Infâncias, Direitos e Vulnerabilidades | Fronteiras – Revista catarinense de História | 2021

Sobre os Direitos Humanos ou ainda sobre João, Bilú e tantas outras crianças…

Nas Ciências Humanas, quando levantamos a bandeira dos Direitos Humanos, em diversas oportunidades, no tempo presente, estamos convencidos e convencidas de que nossos pares, que são também em parte nossos interlocutores, compreendem perfeitamente do que estamos falando. Direitos Humanos são direitos inerentes à vida humana, gestados a partir da noção de inviolabilidade de um corpo que é único, provido de uma dignidade que não pode ser alijada do ser a qual pertence, de um sentimento de empatia de um ser, a outro, que é o seu igual. Estes sentimentos que nos unem como gênero humano, e que foram construídos, nunca é demais dizer, trouxeram junto ao ideal de igualdade o seu oposto, que não é, paradoxalmente, a sua negação: a noção de diferente, cuja promoção à igualdade consiste num dos pilares daqueles Direitos Humanos em que acreditamos. A História dirá se essa noção, tão cara a nós, corresponderá a uma conquista permanente.

Ao narrar a história dos Direitos Humanos, a história de como foram “inventados” ao longo dos 150 anos que separam a Declaração de Direitos dos Estados Unidos da América (1776), e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1948), Lynn Hunt1 assim definiu sua trajetória: uma cascata. De uma concepção limitada de cidadão, gestada no curso do Iluminismo francês, o que era do âmbito dos Direitos Humanos não deixou de ampliar-se: aos homens não católicos, aos não proprietários, aos não livres. Depois, abrangeu os (ainda) não capazes, como as crianças e os jovens, e finalmente, os não homens, as mulheres. Como se sabe, as demandas de grupos sociais por sua incorporação à lógica dos Direitos Humanos (do direito à diferença entre iguais) não cessou com a inclusão das crianças, dos jovens e das mulheres na perspectiva da cidadania. Continua, por exemplo, nas reivindicações das populações negras periféricas, ou naquelas oriundas do público LGBTQIA+, cujos direitos são sistemática e cotidianamente violados. Leia Mais

Democracia, Patrimônio e Direitos: a década de 1980 em perspectiva / Anais do Museu Paulista / 2020

Os artigos reunidos nesse dossiê têm como foco as experiências e reflexões do campo do patrimônio cultural brasileiro na década de 1980. A motivação primeira que nos uniu para pensar os anos 1980 foi a percepção de um desafio historiográfico de superação dos sensos comuns da década tida como perdida, entendendo que nas práticas e políticas de preservação de patrimônio houve uma expansão sem precedentes dos espaços, temáticas e agentes possíveis. Na luta pela democracia, o patrimônio constituiu-se como lugar de tensões, debates e ações, nem sempre lineares ou bem-sucedidos, sobre as identidades, os direitos culturais e urbanos, as práticas e os conceitos estabelecidos.

A necessidade de debater a década foi impulsionada também pelos duros ataques e desmontes das instituições de cultura e de patrimônio que têm ocorrido desde 2017 e estão sendo aprofundados em 2019. A partir de uma perspectiva multidisciplinar e ampla em termos de território nacional, organizamos um encontro com pesquisadores tendo em vista o desafio de problematizar a década e os mais variados questionamentos.

Buscamos atentar para situações concretas daquele contexto e também projetar um olhar prospectivo. Nesse sentido, fontes muito variadas foram consideradas nas análises, evidenciando sua riqueza e densidade. Destaque para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que marcou presença na maioria dos artigos. A releitura dos números lançados nos anos 1980 surpreende o leitor, pelos temas variados, pela salutar presença do debate e do contraditório, de certa forma espelhando um sentimento de esperança, que tem nos feito muita falta nos dias atuais, em que só vemos a destruição de toda ordem.

Em junho de 2019, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), realizou-se o seminário “Democracia, patrimônio e direitos: a década de 1980 em perspectiva”, uma parceria da FAUUSP com a Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Os textos aqui reunidos decorrem diretamente do seminário e têm por objetivo mais geral ampliar a compreensão das práticas patrimoniais e de sua história no Brasil, concentrando-se na década da redemocratização.

Acreditando na multidisciplinaridade do patrimônio também no que se refere aos diálogos acadêmicos, foram reunidos autores com vinculações institucionais diversas, oriundas da história, geografia, sociologia, museologia e arquitetura, que se dispuseram a discutir o período lançando olhares a agentes e lugares variados, bem como produzindo narrativas a partir de suas próprias centralidades: do Ceará a Santa Catarina, passando por Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, pelas práticas de estados e municípios, pelo patrimônio natural, bens móveis, bens edificados, pelos agentes e sujeitos sociais, sem deixar de lado o chamado “patrimônio nacional”. Os textos mostram a variedade e complexidade das ações, sem a pretensão de ver nelas caráter exemplar, mas de apontar as inúmeras possibilidades de investigação. Um campo de desafios que não se encerra aqui, mas que, assim se espera, abra novos caminhos de pesquisa, reflexão e, quem sabe, ação.

A década de 1980 no Brasil foi marcada pelas disputas políticas no processo de redemocratização. As articulações para a saída do regime militar e os caminhos para a democracia levaram quase uma década de consolidação. Da Lei da Anistia, em 1979, até a Constituição Cidadã em 1988 e as eleições diretas em 1989 – de acordo com a periodização proposta para a redemocratização –, dez anos de pressões e lutas democráticas tiveram lugar. A luta por direitos urbanos e a ação dos grupos sociais nas demandas pelo direito à moradia e, sobretudo, à cidade já estavam presentes desde o final dos anos 1970 e ganharam protagonismo na década de 1980. Neste processo, assiste-se a muitas reações às sucessivas transformações do período de ditadura militar, no qual a modernização conservadora autoritária modificou, entre outras coisas, o padrão de urbanização do país.

O patrimônio cultural passou a se situar no vértice das ações e debates sobre o urbano, mas não somente nesse ponto. As disputas por memórias e narrativas acerca da identidade nacional colocaram o passado e a preexistência física das cidades no campo de disputas que pressionaram por ações para além daquelas impostas pela chamada “ortodoxia do patrimônio”. Dentro do órgão federal, à época denominado Subsecretaria ou Secretaria do Patrimônio do Histórico e Artístico Nacional / Fundação Nacional Pró-Memória (Sphan / PróMemória), e, para muito além dele em órgãos estaduais e municipais não somente do campo específico do patrimônio cultural, chegando às políticas que são formuladas a partir da Constituição, assiste-se a uma ampliação sem precedentes.

A década foi um momento de muitas transformações no pensamento sobre a preservação em âmbito nacional, redundando em ações, debates e políticas inovadoras no contexto da história do patrimônio brasileiro, que não necessariamente tiveram continuidade, como analisado neste dossiê.

O período culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, em que os preceitos de patrimônio cultural brasileiro foram legalmente transformados, incluindo toda sorte de temas da cultura e expressões que extrapolaram o excepcional. Em 2020, completam-se 32 anos desde a promulgação da nova Constituição Brasileira, e podemos afirmar que o campo do patrimônio transformou-se profundamente. Essas mudanças, largamente incrementadas pelas políticas culturais dos anos 2000, referem-se à amplitude e diversificação das políticas públicas, em conexão intersetorial, com base nos novos conceitos de patrimônio, que aproximaram a temática do universo dos direitos – urbanos, por exemplo, como o direito à moradia, e o direito à cultura. Referem-se também à inclusão de novos sujeitos no amplo debate sobre diversidade cultural brasileira, associada ao direito à memória, bem como ao reconhecimento de grupos tradicionalmente pouco assistidos pelas políticas patrimoniais, especialmente após a implantação de uma política em 2001 para a salvaguarda do patrimônio imaterial.

No caso dos afrodescendentes brasileiros, o debate remonta aos anos 1970, período em que os movimentos negros foram fortalecidos, em parte na esteira dos amplos debates que se davam nos EUA. No contexto da redemocratização, a luta antirracista e por direitos iguais tornou-se bandeira partilhada por setores progressistas da intelectualidade, que se juntaram a representantes dos movimentos negros, mediando várias de suas reivindicações no campo do patrimônio. Ao mesmo tempo, como sujeitos desse processo, integrantes do movimento passaram a lutar por espaços políticos e institucionais, para conduzir uma política de afirmação da cultura negra. No artigo de Márcia Chuva, essa discussão se coloca no âmbito das políticas de memória e patrimônio no Rio de Janeiro, a partir da análise das medidas adotadas pelo órgão estadual de patrimônio, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e pela Sphan / Pró-Memória, nos anos 1980, e, numa leitura também prospectiva, do Rio de Janeiro tornado Patrimônio Mundial nos anos 2010.

O contexto também demandava o conhecimento das práticas distintivas desse grupo formador da sociedade brasileira, e em seu artigo Márcia Sant’Anna analisa um projeto muito bem-sucedido realizado em Salvador, que foi o Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia. Mapeamentos e inventários são metodologias tradicionais no campo do patrimônio e sua utilização, nesse caso, produziu material inédito. Sua importância extrapola o evento em si, tendo contribuído para formular o conceito de patrimônio cultural, que hoje substituiu amplamente o tradicional patrimônio histórico e artístico, como também para incluir bens relacionados à cultura afro-brasileira no seletivo rol do patrimônio, tendo em vista os vários terreiros de candomblé tombados a partir do ato inaugural do Terreiro da Casa Branca em Salvador, em 1984.

Contudo, esse universo de bens ainda permanece sub-representado na lista geral de bens protegidos. Outro problema que merece ser apontado, e que se repete em outras situações, é a insistência em adotar rigores estilísticos inadequados ao tipo de bem. Vimos, portanto, mudanças importantes no sentido de novos sujeitos de atribuição de valor intervindo nas políticas de seleção, mas a gestão desses bens tombados ainda requer mudanças substanciais na cultura patrimonial. Problema similar se deu com o tombamento da Serra da Barriga, local do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, em 1985. Fruto da pressão do movimento negro, sua gestão colocava questões que se misturavam a desafios urbanos e habitacionais, para os quais a instituição federal não tinha respostas. O artigo de Joseane Brandão contém uma riqueza de informações sobre a trajetória de reconhecimento dos quilombos como patrimônio brasileiro, no qual a pesquisadora analisa o processo histórico e jurídico de construção social da categoria de comunidades remanescentes de quilombos. Esse processo teve início na Constituição Federal Brasileira de 1988, que determinou o tombamento de quilombos, enfatizando assim o caráter de reparação desse gesto. Isso ocorreu graças à pressão dos movimentos negros na Constituinte.

