer, um grande deturpador da obra de seu mestre, não porque haja um lastro que possa assegurar uma interpretação unívoca de um texto, mas justamente por causa da ausência da mesma.

  1. Uma aufhebung histórica do bergsonismo?

A reconstrução que o livro apresenta é escandida em três tempos, que segundo o autor correspondem, grosso modo, a três “momentos” da filosofia francesa contemporânea: o do “espírito”, o da “existência” e o da “estrutura”. Contudo, a divisão tripartite do livro não representa uma separação da recepção da obra bergsoniana em fases estanques, ou mesmo progressivas, na medida em que permite acompanhar as diferentes estratégias de apropriação dos diversos aspectos do pensamento bergsoniano. Nessa direção, o livro de Bianco é precioso, pois aspectos inauditos da centralidade do bergsonismo são trazidos à tona, não desacompanhados das referências a aspectos já há muito explorados, com diferentes níveis de aprofundamento: as críticas de Alain e alguns de seus principais seguidores – com destaque para o imbróglio que envolveu a participação francesa na primeira grande guerra -, bem como aquelas dos neokantianos franceses; as dívidas e rupturas dos existencialistas e fenomenólogos franceses; o estruturalismo e o papel de suas teses na rejeição do bergsonismo como uma espécie de psicologismo; a recepção por parte de um pensamento filosófico cristão, bem como a criação da “Sociedade dos amigos de Bergson”; a atenção que as assim chamadas “ciências psi” (psiquiatria, psicologia, psicanálise) deram à guinada introspectiva presente no pensamento bergsoniano; a importância que teve para vanguardas artísticas e literárias; a reviravolta desencadeada pela retomada deleuzeana da filosofia de Bergson. Como se pode vislumbrar, pouco escapa ao olhar atento de Bianco, embora, como já indicado, ele dedique fôlegos diferenciados a cada um desses diversos pontos.

A primeira parte do livro persegue as vias pelas quais se constitui, no cenário filosófico francês dos dois primeiros decênios do século XX, uma polarização entre “intelecção” e “intuição”, ou seja, uma tensão opositiva entre o modo pelo qual os neokantianos retomam o trabalho de fundamentação das condições de possibilidade do conhecimento racional e os efeitos da proposição bergsoniana de um método para a metafísica centrado no acesso intuitivo ao imediato. Em jogo aí está a ressonância das ideias de Bergson e os modos pelos quais elas logo geraram reações críticas muito severas. Entre as primeiras que se configuraram, e que tiveram seu impacto no modo como Bergson foi lido no decorrer do século, merecem destaque da parte de Bianco: 1) o ensino de Alain no Liceu Henri-IV, ao qual estiveram vinculados, entre outros, Canguilhem, Hypollite e Simone Weil; 2) duas frontes dominantes na Sorbonne à época: o neokantismo, proeminentemente impulsionado por Léon Brunschvicg, e a escola durkheimiana capitaneada por Célestin Bouglé; e 3) a tomada de partido em favor da teoria da relatividade por ocasião do confronto da metafísica de Bergson com a física de Einstein, exemplarmente manifesta na obra de Bachelard. O livro defende que essas “três barreiras antibergsonianas […] se combinam e influenciam a elaboração de textos na fronteira entre filosofia e prosa de ideias em um momento no qual a filosofia universitária não oferece perspectiva de carreira aos novos ingressantes.” (2015: 108) Com efeito, trata-se de um conjunto de perspectivas críticas a partir das quais a obra bergsoniana se viu continuamente sob ataque, já que a consideração de que o método da intuição é insustentável — uma vez que acaba por deixar o pensamento sem uma efetiva ancoragem no objeto — tem incidência não apenas epistemológica (impossibilidade de dar conta das condições de possibilidade da objetividade dos juízos), como também ético-política (sem ponto de referência, a razão torna-se refém das paixões, enreda-se em um inaceitável relativismo). Levado a seu ponto extremo, esse psicologismo ressaltado como inerente à intuição redundaria nitidamente em solipsismo: o pensamento bergsoniano padeceria então de todas as desastrosas consequências daí oriundas.

