1822-2022: museus e memória da nação/Anais do Museu Paulista/2022

Os museus são instituições que participaram ativamente da construção dos Estados nacionais a partir do século XIX. O caráter público que ganharam paulatinamente, acelerado após a emblemática conversão do Palácio do Louvre no Museu Central de Artes da República, em 1793, tornou essas instituições em um instrumento de transformação das sociedades. Espaços de instrução científica e artística, estabelecimentos de narrativas históricas e pedagogia cidadã, os museus tanto foram constituídos como espaços privilegiados de produção de conhecimento, quanto ambientes de construção e reprodução de práticas de dominação que perduram até hoje. Leia Mais

História da Urbanização no Brasil: novas propostas em Arqueologia da Paisagem | Anais do Museu Paulista | 2021

O dossiê que o leitor tem em mãos visa divulgar uma uma nova safra de estudos sobre história da urbanização, nove anos depois da publicação do dossiê “Caminhos da história da urbanização no Brasil-colônia” no volume 20, número 1, dos Anais do Museu Paulista, 2012, realizado sob minha coordenação. O desafio de explorar um Brasil de dimensões continentais impõe, antes de tudo, um trabalho coletivo para descontruir as narrativas e os lugares-comuns que acabaram adquirindo estatuto historiográfico. Nossos olhos viciados por certos estereótipos são embaçados por pesquisas recentes, que fazem saltar à vista novas territorialidades com ramificações bastante alargadas. Desconectados entre si e sem necessariamente terem consciência disso, esses estudos lançam luz sobre evidências empíricas que merecem debate por seu ineditismo e por convergirem para uma necessária releitura do Brasil em seu conjunto, inclusive nas suas interfaces com a América Espanhola e com outros continentes. Essas pesquisas recentes desmontam a tese da colonização “arquipelágica”, rompendo com as ideias de fragmentação e descontinuidade entre as partes do Brasil ao revelar territorialidades macrorregionais e zonas de intersecção de perfil cultural híbrido, que compartilhavam hábitos, dialetos e costumes que subvertiam as fronteiras políticas que lhes foram impostas. Além disso, elas permitem refutar narrativas e ideologias emanadas dos Institutos Histórico e Geográficos regionais que, ao construírem as identidades dos estados da República Federativa então em gestação, isolaram-nos do conjunto, contaminando gerações de pesquisas e pesquisadores igualmente regionalizados. Também desmontam axiomas históricos, como a estanqueidade na divisão técnica e social do trabalho, reforçando a ideia de interdependência entre as zonas vinculadas ao comércio atlântico e as zonas de abastecimento, fugindo da dicotomia clássica litoral-sertão. Demonstram, desse modo, a interdependência de fluxos que entreteciam o mercado interno ao comércio platino e andino e às outras três partes do mundo. Esses estudos revelam materialmente formas e tipologias de articulação, inclusive intermodais. Revelam uma diversidade de pontos de enraizamento e mobilidade de uma rede urbana mais plural e interiorizada do que nos parecia. Esses estudos nos incitam a “varrer a pé” e a pensar com os olhos, despojando-nos da comodidade do gabinete e das bibliotecas cada vez mais agigantadas que nos impõem um sedentarismo nefasto. Leia Mais

Democracia, Patrimônio e Direitos: a década de 1980 em perspectiva / Anais do Museu Paulista / 2020

Os artigos reunidos nesse dossiê têm como foco as experiências e reflexões do campo do patrimônio cultural brasileiro na década de 1980. A motivação primeira que nos uniu para pensar os anos 1980 foi a percepção de um desafio historiográfico de superação dos sensos comuns da década tida como perdida, entendendo que nas práticas e políticas de preservação de patrimônio houve uma expansão sem precedentes dos espaços, temáticas e agentes possíveis. Na luta pela democracia, o patrimônio constituiu-se como lugar de tensões, debates e ações, nem sempre lineares ou bem-sucedidos, sobre as identidades, os direitos culturais e urbanos, as práticas e os conceitos estabelecidos.

