Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823) | Hélio Franchini Neto

Helio Franchini Neto Imagem Atelie Editorial
Hélio Franchini Neto | Imagem: Ateliê Editorial

Em meio às reflexões levantadas pelo bicentenário da Independência, é momento de voltarmos aos clássicos produzidos pela historiografia acerca do tema e, sobretudo, promover o diálogo destes com as interpretações mais recentes que reconstituem o processo de Independência por meio diferentes abordagens. Dentre as novas propostas de análise elaboradas nos últimos anos, cabe destacar Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil, 1821-1823, fruto da tese de doutorado em História elaborada por Helio Franchini Neto. Diplomata de carreira, o autor nos contempla com uma abordagem historiográfica que pretende inserir o componente militar no contexto da produção acadêmica que privilegia a reavaliação do processo de Independência do Brasil desde os conflitos ocorridos a partir de 1822.

A obra resenhada em questão conta com prefácio de Francisco Doratioto e é dividida em oito capítulos, acrescidos de conclusão, apêndice e bibliografia. Dentre muitos objetivos, é necessário salientar que o livro busca alertar o leitor, desde sua introdução, acerca de dois grandes aspectos. O primeiro deles versa sobre a necessidade de se romper com o mito de um processo de Independência feito de forma pacífica, destacando as dificuldades de se consolidar o projeto de Estado-nação após a emancipação. As bases para tal resistência nos levam a um segundo aspecto que o autor persegue ao longo de toda sua pesquisa: a importância dos contextos políticos regionais no processo de emancipação. A participação das diferentes regiões do território brasileiro nos conflitos é ponto primordial para o autor, ao caracterizar os diversos interesses que estavam em jogo durante o período no qual as localidades precisaram, então, optar pela adesão a um dos polos políticos que disputavam a centralidade do poder: Lisboa e Rio de Janeiro.

A pesquisa empírica desenvolvida pelo autor merece destaque. Com o intuito de recuperar os registros das batalhas ocorridas entre 1822 e 1823, Franchini Neto lança mão de um amplo conjunto de fontes, composto, entre outros acervos, por documentos presentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, além da documentação dos arquivos das Forças Armadas brasileiras, da Biblioteca Nacional, bem como o acervo do Arquivo Nacional. Além dessas fontes, cabe salientar que, buscando revelar os indícios de um processo de emancipação permeado pela instabilidade, a obra fornece ao leitor um levantamento primoroso sobre os conflitos e a mobilização militar do período por meio da imprensa e dos arquivos diplomáticos do Brasil, da França e da Áustria, por exemplo. O arcabouço de fontes foi também enriquecido com as correspondências diplomáticas referentes ao Reino Unido e aos Estados Unidos.

Vale ainda ressaltar que o trabalho com a documentação primária abarca também as regionalidades, trazendo à tona documentos importantes para a compreensão das realidades locais, contribuindo, assim, com as interpretações historiográficas que primam pela participação das províncias no processo político da Independência.

Ao longo do texto, o leitor tem acesso a um importante diálogo com pesquisas consolidadas que, no decurso dos anos, nortearam a historiografia sobre a problemática da Independência. Nas mais de seiscentas páginas da obra, evidencia-se o debate enriquecedor com autores primordiais para a compreensão do contexto, como José Murilo de Carvalho, Lucia Bastos, Marcello Basile, João Paulo Pimenta, Evaldo Cabral de Mello, István Jancsó, Hendrik Kraay, entre muitos outros estudiosos da área que igualmente merecem destaque. É em meio a essa ampla rede de historiadores que Franchini Neto se coloca a contribuir com a vasta produção acadêmica já existente na área, visando, sobretudo, ampliar as reflexões sobre a potencialidade do papel da guerra na manutenção da unidade territorial e política em um cenário repleto de conflitos.

No primeiro capítulo, intitulado “O Brasil de 1822”, o autor destaca o contexto histórico que precede o processo da Independência, e ressalta a ideia de uma pluralidade de projetos políticos para o Brasil naquele cenário, bem como as dificuldades de uma administração centralizada, apesar da vinda da corte em 1808 (Franchini Neto, 2019, p. 31). Um ponto importante do capítulo é trazer à tona a multiplicidade de vivências em todo o reino, fato que impactou a forma como as diferentes localidades lidavam com Lisboa. Para o autor, tal indicativo se faz essencial para compreender até mesmo as reações distintas das regiões após a proclamação. Em meio a tal reflexão, Franchini Neto aponta ainda a presença de certa heterogeneidade acerca dos debates sobre variados projetos políticos e sobre o futuro do reino naquele período (p. 47). Ao fim do capítulo, destaca-se que a diferença da experiência histórica em âmbito regional fez emergir também perspectivas díspares entre o norte e o sul do país com relação à disputa que se colocaria logo em seguida entre Rio de Janeiro e Lisboa.

Em “A Constituinte luso-brasileira”, segundo capítulo da obra, torna-se possível compreender os limites e as contradições do vintismo por meio das reflexões do autor, que exaltam, detalhadamente, as formas múltiplas pelas quais o movimento fora sentido e recebido no plano interno e internacional. Para essa última análise, é importante destacar o debate que se vislumbra no texto a partir do diálogo entre alguns importantes documentos da época, como os registrados na obra de Varnhagen, junto a diversos documentos diplomáticos, que ressaltam as divergências que permearam o movimento vintista. Tais fontes levantadas pelo autor nos apresentam, desse modo, uma narrativa que traduz os bastidores do vintismo pelos olhares de representantes diplomáticos e suas preocupações com a instabilidade política entre Brasil e Portugal. Entre os documentos investigados, as correspondências e ofícios obtidos em arquivos britânicos e americanos nos indicam nuances até então não problematizadas sobre este contexto (Franchini Neto, 2019, p. 66).

As divergências em torno da recepção do movimento no reino, explicitadas por Franchini Neto, se consolidam a partir da relação direta com o modo pelo qual as localidades interagiam com Lisboa e com o Rio de Janeiro. É nesse ponto da investigação que a Bahia emerge como pano de fundo e cenário profícuo para grandes discussões e conflitos, em meio ao processo de emancipação que iria se desenrolar nos meses posteriores. A Bahia, nesse sentido, consolida, nas premissas do autor, a ideia de heterogeneidade no seio das elites regionais, indicativo levantado frequentemente na obra. A mesma variação de comportamento também é visualizada no momento em que Franchini Neto discute o posicionamento dos deputados brasileiros nas cortes. Em meio a essa elite política, nesse sentido, evidenciavam-se dois grupos: os vintistas e os unitários. O pesquisador ressalta ainda que, dessa forma, pode-se compreender que, no processo de convocação das cortes e suas discussões, emergiam ali dois estados buscando legitimação política e a conquista das diferentes regiões do Brasil. As lideranças políticas ligadas a estes centros irão, sobretudo, requerer das províncias sua adesão e lealdade a um dos polos da disputa, o que o autor determina como a consolidação de uma “típica situação de guerra”, que permeou todo o processo de emancipação (Franchini Neto, 2019, p. 91).

Em suma, o segundo capítulo da obra indica que, a partir da dicotomia “regeneração” versus “recolonização”, tem-se então um acirrado conflito político e bélico que dará base à Independência do Brasil. Ademais, o processo de adesão, longe de ter sido fato consolidado desde o primeiro momento, se exibe como um “movimento pendular” diante de interesses e decisões políticas do Rio ou de Lisboa. Como assinala o autor, a adesão das províncias não teria sido, assim, um movimento homogêneo e automático, posto que muitas resistiam até mesmo às duas propostas vigentes, ou ainda não optavam por algum dos lados dessa disputa. Para o autor, o posicionamento diante dos dois projetos (Lisboa e Rio) muitas vezes evidenciou-se como uma demanda vinda de fora das províncias, revelando pressões externas, e não como uma opção advinda internamente.

Durante o segundo capítulo, o autor elabora de forma minuciosa as possíveis causas desses conflitos e seu real significado em meio ao movimento de restauração em Portugal que seria, na verdade, a quebra da estrutura de governo que estava centralizada no Rio de Janeiro e a recolocação de Lisboa como o único centro de poder (Franchini Neto, 2019, p. 92). Objetivando enfatizar as dificuldades de um projeto aglutinador por parte de d. Pedro, o autor também discorre sobre o processo de negociação do príncipe com as elites regionais no contexto interno e, ao mesmo tempo, com a esfera internacional, quando destaca, por exemplo, a posição do Reino Unido, da Prússia e da Áustria diante da causa brasileira na disputa pela proeminência política empreendida por Lisboa e Rio. Para além disso, é levantado outro ponto de importante reflexão na tentativa de extrapolar o debate historiográfico que se baseia no contraponto entre as teses do “nacionalismo de adoção” e do “sacrifício por interesses políticos” por parte do d. Pedro. À primeira interpretação, Franchini Neto atribui a construção do ideário de uma Independência pacífica. Contudo, apoiando-se, entre outros documentos, em ofícios militares diplomáticos e correspondências, o autor mobiliza uma perspectiva historiográfica que atesta o posicionamento e as decisões do príncipe regente diretamente ligadas aos conflitos com as cortes (p. 108).