Num olhar prospectivo, consolida-se a ideia de pedidos de reparação como solicitações de reconhecimento. Todo esse processo tem contribuído para a reflexão sobre a escravidão no Brasil, o pós-abolição e o racismo como problemas estruturais de nossa sociedade e como oportunidade para o campo do patrimônio intervir social e culturalmente, ao associar processos de reparação ao reconhecimento do patrimônio afro-brasileiro.

Portanto, no universo dos direitos, o patrimônio aproximou-se de políticas afirmativas, de reparação e de inclusão, com experiências inúmeras e bastante diversificadas que resultaram em novas estratégias políticas. Esse crescimento do campo também resultou na e da ampliação de investigações acadêmicas e da formação profissional, com a criação de cursos de pós-graduação ou a inserção do tema em áreas de formação tradicionais, voltando-se para a reflexão sobre o patrimônio e as políticas públicas no setor, bem como sua inclusão nas graduações por meio de diversas disciplinas. Dessa forma, os trabalhos aqui reunidos são fruto do campo acadêmico do patrimônio cultural e mostram a importância da reflexão histórica sobre o assunto. Os autores se debruçam sobre aspectos diversos e complementares do período, e os artigos contribuem para a compreensão da história e da historiografia do patrimônio cultural brasileiro, uma vez que apresentam e problematizam o período de modo inédito.

Entre narrativas e práticas, o campo do patrimônio se redimensiona nos anos 1980. A historiografia é ponto-chave e talvez inicial para lançar luz sobre a década. Por isso, optamos por abrir o dossiê com o artigo de Luciano Teixeira, que aborda os primeiros passos da construção de uma historiografia do patrimônio, a partir de duas publicações seminais desse contexto, que demarcaram a possibilidade de uma escrita da história do patrimônio no Brasil. Acompanhada da efervescência dos debates que transcorriam em São Paulo, nos anos 1980, numa rede distinta de agentes e instituições, acirravam-se os debates e as disputas sobre o controle do discurso patrimonial no processo de redemocratização, especialmente no caso do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e pela Sphan / Pró-Memória, órgão de grande importância para o período, presente em todos os artigos deste dossiê. Sua história é, sem dúvida, mais uma frente de pesquisa a ser abordada, como aponta este dossiê.

Como o campo do patrimônio se distingue historicamente pelas práticas que se rotinizam na agência federal, optamos pelo contraponto entre narrativas e práticas, colocando em sequência o artigo de Beatriz Kühl sobre as restaurações realizadas pela Sphan / Pró-Memória. Justamente pela ausência de documentos reflexivos, normativos ou teóricos sobre essas restaurações desde os anos 1930, as fontes privilegiadas neste artigo foram os quatro números da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dos anos 1980, já mencionados, nos quais há densos artigos sobre restaurações emblemáticas realizadas na época. Esse material é analisado com olhar crítico, e reflete sobre a forma de circunscrição do tema e de sua abordagem, trazendo outros artigos desses números para matizar os debates sobre a restauração de então.

É consenso entre estudiosos que uma das grandes mudanças perpetradas pela modernização conservadora autoritária do regime militar foi a do perfil urbano do Brasil, dada por diversos processos, dentre os quais a urbanização e a metropolização somadas às novas conexões territoriais pela onda rodoviarista. A emergência de um debate urbano do patrimônio no Brasil surge pari passu às transformações nas cidades e às ações de planejamento urbano e territorial organizadas pelo governo militar. A pressão urbana nas cidades consideradas “históricas” e as perdas substanciais em outras tantas estão claras desde a década de 1970, mesma época em que o “patrimônio urbano” como campo conceitual se consolida no cenário internacional, com a promulgação de cartas patrimoniais e políticas urbanas específicas para áreas patrimonializadas, como aconteceu na França, Itália e Reino Unido.

No Brasil, as ações são assumidas ainda nos anos 1970 – o que tensiona, como já visto, as temporalidades da década de 1980 – pelo campo do planejamento urbano de municípios que organizaram inventários, conceitos e novas formas de acautelamento a partir de leis urbanas e planos diretores. Os conceitos de ambiente urbano e de patrimônio ambiental urbano foram mobilizados no contexto de áreas urbanas no Rio de Janeiro e em São Paulo – aqui discutidas pelos textos de Marly Rodrigues e Andréa Tourinho, Mariana Tonasso e Flávia Brito do Nascimento –, ao mesmo tempo que buscaram incluir a cidade nas práticas patrimoniais. No entanto, e apesar das importantes mudanças que foram capazes de implantar na área – com a inclusão de novos agentes e novas áreas urbanas até então não consideradas como patrimônio –, muitas vezes recaíram nos cânones arquitetônicos, protegendo bens isolados e afastando-se das demandas por consideração das relações entre habitantes e bens culturais.

Nos anos 1980, o debate sobre a cidade e o patrimônio cultural assume-se democrático em níveis municipal, estadual e federal, quando a Sphan / Pró-Memória passa a proteger muitas áreas urbanas a partir dos argumentos da história, entendendo a própria cidade como um documento. A cidade-documento, discutida no texto de Lia Motta, viabiliza a permanência do Iphan no debate urbano que passou a proteger novos núcleos urbanos e utilizar critérios inéditos, como são exemplares os casos de Laguna, Natividade e Petrópolis.

O ambiente como argumento de preservação urbana era parte de um quadro ainda mais amplo da discussão ambiental, um dos temas latentes do período. Da mesma forma, nas cidades, a pressão da urbanização desde os anos 1960 e seus impactos nefastos nas áreas ditas naturais ou nas comunidades tradicionais levou à mobilização da comunidade internacional, com o papel decisivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). No Brasil, o protagonismo do debate sobre as áreas naturais veio de dois agentes novos no campo, ainda na década 1970: a geografia e o Estado de São Paulo. O papel decisivo de Aziz Ab’Saber, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, no Condephaat, estabelecendo parâmetros conceituais para a consideração da natureza como patrimônio nos seus aspectos memoriais, foi analisado por Simone Scifoni.

A atuação do Condephaat nas áreas naturais é característica do envolvimento de novos agentes na busca pela preservação de novos objetos, espaços e práticas. A abertura do conselho às universidades públicas paulistas permitiu práticas para além das ortodoxias, emblemáticas do acolhimento de novos temas e possibilidades de expansão das práticas patrimoniais a partir da legislação de tombamento. Abertura essa hoje ameaçada, com a redução da presença das universidades no conselho. A natureza tombada era salvaguardada naquilo que tinha de valores memoriais, históricos e culturais. A criação de novos instrumentos de proteção, segundo o interesse do planejamento pela preservação urbana, aparece também nos debates sobre o licenciamento ambiental, tratado por Claudia Leal. Trata-se de uma temática urgente, em razão da recente política ambiental perversa e destruidora da vida, que vem sendo implantada no Brasil, com imensas interseções com o campo do patrimônio.

Outra vertente de atuação no campo é sua relação com a museologia, aqui também apresentada a partir do Condephaat. Inês Gouveia analisa o assunto a partir da trajetória de Waldisa Rússio, voltando-se para a contribuição teórica e política da museóloga, que incorpora na ideia de museu a noção de direito e acesso aos patrimônios e às memórias. Daí também a ampliação do debate da museologia enquanto área de conhecimento específica que ocorre nos anos 1980. A interlocução da museologia com o patrimônio fica marcada por sua atuação no grupo executivo que propõe a criação do Condephaat. Contudo, o campo museológico pouco aderiu, naquele momento, às transformações que o diálogo com o patrimônio trouxeram. Ainda assim é surpreendente o protagonismo dessa mulher, aqui tangenciado pela perspectiva dos estudos de gênero, cujas relações com o patrimônio merecem ser aprofundadas.

A cultura que adjetiva o patrimônio mudou, desde os anos 1970, as perspectivas de atuação dos novos agentes nos níveis municipal e estadual, não somente em instituições de patrimônio, mas também em associações da sociedade civil. A dimensão política da preservação tornou-se evidente nos anos 1980, como novo instrumento da luta política por direitos, aspecto que é ressaltado em vários artigos deste dossiê. O texto de Lucina Matos mostra a presença da sociedade civil organizada na valorização do patrimônio ferroviário, colocada em marcha pelos movimentos sociais e associações de defesa deste patrimônio, que lutaram pelo direito à memória e ao passado ferroviário, abrindo diálogos e embates pela sua preservação. Trata-se de um processo longo e disputado, cujos desdobramentos serão vistos quase três décadas depois com a Lei 11.483 de 2007, que atribuiu ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a responsabilidade de administrar os bens móveis e imóveis nesse âmbito da extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA).

Um aspecto fundamental do olhar voltado para a década de 1980 neste dossiê foi a possibilidade de compreender as temporalidades da patrimonialização no Brasil, constituídas ao longo das últimas quatro décadas. Se muitas das práticas foram estabelecidas nos anos de redemocratização e puderam ser, de certa forma, atendidas naqueles anos, outras tantas tiveram na Constituição de 1988 um ponto de chegada e de partida. O patrimônio ferroviário é exemplo claro: os sucessivos desmontes dos anos 1990 ampliaram as demandas do direito à memória ferroviária e se tornaram tema de atenção institucional nos anos 2000.

Este dossiê também põe em pauta aspectos regionais das políticas de patrimônio, que surgem antes mesmo dos anos 1970 em diversos locais, incentivados especialmente pelas possíveis associações entre patrimônio, turismo e desenvolvimento. A progressiva organização de movimentos e associações locais em favor do patrimônio é indício de novas narrativas patrimoniais, articuladas por argumentos de pertencimentos e identidades urbanas. Várias iniciativas dessa época trouxeram novos agentes para o campo, bem como temas ainda ausentes dos processos de patrimonialização. Um deles é a imigração e modos de vida dos colonos imigrantes no Brasil. Esse tema é trabalhado por Daniela Pistorello, que problematiza a imaginação do imigrante alemão em Santa Catarina a partir da dissecação do projeto “Roteiro Nacional da Imigração”, que gerou não apenas um enquadramento do imigrante alemão, como o apagamento de outras etnias ali presentes.

A entrada ou não de novos agentes e outros sujeitos sociais tem desdobramento nas novas visualidades no final da década de 1970 e nos anos 1980, quando a diversidade cultural se anunciava como tema. A fotografia, tal como tratada por Eduardo Costa, embora presente desde o início da atuação do Iphan, vai dialogar com distintas formas de compreensão do patrimônio, seja por meio da inclusão dos habitantes nas representações ou pelas novas profissões que se ocupam do patrimônio, como a do designer Aloísio Magalhães.