Ao longo de páginas muito estimulantes, a segunda parte do livro aborda a face que o bergsonismo adquire no panorama intelectual do entre-guerras, período decisivo no qual eclode a filosofia existencialista, consolida-se a influência da fenomenologia, sem perder de vista como se movem algumas peças importantes do tabuleiro, como Canguilhem, Lacan ou Jankélévitch. Mas tudo isso aparece precedido pela exploração mais detida dos movimentos argumentativos contidos na peculiar obra de um autor que representou um verdadeiro ponto de referência intelectual: trata-se de Georges Politzer. E isso não apenas por que crítica epistemológica e crítica política encontram aí uma espécie de sintonia perfeita, a ponto de se tornarem inseparáveis, mas sobretudo pela potência conceitual resultante desse embate crítico, com a proposta de que uma psicologia epistemologicamente consistente deveria estar assentada na noção de concreto. Este é um ponto que exige muito cuidado, pois quem conhece a obra de Bergson sabe que a noção de concreto é mobilizada para criticar o modus operandi abstracionista da velha metafísica. Politzer faz tal crítica voltar-se contra o próprio Bergson, e Bianco faz questão de apresentrar detalhadamente o que está em jogo: o cerne da crítica politzeriana reside na leitura de que tudo o que a filosofia da duração consegue fazer é dinamizar um pouco a fixidez das hipóstases da psicologia clássica, uma vez que generalidades sobre o fluxo do tempo em sua dimensão qualitativa não são suficientes para desvencilhar-se daquele realismo criticado. Tomar o qualitativo como princípio de individuação, tendo o fluxo dos dados imediatos do vivido como solo do sentido, seria relegar a experiência concreta do indivíduo no mundo a uma mera espécie de registro introspectivo. Afinal, para Politzer, a clivagem entre prático e especulativo, entre inteligência e intuição, entre espaço e duração dá-se ainda dentro do horizonte realista da metafísica, de modo que a adesão bergsoniana a um dos lados da separação o mantém rigorosamente apartado do concreto.

Ora, a leitura politzeriana será fortemente empregada por diversos autores que, mesmo antes do impacto do estruturalismo na filosofia e nas ciências humanas, criticarão incisivamente Bergson por todo seu descrédito com respeito às capacidades da linguagem em dar conta do objeto do pensamento. Ela será ainda uma ferramenta preciosa nas mãos de autores como Lacan, Foucault e Althusser, quando cada um, a seu modo, posicionar-se contra uma tendência ecletista na psicologia. Para Lacan, por exemplo, será ocasião de responder a uma série de críticas recebidas, as quais ele rotula, em 1935, como “intuicionismo bergsoniano”, colocando em relevo as consequências irracionalistas do mesmo. Por outro lado, o livro acompanha a série de mediações teóricas que levam a uma virada na avaliação da filosofia de Bergson por Canguilhem, o qual, enquanto jovem alainista, seguia de perto as críticas de seu mestre, mas que retorna mais tarde ao textos bergsonianos, encontrando neles elementos importantes para pensar as relações entre técnica e ciência sobre o pano de fundo de uma consequente reflexão filosófica sobre o vivente.

A leitura canguilhemiana não será desprovida de consequências para as formas pelas quais Bergson será lido em seguida. Ao lado daquela empreendida por autores como Jean Hyppolite, Raymond Aron ou Paul Ricœur, os quais tinham como uma questão central a história, a terceira parte mostra como a noção de vida é importante para a crítica do humanismo como resquício de uma metafísica a ser abandonada, problema que o pensamento francês articula a partir do influente texto heideggeriano de 1947.

Mas eis que a trama de reconstituição teórica da herança intelecutal bergsoniana enfim trata da “criança monstruosa” resultante da leitura à contrapelo realizada por Gilles Deleuze. Aqui, temos ocasião não apenas de ponderar elementos do percurso formativo que permitiram a configuração desse modo muito peculiar de se debruçar sobre a história da filosofia, como também – e, com isso, alcançamos talvez o ponto alto do livro – somos colocados em presença de uma articulação teórica decisiva a partir da qual da noção de diferença advirá uma espécie de centro de referência para a vindoura constelação conceitual deleuzeana, que se estabiliza, por assim dizer, com Diferença e Repetição. Destaque-se a atenção dedicada a escavar a gênese desse problema a partir de dois textos aparentemente menores, mas que ganham uma importância inaudita quando inseridos no desenvolvimento da produção teórica deleuzeana: a resenha de um livro de Hyppolite sobre Hegel e o artigo sobre a concepção de diferença em Bergson. Se Deleuze elogia o esforço interpretativo de Hyppolite em desvincular o sistema hegeliano de uma impostação antropológica, em favor da ontologia como dimensão mais fundamental, seu confronto com o bergsonismo o fará ressaltar aí essa passagem como já algo acabado, isto é, como uma filosofia cujos conceitos nos permitem pensar a diferença em si mesma, em sua imanência ao real, e não a partir de um quadro de projeções que a prenderiam, na experiência e, consequentemente, em certo regime de pensamento, como um sistema fixo de oposições. Ora, a operação deleuzeana é muito hábil em elevar a problema central esse tema da diferença, que, a rigor, “é totalmente ausente da obra de Bergson” (2015: 293), sem que se trate, no entanto, de uma imposição arbitrária à mesma: afinal, uma tal “singular perversão do bergosnismo” (2015: 296) envolve mostrar como a intuição pode ser rigoroso “método de compreensão do real” (2015: 298), uma vez que a consistência do real é durativa, isto é, “se diferencia imediamente consigo mesma” (2015: 301).