A necessidade de debater a década foi impulsionada também pelos duros ataques e desmontes das instituições de cultura e de patrimônio que têm ocorrido desde 2017 e estão sendo aprofundados em 2019. A partir de uma perspectiva multidisciplinar e ampla em termos de território nacional, organizamos um encontro com pesquisadores tendo em vista o desafio de problematizar a década e os mais variados questionamentos.

Buscamos atentar para situações concretas daquele contexto e também projetar um olhar prospectivo. Nesse sentido, fontes muito variadas foram consideradas nas análises, evidenciando sua riqueza e densidade. Destaque para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que marcou presença na maioria dos artigos. A releitura dos números lançados nos anos 1980 surpreende o leitor, pelos temas variados, pela salutar presença do debate e do contraditório, de certa forma espelhando um sentimento de esperança, que tem nos feito muita falta nos dias atuais, em que só vemos a destruição de toda ordem.

Em junho de 2019, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), realizou-se o seminário “Democracia, patrimônio e direitos: a década de 1980 em perspectiva”, uma parceria da FAUUSP com a Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Os textos aqui reunidos decorrem diretamente do seminário e têm por objetivo mais geral ampliar a compreensão das práticas patrimoniais e de sua história no Brasil, concentrando-se na década da redemocratização.

Acreditando na multidisciplinaridade do patrimônio também no que se refere aos diálogos acadêmicos, foram reunidos autores com vinculações institucionais diversas, oriundas da história, geografia, sociologia, museologia e arquitetura, que se dispuseram a discutir o período lançando olhares a agentes e lugares variados, bem como produzindo narrativas a partir de suas próprias centralidades: do Ceará a Santa Catarina, passando por Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, pelas práticas de estados e municípios, pelo patrimônio natural, bens móveis, bens edificados, pelos agentes e sujeitos sociais, sem deixar de lado o chamado “patrimônio nacional”. Os textos mostram a variedade e complexidade das ações, sem a pretensão de ver nelas caráter exemplar, mas de apontar as inúmeras possibilidades de investigação. Um campo de desafios que não se encerra aqui, mas que, assim se espera, abra novos caminhos de pesquisa, reflexão e, quem sabe, ação.

A década de 1980 no Brasil foi marcada pelas disputas políticas no processo de redemocratização. As articulações para a saída do regime militar e os caminhos para a democracia levaram quase uma década de consolidação. Da Lei da Anistia, em 1979, até a Constituição Cidadã em 1988 e as eleições diretas em 1989 – de acordo com a periodização proposta para a redemocratização –, dez anos de pressões e lutas democráticas tiveram lugar. A luta por direitos urbanos e a ação dos grupos sociais nas demandas pelo direito à moradia e, sobretudo, à cidade já estavam presentes desde o final dos anos 1970 e ganharam protagonismo na década de 1980. Neste processo, assiste-se a muitas reações às sucessivas transformações do período de ditadura militar, no qual a modernização conservadora autoritária modificou, entre outras coisas, o padrão de urbanização do país.

O patrimônio cultural passou a se situar no vértice das ações e debates sobre o urbano, mas não somente nesse ponto. As disputas por memórias e narrativas acerca da identidade nacional colocaram o passado e a preexistência física das cidades no campo de disputas que pressionaram por ações para além daquelas impostas pela chamada “ortodoxia do patrimônio”. Dentro do órgão federal, à época denominado Subsecretaria ou Secretaria do Patrimônio do Histórico e Artístico Nacional / Fundação Nacional Pró-Memória (Sphan / PróMemória), e, para muito além dele em órgãos estaduais e municipais não somente do campo específico do patrimônio cultural, chegando às políticas que são formuladas a partir da Constituição, assiste-se a uma ampliação sem precedentes.

A década foi um momento de muitas transformações no pensamento sobre a preservação em âmbito nacional, redundando em ações, debates e políticas inovadoras no contexto da história do patrimônio brasileiro, que não necessariamente tiveram continuidade, como analisado neste dossiê.

