História oral e historiografia: Questões sensíveis | Angela de Castro Gomes

Em continuidade à coleção História Oral e dimensões do público,1 foi lançada, no ano de 2020, a obra História oral e historiografia: Questões sensíveis, organizado por Angela de Castro Gomes. O livro constitui um misto de experiências de pesquisas, análises de narrativas orais sobre diversas temáticas, levantamentos de produções historiográficas das últimas quatro décadas e debates pertinentes sobre as questões sensíveis que envolvem a utilização das fontes orais. O objetivo, como apontado na introdução, foi “fazer um mapeamento […] do impacto que o uso da metodologia da História Oral produziu no campo das pesquisas acadêmicas de História, no Brasil, em especial a partir dos anos de 1980” (Gomes, 2020, p. 7).

Angela de Castro Gomes tem reconhecimento no campo da historiografia oral, sendo uma das propulsoras do campo no Brasil. Iniciou, como lembra no último capítulo do livro, a utilizar a História Oral a partir da segunda metade dos anos de 1970. A autora também foi coordenadora de diversos projetos que tinham como objeto a história política do Brasil República, a história de intelectuais, a cidadania e os direitos do trabalho, a historiografia, a memória e o ensino de história. Além disso, dirigiu o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) dos anos de 1988 até 1994, onde, hoje, é professora emérita; centro este conhecido pelos acervos e pesquisas que se utilizaram da História Oral. Leia Mais

Gênero Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina | Flavia Biroli, Juan M. Vaggione e Maria das Dores C. Machado

O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina, organizado e escrito por Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado, publicado no ano de 2020 pela Editora Boitempo, analisa o crescimento do neoconservadorismo no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos, à educação voltada ao gênero e sexualidade, aos estudos de gênero e aos direitos humanos. Sobretudo, o objetivo do livro, como identificado nas primeiras páginas, é de entender o avanço neoconservador em relação ao gênero a partir de uma perspectiva interdisciplinar, transnacional e comparativa ao relacioná-lo com os debates que envolvem religião, direitos e democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O livro traz um debate significativo ao mobilizar as disputas e discussões políticas atreladas à “ideologia de gênero”, à “cultura da morte” e à igualdade de gênero que tomou corpo nas últimas duas décadas do século XXI na América Latina.

Já faz algumas décadas que as autoras e o autor do livro têm se dedicado às pesquisas que envolvem gênero, política e religião. Como poder ser visto, Flávia Biroli é professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde tem realizado inúmeras publicações, e tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista no Brasil contemporâneo. Já, Juan Marco Vaggione é doutor em direito pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC), na Argentina, e em sociologia pela New School for Social Research, nos Estados Unidos. Atualmente, é professor titular de sociologia da Faculdade de Direito da UNC e pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnicas (Conicet) da Argentina; também dirige o Programa de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da UNC. Por sua vez, Maria das Dores Campos de Machado é doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e tem se dedicado aos estudos das religiões, neoconservadorismo e à política brasileira. Atualmente, é professora aposentada e voluntária na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A soma das diferentes trajetórias de pesquisas e análises acaba dando destaque à obra resenhada aqui. A análise está centrada na emergência do neoconservadorismo e no avanço sobre a democracia ao inter-relacionar os ataques ao gênero no contexto atual; aspecto, este, considerado muitas vezes menor nas principais produções que hoje se voltam a pensar a democracia na América Latina. Para analisar o fenômeno, Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado (2020) propõem cinco dimensões, a fim de identificar as características contemporâneas do neoconservadorismo: 1º) “o conceito de neoconservadorismos permite jogar luz sobre as alianças e afinidades entre diferentes setores” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 28); 2º) a expressiva utilização da juridificação da moralidade; 3°) o fato de que o neoconservadorismo opera em contexto democrático, ao mesmo tempo em que o fere; 4°) o caráter global e transnacional (adicionado aqui por mim) do neoconservadorismo do século XXI; 5°) a relação entre neoconservadorismo e a agenda neoliberal no que tange aos direitos das mulheres e dos sujeitos LGBTQI.