Ainda que por menções breves, mas sem jamais cair em generalizações grosseiras, Bianco deixa registrado como o confronto com Bergson será profícuo e se estenderá até o final do percurso intelectual de Deleuze, o qual coincide com os últimos decênios do século XX, do qual o livro nos fornece um panorama sucinto, com ênfase no papel do bergsonismo dentro do debate entre Deleuze e Badiou acerca da teoria das multiplicidades.

  1. Experiência ou conceito?

Ao fim da leitura surge uma estranha impressão de ter passado por todo um livro sobre o bergsonismo sem se deparar com qualquer citação do próprio autor. O curioso é que não se deve esperar do livro um comentário textual de Bergson, pois seu propósito é reconstruir os diversos modo de apropriação de uma obra em um determinado contexto histórico. Assim, possíveis críticas de que tenha faltado entrar no mérito da análise textual dos argumentos são descabidas na medida em que isso foge ao escopo do estudo. De fato, como o próprio autor aponta logo de saída, o livro não é bergsoniano. Mas não conter análise e citações de Bergson parece estratégico, pois permite tornar manifesta uma certa “ausência do autor” que coloca em relevo as modalidades discursivas de apropriação que justamente configuram a complexa feição de determinado autor.

Ora, tal feição é o resultado de textos em confronto com textos, e a nitidez dela dependerá de como esse entrelaçamento textual é apreendido. Ora, Bianco sabe muito bem que a trama aí é bem intrincada, na medida em que os textos não são apenas unidirecionalmente voltados para Bergson, mas se atravessam e dialogam entre si, extrapolando a referência ao autor privilegiado pelo recorte. E se há todo o esforço de dar conta das relações entre eles, em certas ocasiões alguns elementos poderiam ser mais explorados, como o papel de Koyré no contexto das críticas epistemológicas, ou mesmo nomes como Ruyer e Simondon, que não apenas eram leitores atentos de Bergson, mas tiveram uma parcela não negligénciável de importância para autores bem mais conhecidos como Canguilhem, Deleuze e Lacan (no caso do primeiro). Não se trata, é claro, de apontar tal ou qual aquela referência faltante, e sim de ressaltar em que medida o assunto é complexo, dada a profusão de experiências intelectuais originais em jogo, e de como a tarefa de realizar um retrato consequente é muito mais árdua do que pode parecer.

De qualquer forma, o livro não se destina apenas a quem quer conhecer melhor o contexto histórico de recepção da filosofia bergsoniana, mas deverá interessar bastante a pesquisadores dedicados a compreender o aparato conceitual da mesma, na medida em que tais conceitos são empregados em problemáticas diversas. Particularmente rico é o lugar atribuído a Bergson na oposição, tornada famosa por Foucault, entre experiência e conceito, pois Bianco dedica uma seção a mostrar, retomando o que já havia analisado de maneira mais demorada anteriormente2 , como tal oposição é incapaz de dar conta do que representou o bergsonismo, tanto em uma insidiosa influência subterrânea, quanto em seu recente interesse renovado para discussões muito próximas de problemas científicos.

Conta-se que o Prof. Bento Prado Jr. costumava dizer, acerca da filosofia francesa contemporânea, que todo mundo havia lido Bergson. Com este livro de Bianco podemos compreender melhor o como e o porquê daquela afirmação.

Notas

1 Na Introdução várias páginas são dedicadas às devidas considerações e justificativas metodológicas, nas quais as escolhas de certos instrumentos e objetos de análise é explicada — como, por exemplo, a forma pela qual textos bergsonianos são introduzidos na composição de programas, disciplinas, discussões, etc. Do ponto de vista de alguém interessado na minuciosa reconstrução sistemática da obra de um autor, tais justificativas podem não parecer convincentes de saída. Cabe ressaltar, no entanto, que o desenvolvimento do livro deixa bastante claras as dinâmicas de funcionamento do “campo filosófico” relevantes para o assunto, aí inclusas suas tensões e transformações em um período de muita reviravolta política e efervescência cultural, de modo que o “retrato de grupo” resultante possui uma notável densidade histórica, com a devida descrição da trama teórica envolvida.