O período culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, em que os preceitos de patrimônio cultural brasileiro foram legalmente transformados, incluindo toda sorte de temas da cultura e expressões que extrapolaram o excepcional. Em 2020, completam-se 32 anos desde a promulgação da nova Constituição Brasileira, e podemos afirmar que o campo do patrimônio transformou-se profundamente. Essas mudanças, largamente incrementadas pelas políticas culturais dos anos 2000, referem-se à amplitude e diversificação das políticas públicas, em conexão intersetorial, com base nos novos conceitos de patrimônio, que aproximaram a temática do universo dos direitos – urbanos, por exemplo, como o direito à moradia, e o direito à cultura. Referem-se também à inclusão de novos sujeitos no amplo debate sobre diversidade cultural brasileira, associada ao direito à memória, bem como ao reconhecimento de grupos tradicionalmente pouco assistidos pelas políticas patrimoniais, especialmente após a implantação de uma política em 2001 para a salvaguarda do patrimônio imaterial.

No caso dos afrodescendentes brasileiros, o debate remonta aos anos 1970, período em que os movimentos negros foram fortalecidos, em parte na esteira dos amplos debates que se davam nos EUA. No contexto da redemocratização, a luta antirracista e por direitos iguais tornou-se bandeira partilhada por setores progressistas da intelectualidade, que se juntaram a representantes dos movimentos negros, mediando várias de suas reivindicações no campo do patrimônio. Ao mesmo tempo, como sujeitos desse processo, integrantes do movimento passaram a lutar por espaços políticos e institucionais, para conduzir uma política de afirmação da cultura negra. No artigo de Márcia Chuva, essa discussão se coloca no âmbito das políticas de memória e patrimônio no Rio de Janeiro, a partir da análise das medidas adotadas pelo órgão estadual de patrimônio, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e pela Sphan / Pró-Memória, nos anos 1980, e, numa leitura também prospectiva, do Rio de Janeiro tornado Patrimônio Mundial nos anos 2010.

O contexto também demandava o conhecimento das práticas distintivas desse grupo formador da sociedade brasileira, e em seu artigo Márcia Sant’Anna analisa um projeto muito bem-sucedido realizado em Salvador, que foi o Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia. Mapeamentos e inventários são metodologias tradicionais no campo do patrimônio e sua utilização, nesse caso, produziu material inédito. Sua importância extrapola o evento em si, tendo contribuído para formular o conceito de patrimônio cultural, que hoje substituiu amplamente o tradicional patrimônio histórico e artístico, como também para incluir bens relacionados à cultura afro-brasileira no seletivo rol do patrimônio, tendo em vista os vários terreiros de candomblé tombados a partir do ato inaugural do Terreiro da Casa Branca em Salvador, em 1984.

Contudo, esse universo de bens ainda permanece sub-representado na lista geral de bens protegidos. Outro problema que merece ser apontado, e que se repete em outras situações, é a insistência em adotar rigores estilísticos inadequados ao tipo de bem. Vimos, portanto, mudanças importantes no sentido de novos sujeitos de atribuição de valor intervindo nas políticas de seleção, mas a gestão desses bens tombados ainda requer mudanças substanciais na cultura patrimonial. Problema similar se deu com o tombamento da Serra da Barriga, local do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, em 1985. Fruto da pressão do movimento negro, sua gestão colocava questões que se misturavam a desafios urbanos e habitacionais, para os quais a instituição federal não tinha respostas. O artigo de Joseane Brandão contém uma riqueza de informações sobre a trajetória de reconhecimento dos quilombos como patrimônio brasileiro, no qual a pesquisadora analisa o processo histórico e jurídico de construção social da categoria de comunidades remanescentes de quilombos. Esse processo teve início na Constituição Federal Brasileira de 1988, que determinou o tombamento de quilombos, enfatizando assim o caráter de reparação desse gesto. Isso ocorreu graças à pressão dos movimentos negros na Constituinte.

Num olhar prospectivo, consolida-se a ideia de pedidos de reparação como solicitações de reconhecimento. Todo esse processo tem contribuído para a reflexão sobre a escravidão no Brasil, o pós-abolição e o racismo como problemas estruturais de nossa sociedade e como oportunidade para o campo do patrimônio intervir social e culturalmente, ao associar processos de reparação ao reconhecimento do patrimônio afro-brasileiro.