É então no terceiro capítulo, “Uma rebelião armada”, que o autor se propõe a detalhar o contexto do Fico, ressaltando o clima de violência que marcou o período após esta data decisiva. Assim, o Fico, segundo Franchini Neto, seria não somente uma mera proclamação, mas também um ato político do qual resultou um conflito armado e mobilizações militares importantes em diferentes regiões do país (Franchini Neto, 2019, p. 143). O contexto violento e conflituoso de 1822 é reconstruído por meio de fontes importantes como as informações subsidiadas por correspondências oficiais escritas pelo coronel Malet, diplomata francês que transmitiu nuances do cenário conturbado que se montou no Rio de Janeiro. Além disso, o autor se baseia na análise dos impressos e das atas da Assembleia Constituinte para destacar os conflitos e a mobilização militar daquela quadra.

Ao estudar o processo de emancipação e a disputa entre Rio e Lisboa, a obra evidencia a necessidade do príncipe em angariar esforços para sua causa. Franchini Neto, ao indicar as localidades que se tornaram base para a resistência de d. Pedro, as chamadas “províncias coligadas”, acentua que, até mesmo onde ele parecia dispor de algum apoio político, demandou-se também um longo processo de negociação em torno das elites regionais em prol da manutenção de tal adesão à causa brasileira. Assim, em localidades como São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, que afirmaram, naquele contexto, seu apoio à causa brasileira, notou-se certa oscilação nesse posicionamento em prol de d. Pedro. Tal fato, acentua o autor, demandou esforços intensos por parte do príncipe. Todavia, o capítulo demonstra que a base política de d. Pedro era, assim, pouco sólida, sobretudo pela existência de divergências internas nas províncias.

Ao caracterizar todo o processo político que levou à emancipação, o pesquisador aponta elementos que consolidaram o agravamento da situação política em 1822, levando à Independência do Brasil e ao estabelecimento do imperador. No entanto, mesmo após o rompimento, o Brasil ainda permanecia dividido, nas palavras do autor, caracterizando-se por “uma identidade ainda em construção”, o que levou a uma guerra que atingiu, sobretudo, as regionalidades (Franchini Neto, 2019, p. 216). O conflito movimentou as questões internas nas províncias, a partir também das demandas políticas regionais.

Nas demais províncias do reino do Brasil, situações conflitivas apareceram, dando conta da agitação política em que se encontrava o território português. Não existiu apenas uma tendência nesses territórios, ao contrário do que a historiografia tradicional aponta e qualifica como exemplo de uma brasilidade preexistente. (Franchini Neto, 2019, p. 189)

Desse modo, ao levantar documentos provenientes das juntas governativas, como diários, cartas e ofícios advindos de diversas localidades do reino, e a partir de indícios publicados no Diário do Governo de Lisboa, o autor demonstra uma série de desdobramentos políticos que ocorreram em diferentes províncias, que auxiliam na reconstrução dos cenários provinciais em torno da disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, mesmo após a efetiva emancipação.

Nesse contexto, torna-se árdua a tarefa de unir o povo em uma mesma identidade, apoiando uma só causa. Assim, é no quarto capítulo, denominado “A mobilização militar”, que autor redesenha a magnitude da mobilização militar que atuou no processo de consolidação da Independência, a partir de fontes que elucidam as operações da Marinha, assim como diversos dados contidos em escritos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). O levantamento é rico em detalhes ao traduzir a estrutura do aparato militar que atuou em território brasileiro e, ao mesmo tempo, aponta a organização militar proveniente do outro lado do Atlântico, em meio ao contexto conflituoso que se estabeleceu após a emancipação. Nessa parte do texto, Franchini Neto nos contempla com tabelas e registros bastante completos que evidenciam o contingente de armamento vigente naquela ocasião (Franchini Neto, 2019, p. 245). É neste ponto do capítulo que o autor acentua uma discussão bastante oportuna acerca do conceito de “guerra” e do motivo de sua não utilização por parte do Rio de Janeiro e de Lisboa durante aquele período. A ausência de uso do vocábulo, no entanto, não exclui a existência de um conflito armado significativo durante o processo de Independência.

O capítulo “Guerra no centro estratégico: Bahia”, quinto da obra, nos permite dimensionar a importância dessa região durante os conflitos militares que emergem no processo de emancipação política e nos meses que se seguiram. A Bahia e, sobretudo, a figura de general Madeira, configuram-se como peças fundamentais na narrativa do autor para apresentar minuciosamente ao leitor como teria ocorrido o enfrentamento entre Lisboa e Rio de Janeiro. A partir da análise dessa região, Helio Franchini Neto consolida sua tese, que leva em conta o cenário de guerra que emerge no processo de emancipação. A obra exibe um levantamento baseado na releitura da historiografia sobre a Bahia e ancora-se em fontes como o jornal A Idade d’Ouro, além de ofícios dirigidos às cortes e panfletos manuscritos. Com posição estratégica entre as demais regiões do território e importância também no âmbito econômico, a Bahia se tornou o centro do conflito armado. Nessa perspectiva, ao elaborar o clima bélico durante o processo de adesão aos dois polos políticos, o autor faz questão de enfatizar a linha de pensamento que persegue por todo o texto: a importância das dissidências regionais diante do apoio à causa da Independência. Assim, naquela região as posições também não eram unânimes em favor de Lisboa ou do Rio. Panfletos do período corroboram a ideia de três grupos políticos distintos consolidando o contexto político que serviria de palco para o conflito armado (Franchini Neto, 2019, p. 290).

No sexto capítulo Franchini Neto apresenta “O teatro de operações Norte”, conduzindo o leitor a compreender que as operações militares nessa região nos comprovam o quanto a emancipação dependeu dos conflitos militares e das negociações regionais. Interessante destacar que, ao abordar as províncias separadamente no cenário de conflito armado, o autor deixa claro que os contextos regionais não se construíram de forma isolada, pois apresentavam relação direta com os acontecimentos do Rio de Janeiro e da Bahia, por exemplo. Desse modo, é notória a iniciativa da obra em dar voz às realidades regionais, incorporando- -as a um contexto conflituoso que atravessava todo o território.

Assim, ao elaborar sua análise sobre o longo processo que levou à incorporação de províncias como Piauí, Maranhão e Pará ao projeto político brasileiro de d. Pedro, o autor traz percepções bastante esclarecedoras, como a problematização acerca do fato de que incorporar uma região à causa brasileira não significou angariar sua total fidelidade dentro do conflito (Franchini Neto, 2019, p. 491). Além disso, na maioria das vezes, como cita o pesquisador, o posicionamento regional nasceu da necessidade de se adaptar às mudanças impostas na dinâmica política. Em algumas regiões, mesmo sem o vínculo com Lisboa, agora quebrado a partir dos conflitos armados, também era difícil constituir um vínculo sólido com o Rio de Janeiro (p. 519).

O sétimo capítulo tem como foco a Cisplatina e o processo de adesão à Independência do Brasil em meio a conflitos já existentes naquela região. Lisboa e Rio mantinham certo diálogo com a localidade, disputando apoio político. A manutenção da Cisplatina, como acentua o autor, seria fundamental para a consolidação do projeto político concebido por José Bonifácio para o império brasileiro. Diante do impasse, mais uma vez a solução tendia a ser o conflito militar. A composição do cenário de guerra naquela região, sobretudo por parte das forças militares portuguesas, que reagiram a partir da obrigação de se posicionar diante da política pendular do Rio e de Lisboa, foi amplamente discutida pelo autor por meio de ofícios e correspondências diplomáticas. Já no oitavo capítulo, centrado, sobretudo, em 1823, são demonstrados os percalços que envolveram todo o momento pós-guerra e o longo processo de reconhecimento da Independência do Brasil, entre perdas, ganhos e arranjos. A investigação de Franchini Neto elucida de que forma terminam esses conflitos em todo o território e reconstitui as principais negociações que envolveram a emancipação do Brasil, dando ênfase aos documentos diplomáticos e à atuação inglesa no processo de reconhecimento. Os combates, como acentua o autor, terminam em 1823. Todavia, é necessário enfatizar a existência de conflitos políticos posteriores que emanam do Rio de Janeiro, bem como a incidência de revoltas, sobretudo regionais, relacionadas ao apoio à Lisboa. A obra evidencia que Maranhão e Pará são exemplos da duração dessas contendas, que permanecerão vivas até meados de 1825, no momento de reconhecimento da Independência.

Seguindo para sua conclusão, o autor resgata questões importantes que permeiam toda a interpretação histórica que se contrapõe a uma ideia de emancipação pacífica. Para Franchini Neto, é necessário que todo o percurso conflituoso caracterizado na obra não seja visto simplesmente como o processo de Independência do Brasil, mas sim como um trajeto histórico que, entre tantos resultados possíveis, culminou, então, na emancipação. A obra acentua o cenário marcado pela instabilidade política e pela ausência de identidade nacional em meio ao caminho que levou à emancipação. Desse modo, Franchini Neto conjectura que a Independência fora então o resultado da disputa entre os dois polos, Rio e Lisboa, que conflitaram na tentativa de angariar alguns eixos principais: a Bahia, o Norte e a Cisplatina. Foram nesses cenários em que d. Pedro precisou ampliar sua adesão política, sobretudo diante das elites regionais, objetivando o reconhecimento de seu projeto político (Franchini Neto, 2019, p. 568).

Apoiando-se em autores cruciais que dão base ao debate sobre a historiografia da Independência, temática que apresenta vasta produção acadêmica, sua perspectiva historiográfica pretende inserir o componente militar no centro das discussões e aponta reavaliações históricas pertinentes sobre o período. Por meio de minucioso trabalho empírico, contemplando um amplo arcabouço de documentos, além de variados acervos, a obra recupera e traz à luz os registros das batalhas motivadas pela disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, destacando as dinâmicas regionais, e, ainda, acentuando a participação popular, ao enfatizar as dificuldades de adesão encontradas por d. Pedro.