Outras formas de construção patrimonial aparecem na regionalização do patrimônio ou nas ações regionais interessadas nas tradições locais como temáticas de grande significado para o campo da cultura no Brasil, explícitas em manifestações diversas desde os anos 1960. No patrimônio, novamente, a temporalidade dessas explorações conceituais finca raízes nos anos 1970: por exemplo, nas tão propaladas ações do Centro Nacional de Referência Cultural de Aloísio Magalhães (CNRC). A experiência do Centro de Referência Cultural do Estado (Ceres), entre 1975 e 1990, tratada por Antonio Gilberto Nogueira, de mapeamento e registro audiovisual da memória da cultura tradicional popular no Ceará é também emblemática do alcance das ações locais e de seus efeitos na relação entre cultura e turismo.

O debate sobre o local ou, mais especificamente, dos estados e municípios na valoração e gestão do patrimônio tem se intensificado desde a década de 1970. A questão regional e a ação dos estados e municípios – em caráter colaborativo e não concorrente, tal como posto no Artigo 216 da Constituição – são um dos temas ainda importantes e irresolutos para o patrimônio no Brasil. A tentativa de estabelecer um sistema nacional de patrimônio nos anos 2000 e os ensaios de gestão compartilhada que começaram nos anos 1980 têm sido interrompidos ou são pontuais. Na época, as experiências se basearam no planejamento urbano ou na criação de instituições municipais e estaduais de preservação, sendo o caso de Belo Horizonte, tratado por Flávio Carsalade, significativo para pensar a questão, principalmente quando Minas Gerais assumiu o protagonismo ao incluir municípios na valorização e salvaguarda do patrimônio a partir da “Lei Robin Hood” de 1995. Como essas experiências mimetizaram a legislação federal de preservação e seguiram a ortodoxia do patrimônio nacional ou abriram novos caminhos de valoração é ainda campo de investigações futuras. As questões aqui tratadas apontam para a reiteração de lógicas fincadas no patrimônio arquitetônico e monumental, ao mesmo tempo que buscam novas formas de acautelamento e proteção.

Como se pode confirmar com a leitura deste dossiê, as mudanças no campo do patrimônio condensadas nos anos 1980, e sintetizadas no marco legal da nova Constituição, são evidentes e passaram, acima de tudo, por uma análise diacrônica. Desse modo, a reflexão se deu em conjunto, por vezes indiretamente, sobre a hegemonia da chamada ortodoxia do patrimônio, com seu império estético e formal, e trouxe à luz inúmeras situações que dela divergem ou com ela se confrontam. Apontou também aqui a inércia dessa ortodoxia, que ainda perdura nos dias atuais. Talvez em posição menos evidente, mas ainda em combate.

É na dimensão política da preservação evidenciada nos anos 1980 que nota-se uma mudança estrutural, capaz de suscitar novos paradigmas, colocados em disputa no campo. Isso diz respeito à ideia de que o patrimônio não existe em si e, portanto, não pode mais ser (des)vendado ou (des)coberto. Tudo o que alcançou o status de patrimônio cultural – categoria também forjada naquele contexto – tornou-se patrimônio pela vontade dos homens.

Evidentemente, não tivemos a intenção de esgotar todas as frentes que a política patrimonial abrange, tampouco trazer casos exemplares para o dossiê. Buscamos, sim, enfatizar a complexidade do campo e, sobretudo, apontar o modo como integra a história política e social brasileira, recusando a abordagem empobrecedora que coloca o tema à parte, como assunto apenas técnico, para digestão por especialistas.

Desejamos uma boa e instigante leitura!

Referências

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Flávia Brito do Nascimento – Professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, obteve o título de mestre e de doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Realizou pós-doutorado na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. https: / / orcid.org / 0000-0002-6889-7614

Márcia Regina Romeiro Chuva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós- -doutorado na Universidade de Coimbra. Pesquisadora do CNPq. É professora associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).


CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.28, p.1-12, 2020. Acessar publicação original  [DR].

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História das Propriedades e Direitos de Acesso / Revista Maracanan / 2020

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo oficio é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes do que nunca no fim do segundo milênio.1

Com essas linhas, logo na apresentação, o historiador britânico Eric Hobsbawm enumera suas angústias ao apresentar ao leitor A Era dos Extremos, obra publicada ao final dos anos 1990 propondo-se a discutir o próprio século XX. Pouco tempo se passou, algumas décadas apenas, e ao alvorecer do ano 2020 esta questão se apresenta ainda mais aguda. Em uma conjuntura na qual pesquisadores e temas de pesquisa são questionados (quando não perseguidos), revisitar o passado e construir interpretações segue como desafio aos historiadores e às historiadoras que se propõem a trazer aos leitores versões sobre um passado que se reflete na época que vivemos, em um variado grupo de temas de pesquisa.

O presente dossiê tem como propósito recuperar um conjunto de estudos voltados para uma temática tão antiga quanto atual. Tomando como fio condutor a história das propriedades e o direito de acesso, pretende-se contemplar uma variedade de trabalhos com recortes regionais e temporais distintos, apresentando perspectivas e análises com ênfase nos séculos XVII-XIX. Desta feita, o dossiê que por ora apresentamos reúne estudos que pretendem iluminar debates e reflexões acerca da propriedade de forma plural, expressando assim a multiplicidade dos estudos, sem jamais pretender esgotar as possibilidades de análises.

A propriedade é um termo tão naturalizado que muitas vezes, ao ser utilizado, o receptor logo se remete a um pedaço de terra, algo material ou, em outras palavras, a uma coisa ou bem tangível. O dossiê, entretanto, pretende inovar ao pensar em propriedade como um termo mais amplo, incluindo uma reflexão acerca da propriedade intelectual. A reflexão é relativamente recente, sobretudo no direito brasileiro, mas a discussão sobre o registro de patentes no Brasil remonta ao início do século XIX.

Entende-se como História Social das Propriedades a discussão realizada com base na dimensão histórica da noção de propriedade pelos diversos agentes da História. Neste debate estão envolvidas lutas por direitos ao acesso à propriedade em geral, incluindo reconhecimento não somente da posse de coisas materiais, mas também direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.2

A pluralidade das questões se expressa também quando o recorte está centrado na propriedade ou nas propriedades de terra, tema que acabou por ser foco das pesquisas incluídas no dossiê, sem se favorecer, entretanto, na predominância de uma única visão. Há reflexões sobre as relações de propriedade por meio da luta de roceiros, como forma de riqueza de setores mais abastados, como instrumento de ilegalidades para aumento de patrimônio, entre outras. A gama de estudos reunidos intenta servir como amostra do quanto o debate sobre a História Social das Propriedades no Brasil tem crescido e amadurecido. Reconhecemos que tais estudos procuram rumo próprio, sem ter que se ater ao provincianismo de acreditar que apenas os teóricos europeus servem como condutores e fiadores da temática para uma realidade específica (aliás, várias realidades) do gigante e diverso Brasil. A troca, cada vez mais proveitosa, entre os intelectuais nacionais nos vários encontros acadêmicos reforça a nossa capacidade de produzir conceitos e noções próprias com base nos fatos inerentes a nossa história, bem como da experiência deste vasto território.

Assim, o dossiê é composto por seis artigos, uma nota de pesquisa, uma entrevista e um depoimento. Procurando fugir de uma cronologia óbvia e privilegiando temas mais singulares na discussão sobre a História Social das Propriedades, inauguramos o dossiê com a análise apresentada por Leandro Miranda Malavota, “A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e as patentes de invenção: tecnologia e propriedade no Império do Brasil”. Deslocando o foco sobre a ocupação do território e as relações de propriedade para os aspectos da atividade inventiva, o autor analisa o papel da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional no processo de concessões de patentes aos inventores de novos bens e técnicas de produção. Para tanto, examina os fundamentos técnicos, jurídicos e econômicos que sustentavam a atuação da SAIN em meio ao contexto da Segunda Revolução Industrial, trazendo aos leitores uma análise do conceito de propriedade no campo da propriedade intelectual e mostrando os desafios encarados por aqueles que queriam registrar suas invenções já no século XIX.

Trazendo o eixo dos estudos para a propriedade da terra e para o Norte do Brasil, o artigo “Fazendo divisas em terrenos alheios: um estudo preliminar sobre posse, propriedade da terra e conflitos em intendências municipais no Pará entre fins do século XIX e início do XX”, de Carlos Leandro Esteves, apresenta um debate acerca da intensificação dos conflitos por terra no Pará nas primeiras décadas da República. O autor reconhece a sobreposição de títulos de terras como grande problema a ser enfrentado em querelas que envolviam uma variada gama de agentes sociais, de fazendeiros e grandes herdeiros aos pequenos posseiros. Grupos sociais distintos que se enfrentavam em conflitos de forças desiguais.

Em “Um negociante das ‘Terras Frias’: uma análise das estratégias de aquisição fundiária do português Antonio José Mendes (Nova Friburgo, 1860-1914)”, Gabriel Almeida Frazão analisa uma região famosa pela colonização suíça e alemã a partir do protagonismo de colonos lusos. Frazão lança os olhares para a presença portuguesa expressiva na região, bem como o controle das riquezas por parte dessas famílias com base em estratégias matrimoniais.

Perseguindo um famoso personagem da literatura brasileira em sua trajetória como funcionário público, o artigo “A Diretoria da Agricultura sob a chefia de Machado de Assis: os processos de solicitação de compra de propriedade no Amazonas (1887-1889)”, de Pedro Parga Rodrigues, quantifica um conjunto de processos do fundo da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas entre 1887 e 1889. Elenca como a repartição tendeu a valorizar elementos do regime de sesmarias, o fundamento da posse e a capacidade para o cultivo, na aplicação da Lei de 1850, reconhecendo grupos hegemônicos sendo privilegiados em espaços de conflitos e disputas. E, mais importante, mostra uma face pouco conhecida do famoso literário brasileiro na sua profissão mundana.

Privilegiando escravos e homens livres e pobres para o centro de seu estudo, Maria Celma Borges debruça-se sobre as roças encontradas por caminhos e por quilombos em Mato Grosso na passagem da colônia para o império. A autora apresenta o artigo “Escravizados, pobres e livres e povos originários na história rural de Mato Grosso: as roças e a antítese da propriedade pelos caminhos e quilombos (séculos XVIII e XIX)”, trazendo à luz atores políticos menos favorecidos e desnudando nuances na construção das relações de propriedade que possibilitam a concepção do conceito para além do tripé “Latifúndio, Escravidão e Monocultura”, recuperando o debate sobre o abastecimento interno e a importância das roças na economia do Brasil.

Fechando o conjunto de artigos do dossiê, Ronaldo Vainfas & Márcia Motta partem da análise de uma fonte testamental para compreender a estratégia na formação de fortuna e constituição de um morgado como forma de proteger o patrimônio, não necessariamente territorial. Os autores assinam conjuntamente o artigo “Morgadios coloniais entre a nobilitação e o mercado: o testamento de Francisco Barreto de Menezes, restaurador do Recife em 1654”.