O livro foi dividido em três capítulos, em que foram abordadas as seguintes temáticas: as reações dos atores religiosos (católicos ou evangélicos), as tentativas de restrição das agendas ligadas à igualdade de gênero, as disputas entre os movimentos feministas e LGBTQI e os movimentos conservadores; o transnacionalismo dos avanços das agendas conservadoras na América Latina, os ataques políticos em diferentes esferas institucionais (jurídicos, parlamentar, etc.) aos poucos avanços nas últimas décadas que envolveram a igualdade de gênero; a interconexão entre o avanço conservador com as políticas neoliberais, a mobilização dos direitos humanos como argumento para participação e defesa dos projetos conservadores, a centralidade da família como uma tendência transnacional no projeto político neoconservador, os padrões do neoconservadorismo religioso, o caráter novo do conservadorismo que emerge no século XXI e a aliança entre distintos setores nas agendas antigênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

No primeiro capítulo, intitulado A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina, escrito por Juan Marco Vaggione, o objetivo foi compreender como “o neoconservadorismo se instalou como um problema complexo para a reflexão analítica e normativa” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Mais precisamente, por meio do conceito de “juridificação reativa” [1], o autor se dedicou a entender como se deu (por meio de quais sujeitos e de que maneira) o crescente “movimento de restauração moral por meio do direito” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Em outras palavras, foi pensado como o direito vem sendo instrumentalizado para a defesa dos princípios morais neoconservadores na ofensiva contra o gênero. O capítulo é denso, cheio de exemplos e discussões que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos das últimas décadas na América Latina e esteve pautado na ideia de que a juridificação reativa seria tanto uma arena quando uma estratégia para o avanço neoconservador (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

Já, no capítulo de Maria das Dores Campos Machado, com o título O neoconservadorismo cristão no Brasil e na Colômbia, o aspecto central foi a comparação entre os dois países que compõem o título no que diz respeito à emergência neoconservadora dos grupos cristãos. O capítulo traça um panorama ao abordar questões ligadas ao ensino, religião, projetos de leis, crescimento de percentuais religiosos, avanço do conservadorismo entre os anos de 2014 até 2018, o papel das ONG’s religiosas para a interversão no debate público, entre outros aspectos. Também sublinhou, graças à circulação dos líderes religiosos, sobre a propagação dos valores e da agenda antigênero, a construção de redes e eventos transnacionais e como as novas tecnologias facilitaram na promoção de agendas que desafiam a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O grande destaque do capítulo refere-se à autora ter chamado a atenção para a atuação das mulheres conservadoras (seja como deputadas, pastoras ou ministras) na agenda antigênero, contra os debates sobre os direitos sexuais e reprodutivos, na desqualificação do feminismo e em defesa da moral cristã.

Na tentativa de entender a relação entre gênero e democracia, Flávia Biroli, no capítulo Gênero, “valores familiares” e democracia, analisou “os processos de transformação das democracias no mesmo contexto em que as disputas em torno do gênero ganham novos padrões” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 136). A autora foca na discussão dos estudos que vêm se indagando sobre a desdemocratização e como o gênero vem sendo considerado nas análises; a relação entre as evidências empíricas no combate ao gênero, principalmente, os valores democráticos e a maneira como se dá a contestação dos estudos de gênero na qualidade de área científica e acadêmica (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

Os aspectos mais interessantes do capítulo tratam de demarcar as ideias que constituem os argumentos dos grupos neoconservadores, de que os lobbies feministas e LGBTQI ameaçam as crianças e a família, que as organizações internacionais têm como objetivo subjugar a nação por meio do enfraquecimento da família, que as crianças precisam ser protegidas dentro das autoridades reconhecidas, a família, e que os movimentos de minorias ameaçam as maiorias agindo contra a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). Por isso, o sentido de democracia está em disputa no tempo presente e precisa ser debatido.