Assim, na esteira dos estudos que emergem no momento do bicentenário da Independência do Brasil, a obra certamente contribui para a composição das interpretações historiográficas que buscam reavaliar o contexto da emancipação e seus desdobramentos. O livro de Helio Franchini Neto se destaca, entre outras características, por dialogar com interpretações consolidadas dentro da temática e, ao mesmo tempo, por conseguir, com êxito, inserir a mobilização militar que ocorreu entre 1822 e 1823 como elemento fundamental na construção do Estado-nação e na unidade territorial brasileira.

Referência

FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821- 1823). 1. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.


Resenhista

Karulliny Silverol Siqueira – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de Arquivologia da Ufes, Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823). Rio de Janeiro: Topbooks, 2019. Resenha de: SIQUEIRA, Karulliny Silverol. Entre conflitos e negociações: a Independência do Brasil sob a ótica do enfrentamento militar. Acervo. Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, p. 1-9, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]

 

Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária | Antonio Risério

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Antonio Risério| Foto: Walter Craveiro

Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária não se encaixa nos cânones acadêmicos, mas expressa a existência de uma polêmica direcionada à academia, nos espaços de opiniões homogêneas, onde impera o consenso, no caso, os debates acadêmicos do campo educacional e nas ciências sociais. O autor Antonio Risério (1953-) é um conhecido polemista que, tendo sido militante estudantil, preso pela ditadura, trabalhado na campanha e nos governos petistas, hoje se proclama crítico da esquerda, que ele qualifica de fascista e identitária. Na sua formação acadêmica ele possui mestrado em Sociologia. Hoje ele se identifica profissionalmente como escritor.

CR Resenhistas 1A obra é um ensaio sobre teoria e política, mas o teor é mais político. Ela está dividida em nove seções ou capítulos e os “anexos”, que compõem mais de um quarto do livro. Seu estilo narrativo demonstra um sentimento bastante amargo e o uso da palavra ressentimento, em um sentido nietzschiano, empregado para se referir à “politização do ressentimento” por parte da esquerda identitária, também é patente nos argumentos do autor. A sua narrativa não possui uma estética agradável, utilizando-se sem rodeios de palavras de baixo calão, abusando dos parênteses para tentar expor suas ideias, e eu ainda notei a economia no uso de preposições e artigos, o que dificulta o exercício de uma leitura mais suave. Leia Mais

O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política – BOMFIM (RETHH)

BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte, Puc/Minas, 2013 [1930]. 486 p. Resenha de:  FERREIRA, Clayton José. Epistemologia, Historiografia e História no ensaio “O Brasil na História, de Manoel Bomfim”. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, Morrinhos, v. 8, n. 2, mai./ago. 2017.

Em sua extensa obra, Manoel Bomfim (1868-1932) produziu quatro ensaios de cunho histórico, respectivamente: A América Latina: males de origem (1905), O Brasil na América: caracterização da formação brasileira (1929), O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política (1930) e o Brasil nação: realidade da soberania brasileira (1931). Nestes livros procura descrever e compreender grande parte da história brasileira através das mais diversas fontes documentais e da obra de diversos historiadores nacionais e internacionais os quais tiveram a história brasileira como objeto de estudo. Do mesmo modo, elabora uma crítica historiográfica, debatendo questões sobre a escrita da história.#

Educador, historiador, médico e psicólogo, nasceu na cidade de Aracaju, estado de Sergipe, porém, viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde completou sua formação superior em medicina, exerceu cargos públicos, participou da fundação de jornais e revistas e se tornou professor. Escreveu alguns trabalhos dedicados a educação escolar, tal qual o livro de leitura escrito em coautoria com Olavo Bilac, Através do Brasil (1910), utilizado até a década de sessenta em muitas escolas, tendo sua última, das muitas edições, datada do ano de 2000. Sua obra adquiriu, nas ultimas décadas, uma ressignificação diante da relevância em nossa contemporaneidade de temáticas abordadas pelo autor como, por exemplo, a discussão em torno da potencialidade na multiplicidade étnica e a importância da ampliação da educação básica. Os textos de Bomfim anteriores a 1905, tal qual o discurso O progresso pela instrução proferido em 1904 e, posteriormente publicado, o artigo no jornal A República em sete de Janeiro de 1897, intitulado Dos Sistemas de ensino, e o discurso pronunciado em 1906 e intitulado O respeito à criança, também publicado, possuem um extenso material a respeito da sua preocupação com a educação no Brasil. Dada a atualidade de muitos temas trabalhados em sua obra, seu trabalho tem sido revisitado e novas edições de seus textos têm sido publicadas nas ultimas décadas, tal qual a nova edição de 2013 do livro resenhado.#

O ensaio histórico O Brasil na História de Bomfim, possui uma importante erudição teórica sintonizada a muitos dos principais historiadores, filósofos e sociólogos de sua contemporaneidade, além da análise de um grande número de fontes documentais. O livro de Bomfim se inicia com uma importante introdução a qual procura esclarecer sua compreensão epistemológica da história. Neste texto, intitulado “orientação”, é abordada a relação ontológica do ser humano com a história. Tanto em nossa existência individual como social procuramos possíveis estímulos para nossas ações de modo a norteá-las e potencializá-las. Impulsos parcamente constituídos podem resultar em constantes escolhas infrutíferas, na estagnação da ação e na instabilidade. Como a espécie humana e seu sucesso se estabeleceram através da capacidade de se organizar e agir socialmente (perspectiva construída a partir de sua leitura de Darwin), estímulos os quais projetam uma melhor sociabilidade orientam a atuação humana rumo a aquilo o qual se considera progresso em uma determinada temporalidade.#

Portanto, sentimentos socializadores ou, a preocupação ética, são constantemente abordados na busca por estabilidade dos conflitos humanos. Tais estímulos para a busca por orientação da ação são elaborados, individualmente e comunitariamente, através do compartilhamento de determinadas experiências históricas que estão centralizadas na história, na memória, na identidade e na tradição. Apesar da distância moderna entre passado e presente, as experiências humanas, necessariamente são, com maior ou menor intensidade, espaços para a constituição de alguma reflexão e orientação do agir. Dito isto, Bomfim aponta a necessidade de um esforço historiográfico que siga ao encontro desta constituição ontológica do humano para que o conhecimento histórico profissional e científico ofereça possibilidades de reflexão sobre o norteamento da realização humana, enfrentando os aspectos abstratos e subjetivos da experiência, porém, consciente da incapacidade da disciplina em oferecer prognósticos.#

A partir deste argumento, irá produzir uma crítica direcionada a historiografia nacional a qual, segundo Bomfim, possui uma metalinguagem onde se narra a história brasileira como o lugar da decadência, da desordem e da incapacidade para o progresso. Para o autor, o passado brasileiro (ou daqueles os quais viveram no território o qual se tornou o Brasil) evidencia uma profunda competência para o desenvolvimento. Se o saber histórico pode auxiliar na reflexão e orientação, já que necessariamente ou, para o autor, “instintivamente” os indivíduos se relacionam com o passado, a educação está na centralidade de seus argumentos para mediar e capacitar uma relação mais sofisticada no interior das experiências de modo a produzir uma sociabilidade melhor organizada, de ampliar o que Bomfim chama de “consciência” dos motivos para a ação frente a concepções de progresso historicamente constituídas. Uma historiografia centrada em certa hermenêutica a qual desestimula e retira a potencialidade das experiências passadas e desvia dos objetos históricos os quais demonstram outras possibilidades, fundamentava parte da constituição de uma memória e tradição desencorajadoras frente ao ideal de progresso, atribuindo crédito à falácia da incapacidade civilizacional do brasileiro.#

O primeiro capítulo retoma e desenvolve a relação entre a tradição, a memória e a historiografia no interior de uma sociabilidade ativa sob o signo da nacionalidade. Para o autor, a partir da modernidade, a compreensão coletiva a respeito do passado está diretamente associada a capacidade confiante e engajada em se produzir ideais comunitários de progresso. A aptidão para produzir e direcionar a ação coletiva produz uma maior disposição à solidariedade entre os indivíduos e, portanto, situa-se no interior da sedimentação de valores ético-morais. Seria necessária uma historiografia atenta a esta compreensão teórica, já que ai se encontra o registro mais sofisticado e preciso do passado. Após estas reflexões, Bomfim quer deixar claro que sua proposta historiográfica, mesmo enquanto crítica à epistemologia da disciplina, mantem-se atrelada à produção do saber histórico através do método, da representação do passado fundada no maior rigor e exatidão possível, e não em uma hermenêutica a qual apresente uma história irrealista, idealizada.#

Exatamente para tal aproximação do real, entende ser de vital importância que se tematize aspectos subjetivos entre as experiências passadas e sua contemporaneidade já que tais aspectos são partes incontornáveis da existência. Ainda no interior deste argumento, critica severamente a expectativa descabida de objetividade, apontando que, mesmo através de procedimentos criteriosos, ainda assim todo saber será produzido no interior de valores morais e de identidade do pesquisador. Tais vínculos entre a história e a potencialização da sociedade frente a projetos de progresso poderiam ser observados na historiografia realizada naqueles países considerados como os mais avançados. No entanto, Bomfim aponta criticamente esta abordagem quando ela produz a representação imprecisa de um passado, fantasiando e glorificando a história em um esforço de legitimação de uma equivocada superioridade hierárquica, imputando a outros países a subordinação e dependência, calcadas falsamente em argumentos de inferioridade da formação histórica, social e étnica. O que é considerado progresso civilizacional na modernidade diz respeito a uma complexa relação de saberes e técnicas produzidos pelos mais diversos povos no tempo, o que tornava esta noção hierárquica um esforço estratégico para a realização de uma política internacional favorável.#