2 Cf Bianco, G. Experience vs. Concept? The Role of Bergson, in Twentieth-Century French Philosophy, in: The European Legacy, vol. 16, n. 7, p. 855-872, 2011.

Herivelto P. Souza – Professor do Departamento de Filosofia UnB.

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História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história – ZANDWAIS (B-RED)

ZANDWAIS, Ana (org.). História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo-RS: Editora Universidade de Passo Fundo, 2012. 312p. Resenha de: DRESCH, Márcia. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.1 São Paulo Jan./June 2013.

História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história é uma coletânea de 12 textos escritos por linguistas e analistas do discurso e tem na linguagem sua matriz. O que caracteriza a obra é, de um lado, a expansão da reflexão para os campos da história, da filosofia, da linguística e do discurso, e, de outro, a reunião de textos que tematizam os estudos linguísticos na Rússia e na União Soviética do final do século XIX até meados do século XX, ou que se debruçam sobre noções e fundamentos teóricos da obra de Bakhtin e Voloshinov.

Nesta resenha, divido a coletânea em três blocos, que, ainda que não reflitam a sequência proposta pela organizadora, em muito dela se aproxima.

No primeiro bloco estão os textos de Patrick Sériot (Universidade de Lausanne, Suíça), Craig Brandist (Universidade de Sheffield, Inglaterra), Mika Lähteenmäki (Universidade de Jyväskylä, Finlândia), EkaterinaVelmezova (Universidade de Lausanne, Suíça) e Vladimir Alpatov (Instituto de Estudos Orientais, Moscou). Esses textos permitem tomar contato com teorias e discussões acerca da linguagem que acompanharam o final do século XIX, o advento da revolução russa e seus desdobramentos ao longo do século XX e, sobretudo, com o contexto em que essas teorias e discussões se desenvolveram. Grandes momentos de ruptura política são acontecimentos históricos e discursivos que instauram um intenso trabalho de dizer o mundo de outra forma. Mais do que a história dos estudos russos e eslavos sobre a linguagem, esses textos situam pontualmente o papel da língua naquele processo revolucionário, que se tornou, pela própria conformação da URSS – diversidade étnica, alto índice de analfabetismo e pobreza –, primeira pauta do socialismo soviético.

No texto de Patrick Sériot, o autor assinala que, de 1920 a 1930, quando a União Soviética passa por um processo de organização e consolidação do novo regime, por trás de ações que buscavam erradicar o analfabetismo e normalizar línguas de literalização recentes, havia um projeto de caráter antropológico. Trata-se de período de questionamento sobre a relação entre língua e sociedade, língua e espaço político, bem como sobre o poder das instituições linguísticas. Ele salienta o movimento de representações que se desloca em direção à unidade e à homogeneidade, justamente numa sociedade com camadas temporais que coexistiam – antigas classes, antigos modos de produção, novas forças produtivas. Ou seja, para se fundar, o socialismo tinha de apagar as diferenças.

Craig Brandist sustenta em seu texto que a revolução bolchevique trouxe condições para o desenvolvimento de uma forma insipiente de sociolinguística na Rússia, muito antes de estudos similares no Ocidente. Alega que a fusão dos estudos linguísticos e literários numa mesma disciplina de filologia permitiu que linguistas estivessem atentos às dimensões sociais da linguagem. Seu texto permite compreender como a linguística soviética se desenredou da psicologia, dando lugar a uma visão sociológica da linguagem. Ele analisa os estudos linguísticos na Rússia desde o século XIX, quando sob influência da psicologia, até chegar ao outro extremo, a teoria dialógica de Bakhtin.

Em seu texto, Mika Lähteenmäki distingue temporalmente as produções de Voloshinov, no final da década de 20 e início da de 30, e de Bakhtin, no início dos anos 30 até o início dos anos 50. Marxismo e filosofia da linguagem, publicado na Rússia em 1929, foi relegado ao esquecimento após sua publicação e retomado apenas quarenta anos depois, já fora do contexto original de sua produção. A obra foi escrita antes do marrismo se estabelecer como doutrina linguística oficial e numa época em que ainda se debatia o que é uma linguística marxista. Prevaleceu, porém, a partir de uma compreensão equivocada das ideias de Voloshinov, uma visão marxista vulgar, sustentada pela postura teórica determinista apoiada por Marr. Lähteenmäki discute, a partir da noção de ideologia, a concepção dialógica da linguagem, a questão da interação e do signo linguístico em Voloshinov.