Portanto, no universo dos direitos, o patrimônio aproximou-se de políticas afirmativas, de reparação e de inclusão, com experiências inúmeras e bastante diversificadas que resultaram em novas estratégias políticas. Esse crescimento do campo também resultou na e da ampliação de investigações acadêmicas e da formação profissional, com a criação de cursos de pós-graduação ou a inserção do tema em áreas de formação tradicionais, voltando-se para a reflexão sobre o patrimônio e as políticas públicas no setor, bem como sua inclusão nas graduações por meio de diversas disciplinas. Dessa forma, os trabalhos aqui reunidos são fruto do campo acadêmico do patrimônio cultural e mostram a importância da reflexão histórica sobre o assunto. Os autores se debruçam sobre aspectos diversos e complementares do período, e os artigos contribuem para a compreensão da história e da historiografia do patrimônio cultural brasileiro, uma vez que apresentam e problematizam o período de modo inédito.

Entre narrativas e práticas, o campo do patrimônio se redimensiona nos anos 1980. A historiografia é ponto-chave e talvez inicial para lançar luz sobre a década. Por isso, optamos por abrir o dossiê com o artigo de Luciano Teixeira, que aborda os primeiros passos da construção de uma historiografia do patrimônio, a partir de duas publicações seminais desse contexto, que demarcaram a possibilidade de uma escrita da história do patrimônio no Brasil. Acompanhada da efervescência dos debates que transcorriam em São Paulo, nos anos 1980, numa rede distinta de agentes e instituições, acirravam-se os debates e as disputas sobre o controle do discurso patrimonial no processo de redemocratização, especialmente no caso do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e pela Sphan / Pró-Memória, órgão de grande importância para o período, presente em todos os artigos deste dossiê. Sua história é, sem dúvida, mais uma frente de pesquisa a ser abordada, como aponta este dossiê.

Como o campo do patrimônio se distingue historicamente pelas práticas que se rotinizam na agência federal, optamos pelo contraponto entre narrativas e práticas, colocando em sequência o artigo de Beatriz Kühl sobre as restaurações realizadas pela Sphan / Pró-Memória. Justamente pela ausência de documentos reflexivos, normativos ou teóricos sobre essas restaurações desde os anos 1930, as fontes privilegiadas neste artigo foram os quatro números da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dos anos 1980, já mencionados, nos quais há densos artigos sobre restaurações emblemáticas realizadas na época. Esse material é analisado com olhar crítico, e reflete sobre a forma de circunscrição do tema e de sua abordagem, trazendo outros artigos desses números para matizar os debates sobre a restauração de então.

É consenso entre estudiosos que uma das grandes mudanças perpetradas pela modernização conservadora autoritária do regime militar foi a do perfil urbano do Brasil, dada por diversos processos, dentre os quais a urbanização e a metropolização somadas às novas conexões territoriais pela onda rodoviarista. A emergência de um debate urbano do patrimônio no Brasil surge pari passu às transformações nas cidades e às ações de planejamento urbano e territorial organizadas pelo governo militar. A pressão urbana nas cidades consideradas “históricas” e as perdas substanciais em outras tantas estão claras desde a década de 1970, mesma época em que o “patrimônio urbano” como campo conceitual se consolida no cenário internacional, com a promulgação de cartas patrimoniais e políticas urbanas específicas para áreas patrimonializadas, como aconteceu na França, Itália e Reino Unido.

No Brasil, as ações são assumidas ainda nos anos 1970 – o que tensiona, como já visto, as temporalidades da década de 1980 – pelo campo do planejamento urbano de municípios que organizaram inventários, conceitos e novas formas de acautelamento a partir de leis urbanas e planos diretores. Os conceitos de ambiente urbano e de patrimônio ambiental urbano foram mobilizados no contexto de áreas urbanas no Rio de Janeiro e em São Paulo – aqui discutidas pelos textos de Marly Rodrigues e Andréa Tourinho, Mariana Tonasso e Flávia Brito do Nascimento –, ao mesmo tempo que buscaram incluir a cidade nas práticas patrimoniais. No entanto, e apesar das importantes mudanças que foram capazes de implantar na área – com a inclusão de novos agentes e novas áreas urbanas até então não consideradas como patrimônio –, muitas vezes recaíram nos cânones arquitetônicos, protegendo bens isolados e afastando-se das demandas por consideração das relações entre habitantes e bens culturais.