No segundo capítulo é tematizada parte das abordagens históricas produzidas em outros países a respeito do Brasil como uma causa externa da deturpação da história brasileira, enquanto que a primeira causa interna estaria associada ao que chama de “Estado português bragantino”. Estas reflexões são voltadas, neste capítulo, com uma especial atenção aos historiadores, sociólogos e viajantes franceses os quais produziram trabalhos sobre o Brasil. Para o ensaísta, grande parte destes autores (Jean de Montlaur, Edmund de Goucourt, Renan, Koster, Gilbert Chinard, Villegagnon, Léry, Thevet, Febvre, Chateaubriand, Gauthier, Flaubert, etc.) teriam produzido muitos dos seus trabalhos buscando confirmar preconceitos e conjecturas, se utilizando de noções teóricas deturpadoras da realidade brasileira (para Bomfim, especialmente o positivismo de Comte), buscando o exótico e produzindo excessivas generalizações; escolhas inadequadas para analisar e compreender experiências divergentes do pesquisador. Como a intelectualidade francesa possuía grande prestígio, suas obras acabavam por impactar negativamente na compreensão do Brasil pelos brasileiros, deturpando principalmente a história nacional. Flexionando este argumento frente a alguns escritores, Bomfim traça grande elogio à História do Brasil (1810) do historiador inglês Southey, o qual teria produzido na grande maioria de seu livro uma sofisticada e atenta análise a qual associava as dicotomias da objetividade e subjetividade valorizadas pelo sergipano.#

Quanto à administração bragantina, esta teria estabelecido um regime centralizado que incapacitou a realização do que Bomfim compreende como uma tradição a qual poderia culminar com uma política republicana; tradição desenvolvida devido a anterior frouxidão das capacidades administrativas da metrópole, resultando em uma organização no território brasileiro relativamente autorregulada. As sublevações, realizadas até então e a partir deste momento contra o Estado, teriam sido compreendidas como resultados de uma população desordeira, sem autogoverno, incapaz frente aos ideais civilizacionais modernos, categorizadas sempre como insurgências e inconfidências e desvalorizando os movimentos sociais no registro da historiografia. No entanto, para Bomfim, se tratavam de legitimas manifestações contra o Estado, de grande potencialidade para a politica republicana, demonstrando ampla capacidade para os ideais progressistas de sua contemporaneidade.#

O terceiro capítulo dedica-se a mediação e crítica de parte da historiografia nacional. Aqui, muitos dos historiadores fortemente associados aos Estados monárquicos desde 1808 são apontados como a segunda causa interna da deturpação da história brasileira. Tais autores, especialmente Varnhagen, teriam repetido, no intuito de legitimar a política centralizadora do Estado, os argumentos os quais imputavam a população uma desordem e incapacidade atávica. Em sua crítica a Varnhagen, há uma forte desaprovação de seus procedimentos para o levantamento de fontes e dados, métodos, fundamentos hermenêuticos e teóricos. Como sua contrapartida, aponta Capistrano de Abreu como historiador ideal, de procedimentos científicos, o qual associava simultaneamente em seu trabalho fundamentos objetivos e subjetivos. Há também uma análise elogiosa a respeito do livro História do Brasil (1627) de Frei Vicente do Salvador como o primeiro e mais valoroso esforço de produção de uma história brasileira, procurando realocá-lo como verdadeiro patriarca da história nacional no lugar de Varnhagen.#

A crítica a respeito do argumento que atribui à monarquia Bragança a unidade territorial é a primeira questão a ser debatida no quarto capítulo. Neste ponto, é desenvolvida com maior densidade a compreensão de que havia certa frouxidão do Estado até a transferência do centro governamental para a até então colônia americana, o que gerou certa auto regulação administrativa a qual tendia à constituição de uma tradição republicana. Admitindo as distâncias e diversidades dos povoamentos ralos, critica especialmente o pressuposto a respeito da unificação atribuído a monarquia no livro Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha. Bomfim defende a existência de certa solidariedade entre a maior parte dos povoados na colônia, surgindo e se fortalecendo nas transações internas, nos movimentos de defesa territorial contra os holandeses e franceses, na insatisfação contra o Estado e, ainda, durante a mediação entre os interesses da colônia e os holandeses, franceses, ingleses. Segundo o autor, alguns documentos evidenciam tal sentimento ao tratarem suas questões locais apontando, para além da localidade, certo sentimento de unidade.#

O capítulo quinto se inicia através de um debate teórico a respeito dos conceitos de patriotismo e nacionalismo. Dissertando no interior do vínculo entre indivíduo e sociedade, o ensaísta discorre quanto às possibilidades de estabelecimentos de sentimentos socializantes a partir do assentamento das comunidades e seus antagonismos estabelecidos a respeito de outros grupos. A partir deste fundamento, é desenvolvida e tese de que o estabelecimento de certa tradição, de sentimentos de solidariedade e embates entre as comunidades coloniais e os holandeses, franceses, além da defesa de interesses contra os ingleses e certo hábito de se portar contra os portugueses, sedimentaram lentamente certo sentimento de identidade na colônia portuguesa americana. Tais sentimentos seriam observáveis em alguns documentos, na literatura e na divergência encontrada nas manifestações contra o Estado português.#

O capítulo de número seis da continuidade ao argumento onde o autor defende a unidade territorial brasileira como resultado de sentimentos agregadores, surgidos entre as comunidades da colônia. Também da sequência a crítica direcionada a historiografia a qual associa unidade territorial a monarquia, apontando nestes trabalhos uma metodologia pouco criteriosa, altamente associada à política do império. Para o autor, a história do Brasil evidencia, no geral, tipos sociais fortes e ativos, como os sertanejos e bandeirantes, além de uma constante resistência aos abusos do Estado. Há ainda, certo caráter de “tranquila bondade” atávico ao brasileiro, o qual se concretizou desde a experiência colonial. Em poucos momentos surgiram movimentos de separação, e quando houve, estavam associados a uma administração tirânica. Segundo o ensaísta, o processo de independência, segundo historiadores e documentos do período, demonstra a adoção do sistema imperial como uma rápida resposta para evitar o que se considerava uma real possibilidade de rompimento incisivo entre o Brasil e a corte portuguesa: a implantação de uma república. Tal processo tornaria saliente, mais uma vez, certa tradição republicana.#

Bomfim aborda no capítulo sete, parte da história portuguesa do século XVI até a segunda metade do século XVII, principalmente através da obra do historiador Oliveira Martins. Portugal é compreendido como um grande reino, de importante atividade politica, de desenvolvida capacidade mental e nacional o qual teve suas tradições e política degradadas no decorrer de suas crises econômicas. Este processo teria acirrado a maior exploração de seus domínios, produzindo o mesmo declínio nos territórios americanos do reino. O oitavo capítulo da continuidade as questões do anterior. Aqui, o sergipano da foco maior a atividade mercantil de Portugal, partindo do seu auge, e relacionando sua crise aos decaimentos das instituições e do caráter nacional do português, vulgarizando certo comportamento ganancioso e cobiçoso. Em um segundo momento o autor trata dos mesmos problemas na corte da família Bragança e de uma consequente má administração e política internacional.#

O nono capítulo apura o entendimento do autor acerca da deturpação das tradições e da sociabilidade no Brasil a partir do começo do século XVIII como consequência da crise económica e política portuguesa. Neste sentido, o autor narra e expõe seu discernimento quanto as ações da administração e comercialização portuguesa em sua colônia americana. Entre eles estão os governos de Gregório de Castro Morais e Francisco de Castro Morais e as invasões ao Rio de Janeiro realizada pelos corsários franceses Jean François Duclerc e René Duguay-Trouin, a cobiça dos mercadores portugueses apontada em episódios como na expulsão em 1643 de comerciantes em Assunção devido a sua suposta cupidez, nos problemas entre os proprietários de terra e os negociantes reinóis os quais culminaram na “Guerra dos Mascates”, na proibição do cultivo da vinha e do trigo para não prejudicar a agricultura portuguesa, a cobrança dos impostos, entre outros.#

No décimo capítulo o autor procura entender o processo de independência do Brasil a partir do que chama de movimentos nacionalistas. Muitas vezes conhecidos como movimentos nativistas e movimentos emancipacionistas, tratam-se de conflitos locais ocorridos em sua maioria entre os séculos XVII e XVIII, os quais, para Bomfim, poderiam atribuir possibilidades de sentido para o surgimento de algum sentimento socializante, de solidariedade e alguma unidade entre as comunidades espalhadas no território da colônia portuguesa nas américas. Através do apoio de documentos oficiais e de comerciantes, atas, relatos, cartas e outras fontes procura-se apontar o surgimento de alguma afetividade nacionalista, especialmente nos embates ocorridos em Minas Gerais de 1707 a 1709 e em Pernambuco em 1710 a 1711, e em 1917. Estes momentos seriam evidência da capacidade civilizacional do brasileiro, intrinsecamente fundamentada na história, deslegitimando e desmistificando os argumentos europeus os quais diagnosticavam um insucesso atávico as populações da América latina através de argumentos a respeito da mestiçagem, do clima tropical e de uma suposta história inexpressiva.