As discussões propostas no livro tiveram como base dois grandes marcos conceituais (apresentados na introdução): o neoconservadorismo e a temporalidade. Foi com o segundo eixo que tive certo incômodo, uma vez que sua construção se deu ao tentar verificar as políticas antigênero. As autoras e o autor falam em “uma nova temporalidade” a partir das ameaças ao gênero, pautadas em termos como “ideologia de gênero”. No entanto, o tempo parece compacto em um grande bloco único, o que me faz questionar: não seriam múltiplas (no plural) temporalidades na América Latina? Em todos os países da América Latina, as ameaças se deram da mesma maneira e nos mesmos marcos temporais? Conforme foi sendo demostrado ao longo dos capítulos, ocorreram trânsitos, projetos, avanços e derrotas que não foram lineares e homogêneos em todos os países. Sem falar que o avanço neoconservador não tomou corpo em todos os países e já vendo sofrendo limitações. Em outras palavras, as temporalidades foram muito diversas e ainda precisam ser mais bem exploradas. Por último aqui, os avanços neoconservadores estão alinhados ao negacionismo enfrentado, de uma maneira geral, em diferentes âmbitos, como, aqueles ligados às ciências e às universidades; pouco citado em suas multiplicidades no livro.

O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia é uma leitura precisa ao dar historicidade aos embates políticos presentes na América Latina do século XXI. Mobiliza diferentes disciplinas para a análise dos segmentos sociais, culturais e econômicos, que fizeram com que disputas e conservadorismo tomassem corpo e significado durante o período. O tema é extremamente atual, pertinente e importante, tanto para pesquisadores quanto para quem busca entender como se manifestou o avanço neoconservador nas últimas duas décadas. Por isso, o livro é importante a fim de entendermos mais sobre a história do tempo presente no que tange ao neoconservadorismo, às ameaças à igualdade de gênero e às democracias na América Latina. Também significa uma análise do quão complexo e novo são esses movimentos e os desafios que têm sido enfrentados pelos diferentes movimentos sociais, ativistas e pesquisadores, com os avanços das agendas antigênero. Como sinalizou Flávia Biroli, “há mais em jogo do que visões de mundo conflituosas” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 185); entender, historicizar e analisar o que acontece (como foi feito neste livro) é valoroso para quem se interessa pela história do tempo presente.

Nota

1. Juridificaçãoreativa é o termo utilizado para designar o uso do direito por parte dos atores neoconservadores para a defesa dos seus princípios morais e para avançar na disputa contra o gênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

Eloisa Rosalen – Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC – BRASIL. lattes.cnpq.br/3857428948780807 . E-mail: [email protected].


BIROLI, Flavia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos Machado. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. O avanço neoconservador antigênero na América Latina durante o século XXI. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v.13, n.32, p.1-6, 2021. Acessar publicação original [IF].

Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile | Piero Brunello

O livro Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile, do historiador italiano Piero Brunello, publicado em 2020 pela Editora Cierre Edizione, tem muito a nos dizer sobre Santa Catarina, a imigração dos italianos no Sul de nosso estado (mais precisamente nas colônias de Urussanga, Grão-Pará, e Nova Veneza), o rapto de crianças indígenas e as expedições que massacraram a população dos Botocudos/Laklãnõ-Xokleng na região, durante o final do século XIX e início do século XX. Mas, essas não são afirmações genéricas do nosso passado, na tentativa de buscar responder ausências no que tange à região e que, muitas vezes, foram compartimentadas em temáticas pela nossa historiografia. A ideia aqui se apresenta muito mais do que fazer uma história da colonização, da imigração italiana ou da história de como os Botocudos/Laklãnõ-Xokleng foram perseguidos durante a colonização de Santa Catarina; já que é o encontro entre todas essas dinâmicas e temáticas que dá o tom do livro.