O trabalho de Nikolai Jakovlevitch Marr (1865-1934), principal linguista da União Soviética dos anos 20 e 30, cujas teorias foram muito contestadas por seus colegas contemporâneos, é abordado especificamente em dois textos da obra em análise. No primeiro texto, Ekaterina Velmezova reconhece a crítica feita a Marr, todavia afirma que sua teoria tem de ser estudada como qualquer outra. Em seu artigo, propõe-se a analisar as noções de povos e línguas eslavas na Nova teoria da linguagem, de Marr, e a responder por que Stalin interviu contra o marrismo. O outro texto é de Vladimir Alpatov, que se pergunta por que razão de tempos em tempos retorna o interesse pelos estudos de Nicolai Marr na Rússia. Ele identifica a revitalização do autor entre 1950 e 1980 mais como contestação à política stalinista do que a uma questão teórica linguística. E, se na década de 90 ele aponta o ostracismo de Marr, ultimamente, afirma, cresce o interesse entre linguistas jovens pelo autor. Implacável, Alpatov diz que, por sua personalidade e sua formação, Marr poderia ter sido profeta, revolucionário, menos intelectual. As perguntas que ficam são do próprio autor: O alvo continuaria sendo Stalin? Seria sua luta contra a ciência positivista? Ou a volta de Marr é decorrência da instalação de uma crise das ciências humanas na Rússia?

Ao começar o segundo bloco, rompo com a sequência original do livro, e passo ao texto de Beth Brait (PUC de São Paulo/Universidade de São Paulo), que aproxima o primeiro grupo de textos, de teóricos estrangeiros, e os demais textos brasileiros que formam a coletânea. Esse texto reconstitui a chegada do pensamento de Bakhtin ao Brasil no final dos anos 60 e nos anos 70, quando pesquisadores, professores, estudantes de pós-graduação, poetas e tradutores ligados à área de Letras e Linguística começam a ter contato com as obras de Bakhtin e dos demais membros do Círculo. A singularidade do texto está na tomada de depoimentos daqueles que participaram ativamente dessa história, seja como alunos, no caso de Carlos Alberto Faraco, que viria a ser um dos maiores estudiosos brasileiros da obra de Bakhtin, Sírio Possenti e Wanderley Geraldi; seja como professor no curso de Pós-Graduação da Unicamp, no caso de Carlos Vogt. Tanto a fala da autora quanto os depoimentos que compõem o texto sugerem que El signo ideológico y la filosofia del lenguaje – edição argentina, traduzida do inglês, que chegou ao Brasil em 1976 – para além da descoberta de perspectiva linguística que incluísse o social, o sujeito e a ideologia, representou também uma forma de resistência à arbitrariedade do regime militar.

Neste bloco, encontram-se os textos de Amanda Eloina Scherer (Universidade Federal de Santa Maria, RS) e de Ana Zandwais (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que discutem a questão da homogeneidade da língua; e ainda os de Maria Cristina Hennes Sampaio (Universidade Federal de Pernambuco) e de Maria do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante (Universidade Federal de Alagoas), que discorrem sobre as ideias que fundam a filosofia da obra de Bakhtin-Voloshinov.

Scherer, que se coloca nos campos teóricos da análise do discurso e da história das ideias linguísticas, analisa três instrumentos de ensino de língua implantados em diferentes épocas – Basic English, na Inglaterra, 1923-1927; Français élémentaire, na França, 1949-1960; e Português fundamental do Brasil, final de 1960-início de 1970. A autora se pergunta de que maneira tais instrumentos apontam para as formas de constituição, institucionalização e circulação de políticas linguísticas em diferentes momentos sócio-históricos. As reflexões que faz ao longo do texto sobre as designações para língua (universal, internacional, artificial, etc.) sustentam sua análise sobre esses instrumentos que, entre outras coisas, buscam fugir da babelização e estão à procura da língua transparente, controlada, descritível e universal. Em seu artigo, Zandwais discute a utopia indispensável da homogeneidade da língua em diferentes formas de organização humana. O texto retoma o ideal da Antiguidade, de uma língua homogênea e universal, cuja origem pode ser vista na narrativa bíblica sobre o “sonho de Babel” e, aprofundando a questão, estabelece analogia entre a organização tribal primitiva e a chegada ao Estado de Direito do século XIX. Salienta que, quando o Estado transforma o pluri em monolinguismo, o que só se faz por meio de uma língua de cultura inacessível à maioria, formam-se contingentes de falantes linguisticamente desaparelhados. A reflexão se fundamenta nas noções de monoglossia, heteroglossia e refração de Bakhtin-Voloshinov.