Tal sociabilidade e tendências a uma civilidade e políticas republicanas além de um maior desenvolvimento civilizacional, aspectos de uma tradição em formação, teriam sido lentamente cerceadas com a administração do Estado português e a posterior monarquia instaurada na independência. Este é o problema central dos capítulos onze e doze, o primeiro se dedicando de 1808 até a independência, e o segundo aos governos de D. Pedro I e D. Pedro II. No processo de independência teriam sido coibidas as potencialidades das experiências constituídas no passado através do pacto entre a corte bragantina e as oligarquias, estabelecendo um regime político de certa incompatibilidade às tradições locais, dando continuidade a centralização política estabelecida desde 1808. Este processo teria introduzido o hábito em se produzir funcionários administrativos “ineptos, corrompidos, prevaricadores, tirânicos”.#

Bomfim conclui que a história do Brasil revela grandes potencialidades para o progresso nas populações espalhadas pelo território. No entanto, estas competências foram constantemente reprimidas pelo descaso dos governos quanto às questões sociais, a sua instrução e educação, em favor de uma exploração comercial sustentada pelo argumento da necessidade da ordem, o que explicava o atraso frente aos ideais de progresso durante a Primeira República. Dito isto, tal atraso não poderia ser explicado por uma suposta condição determinista ou étnica, atávica aos americanos, fruto de uma cientificidade associada a identidade europeia e à políticas imperialistas: a história revelava a aptidão do brasileiro frente as adversidades. Grande parte da historiografia do século XIX teria se esforçado por legitimar a noção de que o brasileiro é um desordeiro e incapaz o qual apenas poderia manter-se unificado, como povo e território, através do regime monárquico, desvalorizando parte indispensável da história para o estímulo da ontológica orientação humana através das experiências do passado.#

O Brasil na História compõe um importante exemplar historiográfico de um célebre momento da intelectualidade brasileira. No final do século XIX e início do XX foi produzida uma erudita e específica prática de escrita tendo a história como foco e o ensaio como gênero textual destacado, elaborando o espaço para a convivência do rigor, do método e da ciência simultaneamente a subjetividade, a afetividade, a elucubração. Para além de uma compreensão particular de determinados fenômenos históricos, trata-se de um trabalho o qual possibilita a melhor apreensão da historicidade da década de 1920, da Primeira República brasileira e de sua comunidade letrada.

Clayton José Ferreira – Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Marcelo de Mello Rangel e ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].

Trilogia do controle – LIMA (PL)

Em Trilogia do Controle, composta na década de 1980, pelos livros O controle do imaginário, Sociedade e discurso ficcional, e O fingidor e o censor, Luiz Costa Lima encalça as vias que o levaram a pesquisar sobre o veto à ficção, o controle do imaginário, inquirindo a “qual interesse a que o suposto veto responderia” e “por que seria ele consumado justamente por aqueles que se dedicavam ao poético”.

É um trabalho de fôlego, erudito, crucial não apenas para estudantes ou professores das Letras, mas para todos aqueles que se interessam pelas Ciências Humanas. Costa Lima desvenda como e por que o controle sobre o imaginário traz as relações de poder provenientes do Estado, da Igreja, desde a baixa idade média até a nossa contemporaneidade. O autor, ao estudar o veto ao ficcional, oferta rico estudo das relações entre História e Literatura, suas aproximações e seus distanciamentos, especialmente no que concerne à primeira ser ligada à verdade e à razão, e a segunda ao fingimento e à mentira. Leia Mais

a Ravardière e a França Equinocial: os franceses no Maranhão (1612-1615) – MARIZ; PROVENÇAL (RIHGB)

MARIZ, Vasco; PROVENÇAL, Lucien. La Ravardière e a França Equinocial: os franceses no Maranhão (1612-1615). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. 231p. Resenha de: DEL PRIORE, Mary. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.168, n.438, p.355-356, jan./mar., 2008.

De livro em livro, Vasco Mariz e Lucien Provençal vão construindo uma obra, se entendemos por obra um conjunto de textos atravessados por uma questão. No caso: as relações históricas entre Brasil e França. Autores de vários livros sobre personagens importantes da aventura americana, eles têm se debruçado sobre episódios que a história deixou no limbo. Depois de Villegagnon e a França Antártica, quem ganhou carne e osso foi este La Ravardiére e a França Equinoxial. Após as lutas na baía da Guanabara, àquelas nas praias pantanosas do Maranhão. Num texto coloquial e amistoso, os autores conjugam simplicidade e competência para nos contar o que alguns tentam esquecer : que por mais de um século, regiões inteiras do que, hoje, chamamos Brasil foram terra de ninguém. De ninguém, não. Pois os franceses sempre demonstraram enorme habilidade em se instalar e, diferentemente dos portugueses, estabelecer relações amistosas com seus moradores, os tupinambás

No Rio de Janeiro foi assim, e em São Luíz também. A idéia de uma colônia francesa no Norte, nasceu depois que alguns franceses aí estiveram, ao final do século Dezesseis. A idéia foi aplaudida por Daniel de La Touche, Senhor de la Ravardière, que já conhecia o litoral da atual Guiana. Em 1611, a primeira bandeira com a flor-de-lís foi hasteada e os “papagaios amarelos”, – alcunha amistosa que lhes foi dada pelo índios – davam início ao projeto de construir um forte, manter um convívio pacífico com os tupinambás e preparar a posterior ocupação por colonos. A campanha era escorada pelos chamados “grandes da Corte”: François de Razilly, Senhor des Aumels, chegado à família real, Nicolas de Harlay, barão de Molle et de Gros-Bois, e o senhor de Danville, almirante da Bretanha e primo do rei, Henrique IV. Com o sucesso da primeira parte da missão, passou-se à segunda. No ano quatro padres capuchinhos, entre os quais um dos primeiros etnógrafos a escrever sobre a região : Claude d´Abbeville. A chegada no porto de Jeviré tem banquete “tão magnífico quanto poderia ser em França”, reunião com os chefes aliados e uma decisão : a construção do forte São Luís : “feito de estacadas, com baluartes altos, casamatas e fosso de 40 palmos”.

Seguros para passar a etapa seguinte? Não. Aí que os problemas começam. E de um e de outro lado do Atlântico. De comum acordo com companheiros que levavam adiante uma campanha de alianças comerciais entre os diferentes grupos tupinambá, Razzily partiu para a França. Ia em busca de capitais, soldados e colonos. Deixava aqui disputas discretas com La Ravardière. Este, por ser protestante, era tratado como “herege” pelos capuchinhos e com pequenas humilhações por parte de seus subordinados católicos. Entretempos, Henri IV, que era um entusiasta da idéia, foi assassinado. Na mesma época programou-se o casamento de seus filhos com os de Felipe III, rei de Espanha e Portugal – sob a conjuntura da União Ibérica. Não era de bom alvitre, portanto, arranjar confusão no Brasil. Por aqui, os portugueses resolvem reagir.

Tem início as “jornadas importantíssimas do Maranhão”, dos melhores capítulos do livro, com detalhes das várias escaramuças, traições e operações estratégicas que levam à vitória de Guaxenduba. O fim da França Equinoxial se consolida com a rendição do forte São Luís – “Saint Louis des Français” –, no dia 3 de novembro de 1615. Foram tres curtos anos em que fatos externos ajudam a abortar uma experiência que poderia ter vida longa.

Se no século Dezesete, o Brasil continua como o país do ouro e das especiarias, para La Ravardière a França Equinoxial foi um sonho. Sonho decifrado com autoridade por especialistas capazes da arte sutíl de reunir a melhor informação com uma narrativa que deixará qualquer leitor por dentro do assunto. Trata-se de um exercício de precisão levado a cabo por dois colegas historiadores e que contribue de maneira esclarecedora para a compreensão das relações entre dois países amigos.

Mary Del Priore – Sócia honorária do IHGB.

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Temas da Política Internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas – MARIZ (RIHGB)

MARIZ, Vasco. Temas da Política Internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas. Rio de Janeiro: Topbooks, sd.. Resenha de: PEREIRA, Antônio Celso Alves. Ensaios históricos e saborosas inconfidências diplomáticas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.170, n.442, p.413-416, jan./mar., 2006.

Experiência diplomática, arguta observação, análise política preci­sa e, sobretudo, cultura humanista e senso de humor estão presentes nas páginas desse novo livro de Vasco Mariz, diplomata, escritor, musicólo­go, lexicógrafo e historiador, que, durante 42 anos, ocupou importantes postos na diplomacia brasileira. Serviu em Portugal, sob Salazar, na Iu­goslávia de Tito, na Argentina de Perón, no consulado em Nápoles e, por duas vezes, nos Estados Unidos. Além disso, foi representante do Brasil na OEA e embaixador no Equador, em Israel, em Chipre, no Peru e na extinta Alemanha Oriental.