Piero Brunello é um historiador italiano e professor aposentado de História Social da Università Ca’ Foscari di Venezia. Durante sua trajetória profissional, pesquisou sobre diversos temas: emigração/imigração, escrita, história urbana, cultura popular, música e anarquismo. Entre as diferentes publicações de sua carreira, encontram- -se, principalmente, Pionieri: gli italiani in Brasile e il mito della fronteira (1994), Storie di anarchici e di spie: polizia e politica nell’Italia liberale (2009) e Colpi di scena: La rivoluzione del Quarantotto a Venezia (2018). Apesar de ter estudos sobre o Brasil e a emigração/imigração de italianos no nosso país, nenhuma de suas obras foi traduzida para o português. Por esta via, o interesse de um historiador italiano por Santa Catarina pode suscitar críticas, positivas ou desfavoráveis, uma vez que um olhar estrangeiro pode trazer tanto uma contribuição interessante às questões que não foram pensadas ou ditas pela historiografia catarinense, quanto assustar, por poder representar mais uma perspectiva europeia interessada no “excepcional”. Leia Mais

Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil | Flávia Biroli

Como garantir a maior participação política (nas diferentes esferas) das minorias? De que maneira é possível superar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres (como limitação temporal, causada pelo acúmulo de responsabilidades do trabalho doméstico, cuidado e maternidade) para um maior envolvimento político? Que direitos ainda são negados às mulheres e às pessoas LGBTQI+ pela democracia 1 brasileira? Como os feminismos têm contribuído para uma sociedade mais igualitária no que tange aos direitos e à participação política? Quais foram os avanços, os limites e as desigualdades ao longo das últimas décadas no Brasil? Essas e muitas outras questões foram respondidas por Flávia Biroli no livro Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil, publicado no ano de 2018, no qual enfatiza, como anunciado no título, as limitações, as desigualdades e as relações de gênero presentes na democracia brasileira, a partir de uma análise que entrelaça local/global e as diferentes teorias feministas.

Flávia Milena Biroli Tokarski é formada em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP), e possui mestrado e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ao longo de seus anos de pesquisadora e professora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista, sobretudo, com enfoque nas áreas de mídia e política. Suas principais publicações, além do livro resenhado aqui, são: Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia (2011, publicado com Luis Felipe Miguel), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (2013), Família: novos conceitos (2014) e Feminismo e Política (2014, também com Luis Felipe Miguel). Leia Mais

Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985) – CHOTIL (HO)

CHOTIL, Mazé Torquato. Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985). Curitiba: Prismas, 2016. 346 p. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. A história dos/as trabalhadores/as exilados/as durante a ditadura. História Oral, v. 19, n. 2, p. 207-211, jul./dez. 2016.

Muito já foi falado a respeito do exílio de brasileiros durante a ditadura (1964-1979), como se pode ver nas pesquisas realizadas por Denise Rollemberg publicadas no livro Exílio: entre raízes e radares, em que a autora busca contar o exílio a partir dos ângulos político, histórico, pessoal e emocional percorrendo os mais variados temas, como as vivências, as lutas, os conflitos, o trabalho, os estudos etc. (Rollemberg, 1999). Do mesmo modo, o livro Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX, organizado por Samantha V. Quadrat, apresenta discussões importantes a respeito das categorias e aspectos gerais dos/as exilados/as das ditaduras latino-americanas (Quadrat, 2011). Há também as pesquisas que se preocuparam em explicitar o contato das mulheres exiladas com o feminismo, os ambientes de debates feministas (círculos) que emergiram no exterior e a reformulação da esquerda (Abreu, 2010; Back; 2013; Pedro; Wolff, 2007).

Mas uma questão que merecia uma adequada atenção e ainda se encontrava um tanto escondida era a partida, a inserção e o retorno de exilados/as das camadas populares. Como pode ser visto nas obras supracitadas, a grande maioria dos/as exilados/as políticos/as da ditadura eram provenientes das camadas médias que viviam em grandes centros urbanos do país como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. No entanto, ao se concentrar somente nos sujeitos das camadas médias, a escrita da história exilar sempre negligenciou as experiências daqueles que não tinham tais condições.