Nos anos 1980, o debate sobre a cidade e o patrimônio cultural assume-se democrático em níveis municipal, estadual e federal, quando a Sphan / Pró-Memória passa a proteger muitas áreas urbanas a partir dos argumentos da história, entendendo a própria cidade como um documento. A cidade-documento, discutida no texto de Lia Motta, viabiliza a permanência do Iphan no debate urbano que passou a proteger novos núcleos urbanos e utilizar critérios inéditos, como são exemplares os casos de Laguna, Natividade e Petrópolis.

O ambiente como argumento de preservação urbana era parte de um quadro ainda mais amplo da discussão ambiental, um dos temas latentes do período. Da mesma forma, nas cidades, a pressão da urbanização desde os anos 1960 e seus impactos nefastos nas áreas ditas naturais ou nas comunidades tradicionais levou à mobilização da comunidade internacional, com o papel decisivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). No Brasil, o protagonismo do debate sobre as áreas naturais veio de dois agentes novos no campo, ainda na década 1970: a geografia e o Estado de São Paulo. O papel decisivo de Aziz Ab’Saber, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, no Condephaat, estabelecendo parâmetros conceituais para a consideração da natureza como patrimônio nos seus aspectos memoriais, foi analisado por Simone Scifoni.

A atuação do Condephaat nas áreas naturais é característica do envolvimento de novos agentes na busca pela preservação de novos objetos, espaços e práticas. A abertura do conselho às universidades públicas paulistas permitiu práticas para além das ortodoxias, emblemáticas do acolhimento de novos temas e possibilidades de expansão das práticas patrimoniais a partir da legislação de tombamento. Abertura essa hoje ameaçada, com a redução da presença das universidades no conselho. A natureza tombada era salvaguardada naquilo que tinha de valores memoriais, históricos e culturais. A criação de novos instrumentos de proteção, segundo o interesse do planejamento pela preservação urbana, aparece também nos debates sobre o licenciamento ambiental, tratado por Claudia Leal. Trata-se de uma temática urgente, em razão da recente política ambiental perversa e destruidora da vida, que vem sendo implantada no Brasil, com imensas interseções com o campo do patrimônio.

Outra vertente de atuação no campo é sua relação com a museologia, aqui também apresentada a partir do Condephaat. Inês Gouveia analisa o assunto a partir da trajetória de Waldisa Rússio, voltando-se para a contribuição teórica e política da museóloga, que incorpora na ideia de museu a noção de direito e acesso aos patrimônios e às memórias. Daí também a ampliação do debate da museologia enquanto área de conhecimento específica que ocorre nos anos 1980. A interlocução da museologia com o patrimônio fica marcada por sua atuação no grupo executivo que propõe a criação do Condephaat. Contudo, o campo museológico pouco aderiu, naquele momento, às transformações que o diálogo com o patrimônio trouxeram. Ainda assim é surpreendente o protagonismo dessa mulher, aqui tangenciado pela perspectiva dos estudos de gênero, cujas relações com o patrimônio merecem ser aprofundadas.

A cultura que adjetiva o patrimônio mudou, desde os anos 1970, as perspectivas de atuação dos novos agentes nos níveis municipal e estadual, não somente em instituições de patrimônio, mas também em associações da sociedade civil. A dimensão política da preservação tornou-se evidente nos anos 1980, como novo instrumento da luta política por direitos, aspecto que é ressaltado em vários artigos deste dossiê. O texto de Lucina Matos mostra a presença da sociedade civil organizada na valorização do patrimônio ferroviário, colocada em marcha pelos movimentos sociais e associações de defesa deste patrimônio, que lutaram pelo direito à memória e ao passado ferroviário, abrindo diálogos e embates pela sua preservação. Trata-se de um processo longo e disputado, cujos desdobramentos serão vistos quase três décadas depois com a Lei 11.483 de 2007, que atribuiu ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a responsabilidade de administrar os bens móveis e imóveis nesse âmbito da extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA).