Embora reunindo recordações e depoimentos pessoais, não se trata de um livro exclusivamente de memórias. O autor oferece ao interessado em política internacional um quadro analítico de temas que estiveram, e muitos ainda estão, na ordem do dia da grande política mundial. Suas re­miniscências do tempo em que servira na ONU são interessantíssimas. A análise do drama do Oriente Médio, que ele viveu de perto como embai­xador em Israel durante 5 anos, conforma um texto atual e imprescindível para a compreensão do problema. Da mesma forma, o leitor encontrará informações e detalhes pouco discutidos, ou mesmo ignorados, sobre a unificação alemã, especialmente sobre a antiga República Democrática Alemã. Na cerimônia de entrega de suas credenciais ao presidente da RDA, o comunista Erich Honecker, Vasco Mariz mencionou a participa­ção da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial. Ho­necker mostrou-se visivelmente surpreendido, pois não sabia que o Brasil lutara contra as tropas nazistas na Itália. Ainda sobre sua atuação na Ale­manha, não se pode deixar de ler, nos Apêndices, às páginas 380/382, o texto intitulado: “O sindicalista Lula na RDA, ou saudades de uma bonita gravata francesa”.

É interessante salientar que vários episódios completamente des­conhecidos da história diplomática brasileira, fatos que, segundo o au­tor, “ainda podem ser considerados confidenciais”, são por ele expostos e esclarecidos. Os acontecimentos descritos às páginas 111/114, sob o título “O dia em que o Brasil salvou o Marechal Tito”, eu nunca os vi re­gistrados em qualquer texto sobre a nossa política externa. No Itamaraty, melhor dizendo, em qualquer chancelaria, por envolverem os negócios diplomáticos interesses e razões de Estado, vigora uma espécie de silên­cio obsequioso, que obriga o diplomata a manter a maior discrição em sua vida pessoal e em sua atuação profissional. Vasco conta como fora espinafrado pelo embaixador brasileiro na Itália, Alencastro Guimarães, porque, cônsul em Nápoles, aceitara o convite do diretor da Ópera local para fazer parte do elenco de La Gioconda, no papel de Alvise Badoero. Vasco cantou e agradou. Aposentado desde os anos 90, declara-se agora à vontade para manifestar-se, como historiador, sobre sua vivência diplo­mática.

Nessa linha, evoca, entre outros episódios, dois delirantes projetos imperialistas do então presidente Jânio Quadros: “abrir um janela para o Caribe”, isto é, provocar uma revolta no Suriname, anexar ao Brasil parte do seu território e comprar a Guiana francesa (págs. 293/296); e, em sua política para a África, “incorporar Angola ao Brasil”. (págs. 171/173). Essas maluquices não prosperaram porque tínhamos à frente do Itamaraty a figura ilustre do notável estadista e grande brasileiro, Afonso Arinos de Melo Franco, que, naquela altura, em plena Guerra Fria, implantara no Itamaraty uma renovada, vigorosa e independente política externa.

Vasco Mariz trabalhou com Roberto Campos ao tempo que este fora embaixador em Washington. Acumulava as funções de direção dos seto­res cultural e de imprensa da embaixada. Nessa situação, foi testemunha e participou ativamente dos esforços da diplomacia brasileira para tentar anular a antipatia que o governo norte-americano, pelas conhecidas ra­zões ideológicas, nutria pelo governo João Goulart. No capitulo intitu­lado “Na Corte do Presidente Kennedy”, Mariz descreve, com detalhes, episódios interessantes sobre a visita oficial do presidente João Goulart, em abril de 1962, aos EUA. Além de uma minuciosa análise das questões que, naquela altura, compunham nosso contencioso político e comercial com os Estados Unidos, o autor comenta os momentos mais importantes dos encontros de Jango com Kennedy, ao mesmo tempo em que traz à luz situações cômicas, que ocorreram nos bastidores dessa polêmica visita presidencial.

Na sequência da narrativa de alguns fatos da política externa bra­sileira que não chegaram, em toda a sua extensão, ao conhecimento do grande público, Vasco Mariz revela detalhes das iniciativas ordenadas pelo governo militar para impedir a concessão do Prêmio Nobel da Paz de 1969 a Dom Helder Câmara. Este é um dos episódios mais tristes, mais lamentáveis, dentre os absurdos e violências perpetrados pela paranóia ideológica da ditadura militar. O autor, à época, era chefe do Departa­mento Cultural do Ministério das Relações Exteriores. Confessa que, por dever de ofício, cumprindo ordens diretas do secretário geral do Itama­raty, embaixador Jorge de Carvalho e Silva, convocara os embaixadores da Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia, para pedir-lhes “que soli­citassem a seus governos, a título excepcional, que interviessem junto à Fundação Nobel para evitar a escolha”. Dias depois, o Itamaraty fora informado pelos citados embaixadores que seus governos não interferi­riam no assunto. O caso saiu da esfera diplomática e passou diretamente para a presidência da República. As pressões, fortíssimas, passaram a ser Vabis, Ericsson, Facit e Nokia). “A mensagem – escreve Mariz – foi bem entendida nos países escandinavos” e o prêmio foi concedido à Organiza­ção Internacional do Trabalho.

Vasco Mariz é uma pessoa de trato ameno, extremamente gentil, que encanta seus interlocutores. Estas qualidades muito o ajudaram em sua vida profissional e o aproximaram de importantes líderes mundiais e de destacados políticos brasileiros. Vale a pena ler os perfis que ele traça, na presente obra, das personalidades com as quais convivera em quase meio século de vida diplomática, reunidos, sob o título Variações, ao término de cada capítulo.

Escrito em linguagem clara, em estilo elegante, Temas da Política Internacional – ensaios, palestras e recordações diplomáticas, de Vasco Mariz, livro cuja leitura recomendo com prazer, constitui, ao mesmo tem­po, valiosa contribuição à bibliografia brasileira sobre política internacio­nal e sobre a história da política externa do nosso país.

Antônio Celso Alves Pereira – Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional e ex-reitor da Uerj.

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Cartas – BURCKHARDT (RIHGB)

BURCKHARDT, Jacob. Cartas. Rio de Janeiro: Liberty Friend. Top Books, 2003. 431p. Resenha de: RODRIGUES, Lêda Boechat. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.165, n.422, p.261-263, jan./mar., 2004.

Lêda Boechat Rodrigues – Sócia emérita do IHGB.

Acesso apenas pelo link original

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O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural | Afonso Arinos de Melo Franco

Resenhista

Libertad Borges Bittencourt – Professora Doutora do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás-

Referências desta Resenha

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. Introdução de Alberto Venâncio Filho. Prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. Resenha de: BITTENCOURT, Libertad Borges. História Revista. Goiânia, v.6, n.2, p.179-185, jul./dez.2001. Acesso apenas pelo link original [DR]

O Brasil na América: caracterização da formação brasileira – BOMFIM (RBH)

BONFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. (prefácio de Maria Thétis Nunes). 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 415p. Resenha de: IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: O VALOR DA REEDIÇÃO DA OBRA

Após 66 anos do lançamento da primeira edição, em 1929, a obra de Manoel Bonfim volta a ser editada, demonstrando uma retomada dos interesses sobre a formação brasileira. Exatamente quando o senso comum afirma ser anacrônica a recuperação histórica, uma vez que este é um momento em que o importante é estar inserido no mercado globalizado e assimilado na cultura de massa que unifica costumes e elimina a questão nacional, e onde alguns vão mais longe e propõem o fim da história, a reedição do livro é surpreendente.

Em primeiro lugar, gostaria de analisar as razões de Maria Thétis Nunes em propor à Topbooks sua reedição. Em seguida, passarei a recuperar a leitura deste admirável sergipano sobre o Brasil, a América e as noções de educação e desenvolvimento formuladas em um conjunto significativo de trabalhos considerados pela historiografia moderna como clássicos do pensamento político brasileiro.

No prefácio, Thétis Nunes levanta como hipótese sobre o esquecimento, o desinteresse das elites por idéias tão avançadas para o seu tempo. Este problema foiapontado também por Dante Moreira Leite na obra O Caráter Nacional Brasileiro, Antonio Candido, Nelson Verneck Sodré entre outros. A criação do primeiro laboratório de Psicologia Experimental do Brasil, a atualidade de estudos filosóficos e as críticas ao cientificismo e ao evolucionismo são argumentos que comprovam a seriedade intelectual de Bonfim. Entretanto, para a prefaciante, seu nacionalismo entendido como” identificação do indivíduo com a terra natal, que o conduziria à solidariedade, à confiança e a luta para a preservação da liberdade e da independência”1, são a chave do esquecimento.

Em 1929, o jogo político das oligarquias cafeicultoras experimentava uma profunda crise demonstrada pelas articulações entre as dissidências oligárquicas e os novos setores sociais que disputavam com maior amplitude a participação na cena política nacional. Além do mais, ao longo das primeiras décadas deste século a imigração cresceu, introduziu os europeus orientais, os japoneses e alemães, que ao lado dos imigrantes do final do século passado, procuravam um maior nível de integração no conjunto nacional. Assim, a conjuntura política do período, diferente daquela vivida pelos modernistas de 1922, não mais permitia a exclusão dos vastos contingentes de imigrantes que naquele momento eram capitães de indústria, assessores do governo e novos proprietários, especialmente os beneficiários da crise do café, após o crack da bolsa, em 1929.

Parece-me, entretanto, que o autor não estava preocupado em demonstrar o nacionalismo como algo que emergia das tradições históricas e da paulatina descoberta do sentido da brasilidade pela incorporação da diversidade dos grupos étnicos culturais aqui estabelecidos. Um dos elementos sui generis apresentado pelo autor é o da incorporação daqueles que lutaram pela preservação do território como se esta luta garantisse legitimidade e unidade aos diferentes grupos.