Esta edição é enriquecida ainda com mais três textos voltados ao tema do dossiê: uma nota de pesquisa, um depoimento e finalmente uma entrevista. A jovem pesquisadora Flávia Darossi parte da Guerra do Contestado, em Santa Catarina, para compreender a política fundiária nos anos anteriores ao conflito, com base na reconstrução de relações e discursos jurídicos em estudos de caso no município de Lages. Paulo Pinheiro Machado nos brinda com um depoimento que revisita sua trajetória de vida como professor e pesquisador do campesinato no Sul do Brasil. Em “Os camponeses: notas sobre rastros, indícios e experiências de pesquisa”, Pinheiro nos lembra da importância dos estudos sobre o rural, bem como o fato de que grandes momentos da história recente de nosso país tiveram a questão agrária e a propriedade territorial no centro do grande debate político.

Por fim, a professora catedrática de História do Brasil da Universidade de Coimbra, Margarida Sobral Neto, nos presenteia com uma entrevista na qual apresenta sua trajetória pessoal. De sua entrada na graduação, em pleno governo Salazar, até os desafios mais recentes, como o do lugar da mulher na universidade, assim como seu próprio tema de pesquisa, as relações de propriedade na época moderna.

O dossiê, portanto, intenta contribuir para a discussão da História Social das Propriedades e dos direitos de acesso por uma perspectiva mais ampla, reconhecendo a pluralidade e excelência dos estudos hoje desenvolvidos. Longe de avalizar qualquer ideia colocada aqui, o dossiê pretende sim registrar o convite para que sigamos ampliando as reflexões. Sem reducionismos ou dogmatismos, entendemos que os estudos voltados para a História Social das Propriedades no Brasil apresentam-se de forma plural, desenvolvendo perspectivas próprias, inspiradas por estudos consagrados, no Brasil e fora dele.

Esta edição conta ainda com cinco artigos livres, contribuições que somam colaborando para a pluralidade do debate científico. João Vitor Araújo & Marcelo de Souza Neto assinam em conjunto “Jurisdição e subordinação: tentativas de provincialização da Igreja no Piauí (1822-1830)”. Em mais uma proposta a quatro mãos, Monica Piccolo & Werbeth Serejo Belo voltam os olhares para uma reflexão sobre os Anos de Chumbo no artigo “Entre o ‘milagre econômico’ e o ‘quinquênio do ouro’: análise introdutória dos planos econômicos brasileiro e português (1968-1973)”. William Vaz Oliveira nos convida a transitar por dois tipos de discursos para compreender o indígena em “Índio do Brasil: um sujeito entre o discurso jurídico e o discurso médico-psiquiátrico”. Trazendo uma proposta de debate interdisciplinar, Francivaldo Alves Nunes observa o universo rural em “Experiências sociais rurais e as implicações dos silenciamentos: diálogos de história e sociologia”. Para fechar, Márcio Antônio Both da Silva assina “Sob o risco de Mesfisto. História agrária no Brasil: tragédias e esquecimentos”, revelando as angústias do estudo da história agrária nos tempos atuais.

Notas

1. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 13.

2. Disponível em: https: / / abpi.org.br / blog / o-que-e-propriedade-intelectual / . Acesso em 29 de dezembro de 2019

Marina Monteiro Machado – Professora Adjunta de História Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na graduação em Ciências Econômicas e no Programa de Pós-graduação em História. Doutora, Mestre e graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. Vice- Coordenadora do INCT – Proprietas, “História Social das Propriedades e Direitos de Acesso”. E-mail: [email protected] ORCID iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7093-3904 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 5955676567988660

Carmen Alveal – Professora Associada de História do Brasil Colônia e História Agrária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em História. Philosophiae Doctor in History pela Johns Hopkins University; Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do LEHSUFRN (Laboratório de Experimentação em História Social) e da Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro). ORCID iD: https: / / orcid.org / 0000-0002-1202-0231 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 1118391491224309


MACHADO, Marina Monteiro; ALVEAL, Carmen. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.23, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Os povos indígenas na história: agenciamentos, direitos e lutas/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2019

Embora o colonialismo tenha se esgotado formalmente na América a pelo menos dois séculos, a colonialidade, como a define Quijano1, persiste. Padrão de controle e classificação hierarquizante das populações, ela afeta todos os campos da vida social e reproduz, até hoje, relações de ser, pensar, fazer e poder que ainda são coloniais. A simples escolha semântica de América e Latina, ou de Novo Mundo, não só fortalece(u) a versão ocidental de nossa história e cultura, mas, ao silenciar outras tantas semânticas, exclui(u) também de um só golpe trabalhadores pobres, afrodescendentes e povos originários dos projetos de construção das nações dessa parte do mundo. Conduzidas por elites que, se não eram, queriam ou imaginavam ser europeias, as diferentes políticas de Estado, como por exemplo as indigenistas, sempre procuraram, de uma forma ou de outra, transformar essas populações em nacionais, sejam eles argentinos, peruanos, chilenos, mexicanos, brasileiros, bolivianos etc., ou o que quer que essas coisas representem. Como se não bastasse o fardo do peso histórico do genocídio, do etnocídio, da expulsão e da segregação cometidos contra os povos indígenas, sua face perversa e monstruosa se repete no atual momento político delicado pelo qual passa todo o continente, marcado não só pelo sucessivo retrocesso nos diretos sociais (transformados em serviços pelo ultra neoliberalismo de extrema direita que nos recoloniza), como no claro discurso de que essa parcela da população é prescindível, descartável; sina igualmente compartilhada por pobres e afrodescendentes. Leia Mais

Memória, arquivos e direitos / História & Perspectivas / 2016

Atualmente, vivemos, hoje, no Brasil, momentos que nos impelem a insistir na pergunta sobre que projeto social queremos para nossa sociedade. Parece-nos inadiável retomarmos as reflexões sobre o que é viver em uma democracia, sobre qual seu inverso, sobre como cultivar valores democráticos e valores para a construção e a conquista de direitos sociais.

No Brasil, e em diferentes países, vimos emergir grupos e lutas que reivindicam o direito à memória, enfatizando que, enquanto prática social, deve ser perguntada e investigada para compreendermos campos e percursos de disputa pela história. Essas experiências vêm conquistando vocalização importante nos espaços de debate e de pesquisa, ao passo que ganham formas como conquista social. Muitos historiadores, arquivistas e outros cientistas sociais, em grande medida provocados por estas demandas, têm se dedicado a pensar o direito à memória e seus desdobramentos temáticos.

As articulações entre memória, arquivos e direitos foram a base para a proposição deste dossiê que a Revista História & Perspectivas ora apresenta. O interesse em discutir e aprofundar diferentes dimensões da memória como direito e em explorar as políticas de arquivo e documentação na perspectiva dos direitos humanos motivou esse processo.

Nessa perspectiva, importava trazer para reflexão as análises que tratassem sobre memória, documentação e direitos humanos, sobre as políticas de memória e sua força na afirmação de direitos, sobre os arquivos e centros de documentação compreendidos como lugares de memória e espaços de afirmação de direitos. No âmbito das relações entre ações e políticas de patrimônio, importava considerar o patrimônio documental como dimensão explorada pelos historiadores no processo de luta cultural, de luta pela afirmação e conquista de direitos, incluindo a preservação documental e o direito à memória. O presente dossiê é composto por cinco artigos que destacam a articulação entre memória, arquivo e direitos.

O primeiro artigo, de Ricard Vinyes, “Memoria, democracia y gestión”, nos provoca a pensar nos significados dessas dimensões que formam o título do artigo. Problematiza que políticas públicas de memória devem ser tratadas como condicionantes da qualidade do sistema democrático e argumenta sobre a importância de o Estado garantir, como direito civil, o exercício da memória de passados políticos traumáticos por constituir um patrimônio ético cuja proteção e conservação enriquecem a cidadania.

O segundo artigo, “Direito à memória e patrimônio documental”, de Heloisa de Faria Cruz, aborda as relações entre a historicidade das lutas pelo direito à memória no Brasil, a identificação, a preservação e a patrimonialização de conjuntos documentais relativos à história do Brasil contemporâneo e sua vinculação a acervos de direitos humanos. A autora destaca a força de extensão de uma discussão sobre o direito à memória e sobre a preservação do patrimônio histórico para além dos espaços acadêmicos, indicando a cidadania e as políticas públicas de memória como campo fundamental de disputa, construção de novos espaços de direitos e conquistas sociais.

O artigo “Caminhos para autodeclaração: a luta por reconhecimento de mulheres quilombolas de Santa Tereza do Matupiri, na fronteira Amazonas-Pará” de Renan Albuquerque Rodrigues, João Marinho da Rocha e José Vicente de Souza Aguiar, toma por base diferentes estudos acerca da produção do conhecimento na Amazônia e sobre a Amazônia, junto a memórias de lutas de mulheres quilombolas, para analisar comunidades negras do leste do Amazonas, com destaque para as mulheres como lideranças na luta por direitos e memória na perspectiva da autodeclaração identitária.

“Conflitos pela memória no semiárido cearense: relações entre as comunidades rurais do Tabuleiro de Russas e o DNOCS”, artigo de Mário Martins Viana Júnior e Diego Gadelha de Almeida, analisa os processos de construção de memória investidos por ação do Estado, aqui representado pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Essa análise se conjuga ao estudo do processo de construção, em seus conflitos e contradições, de memórias de comunidades rurais da localidade Tabuleiro de Russas, no Ceará, atingidas por políticas de modernização no campo, em fins do século XX e no início do XXI.

O último texto que compõe o dossiê, “Imagens para lembrar: o caso das fotografias do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo – MJDH (1984-1986)”, de Francisca Ferreira Michelone e Roberta Pinto Medeiros, empreende discussão em torno da relação entre memória, fotografia e direitos humanos, explorando fotografias que integram o acervo do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, proposto, organizado e mantido pela Organização Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).

Compõem ainda esse número da revista cinco artigos e uma resenha que estão em outras duas seções, versando sobre temas diversos. Merece destaque, na última seção, a entrevista realizada com a Professora Cláudia Sapag Ricci, que aborda questões relativas ao texto preliminar da Base Nacional Comum Curricular da disciplina de História.

No que concerne aos procedimentos de escrita dos artigos do dossiê, destacamos o desafio enfrentado por todos os autores em abordar a memória, situando-a no tempo, no espaço e na conjuntura social, para indagar seus significados enquanto prática social e para construir sentidos históricos na relação com cultura, história e cidadania. Outro desafio foi o da atenção permanente para a relação entre pesquisa, acervos documentais e a sociedade onde os registros da vida social e política se constituem, ganham importância ou são silenciados, num processo que, longe de ser natural e linear, é composto pelas marcas de conflitos e pelas contradições que também pontuam a vida em sociedade. A relação que se assinala entre história e memória indica a possibilidade de reconstrução de práticas por meio da abordagem e da problematização dos filtros que traduzam, revelem ou mesmo pretendam ocultar essas contradições e esses conflitos.