Um aspecto fundamental do olhar voltado para a década de 1980 neste dossiê foi a possibilidade de compreender as temporalidades da patrimonialização no Brasil, constituídas ao longo das últimas quatro décadas. Se muitas das práticas foram estabelecidas nos anos de redemocratização e puderam ser, de certa forma, atendidas naqueles anos, outras tantas tiveram na Constituição de 1988 um ponto de chegada e de partida. O patrimônio ferroviário é exemplo claro: os sucessivos desmontes dos anos 1990 ampliaram as demandas do direito à memória ferroviária e se tornaram tema de atenção institucional nos anos 2000.

Este dossiê também põe em pauta aspectos regionais das políticas de patrimônio, que surgem antes mesmo dos anos 1970 em diversos locais, incentivados especialmente pelas possíveis associações entre patrimônio, turismo e desenvolvimento. A progressiva organização de movimentos e associações locais em favor do patrimônio é indício de novas narrativas patrimoniais, articuladas por argumentos de pertencimentos e identidades urbanas. Várias iniciativas dessa época trouxeram novos agentes para o campo, bem como temas ainda ausentes dos processos de patrimonialização. Um deles é a imigração e modos de vida dos colonos imigrantes no Brasil. Esse tema é trabalhado por Daniela Pistorello, que problematiza a imaginação do imigrante alemão em Santa Catarina a partir da dissecação do projeto “Roteiro Nacional da Imigração”, que gerou não apenas um enquadramento do imigrante alemão, como o apagamento de outras etnias ali presentes.

A entrada ou não de novos agentes e outros sujeitos sociais tem desdobramento nas novas visualidades no final da década de 1970 e nos anos 1980, quando a diversidade cultural se anunciava como tema. A fotografia, tal como tratada por Eduardo Costa, embora presente desde o início da atuação do Iphan, vai dialogar com distintas formas de compreensão do patrimônio, seja por meio da inclusão dos habitantes nas representações ou pelas novas profissões que se ocupam do patrimônio, como a do designer Aloísio Magalhães.

Outras formas de construção patrimonial aparecem na regionalização do patrimônio ou nas ações regionais interessadas nas tradições locais como temáticas de grande significado para o campo da cultura no Brasil, explícitas em manifestações diversas desde os anos 1960. No patrimônio, novamente, a temporalidade dessas explorações conceituais finca raízes nos anos 1970: por exemplo, nas tão propaladas ações do Centro Nacional de Referência Cultural de Aloísio Magalhães (CNRC). A experiência do Centro de Referência Cultural do Estado (Ceres), entre 1975 e 1990, tratada por Antonio Gilberto Nogueira, de mapeamento e registro audiovisual da memória da cultura tradicional popular no Ceará é também emblemática do alcance das ações locais e de seus efeitos na relação entre cultura e turismo.

O debate sobre o local ou, mais especificamente, dos estados e municípios na valoração e gestão do patrimônio tem se intensificado desde a década de 1970. A questão regional e a ação dos estados e municípios – em caráter colaborativo e não concorrente, tal como posto no Artigo 216 da Constituição – são um dos temas ainda importantes e irresolutos para o patrimônio no Brasil. A tentativa de estabelecer um sistema nacional de patrimônio nos anos 2000 e os ensaios de gestão compartilhada que começaram nos anos 1980 têm sido interrompidos ou são pontuais. Na época, as experiências se basearam no planejamento urbano ou na criação de instituições municipais e estaduais de preservação, sendo o caso de Belo Horizonte, tratado por Flávio Carsalade, significativo para pensar a questão, principalmente quando Minas Gerais assumiu o protagonismo ao incluir municípios na valorização e salvaguarda do patrimônio a partir da “Lei Robin Hood” de 1995. Como essas experiências mimetizaram a legislação federal de preservação e seguiram a ortodoxia do patrimônio nacional ou abriram novos caminhos de valoração é ainda campo de investigações futuras. As questões aqui tratadas apontam para a reiteração de lógicas fincadas no patrimônio arquitetônico e monumental, ao mesmo tempo que buscam novas formas de acautelamento e proteção.