Outra colocação importante de Bonfim, não recuperada inteiramente pela autora do prefácio é a discussão bastante complexa que faz das noções de cultura, raça e alteridade. Para ele, nenhum dos grupos étnicos-culturais que ocuparam o Brasil puderam preservar seus valores sem que eles sofressem profundas alterações. Deste modo, a idéia subjacente é a que há uma circularidade cultural independente da aceitação ou não desta objetividade.

Assim, afirma:

(…) o Brasil, como agrupamento-povo, não poderia ser considerado simples soma de elementos étnicos, estimulados isoladamente: o português _ A, o negro _ B, o índio _ C… para chegar ao tipo apenas composto A-B-C. No povo brasileiro encontram-se essas três raças, diferentes, muito diferentes mesmo. A constatação de tais origens, em qualidades e tom de civilização, como origens dispersas, seria banalidade, repetida sem outra significação além da tecnologia, pois o que tem interesse não é a fútil resenha antropológica, e a corriqueira enumeração de caracteres etnográficos, mas a boa compreensão do modo segundo o qual aqui se encontram os elementos formadores da nação, até que logicamente se defina o efeito histórico da mesma formação. É isto o que faz valer cada uma das qualidades elementares das raças misturadas, e dá a fórmula geral da combinação nacional, resultante da mistura. (…) Ninguém admitiria hoje [que] isto é do negro, tal é do índio ou do português, sem conseguir reconhecer o que haja de novo e de próprio no gênio brasileiro2.

Dito de outro modo, não eram os portugueses tolerantes, democráticos ou mais assimilados, mas foram as condições históricas do conflito e as acomodações possíveis no cotidiano que engendraram as relações sociais. Para os cientificistas e racistas, Bonfim ironizava afirmando que o sentido da superioridade só poderia ser considerado se os superiores conquistassem raças, grupos ou lugares superiores a eles. E mais, perguntava qual o mérito em dominar um fraco? Seria possível sentir orgulho batendo ou violentando uma criança?

Para Maria Thétis, a importância da reedição do livro é recuperar um dos pioneiros da formulação de uma ideologia nacional. Peno que as razões são bem diversas.

O BRASIL NA AMÉRICA

Em primeiro lugar, vale ressaltar que Bonfim escreveu este livro em continuidade a um amplo debate que se abriu no início do século no Brasil. Na década de vinte, a oposição ao conceito de latino-americano se colocava para o autor, uma vez que essa unidade era entendida de modo preconceituoso especialmente pelos Estados Unidos, que atribuía a todo o continente o estigma de atraso, inferioridade e alienação. Muitos intelectuais de renome aceitavam essa desqualificação e procuravam constituir fórmulas para o embate entre a civilização (Europa e Estados Unidos) e a barbárie. Deste modo, figuras como Oliveira Lima, Oliveira Vianna, Domingos Sarmiento ou Riva Arguedas, desenvolveram tratados históricos ou projetos de desenvolvimento para superar os males de origem. A obra de Bonfim é escrita com o intuito de negar a homogeneidade que o conceito de América Latina apresentava e ao mesmo tempo procurar o lugar da nação nas singularidades encontradas.

De um lado, uma clara e firme posição anti-imperialista, e de outro, a busca do nacional como especificidade de um projeto incorporador, na medida em que a cultura singular de cada lugar ou região, permitia a análise por um novo contributo ao entendimento do pertencimento e da memória. Deste modo, o regresso ao passado colonial é realizado com vistas ao encontro de formas de entendimento que pudesse responder, não a uma abstração idealizada do que significava cada um dos acontecimentos e as várias dimensões do conflito, mas os resultados transformadores numa dialética de tempos desiguais e simultâneos em ação.

Assim, na primeira parte, Origens, estão tecidos cinco capítulos que procuram reconstituir a epopéia do pioneirismo ibérico, as conquistas ultramarinas, as relações entre europeus e o gentio, o sentido menos destrutivo dos contatos, as alterações nos vários modos de vida, a formação da população brasileira com os elementos centrais da mestiçagem, o cruzamento das tradições e a gênese do sentido de inferioridade atribuído ao Brasil em decorrência do negro escravo. Neste capítulo em especial, nosso autor combate Oliveira Vianna, que de modo acrítico e a-histórico repete as teorias cientificistas e racistas sem levar em consideração a realidade histórica brasileira. Na Segunda parte, O Primeiro Brasil, encontram-se os seis capítulos onde o autor desenvolve sua tese central, ou seja, a nacionalidade foi sendo formada nas lutas pela preservação dos territórios e através delas formaram-se o entendimento do Brasil e do ser brasileiro.

As lutas foram sendo incorporadas de modo muito especial por cada um dos grupos envolvidos, separando-se os elementos inassimiláveis, articulando localismos, regionalismos e mesmo o caudilhismo. Assim, aquilo que aparece como as longas durações históricas, são poderosas forças de acomodação e particularidades, tecidas e criadas na superação do modo de vida anterior de cada grupo. Estes elementos tornaram-se a tessitura da nova conformação social geradores do Estado Nacional. Deste medo, as comparações que Bonfim estabelece entre os processos que se desenvolvem nas colônias espanholas e as do Brasil são sempre linhagens de argumentação para demonstrar a formação brasileira em sua singularidade. Não há como atribuir a ele, contextualizando seu pensamento, um sentido hierarquizado ou mesmo uma centralidade fixa na conformação nacional apresentada.

Em conclusão, Bonfim afirma:

Na América, foi a colônia portuguesa a primeira a afirmar-se como nacionalidade. De formação essencialmente rural-agrícola, sabendo aproveitar as populações indígenas, essa colônia se expandiu naturalmente, por virtude própria, ao ponto de ocupar todos os territórios que se lhe abriam, até entestar com o domínio definitivo das gentes castelhanas. (…) O Estado português com que se fez a primeira defesa, logo declinou e, quanto mais viva a luta decisiva pela terra pátria, já foram os brasileiros que as fizeram3.

O interessante é notar como Bonfim modifica o conceito de nacional comum entre seus interlocutores. Mais radical que seus contemporâneos, ele atribui valor às lutas concretas em defesa da territorialidade e considera serem agregadores os elementos constitutivos dessa ação. Antecipando Mário de Andrade, constrói um entendimento sobre a cultura como movimento em movimento, e a circularidade de seus elementos, negando qualquer hierarquia e sobreposição entre uns e outros. São fruto de circunstâncias e de experiências históricas indivisíveis. Por isso, na linguagem de Mário, Macunaíma é simultaneamente o complexo da formação cultural brasileira, não apenas em termos de valores, mas também de crenças, lugares, hábitos e desejos.

Hoje, no encerramento deste século XX, quando o paradigma clássico do Estado/ Nação está totalmente superado, quando os controles supra-nacionais realizam a gestão econômico-política dos antigos governantes, reestrutura-se a necessidade do debate sobre o sentido do nacional e os elos agregadores ainda existentes. A moderna teoria4 tem enfatizado o papel das lutas no e pelo território, como elemento engendrador do pertencimento e, cada vez mais, as histórias do lugar são referências identitárias.

Um livro desta importância será estimulador do debate histórico político e solicita-se à Topbooks, que fez um cuidadoso trabalho de texto e capa, que providencie uma encadernação mais adequada, pois o simples abrir das páginas, para um leitor interessado, é suficiente para desmontar o livro que esperou mais de seis décadas para ser oferecido ao público.

Notas

1 NUNES, Thétis. Prefácio à Segunda edição, p. 15.

2 BONFIM, Manoel. op. cit., p. 36

3 Idem, p. 381.

4 Ver SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo, Nobel, 1992; BENKO, Georges. Economia, Espaço e Globalização na aurora do século XXI. São Paulo, Hucitec, 1996; ROY, Pierre. La faim dans le monde. Paris, Le Monde Éditions et Marabout, 1994; entre outros.

Zilda Márcia Grícoli Iokoi – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo.

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O Brasil na América: caracterização da formação brasileira – BOMFIM (RBH)

BONFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. 2ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, 415p. (prefácio de Maria Thétis Nunes). Resenha de IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: O VALOR DA REEDIÇÃO DA OBRA

Após 66 anos do lançamento da primeira edição, em 1929, a obra de Manoel Bonfim volta a ser editada, demonstrando uma retomada dos interesses sobre a formação brasileira. Exatamente quando o senso comum afirma ser anacrônica a recuperação histórica, uma vez que este é um momento em que o importante é estar inserido no mercado globalizado e assimilado na cultura de massa que unifica costumes e elimina a questão nacional, e onde alguns vão mais longe e propõem o fim da história, a reedição do livro é surpreendente.

Em primeiro lugar, gostaria de analisar as razões de Maria Thétis Nunes em propor à Topbooks sua reedição. Em seguida, passarei a recuperar a leitura deste admirável sergipano sobre o Brasil, a América e as noções de educação e desenvolvimento formuladas em um conjunto significativo de trabalhos considerados pela historiografia moderna como clássicos do pensamento político brasileiro.

No prefácio, Thétis Nunes levanta como hipótese sobre o esquecimento, o desinteresse das elites por idéias tão avançadas para o seu tempo. Este problema foiapontado também por Dante Moreira Leite na obra O Caráter Nacional Brasileiro, Antonio Candido, Nelson Verneck Sodré entre outros. A criação do primeiro laboratório de Psicologia Experimental do Brasil, a atualidade de estudos filosóficos e as críticas ao cientificismo e ao evolucionismo são argumentos que comprovam a seriedade intelectual de Bonfim. Entretanto, para a prefaciante, seu nacionalismo entendido como” identificação do indivíduo com a terra natal, que o conduziria à solidariedade, à confiança e a luta para a preservação da liberdade e da independência”1, são a chave do esquecimento.