Lembramos a reflexão de Déa Fenelon sobre historiografia, pesquisa e a necessária atenção para as pulsações que brotam da própria realidade. No horizonte de conceitos e de áreas por onde nos movemos constam acervos documentais e linguagens que contribuem para definir vigorosas teias em torno dos conceitos de memória e cultura. Atentamos para a noção de que o vivido e o narrado precisam ser pensados, trabalhados enquanto criação de registros e produção de sentidos das relações sociais – de dominação, de subordinação, de conciliação ou de resistência. O que nos faz valorizar a reflexão sobre símbolos, valores, meios que enunciam, forjam, preservam a memória de grupos sociais diversos, para entender as maneiras pelas quais se produzem e também os usos que deles se faz no jogo de perpetuação de efeitos de verdade. Um trabalho acadêmico, mas, sobretudo, um trabalho político.

Heloisa de Faria Cruz

Marta Emisia Jacinto Barbosa


CRUZ, Heloisa de Faria; BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Memória, arquivos e direitos. História & Perspectivas, Uberlândia, v.29, n.54, 2016. Acessar publicação original [DR].

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Memória, Ditaduras e Direitos / Projeto História / 2014

Os estudos e a reflexão sobre a memória social e as relações entre História e Memória constituem área relativamente recente dos estudos históricos. Como propõe Josephina Cuesta, em um balanço sobre a questão, diferentemente de outros cientistas sociais, que, desde o início do século XX, incorporaram os temas da memória ao seu repertório de discussões, seria somente a partir da década de 1960 que os historiadores passam a abordar de forma mais sistemática as questões políticas, teóricas e metodológicas postas nesse campo.

Não obstante, nas últimas três décadas, e em grande parte acompanhando as demandas sociais, a memória emerge como um campo profícuo da reflexão histórica, e a área registra uma notável expansão de estudos internacionais e também nacionais sobre as relações entre Memória e História. Indagações sobre a matéria própria da memória social, seus modos de produção e transmissão, as questões da lembrança e do esquecimento, a natureza dos testemunhos, a memória como campo de disputas e o papel da memória nas disputas sociais informam o estudos de diferentes temáticas. Pesquisas sobre a construção e a institucionalização de identidades nacionais e comunitárias, o papel das comemorações e da invenção de tradições, o papel dos símbolos e lugares de memória em diferentes situações e contextos, bem como sobre os processos de institucionalização de memórias e lutas sociais articulam-se à reflexão de campos diversos, tais como os da História Social e Cultural, da nova História Política, da História Pública e da chamada História do Presente. A expansão das fontes estudadas, festas, símbolos diversos, monumentos, calendários, artes gráficas e visuais, fotografia, pintura, publicidade e, principalmente as fontes orais, faz emergir uma pluralidade de sujeitos, questões e temas.

Para o que aqui nos interessa, vale também notar que a emergência de preocupações culturais e políticas voltadas para a discussão de memórias relativas ao passado recente é um fenômeno que ganha força na contemporaneidade em alguns países da Europa, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, bem como em vários países da América Latina, após a experiência de ditaduras recentes.

De acordo com essas informações da Anistia Internacional, desde os anos de 1970, mais de 40 comissões da verdade ou similares foram estabelecidas ao redor do mundo, a maioria delas nos últimos 20 anos. A grande parte dessas comissões, propostas sob a visão da justiça de transição e visando à luta contra a impunidade e ao estabelecimento de procedimentos de reparação a vítimas de processos de violência institucional, propugnou pelo estabelecimento de mecanismos nacionais efetivos para a documentação da verdade sobre o arbítrio e os crimes perpetrados, propondo também a socialização do conhecimento sobre razões e circunstâncias que levaram às violações de direitos humanos nas situações sob investigação.

É significativo assinalar que, com essas comissões, muitos desses países assumiram como tarefa e dever de Estado a recuperação, a preservação e a publicização da documentação sobre os períodos de violência institucionalizada. Nesses anos, particularmente na América Latina, identificaram-se movimentos de grande vitalidade na área, os quais se articularam a importantes lutas políticas contra o arbítrio e a impunidade, bem como àquelas pelo direito à verdade e à memória. Em vários desses países, as lutas tiveram / têm como dimensão importante a organização de suportes de memória da repressão e da resistência produzidos nos períodos ditatoriais, dando origem ao desenvolvimento de inúmeros projetos e à organização de instituições diversas voltadas para a ação, a pesquisa e a reflexão sobre a história desses períodos.

No Brasil, passados mais de 50 anos do Golpe de 1964, a discussão pública sobre os anos da ditadura brasileira e da transição ainda é profundamente marcada pela herança autoritária imposta pelo pacto conservador da abertura, que propõe o perdão institucional aos responsáveis pelo terror de Estado e que se manifesta na prática cotidiana e contínua da violação de direitos humanos de nossa sociedade. Apesar disso, há de se reconhecer que, no decorrer da última década, principalmente a parir da aprovação do PNDH-III, em 2009, e da Lei Geral de Acesso à Informação e da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, as questões propostas pelas articulações entre memórias da ditadura, história e cidadania ganharam força crescente no debate público em diferentes espaços da sociedade brasileira.

Desde então, assim como os demais espaços sociais, as universidades e a produção acadêmica têm sido insistentemente confrontadas e interpeladas por diferentes agentes sociais, e têm respondido a essas demandas. Nos últimos anos, nas diversas áreas das Ciências Humanas, a produção acadêmica sobre o período da ditadura cresceu vigorosamente em quantidade e qualidade. Particularmente no campo das relações entre Historia e Memória, há de se indicar que a historiografia sobre o período tem avançado significativamente, assumindo a pesquisa e a reflexão sobre uma grande diversidade de temas, questões, espaços, práticas e vozes antes inaudíveis ou invisibilizadas, e que nos aproximam muito mais de uma História Social e Política sobre o período e de suas repercussões na vida contemporânea. Há ainda que destacar a criação em várias universidades do país de Comissões da Verdade universitárias assim como o envolvimento de muitos professores nos trabalhos de pesquisa das várias comissões estaduais e na comissão nacional. Também a PUC-SP criou sua Comissão da Verdade que durante os últimos dois anos atuou articulada à outras comissões e buscou contribuir para a pesquisa e a reflexão histórica sobre aqueles anos de exceção. Este número da Projeto História articula-se tanto à discussões recentes propostas pelo Departamento de História como aos trabalhos da Comissão da Verdade da universidade.

Buscando contribuir para esse debate, este número da revista Projeto História aborda as relações entre Memória, Ditaduras e Direitos. A proposta é a que a divulgação de pesquisas e reflexões em circuitos mais amplos nos ajude a aproximar o trabalho de historiadores da importante agenda pública trazida pelas lutas em favor do direito à memória, à verdade e à justiça em nosso país. Busca também salientar a importância da reflexão histórica em um terreno no qual sentidos e significados encontram-se ativamente em disputa na sociedade brasileira na atualidade.

A revista traz a contribuição de historiadores e outros cientistas sociais que exploram diferentes ângulos da questão em relação à ditadura no Brasil e também em outros países da América do Sul e da Europa.

Os artigos de Ana Maria Sosa González e Enrique Padrós remetem às discussões sobre as ditaduras nos países do Cone Sul. O estudo de González nos propõe uma avaliação comparativa das políticas de memória implementadas recentemente no Uruguai e no Brasil, apontando seus caminhos e estratégias, bem como suas relações com políticas de afirmação dos direitos humanos nesses países. Ao discutir a atuação de historiadores e outros cientistas sociais nesse processo, aponta desafios atuais enfrentados nessa aproximação entre a academia e esses processos políticos. O artigo de Padrós, por sua vez, com base em pesquisa detalhada na documentação e em entrevistas de militantes do CLAMOR – Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, grupo que atuou com sede em São Paulo entre os anos de 1978 e 1991, aborda as situações de violação de direitos e violências perpetradas pelas ditaduras recentes em diversos países da América do Sul no contexto da atuação no Comitê e suas ações de denúncia do arbítrio e de auxílio e solidariedade aos perseguidos políticos nesses regimes no Cone Sul. O texto examina as lutas de resistência empreendidas pelo CLAMOR e pela rede de solidariedade constituída por entidades de defesa dos direitos humanos à qual o Comitê se articulava, como também aponta a dramática situação dos exilados e perseguidos políticos na região naquele período. Aqui, vale lembrar, que este precioso acervo do CLAMOR, nominado Memória do Mundo pela UNESCO , encontra-se aberto à consulta pública no CEDIC – Centro de Documentação da PUC-SP – e por sua importância para o período sugere inúmeras outras abordagens sobre as ditaduras no Cone Sul.

Como indicado anteriormente, a atuação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, entre 2012 e 2014, constitui marco importante no desenvolvimento das lutas pelo direito à memória, à verdade e à justiça no país, e seu encerramento recente coloca inúmeras questões sobre os desdobramentos desse processo na conjuntura em que vivemos. Procurador atuante na área e estudioso dos direitos humanos, Marlon Weichert apresenta, em seu artigo, um minucioso resumo do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade tornado público em dezembro de 2014. Além de descrever de forma densa e sintética os principais conteúdos, conclusões e recomendações do relatório, realiza um balanço sobre as dificuldades enfrentadas pela Comissão. O artigo também propõe uma avaliação fundamental e instigante sobre as expectativas e os desafios que a CNV não conseguiu atender, e examina as contribuições que seu relatório trouxe para o processo de justiça de transição brasileiro.

Dada a sua importância na configuração das relações de poder em nosso país, a presença e a atuação dos meios de comunicação nos processos de disputa em torno das memórias sobre a ditadura, bem como nos processos da transição, têm mobilizado fortemente a reflexão sobre os processos de constituição e a instituição de memórias sobre o período. Nesse campo, destacam-se, particularmente, as análises da imprensa como força social que atua na produção de hegemonia, articula uma compreensão da temporalidade, propõe marcos e diagnósticos do presente e que, a todo o tempo, propõe a afirmação de sentidos selecionados e a ocultação de outros. Dentro dessa perspectiva, a atuação da imprensa e os seus impactos nos processos de afirmação e transmissão de memórias da ditadura civil-militar no Brasil, a sua atuação como espaço de legitimação ou oposição aos regimes, são aqui tratadas sob diferentes ângulos e veículos.