Maria Cristina Sampaio, por sua vez, estabelece um diálogo entre as filosofias de Bakhtin, Heidegger e Lévinas. A questão que ocupa a autora são os fundamentos do pensamento ético, por isso retoma questões comuns a esses filósofos e Bakhtin: relações ser-ente, homem-existência, humanismo, ser-autoridade-responsabilidade. Na análise dessas questões, a ética só pode ser pensada por meio de um ato individual e único em relação a um sujeito pesquisador, em relação de alteridade com outros pensamentos e contextos. Ainda no campo da filosofia, o texto assinado por Maria do Socorro Cavalcante desenvolve a relação entre o materialismo histórico e noções centrais na análise do discurso de orientação pecheutiana. Além de Pêcheux, o texto dialoga com Lukács, Bakhtin e Leontiev, teóricos que fornecem contribuições para pensar a língua a ideologia e o sujeito. Com Lukács e Leontiev, a autora elabora a questão da consciência. Entendo que o texto toca em um ponto que pode embaraçar uma fatia da AD francesa: esse sujeito sobredeterminado ideologicamente é, portanto, absolutamente previsível e desprovido de liberdade? A essa questão, a autora responde com Bakhtin e Lukács: o sujeito faz escolhas e se marca subjetivamente frente à realidade objetiva tal qual se apresenta a ele.

No terceiro bloco, reuni os textos de Maria Inês Batista Campos (Universidade de São Paulo) e Carme Regina Schons (Universidade de Passo Fundo, RS), que têm em comum o fato de apresentarem importante trabalho analítico.

A partir do texto O autor e a personagem na atividade estética, escrito por Bakhtin na década de 20, Campos analisa as noções de proximidadedistância e excedente de visão estética nos dois epitáfios do romance Macunaíma, de Mário de Andrade. Em discussão estaria a questão da relação autor-personagem no processo de criação estética. Após explorar as noções teóricas, a autora passa à análise dos epitáfios, desvelando o trabalho de pesquisa de Mário de Andrade, realizado a partir de textos de viajantes estrangeiros, mitos, lendas e aspectos do folclore brasileiro. O resultado da obra é um personagem-herói que, no olhar distanciado, se aproxima do povo brasileiro.

O texto que apresento ao final desta resenha, de Carme Shons, vai se debruçar sobre a formação e organização da classe operária, especialmente dos sindicatos no Brasil da primeira metade do século XX – 1ª e 2ª Repúblicas. A partir da análise do discurso, fundada por Michel Pêcheux, a autora analisa a designação sindicato desde seu surgimento, buscando no interior do que denomina de formação discursiva jurídica (constituição e leis do período), como sindicato é predicado nas regulamentações. O texto acompanha o percurso de formação do movimento sindical que, na Primeira República, é pautado em práticas anarquistas e anarcossindicalistas e associado a uma imagem de enfrentamento e luta, e, no Estado Novo, no confronto com a formação discursiva jurídica, passa a um modelo corporativista, tornando-se mero instrumento de reivindicação de melhorias econômicas.

Resenhar uma coletânea traz a dificuldade de falar de um objeto uno, cuja composição por natureza é heterogênea. No entanto, o que está a se olhar são histórias de ideias que fundaram várias das áreas que hoje se agrupam em torno dos estudos do texto e do discurso, com especial destaque às concepções de língua, sujeito e sentido. Refiro-me em parte aos preceitos teóricos do Círculo de Bakhtin, mas também aos acontecimentos históricos e discursivos que foram o advento do marxismo e da Revolução Russa de 1917. História das ideias dá a dimensão da importância desses dois eventos no plano do conhecimento, à medida que ecoa discussões e desdobramentos que passaram o século XX e ainda mobilizam intelectuais, para, longe do ceticismo e da perplexidade diante do século XXI, pensar as ideias que movem a vida dos seres humanos.

Márcia Dresch – Professora da Universidade Federal de Pelotas – UFP/RS -Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil; [email protected].