Em 1929, o jogo político das oligarquias cafeicultoras experimentava uma profunda crise demonstrada pelas articulações entre as dissidências oligárquicas e os novos setores sociais que disputavam com maior amplitude a participação na cena política nacional. Além do mais, ao longo das primeiras décadas deste século a imigração cresceu, introduziu os europeus orientais, os japoneses e alemães, que ao lado dos imigrantes do final do século passado, procuravam um maior nível de integração no conjunto nacional. Assim, a conjuntura política do período, diferente daquela vivida pelos modernistas de 1922, não mais permitia a exclusão dos vastos contingentes de imigrantes que naquele momento eram capitães de indústria, assessores do governo e novos proprietários, especialmente os beneficiários da crise do café, após o crack da bolsa, em 1929.

Parece-me, entretanto, que o autor não estava preocupado em demonstrar o nacionalismo como algo que emergia das tradições históricas e da paulatina descoberta do sentido da brasilidade pela incorporação da diversidade dos grupos étnicos culturais aqui estabelecidos. Um dos elementos sui generis apresentado pelo autor é o da incorporação daqueles que lutaram pela preservação do território como se esta luta garantisse legitimidade e unidade aos diferentes grupos.

Outra colocação importante de Bonfim, não recuperada inteiramente pela autora do prefácio é a discussão bastante complexa que faz das noções de cultura, raça e alteridade. Para ele, nenhum dos grupos étnicos-culturais que ocuparam o Brasil puderam preservar seus valores sem que eles sofressem profundas alterações. Deste modo, a idéia subjacente é a que há uma circularidade cultural independente da aceitação ou não desta objetividade.

Assim, afirma:

(…) o Brasil, como agrupamento-povo, não poderia ser considerado simples soma de elementos étnicos, estimulados isoladamente: o português _ A, o negro _ B, o índio _ C… para chegar ao tipo apenas composto A-B-C. No povo brasileiro encontram-se essas três raças, diferentes, muito diferentes mesmo. A constatação de tais origens, em qualidades e tom de civilização, como origens dispersas, seria banalidade, repetida sem outra significação além da tecnologia, pois o que tem interesse não é a fútil resenha antropológica, e a corriqueira enumeração de caracteres etnográficos, mas a boa compreensão do modo segundo o qual aqui se encontram os elementos formadores da nação, até que logicamente se defina o efeito histórico da mesma formação. É isto o que faz valer cada uma das qualidades elementares das raças misturadas, e dá a fórmula geral da combinação nacional, resultante da mistura. (…) Ninguém admitiria hoje [que] isto é do negro, tal é do índio ou do português, sem conseguir reconhecer o que haja de novo e de próprio no gênio brasileiro2.

Dito de outro modo, não eram os portugueses tolerantes, democráticos ou mais assimilados, mas foram as condições históricas do conflito e as acomodações possíveis no cotidiano que engendraram as relações sociais. Para os cientificistas e racistas, Bonfim ironizava afirmando que o sentido da superioridade só poderia ser considerado se os superiores conquistassem raças, grupos ou lugares superiores a eles. E mais, perguntava qual o mérito em dominar um fraco? Seria possível sentir orgulho batendo ou violentando uma criança?

Para Maria Thétis, a importância da reedição do livro é recuperar um dos pioneiros da formulação de uma ideologia nacional. Peno que as razões são bem diversas.

O BRASIL NA AMÉRICA

Em primeiro lugar, vale ressaltar que Bonfim escreveu este livro em continuidade a um amplo debate que se abriu no início do século no Brasil. Na década de vinte, a oposição ao conceito de latino-americano se colocava para o autor, uma vez que essa unidade era entendida de modo preconceituoso especialmente pelos Estados Unidos, que atribuía a todo o continente o estigma de atraso, inferioridade e alienação. Muitos intelectuais de renome aceitavam essa desqualificação e procuravam constituir fórmulas para o embate entre a civilização (Europa e Estados Unidos) e a barbárie. Deste modo, figuras como Oliveira Lima, Oliveira Vianna, Domingos Sarmiento ou Riva Arguedas, desenvolveram tratados históricos ou projetos de desenvolvimento para superar os males de origem. A obra de Bonfim é escrita com o intuito de negar a homogeneidade que o conceito de América Latina apresentava e ao mesmo tempo procurar o lugar da nação nas singularidades encontradas.

De um lado, uma clara e firme posição anti-imperialista, e de outro, a busca do nacional como especificidade de um projeto incorporador, na medida em que a cultura singular de cada lugar ou região, permitia a análise por um novo contributo ao entendimento do pertencimento e da memória. Deste modo, o regresso ao passado colonial é realizado com vistas ao encontro de formas de entendimento que pudesse responder, não a uma abstração idealizada do que significava cada um dos acontecimentos e as várias dimensões do conflito, mas os resultados transformadores numa dialética de tempos desiguais e simultâneos em ação.

Assim, na primeira parte, Origens, estão tecidos cinco capítulos que procuram reconstituir a epopéia do pioneirismo ibérico, as conquistas ultramarinas, as relações entre europeus e o gentio, o sentido menos destrutivo dos contatos, as alterações nos vários modos de vida, a formação da população brasileira com os elementos centrais da mestiçagem, o cruzamento das tradições e a gênese do sentido de inferioridade atribuído ao Brasil em decorrência do negro escravo. Neste capítulo em especial, nosso autor combate Oliveira Vianna, que de modo acrítico e a-histórico repete as teorias cientificistas e racistas sem levar em consideração a realidade histórica brasileira. Na Segunda parte, O Primeiro Brasil, encontram-se os seis capítulos onde o autor desenvolve sua tese central, ou seja, a nacionalidade foi sendo formada nas lutas pela preservação dos territórios e através delas formaram-se o entendimento do Brasil e do ser brasileiro.

As lutas foram sendo incorporadas de modo muito especial por cada um dos grupos envolvidos, separando-se os elementos inassimiláveis, articulando localismos, regionalismos e mesmo o caudilhismo. Assim, aquilo que aparece como as longas durações históricas, são poderosas forças de acomodação e particularidades, tecidas e criadas na superação do modo de vida anterior de cada grupo. Estes elementos tornaram-se a tessitura da nova conformação social geradores do Estado Nacional. Deste medo, as comparações que Bonfim estabelece entre os processos que se desenvolvem nas colônias espanholas e as do Brasil são sempre linhagens de argumentação para demonstrar a formação brasileira em sua singularidade. Não há como atribuir a ele, contextualizando seu pensamento, um sentido hierarquizado ou mesmo uma centralidade fixa na conformação nacional apresentada.

Em conclusão, Bonfim afirma:

Na América, foi a colônia portuguesa a primeira a afirmar-se como nacionalidade. De formação essencialmente rural-agrícola, sabendo aproveitar as populações indígenas, essa colônia se expandiu naturalmente, por virtude própria, ao ponto de ocupar todos os territórios que se lhe abriam, até entestar com o domínio definitivo das gentes castelhanas. (…) O Estado português com que se fez a primeira defesa, logo declinou e, quanto mais viva a luta decisiva pela terra pátria, já foram os brasileiros que as fizeram3.

O interessante é notar como Bonfim modifica o conceito de nacional comum entre seus interlocutores. Mais radical que seus contemporâneos, ele atribui valor às lutas concretas em defesa da territorialidade e considera serem agregadores os elementos constitutivos dessa ação. Antecipando Mário de Andrade, constrói um entendimento sobre a cultura como movimento em movimento, e a circularidade de seus elementos, negando qualquer hierarquia e sobreposição entre uns e outros. São fruto de circunstâncias e de experiências históricas indivisíveis. Por isso, na linguagem de Mário, Macunaíma é simultaneamente o complexo da formação cultural brasileira, não apenas em termos de valores, mas também de crenças, lugares, hábitos e desejos.

Hoje, no encerramento deste século XX, quando o paradigma clássico do Estado/ Nação está totalmente superado, quando os controles supra-nacionais realizam a gestão econômico-política dos antigos governantes, reestrutura-se a necessidade do debate sobre o sentido do nacional e os elos agregadores ainda existentes. A moderna teoria4 tem enfatizado o papel das lutas no e pelo território, como elemento engendrador do pertencimento e, cada vez mais, as histórias do lugar são referências identitárias.

Um livro desta importância será estimulador do debate histórico político e solicita-se à Topbooks, que fez um cuidadoso trabalho de texto e capa, que providencie uma encadernação mais adequada, pois o simples abrir das páginas, para um leitor interessado, é suficiente para desmontar o livro que esperou mais de seis décadas para ser oferecido ao público.

Notas

1 NUNES, Thétis. Prefácio à Segunda edição, p. 15.

2 BONFIM, Manoel. op. cit., p. 36

3 Idem, p. 381.

4 Ver SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo, Nobel, 1992; BENKO, Georges. Economia, Espaço e Globalização na aurora do século XXI. São Paulo, Hucitec, 1996; ROY, Pierre. La faim dans le monde. Paris, Le Monde Éditions et Marabout, 1994; entre outros.

Zilda Márcia Grícoli Iokoi – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo.

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