O texto de Carla Luciana da Silva, com base na análise da revista VEJA em 1969 / 70 e 2014, problematizando a relação entre a imprensa, a memória histórica, as práticas discursivas e a produção da hegemonia, analisa como a revista atua na conformação e atualização de consensos sobre a repressão, a violência e a presença de opositores do regime, dos trabalhadores e dos movimentos sociais na cena política do país.

Percorrendo uma trajetória similar, a discussão proposta pelo artigo de Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes Sousa, que destaca a pesquisa realizada nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, tem como eixo central o Golpe de 1964. Analisando a recepção pelos dois jornais ao golpe civil militar de 1964, em momentos de sua efetivação, e depois em tempos de sua “comemoração” ou “rememoração”, nas efemérides de 2014, desenvolve argumentos sobre a reescrita do passado por aqueles jornais e desvenda seus argumentos e caminhos de justificação e legitimação daqueles eventos no presente.

Por outro lado, o artigo de Maria Izilda Santos Matos, tematizando a questão do exílio político e as ações de oposição ao regime salazarista no Brasil, problematiza como a imprensa pode se constituir em espaço de articulação e manifestação de propostas críticas e dissidentes. Em meio ao estudo da presença portuguesa em São Paulo (1920 / 70), destaca as experiências de um grupo de portugueses que, no exílio, levou à frente ações de oposição ao regime salazarista tendo como canal de expressão política o jornal Portugal Democrático.

Encerrando a seção de artigos, o texto de Marijane Lisboa, ao discutir pesquisas recentes sobre aspectos até hoje negligenciados da memória coletiva do genocídio nazista e os percursos da memória coletiva a seu respeito em situações específicas, nos situa na memória como campo de disputa móvel, que implica recordação, esquecimento e manipulação em momentos e situações históricas diversas. Destacando os desafios de se lidar com memórias sensíveis e traumáticas, propõe a reflexão crítica sobre os usos e os abusos da memória, bem como sobre a promoção de políticas de memória que sirvam à construção de sociedades democráticas.

Finalmente, na composição deste número da revista, cumpre salientar as contribuições trazidas por pesquisas em andamento sobre o período. Também abordando as relações entre imprensa e memória, tendo como material de pesquisa o jornal argentino Clarín, a pesquisadora Micaela Iturralde analisa a posição editorial e as estratégias discursivas desse periódico frente às violações dos direitos humanos, e indaga sobre tratamento dado pelo jornal às questões da violência política e aos “desaparecidos” durante a ditadura militar na Argentina (1975-1983).

Problematizando as políticas de segurança e as ações dos agentes do Estado, a questão da violência institucional e da violação dos direitos humanos também é discutida por Tiago Santos Salgado, em sua pesquisa sobre a Venezuela em períodos mais recentes.

Ao final, o texto de Viviane Tessitore relata a pesquisa sobre a história do projeto Brasil: nunca mais, que mapeou a repressão política durante a ditadura militar no Brasil, a partir dos processos contra presos políticos no início da década de 1980, e que se desenvolve no interior do projeto Brasil: Nunca Mais Digital, o qual, trazido a público recentemente, viabilizou a consulta virtual àquele valioso acervo sobre a repressão durante a ditadura no Brasil.

Heloisa de Faria Cruz


CRUZ, Heloisa de Faria. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 50, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Direitos e Cidadania / Estudos Históricos / 2006

Este número da revista Estudos Históricos é dedicado ao tema “Direitos e cidadania”. Trata-se de um número especial, pois reúne textos produzidos no bojo de um Projeto Pronex de mesmo nome, financiado pelo CNPq e pela Faperj desde 2004. Tal projeto, sediado no CPDOC / FGV, conta com a participação de pesquisadores do próprio CPDOC e também de outras instituições, como a Universidade Federal Fluminense, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Fundação Casa de Rui Barbosa. Exatamente por essa razão, todos esses textos foram discutidos no I Seminário Pronex Direitos e Cidadania, realizado na Fundação Getúlio Vargas, entre 4 e 6 de agosto de 2005, com o objetivo de apresentar e debater os primeiros resultados das pesquisas em curso.

O projeto “Direitos e cidadania” tem como foco a investigação do processo histórico de construção da cidadania no Brasil, na chave do acesso a direitos (civis, políticos, sociais, culturais, de gênero etc.) e da efetivação de controles democráticos capazes de garantir e expandir esses direitos. O tema da construção da cidadania, nesse sentido, está sendo compreendido como um longo e permanente processo de interação político-cultural, que envolve tanto as instituições formais do Estado como as entidades da sociedade civil, e inclui uma grande diversidade de atores sociais, mesmo não organizados. Com tal tema de fundo, ele se volta para um amplo recorte cronológico, utilizando fontes de caráter variado e trabalhando-as com metodologias diversas, a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Sua natureza multifacetada guarda relação com a formação diversificada de seus pesquisadores, cujos olhares são conformados a partir das disciplinas da história, da sociologia, da antropologia e da ciência política. O projeto se estrutura em quatro grandes linhas de investigação, todas elas contempladas com artigos neste número de Estudos Históricos: I – Políticas de inclusão e movimentos pela expansão dos direitos de cidadania; II – Controles democráticos e instâncias de efetivação de direitos de cidadania; III – Cidadania, participação, representação e cultura política; IV – Cidadania cultural: memória, patrimônio e espaço urbano.

Dessa forma, o texto que abre a revista, de Daniel Aarão Reis, intitulado “Os intelectuais russos e a formulação de modernidades alternativas: um caso paradigmático?”, revisita uma questão clássica do pensamento social brasileiro- o debate entre projetos de modernização em sociedades “atrasadas” -, trabalhando em perspectiva comparada e utilizando o exemplo dos intelectuais russos, pouco contemplados na literatura de ciências sociais. A seguir, dois artigos, o de Regina Moraes Morei e Elina da Fonte Pessanha, intitulado “Magistrados do trabalho no Brasil: entre a tradição e a mudança”, e o de Angela de Castro Gomes, “Retrato falado: a Justiça do Trabalho na visão de seus magistrados”, concentram-se no estudo da história e da memória de uma das instituições mais importantes no mundo do trabalho a partir dos anos 1940. A Justiça do Trabalho, que recentemente teve sua competência ampliada pela Reforma do Judiciário, é o foco para se pensar em uma das dimensões mais visíveis e consistentes da cidadania no Brasil: os direitos do trabalho. Seguem-se então três textos que discutem a questão da cultura na história recente do país, fazendo cada um deles uma abordagem tão particular quanto original. Lia Calabre analisa a atuação do Conselho Federal de Cultura nos tempos do regime militar; Fernando Weltman acompanha a construção do que vem sendo chamado de jornalismo comunitário, tomando como exemplo a experiência da Rede Globo e do RJTV; e Mônica Almeida Kornis, ainda no universo televisivo, analisa as “aventuras urbanas” da série Cidade dos Homens, pontuando a questão da construção de estratégias de inclusão social.

Esse é o gancho para o tratamento de uma das dimensões mais significativas dos direitos e da cidadania no Brasil republicano, qual seja, a questão da “raça”. Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira privilegiam, entre os temas does) movimento(s) negro(s), a discussão polêmica e atual sobre as cotas nas universidades; e Hebe Mattos destaca a trajetória de um jovem líder de uma comunidade de quilombo: Antônio Nascimento Fernandes, morador da Fazenda São José, no estado do Rio de Janeiro. Seguindo a linha das trajetórias e estudos de textos memorialísticos, finalizam o número os artigos de Denise Rollemberg, “Uma vida, duas autobiografias”, e de Célia Costa e Juliana Gagliardi, “Lysâneas, um autêntico do MDB”.

Como se pode verificar, são muitas as possibilidades de leitura e de articulação entre esses textos, ressaltando-se a existência de exemplos de trabalhos com a história do tempo presente, com fontes-objetos, como programas de televisão, e com trajetórias de indivíduos, movimentos sociais e instituições. Finalmente, todos os artigos procuram apresentar contribuições sobre aspectos ainda pouco contemplados de temas e questões muito tratadas nas áreas da história e das ciências sociais. Embora sendo textos preliminares, acreditamos que o leitor poderá construir, com eles, seu próprio mosaico de achados, chegando satisfeito ao final deste número “especial”.


GOMES, Angela de Castro. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.1, n.37, jan. / jun. 2006. Acessar publicação original [DR]

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História e Direitos / Projeto História / 2006

História – Direitos / Projeto História / 2006

Na série sobre Las Manos, o pintor equatoriano Oswaldo Guayasamín (1919-1999) plasma a resistência e rebeldia daqueles que são secularmente explorados, expropriados, mutilados, torturados, mas que com suas energias e capacidades subjetivas humanas constroem a riqueza genérica das alteridades, trabalho objetivado na forma da alienação e do estranhamento por conta da reprodução ampliada do capital. A pintura Las manos de la protesta desse artista revolucionário expressa o símbolo das lutas dos de baixo, mas também as possibilidades de conquistas sociais, para além do capital e do Estado, voltadas para uma nova forma de sociabilidade.

História e Direitos oferece reflexões que abarcam as mais variadas formas dessa resistência de indivíduos atuantes, que protagonizam respostas e alternativas às demandas sociais inscritas no próprio evolver histórico. Nem sempre vitoriosas, em tempos e lugares díspares, essas lutas sociais que emergem das contradições materiais da relação-capital buscam formas de hegemonia e contra-hegemonia, que vão dos seringueiros brasileiros às “coordinadoras interfabriles” da Argentina sob terror genocida, das lutas de gênero aos direitos de criação cultural, da luta pela terra à afirmação dos descendentes africanos.

O metabolismo social do capital tem se reproduzido como mundo da mutilação do humano, que impede a plena realização da liberdade dos indivíduos como finalidade intrínseca ao processo de constituição de seu próprio ser genérico. O sonho do desenvolvimento das capacidades humanas sem interdições postas por essa forma societária repõe a luta sem tréguas pela liberdade concreta, como reconhecimento das necessidades do outro, em sua multiplicidade e infinitude, uma vez superadas as contradições imanentes da sociedade atual.