Mazé Torquato Chotil, ao realizar a sua pesquisa de pós-doutorado e publicar a sua produção, com o título Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), tirou da invisibilidade as situações dos sujeitos trabalhadores provenientes das camadas populares que deixaram o Brasil durante o período, muitas vezes em condições muito mais precárias do que os sujeitos estudados até o momento dessa publicação. A autora esclarece que, entre os/as exilados/as, os/as trabalhadores/as estavam em muito menor número que intelectuais e estudantes de classe média; no entanto, mesmo se tratando de uma pequena parte, a análise das trajetórias e o levantamento das vivências dos/as exilados/as trabalhadores/as são de suma importância para uma escrita da história dos sujeitos com esse perfil e dos movimentos sindicais aos quais estavam vinculados.

Ao longo dos três capítulos, Trabalhadores exilados apresenta as várias facetas (com seus aspectos negativos e positivos) vivenciadas por aqueles sujeitos que não possuíam certo capital cultural e econômico. Para a análise, a autora utilizou-se de um vasto levantamento de fontes; entre as principais, entrevistas, livros de memórias (como aqueles do projeto Memórias do exílio1) e listas de banidos. Com esse inventário, foi possível verificar o perfil desses indivíduos, os tipos de exílio que tiveram e as principais características de suas experiências.

Juntamente com a obra resenhada aqui, as pesquisas citadas no início deste texto são devedoras de uma explosão de memórias, escritas no período de exílio ou ao longo dos anos 1980 e 1990. Autobiografias, livros de memórias e entrevistas construídas com base nas teorias e metodologias da história oral se tornaram as principais fontes para as pesquisas acerca do exílio, sobretudo porque possibilitaram perceber como as pessoas que o viveram registraram seu cotidiano, exteriorizaram suas experiências sobre o período e inventaram/construíram a si mesmas.

A partir dessas fontes, Mazé T. Chotil leva em consideração, para a estrutura de sua análise, o antes, o durante e o depois do exílio. Assim, ela pensou de maneira completa o fenômeno social do exílio e as trajetórias dos sujeitos. Dessa forma, no primeiro capítulo a autora caracteriza o perfil dos grupos de exilados/as antes da partida. No segundo capítulo, apresenta o exílio, com os lugares de destino, as inserções, as militâncias, as formações (linguísticas e universitárias), as experiências afetivas etc. O último capítulo se dedica ao retorno e à reintegração desses sujeitos no Brasil, bem como às suas contribuições aos movimentos sindicais.

Ao realizar a sua pesquisa, Mazé T. Chotil produziu um quadro comparativo entre a condição socioeconômica que cada exilado/a tinha ao deixar o Brasil e a que alcançou ao se estabelecer no país de acolhida. Essa dimensão, muito bem levantada pela autora, foi relacionada às dificuldades da viagem, aos lugares de destino, ao trabalho (antes, durante e depois do exílio), à militância política no exterior, ao aprendizado e à formação acadêmica, entre outras questões. Além disso, com o livro é possível visualizar a importância do capital cultural, principalmente no que diz respeito ao conhecimento de uma língua estrangeira, de que os setores médios dispunham e as camadas populares não. Esse último aspecto foi muito relevante para a inserção inicial desses sujeitos nos lugares de destino.

No entanto, o grande mérito do livro encontra-se na análise da articulação e da influência que os exilados tiveram no convívio com organizações sindicais no exterior. Ao levantar essa questão, a autora apresenta o importante papel que teve, para a história do sindicalismo brasileiro, a circulação de ideias e o contato com organizações sindicais de outros países. Ela também aborda a militância que vários desses sujeitos exerceram e suas articulações com as organizações brasileiras desempenhadas durante no exílio. Por isso, além de tirar da invisibilidade os trabalhadores exilados, a autora amplia as discussões sobre o exílio, dando uma nova (e importante) dimensão às experiências vividas no período.