La marche des idées – histoire des intellectuels, histoire intellectuelle – DOSSE (RBH)

DOSSE, François. La marche des idées – histoire des intellectuels, histoire intellectuelle. Paris: La Découverte, 2003. 339p. Resenha de: RODRIGUES, Helenice. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.48, 2004.

Em momentos de crise e de impasse, nos quais a nebulosidade do pensamento e das ações impossibilita uma inteligibilidade política, a “intelligentsia” francesa tende a se auto-atribuir uma missão. Do “caso Dreyfus” à guerra da Bósnia, passando por Maio de 68 e pela guerra da Argélia, a “intelligence” esteve presente em todas as frentes de combate do século XX, em nome do dever de uma “consciência crítica”. No entanto, as mutações históricas e intelectuais dessas últimas décadas modificaram radicalmente a tradicional imagem do intelectual: a representação do indignado, militante e crítico, cedeu lugar à figura e à cultura do especialista e do chamado “intelectual midiático”.

Ao lado de uma história intelectual e dos intelectuais, François Dosse, nesse recente livro, retraça, em filigrana, uma história da história dos intelectuais, mostrando, através de uma vasta literatura, as imbricações que subtendem sua relação com o espaço público, a história e os esquemas de pensamento. Revisitando as diversas publicações francesas e estrangeiras sobre esses dois domínios, o autor apresenta um importante trabalho de síntese. Embora estruturadas separadamente, a história dos intelectuais e a história intelectual, em razão mesmo de suas indeterminações e indistinções epistemológicas, se justapõem ao longo desse livro, revelando assim o caráter interativo e transversal desses dois objetos.

Paralelamente a uma história dos intelectuais, desenvolvida na França a partir da década de 1980, emerge uma história intelectual tendo por ambição elucidar as obras intelectuais na sua historicidade. Esse “obscuro objeto” que constitui a história intelectual surge, segundo o autor, do intercruzamento de uma história das idéias, de uma história das mentalidades e de uma história cultural. Com efeito, a sua gênese encontra-se na própria tradição epistemológica francesa: a história do pensamento cientifico (Koyré, Bachelard, Foucault), assim como no projeto arqueológico desse último: o pólo crítico e hermenêutico.

Menos preocupado com definições e com problemáticas, François Dosse opta por mostrar as diversas tendências dessa história intelectual: contextualismo (Skinner), semântica histórica (Kosseleck), hermenêutica (Ricoeur), assinalando a necessidade, para a sua prática, de ultrapassar as análises internalistas e externalistas. Para tal, a hermenêutica, como método, parece constituir uma das suas condições de possibilidade: “Cabe à história intelectual como à história dos intelectuais a interrogação da vida das idéias através de um vai-e-vem constante entre o passado e as questões que formulamos, ao passado, a partir do presente”.

Ora, tributária do contexto histórico nacional, a história dos intelectuais, na versão francesa, apresenta-se, na maioria das vezes, sob a forma de uma abordagem política, tendo por principais referenciais os engajamentos, as gerações e os lugares institucionais. Do ponto de vista ético, o intelectual é, antes de mais nada, portador de valor, de engajamento e de missão.

A pluralidade de acepções semânticas sobre o objeto “o intelectual” conduzem François Dosse a explorar os trabalhos de autores clássicos que, de maneira diversa, pensaram a relação do intelectual com o poder. De Benda a Said, passando por Sartre e Gramsci, esse autor apresenta um vasto panorama de análises onde se combinam, igualmente, comentários críticos sobre as obras e sobre os autores. Esse “obscuro objeto”, no contexto intelectual francês, remete, fatalmente, ao modelo do “caso Dreyfus” e às representações, positivas ou negativas, de um engajamento político. Complementando essa abordagem histórica dos intelectuais, os estudos sociológicos inspirados nos trabalhos de Pierre Bourdieu contribuem, sobretudo, para a elucidação das redes de poder e dos mecanismos de produção de idéias, fortemente dependentes dos lugares de enunciação (estudos comparativos entre “campos” intelectuais diversos). Mas, se essa perspectiva sociológica, como pretende François Dosse, revela seus limites, a história dos intelectuais, fundada na versão da história política, por sua vez, não permite a apreensão da própria produção intelectual.