Adentrando nas páginas da Projeto História, detemo-nos na fina e densa reflexão do historiador Pierre Vilar sobre “História do direito, história total”. Ainda que o termo direitos, tal como nasceu a propositura temática para este número, não se restrinja somente às estruturas políticas e jurídicas – pois buscou-se a reflexão dos direitos sociais que brotam da práxis cotidiana das classes subalternas e que buscam erradicar injustiças e chagas sociais –, Pierre Vilar, assumindo os lineamentos ontológicos de Marx, assegura que “é a sociedade civil que faz o Estado e não o Estado que faz a sociedade civil”. As formas políticas e jurídicas são sempre produtos da história, exprimem antagonismos próprios à atividade prática sensível de indivíduos sociais. O reconhecimento do primado da vida prática ancora-se na dinâmica da forma de produção e reprodução da existência material. Vilar atenta para o momento específico em que Marx, dirigindo a antiga Gazeta Renana, se vê diante dos interesses materiais, do vínculo entre forma jurídica e a propriedade privada, que se afirma ante seus olhos e o seu arsenal teórico arrimado na filosofia idealista alemã e não lhe permitia desvendar a natureza efetiva da politicidade. No fundo, Vilar mostra a gênese dos direitos burgueses precisamente assentado na dominância dos proprietários privados: “Trata-se da transição de um modo de produção para outro modo de produção, da morte da sociedade feudal, e a cristalização no direito dos princípios fundamentais do capitalismo”.[1]

Não há como subtrair o papel da subjetividade na produção da riqueza genérica humana. Na história, os seres autoproducentes em sua historicidade – mesmo sob o entulho da exploração e desumanização – ampliam as potencialidades e capacidades humanas para a recriação de si e de seu mundo. A consciência é elemento de impulso da transformação, mas também da acomodação a uma determinada ordem social. “História total”, aqui, significa compreender, sempre de modo aproximativo, o “concreto como síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”. Reconhecendo, na práxis, a contínua transitividade que envolve os pólos heterogêneos da subjetividade e da objetividade, no processo de objetivação.

Nesse sentido, não há como tomar a liberdade como pura abstração, mas sim referida ao campo de possíveis de seu solo histórico. A forma societária moderna, com seu modo determinado de vida, que imprime a defesa da liberdade do indivíduo circunscrita aos proprietários privados, teve de se confrontar com a resistência dos não-proprietários. As revoluções burguesas cristalizaram em suas fórmulas constitucionais os princípios liberais que são expressões dos pilares ordenadores desse metabolismo social. Basta recordar a legislação sangüinária contra os vagabundos de fins do século XV ao século XVI na Inglaterra, os dispositivos cerceadores dos direitos dos trabalhadores com a Lei Le Chapelier em pleno processo revolucionário francês, a luta de ludistas e cartistas, até as barricadas de 1848, das lutas por emancipação nas colônias à Comuna de Paris, no século XIX. A luta pela inscrição dos direitos sociais no Estado liberal por meio do embate classista levou a que essa forma de dominação cedesse a sua transformação num Estado liberal-democrático, todavia, como poder que atua na auto-reprodução ampliada do capital.

O historiador Francisco Iglesias assinalou que “o liberalismo é mais um ideal que realidade; a filosofia liberal é uma das utopias que raramente se concretizam, mesmo nesse século [XX], que a proclama, ela só existe em certas áreas e em raros momentos, pois comum é a herança de antigos privilégios ou o aparecimento de novos”.[2] Contudo, há que especificar essa ideologia em seus nexos constitutivos, em sua produção social. Em sua “pergunta constrangedora” sobre, afinal de contas, o que devemos entender por princípios liberais, o filósofo Domenico Losurdo se indagou se é possível separá-lo da prática dos proprietários, se é possível a coexistência da defesa da liberdade do indivíduo, da defesa da propriedade privada e sua conservação contra a interferência do poder do Estado, em comunhão com a defesa das minorias contra o “absolutismo democrático”, porém, com a preservação da escravidão? Quais razões levaram os campeões do liberalismo, tais como John Locke, Francis Hutcheson e John Stuart Mill, a sustentarem a necessidade da escravidão? “O fato é que, ao ressaltar a necessidade da escravidão, eles pensam em primeiro lugar não nos negros das colônias, mas nos ‘vagabundos’, nos mendigos, na plebe ociosa e incorrigível da metrópole. Devemos considerá-los iliberais por esse motivo?”.[3]

Por essa razão, rebatendo a apologética do argumento econômico “puro”, Vilar adverte que essa ideologia, ao naturalizar as relações sociais burguesas “esquece os fundamentos jurídicos da sociedade civil capitalista – propriedade absoluta e liberdade de empreender; ora, estes fundamentos só valem se garantidos pela autoridade do Estado”. Além disso, o monopólio da lei e da violência se vêem preservados por mecanismos do anel autoperpetuador entre propriedade privada e Estado. “Ora, um aparelho repressivo nunca é totalmente descolado das regras de direito que se costuma respeitar, seja porque escolhe transgredir sem proclamá-lo, seja porque decide suspender, como se diz, as ‘garantias constitucionais’. Direito público e direito privado, história jurídica e história política são constantemente mescladas: e a própria economia depende disso”.[4]

Como salientou Vieira,[5] até mesmo a “ilimitada” liberdade de expressão de Stuart Mill, definida em seu Ensaio sobre a Liberdade, que afirmava a soberania da pessoa sobre si mesma, com a autoridade do Estado intervindo apenas para impedir danos entre os membros da comunidade, viu-se implementada de forma restrita, dada a manutenção das leis que coibiam a livre expressão e organização dos trabalhadores, a restrição ao voto feminino e às “massas despreparadas”, “incultas e rudes”, conforme propositura de Alexis de Tocqueville, que ponderava sobre o risco de ocorrer uma tirania dessas massas sobre uma minoria, cerceando a competência natural de as elites dirigirem a sociedade de forma ordenada e processual.

Como se pode observar, no interior das contradições entre o conservadorismo e o progressivismo, entre o internacionalismo econômico e os nacionalismos políticos ou no debate sobre a relação indivíduo / coletividade levado a cabo pelo liberalismo, as bandeiras dos trabalhadores que serão consolidadas pela nova ordenação de categorias sociais sem ruptura, restringem-se àquelas que interessavam também à burguesia, como a abolição da servidão – dadas as necessidades da nova ordem capitalista em curso – e a ampliação do direito de voto, que garantia maior possibilidade de integrar a burguesia na representação parlamentar através dos mecanismos constitucionais, sob os auspícios da fraternidade, equivocadamente, conforme já o demonstrava Jules Michelet, no século XIX, imputada às bandeiras revolucionárias francesas.

Sob a égide da igualdade de todos perante a lei, manifestas as desigualdades pelo mérito e não mais por nascimento (mas mantidas e justificadas, é evidente), o século XIX implantou os preceitos do liberalismo calcado na defesa dos direitos naturais, parametrado pelas concepções de Locke, os formuladores da Declaração da Independência norte-americana e da Declaração dos Direitos Humanos, segundo a qual ao governo competiria afirmar os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Implantou também os preceitos do liberalismo utilitarista dos seguidores de Jeremy Bentham, que mesclavam seu racionalismo ao empirismo inglês, exigindo do governo a prova utilitarista da promoção de ações que resultassem no “maior bem para o maior número”.

Mas o cerne da dualidade do mundo moderno figurado na cisão entre vida privada e vida pública, da contraposição de interesses dos proprietários e dos cidadãos, foi desvendado com a identificação do caráter ilusório de uma comunitariedade universalizada no Estado como instituição racional e necessária para harmonizar as contradições reais. Em suas “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social’”, ao rebater as teses de Ruge, Marx buscou decifrou a natureza social do Estado e do caráter impotente de toda e qualquer administração:

“A menos que suprima a si mesmo, o Estado não pode suprimir a contradição entre o papel e a boa vontade da administração, de um lado, seus meios e seu poder, doutro. Ele é fundado sobre a contradição entre a vida pública e a vida privada, entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por conseqüência, a administração deve-se limitar a uma atividade formal e negativa, pois seu poder pára precisamente lá onde principia a vida civil e seu trabalho. Em verdade, a impotência é a lei natural da administração, quando ela é posta diante das consequências que resultam da natureza anti-social desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, desta pilhagem recíproca das múltiplas esferas civis. Pois este esquartejamento, esta baixeza, esta escravidão da sociedade civil constituem o fundamento natural sobre o qual repousa o Estado moderno, do mesmo modo que a sociedade civil da escravidão é o fundamento natural do Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são indissociáveis”.[6]

Vamos repisar num ponto essencial. Essa sociedade de equivalentes – proprietários dos meios de produção, do dinheiro e da riqueza são postos na mesma situação como possuidores de alguma mercadoria, do mesmo modo que os possuidores da capacidade subjetiva do trabalho – coloca os indivíduos numa situação de igualdade e liberdade na esfera da troca. Há que recordar que o possuidor da força de trabalho, “solto e solteiro”, se põe como pessoa livre que detém sua mercadoria, mas também por ter uma existência livre das condições objetivas do trabalho. Ora, a lógica própria do sistema do capital, no ato da troca, converte os possuidores de mercadoria como equivalentes e mutuamente indiferentes. Se o capital busca permanentemente aumentar o tempo excedente dos trabalhos dos produtores efetivos, sua teleologia visa a extração de valor e não a realização das necessidades humanas por meio dos valores de uso. Nesse quadro, assentada nos pilares profundamente iníquos do modo de produção, qual é a gênese e necessidade históricas dessa liberdade limitada? “O interesse geral é justamente a generalidade dos interesses egoístas. Se, portanto, a forma econômica, a troca, põe sob todos os aspectos a igualdade dos sujeitos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva e que leva à troca, põe a liberdade. Igualdade e liberdade, portanto, não são apenas respeitadas na troca que se baseia em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base real, produtiva, de toda igualdade e liberdade. Como puras idéias, são meramente a expressão idealizada dessa base; como desenvolvidas nas relações jurídicas, políticas e sociais, são elas apenas esta base em uma outra potência”.[7]

Na atualidade, vivemos em tempos sombrios, que petrificam as possibilidades humanas, promovendo o desfazimento das alternativas da lógica onímoda do trabalho, assim como entronizando a naturalização da propriedade privada e de sua forma societária. A correta crítica à vulgata marxista, com seus determinismos, em especial o do acento numa inevitabilidade lógica da progressão histórica rumo ao comunismo, todavia, tem se curvado à obediência necessária requerida pelo capital. A apologética acaba por decretar um “fim da história”, conduzindo, dessa maneira, à resignação e ao conformismo a uma ordenação capitalista. Para superar as iniqüidades, as injustiças próprias à concentração e centralização da riqueza, o distributivismo é o aceno possível da sociedade de equivalentes. O indivíduo expropriado, mutilado e resignado atua na direção querida e, portanto, mais apropriada ao prolongamento da utilidade histórica do capital.

O ideário do liberalismo nesta sua forma mais conservadora adquirirá diferentes contornos, nas diferentes vertentes que assumirá este capitalismo em sua internacionalização, garantindo o arcabouço teórico que justifica a correspondente ordenação política. A herança dessa vertente conservadora do liberalismo será assumida por suas categorias sociais dominantes, como sua forma mais “perfeita”, como é o caso das formações dos estados nacionais latino-americanos. Ao analisar a ditadura militar argentina (1976- 1983), Christian Castillo mostrou como, na engrenagem montada pelo terrorismo oficial, se perpetrou o monstruoso genocídio contra a sociedade civil, apontando para o momento essencial dos antagonismos sociais: o controle e desarme das ações autônomas da classe operária.