O único demérito que pode ser encontrado nessa pesquisa está ligado a algumas ausências: a primeira delas é a de uma lista completa – como anexo, talvez – dos nomes dos sujeitos que pertenciam ao grupo dos/as exilados/as.

A segunda está relacionada a informações mais detalhadas acerca das fontes das quais foram retiradas certas informações. Muitas vezes, a autora acaba não citando suas fontes, o que deixa lacunas ao/à leitor/a especializado/a que busque extrair de sua pesquisa as informações necessárias para uma investigação futura. Uma dessas situações se dá já no início da obra, quando deixa de explicitar as fontes relacionadas ao projeto Memórias do exílio às quais teve acesso.

Uma ausência pertinente também diz respeito às análises ligadas ao gênero. No segundo capítulo, ao desenhar o perfil dos/as exilados/as, Mazé T. Chotil apresenta uma importante referência: 23% dos “seus” analisados eram mulheres. No entanto, nos capítulos restantes, nos quais analisa principalmente as inserções e as militâncias, a autora esquece-se de relacionar de maneira interseccional o gênero, as camadas populares e as distintas inserções.

Certamente, ser mulher, militante de esquerda e banida era muito diferente de ser homem, militante de esquerda e banido, o que resultou, obviamente, em processos de inserção diferentes. Um exemplo se encontra na omissão de análise sobre a ausência de mulheres narrando suas experiências ligadas ao movimento sindical.

Embora tenham sido sentidas algumas ausências, de um modo geral Mazé T. Chotil realizou um excelente trabalho, abrindo caminho para inúmeras outras pesquisas e questões que ainda precisam ser respondidas a respeito do exílio de trabalhadores/as durante a ditadura brasileira (1964-1985).

Nesse sentido, além de dar visibilidade aos/às trabalhadores/as e de narrar as experiências desses sujeitos, a autora deixa um amplo corpo bibliográfico e documental para os futuros questionamentos que ainda devem emergir sobre a temática.

Referências

ABREU, Maira L. G. de. Feminismo no exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. 2010. 245 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, SP, 2010.

BACK, Lilian. A Seção Feminina do PCB no exílio: debates entre o comunismo e o feminismo (1974-1979). 214 p. Dissertação (Mestrado em História) – UFSC, Florianópolis, SC, 2013.

PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. Nosotras e o Círculo de Mulheres Brasileiras: feminismo tropical em Paris. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, p. 55-69, jun. 2007.

QUADRAT, Samantha V. (Org.). Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino- -americanos no século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Niterói: Record, 1999.

ROSALEN, Eloisa. Das muitas memórias dos exílios: uma leitura analítica dos livros Memórias do Exílio e Memórias das Mulheres do Exílio. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28, 2015, Florianópolis. Anais eletrônicos… p. 1-15. Disponível em: <http:// www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1438608862_ARQUIVO_AnpuhNacional EloisaRosalen.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2016.

1 O projeto Memórias do exílio resultou nos livros Memórias do exílio e Memórias das mulheres do exílio, que buscavam publicar memórias de sujeitos exilados durante a ditadura brasileira. Trata-se de uma das primeiras coletâneas a trazer memórias dos/as exilados/as. Na primeira obra, de 1978, muitas memórias de homens foram publicadas, o que criou uma insatisfação entre as mulheres exiladas. Nesse sentido, no ano de 1980 (com memórias recolhidas ainda antes da Anistia, em 1979), foi lançado um segundo volume, dedicado somente às mulheres (para dar visibilidade às experiências exilares delas). Além da característica geral de divulgar memórias do exílio, a segunda obra foi organizada pelo Grupo de Mulheres Brasileiras de Lisboa, que tinha conotações feministas (Rosalen, 2015).

Eloisa Rosalen – Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: eloisa [email protected].