Ora, a atividade intelectual encontra-se presente, segundo o autor, nas modalidades diversas de leitura e de apropriações de textos. A propósito, como ele bem salienta, a teoria de recepção de Hans Jauss é, por exemplo, fundamental em um trabalho de apreensão da produção intelectual. Nesse sentido, a nova história cultural francesa (em forma da história do livro, da edição, da recepção, dos símbolos e da prática cultural, por exemplo), pela própria complexidade da sua abordagem, possibilita explorar as diversas maneiras de pensar e representar o mundo. Desse modo, “a atividade intelectual na história cultural” (um dos capitulos, a nosso ver, mais pertinentes) permite uma melhor compreensão das múltiplas interações entre essas duas fronteiras: cultura e intelecto. Através de diferentes obras, intermediárias entre a história cultural e a intelectual, François Dosse apresenta exemplos de sua prática: os lugares de elaboração e de produção cultural (Carl Schorske em Viena, fim de século), os momentos de apropriação e de recepção de autores estrangeiros (Elias, Weber, Freud, Hegel), e a complexidade mesmo do ato de leitura (Menocchio de Carlo Ginzburg).

Outra variante da história intelectual, a história dos conceitos, em suas diferentes versões (a escola de Cambridge, a semântica histórica com Reinhart Kosseleck e a história conceitual da política, com Pierre Rosanvallon), situando-se nas margens de uma história da epistemologia, da filosofia política e da disciplina história, é tributária de contextos intelectuais diversos. François Dosse percorre esses diferentes campos de investigação, mostrando como a partir de um corpus de textos já tidos por esgotados (os textos de Maquiavel, por exemplo), “a posição enunciativa e a natureza dos destinatários dos mesmos sugere profundos deslocamentos de sentido”. Significativa da guinada hermenêutica, essa abordagem questiona o pensar e o agir nas sociedades passadas e presentes.

Se, como mostra o autor, a escola de Cambridge é passível de críticas em razão de um certo historicismo, o desenvolvimento mesmo da história conceitual no mundo anglo-saxão, graças às contribuições da “linguistic turn”, contribuiu, substancialmente, para uma abordagem mais filosófica da história política. A história intelectual, por exemplo, ilustrada através dos trabalhos de Rosanvallon sobre a democracia, apresenta-se sob a forma de uma “história conceitual do político”. François Dosse destaca a importância particular da “begriffsgeschichte”, pelo viés dos trabalhos de Reinhart Kosseleck e da sua difusão nos países ocidentais. Aliás, a influência dessa corrente intelectual se manifesta, atualmente, através da formação de uma rede internacional de pesquisadores.

Domínio incerto e hesitante, a história intelectual, como conclui o autor, pressionada entre uma lógica diacrônica da história das idéias e sincrônica das cartografias e dos cortes socioculturais, reveste uma “indeterminação epistemológica”. Para os leitores que conhecem os trabalhos anteriores desse autor em história intelectual, essa conclusão, no entanto, parece insuficiente, uma vez que ela exclui toda tentativa de questionamento metodológico e epistemológico. Apesar de se tratar de um livro de referência em história intelectual, a “marche des idées”, talvez pela sua própria proposta, não responde às expectativas daqueles que a praticam e que buscam, através dela, novas respostas.

Helenice Rodrigues da Silva – Résidence Les Récollets, 150-154, rue du Faubourg Saint Martin, 75010 Paris, Tel: 00 – 33 153262149.

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As relações internacionais, enquanto objeto de estudo, vêm se desenvolvendo de maneira satisfatória nos últimos anos no Brasil. Parte desse avanço é devido ao surgimento de cursos de pós-graduação na área, que colocam o estudo das relações internacionais, de modo geral, e a inserção externa do Brasil, em particular, no centro das preocupações de pesquisa. O primeiro programa de pós-graduação em História das Relações Internacionais na América do Sul foi criado na Universidade de Brasília, em 1976. Em torno desse Programa formou-se uma tradição brasiliense de estudo de relações internacionais. Ao longo de mais de vinte anos de atuação, o Programa produziu cerca de sessenta dissertações de mestrado e, com a implantação do doutorado em 1994, doze teses.

Uma particularidade das teses de doutorado do Programa é a diversidade temática. A ampliação dessa linha de pesquisa permitiu a modernização da História das Relações Internacionais. Assim, junto com os estudos que privilegiam as relações bilaterais do Brasil, inseriram-se novos temas e objetos de investigação. Com efeito, há estudos que aprofundam a análise das parcerias estratégicas, a opinião pública, a imagem, a segurança internacional, o pensamento político, as relações internacionais do Brasil e as relações internacionais contemporâneas. Tais estudos evidenciam a diversificação de olhares sobre a inserção internacional do Brasil. Leia Mais