Nas últimas décadas, ultrapassadas as ditaduras militares, instauradas as distensões democráticas, o tema da violência, sob as mais variadas formas, tornou-se um dos principais objetos de estudos de várias disciplinas na América Latina e particularmente no Brasil. Entidades de direitos humanos e especialistas debruçam-se sobre suas variadas formas: violência doméstica, violência da criminalidade, violência dos organismos policiais, violência no sistema penitenciário, violência no campo, etc. – evidenciando-se que essas violências têm raízes, causas e dinâmicas de natureza diferente. É claro que a situação social exacerba mesmo as violências de cunho privado, como a violência doméstica – de maridos contra esposas, de pais contra filhos – que sempre existiram, mas que, em virtude da tensão existente na sociedade, da precariedade das vidas nas condições do mundo neoliberal, com a formação do desemprego estrutural, tornam-se mais concretas e atuantes.

Quanto à violência que se exerce na esfera pública, sua exacerbação nos dias atuais tem a ver com o quadro da evolução recente do sistema capitalista, em sua fase de globalização, com suas políticas neoliberais implementadas a partir da década de 1980. A revolução tecnológica sem precedentes, a chamada terceira revolução industrial e a introdução da microeletrônica no processo de produção de mercadorias têm levado a uma verdadeira devastação no mercado de trabalho internacional. Um vasto contingente de pessoas em todo o mundo tornou-se dispensável ao processo produtivo e a tendência é que o desemprego aumente ainda mais nas próximas décadas. Esse é um processo irreversível que está mudando o panorama do mundo e atinge não apenas pessoas, mas também países, aprofundando a diferença internacional entre países ricos e pobres, e promovendo exclusão em continentes inteiros. Com isso, levas de marginalizados arriscam-se todos os dias nas fronteiras da Europa e da América do Norte, para tentar entrar no “paraíso” do capitalismo do Primeiro Mundo. E, de modo geral, em todas as grandes cidades do mundo mais pessoas empobrecem e vêm engrossar o bloco dos sem moradia e sem trabalho, das pessoas com empregos precários informais e às vezes considerados ilegais, e por isso sujeitos à repressão institucional.

Paralelamente, no quadro no neoliberalismo, observamos a diminuição dos gastos públicos em políticas sociais abrangentes e universais. Ao contrário, são propostas e implementadas as chamadas “políticas focalizadas”, projetos que só atingem as comunidades mais miseráveis ou pedaços dela, aparecendo como uma vitrine da boa índole dos governos, enquanto cresce, como complemento de toda essa política, o Estado Penal. Para os marginalizados e excluídos que não se mantêm na estrita ordem, o Estado reserva a construção de cada vez mais prisões e a implementação de penas cada vez mais rígidas para os crimes contra o patrimônio dos ricos.

O que se observa é que em tais países, genericamente falando, não se configura um Estado de natureza liberal nos moldes como se configura na Europa após as revoluções burguesas no marco do capitalismo de ponta. Aqui, a configuração do Estado alterna períodos ditatoriais com períodos de dominação de classe que configuram muito mais autocracias burguesas institucionalizadas do que a propalada, mas não concretizada, democracia social. No Brasil em particular, apenas para tomarmos o período posterior à última ditadura e a aprovação da Constituição de 1988, persistem, na ação do aparato repressivo do Estado, mecanismos de tipo ditatorial, porém aplicados seletivamente. Essas contradições também aparecem em outros Estados latino-americanos, onde a remoção do “entulho autoritário” sofre idas e vindas. No Brasil, é como se o Estado democrático de Direito tivesse sido restabelecido apenas em algumas parcelas do território brasileiro e apenas para alguns efeitos. As instituições do Estado democrático funcionam até o limite em que a desigualdade social de classes aparece.

Os atos praticados quotidianamente pelo Estado, inclusive a manutenção de práticas de tortura, cometidas em espaços institucionais pelo aparato policial e infelizmente aceitas pela sociedade em geral e banalizadas pelos noticiários, pouco têm sido objeto de estudos considerados acadêmicos e, não fosse a ação de algumas e poucas entidades a denunciarem tais arbitrariedades, essa impunidade passaria incólume. Nesse sentido, é possível constatar como tais análises tendem a ficar circunscritas ao universo das políticas e denotam o ardil do politicismo, forma de dominação que permite a continuidade da lógica perversa da reprodução ampliada e subordinada ao capitalismo financeiro internacional e modela a dominação política a seus fins específicos. A dominação dos proprietários, reduzida em sua possibilidade de atuar com autonomia e de cumprir sua função de classe nessa particular forma de regime liberal-democrático quanto ao atendimento às demandas sociais (imprescindíveis ao próprio desenvolvimento do capitalismo, sob pena de rompimento da sua própria lógica), reduz sua ação à dimensão do político, enquanto a ordem econômica realiza sua lógica perversa, iníqua e subordinada.

As políticas públicas, fundadas na lógica da “integração” da América Latina aos países hegemônicos, significam a permanência dos vínculos sociais, políticos, econômicos, científicos, culturais, diplomáticos e militares na condição de subordinação. Nessa lógica, o Estado – que, classicamente, aparenta ser distinto das forças sociais que o engendram – gesta políticas que não só não atendem às necessidades sociais, mas se contrapõem a elas, atingindo, por vezes, até mesmo os segmentos da burguesia que lhe dão sustentáculo.

Nesse contexto e diferentemente do processo de ascensão da burguesia européia e do ordenamento do seu correspondente aparato estatal, a burguesia nacional mostra-se incapaz de promover sua revolução, pois isso demandaria unificar-se internamente e apoiar-se na forças sociais que exclui. Nessa condição, essa classe, no limiar das necessidades de promover reformas impostas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, mantém os “enclaves autocráticos” vigentes nos períodos de ditaduras bonapartistas, consolidando a dominação. Longe ficamos do preceito que as leis são a exteriorização das vontades dos indivíduos como um corpo único, isto é, cidadãos fazendo as leis e se reconhecendo nelas. As leis coagem arbitrariamente os indivíduos, porque impostas de cima para baixo e apenas vigorando conforme a lógica da dominação que expressa uma categoria social cuja potência auto-reprodutiva do capital é extremamente restringida, uma categorial social que é incapaz de exercer sua hegemonia e, com isso, incorporar e representar efetivamente os interesses das demais classes subalternizadas numa dinâmica própria.

Os processos de distensão democrática que reinserem formas autocráticas após os períodos ditatoriais ocorrem com muitas semelhanças entre os países latino-americanos submetidos a ditaduras ou “autoritarismos”. Nestes, as lideranças no novo poder concordam em manter preceitos autocráticos em nome da segurança nacional, da manutenção da ordem, dos compromissos internacionais assumidos (pagamento das dívidas nos mesmos moldes preconizados). Não se trata apenas de uma composição, mas da permanente recomposição pelo alto, que se evidencia ao longo da história de nossas formações sociais, que conheceram um caminho sinuoso, tortuoso e hipertardio que gesta o capital atrófico, que reproduz o arcaico, no qual a burguesia, por sua incompletude de classe, mostra-se incapaz de liderar as reformas necessárias ao desenvolvimento do próprio capitalismo, fazendo alianças com segmentos do historicamente antigo, a fim de lhe garantir a força suficiente, ante sua debilidade estrutural, do Estado autocrático burguês.

Caracteriza-se, assim, um poder político em que as decisões políticas, sejam de ordem social, econômica ou cultural, não conseguem atender às demandas sociais, reordenando permanentemente as mesmas categorias dominantes no bloco do poder, mantendo núcleos autocráticos que ensejam o “cesarismo militar”.

“A reflexão contemporânea sobre a politicidade, o entendimento político e as formas de poder, nessa quadra histórica, têm sido tomados permanentemente como uma recorrência ao aperfeiçoamento dessas formas, visando a corrigir os seus defeitos e, com isso, alcançar a sua perfectibilidade. Desconhecendo, desse modo, a razão das taras sociais. Há que reconhecer, no entanto, que ‘Por natureza, a política sendo a administração do domínio de uns sobre outros, jamais pode ser a sagração da santidade’”.[8]

Num universo em que se descartou a perspectiva de futuro, há que resgatar um antigo lema do movimento dos trabalhadores, segundo o qual a emancipação humana implica a superação da parcialidade inerente à liberdade política em direção à liberdade social. “Liberdade da vida cotidiana que passa a compreender a relação ativa e consciente do homem com a forma societária que o engendra e que por ele é engendrada. Liberdade da vida cotidiana que requer muito mais do que a universalidade abstrata da cidadania, pois exige a possibilidade da autoconstrução cotidiana do homem e de sua mundaneidade. O que significa que pela potência onímoda da lógica do trabalho, difundida por toda a enervação da convivência, o indivíduo recupera em si mesmo o cidadão abstrato, não mais separa de si força social sob a forma de força política, reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais, de modo que converte, por tudo isso, na vida cotidiana, no trabalho individual e nas relações individuais, em ser genérico, em individuação atual pela potência de seu gênero”.[9] É o que se impõe, ao menos enquanto aposta futura, como sendo o próprio exercício da liberdade concreta, num revolucionamento permanente, mediante a comunidade interativa de indivíduos em seu processo de individuação social.

Notas

1. VILAR, P. História do Direito, História Total. Projeto História – História e Direitos, n. 33. Trad. Ilka Stern Cohen. São Paulo, Educ, 2006, p. 27.

2. IGLÉSIAS, F. História e Ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 72.

3. LOSURDO, D. Contra-História do Liberalismo. Trad. G. Semeraro. Aparecida, SP, Idéias & Letras, 2006, p. 17.

4. VILAR, op. cit., p. 34.

5. VIEIRA, V. L. “Autocracia Burguesa e Violência Institucional”. Paper tematizado nos Seminários de Marxismo do Núcleo de Estudos de História: trabalho, ideologia e poder. Departamento de História da Faculdade de Ciências da PUC-SP, 07 de dezembro de 2006.

6. MARX apud CHASIN, J. A determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios Ad Hominem, T. III, Política. Santo André, SP, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, p. 95.

7. MARX, K. Troca, Igualdade, Liberdade. Revista Temas de Ciências Humanas, n. 3. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1978, p. 06.

8. RAGO FILHO, A. “O ardil do politicismo”. Revista Projeto História, n. 29, T 1. São Paulo, Educ, 2004, p. 156.

9. CHASIN, J. A determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios Ad Hominem, T. III, Política. Santo André, SP, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, pp. 126-127.


FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 33, 2006. Acessar publicação original [DR]

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