Como se pode confirmar com a leitura deste dossiê, as mudanças no campo do patrimônio condensadas nos anos 1980, e sintetizadas no marco legal da nova Constituição, são evidentes e passaram, acima de tudo, por uma análise diacrônica. Desse modo, a reflexão se deu em conjunto, por vezes indiretamente, sobre a hegemonia da chamada ortodoxia do patrimônio, com seu império estético e formal, e trouxe à luz inúmeras situações que dela divergem ou com ela se confrontam. Apontou também aqui a inércia dessa ortodoxia, que ainda perdura nos dias atuais. Talvez em posição menos evidente, mas ainda em combate.

É na dimensão política da preservação evidenciada nos anos 1980 que nota-se uma mudança estrutural, capaz de suscitar novos paradigmas, colocados em disputa no campo. Isso diz respeito à ideia de que o patrimônio não existe em si e, portanto, não pode mais ser (des)vendado ou (des)coberto. Tudo o que alcançou o status de patrimônio cultural – categoria também forjada naquele contexto – tornou-se patrimônio pela vontade dos homens.

Evidentemente, não tivemos a intenção de esgotar todas as frentes que a política patrimonial abrange, tampouco trazer casos exemplares para o dossiê. Buscamos, sim, enfatizar a complexidade do campo e, sobretudo, apontar o modo como integra a história política e social brasileira, recusando a abordagem empobrecedora que coloca o tema à parte, como assunto apenas técnico, para digestão por especialistas.

Desejamos uma boa e instigante leitura!

Referências

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CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.

CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Possíveis narrativas sobre duas décadas de patrimônio: de 1982 a 2002. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 35, p. 79-103, 2017.

CORRÊA, Sandra Rafaela Magalhães. O Programa de Cidades Históricas (PCH): por uma política integrada de preservação do patrimônio cultural (1973-1979). 2012. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Brasília, Brasília, 2012.

FALCÃO, Joaquim Arruda. Política cultural e democracia: a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. In: MICELI, Sérgio (Org.). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984.

FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ / IPHAN, 1997.

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LEAL, Cláudia; SORGINE, Juliana; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia. História e civilização material na Revista do Patrimônio. Revista do Patrimônio, Rio de Janeiro, n. 34, p. 167-198, 2012.

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VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana [online], v. 12, n. 1, p. 237-248, 2006. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2020.

Flávia Brito do Nascimento – Professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, obteve o título de mestre e de doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Realizou pós-doutorado na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. https: / / orcid.org / 0000-0002-6889-7614

Márcia Regina Romeiro Chuva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós- -doutorado na Universidade de Coimbra. Pesquisadora do CNPq. É professora associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).


CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.28, p.1-12, 2020. Acessar publicação original  [DR].

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Dimensões materiais da cultura escrita / Anais do Museu Paulista / 2020

Considerações sobre a materialidade da escrita e as três camadas de informação [1]

O texto é fruto de um trabalho intelectual manifesto sobre um suporte físico, da mesma forma como a realidade se expressa e se concretiza em ações materiais. As dimensões imaterial e material dos escritos são resultado de práticas, processos, métodos, saberes e técnicas. São indissociáveis e ambos decorrentes da existência humana. Desde o último quartel do século passado, estudiosos da cultura material têm destacado essa indistinção relativa aos objetos de uso cotidiano das sociedades, [3] na percepção de serem vetores e produtos das relações sociais. No que se refere aos textos, autores como Donald McKenzie, Armando Petrucci, e Francisco Gimeno Blay4 romperam com a perspectiva puramente técnica das disciplinas do campo da descrição material dos textos e de seus suportes. Nos seus estudos, os dados obtidos a partir dessas ferramentas eram aplicados na reflexão sobre inúmeras interfaces das relações sociais.

De fato, dados como a aparência, a constituição física ou a técnica de elaboração dos textos foram incorporados por autores de variadas áreas das humanidades no intuito de pensar suas condições sociais de produção, apropriação, circulação e preservação. Robert Darnton, Roger Chartier, Fernando Bouza Álvarez e Antonio Castillo Gómez,5 inspirados por Petrucci e McKenzie, consideram a associação entre as dimensões material e social suficientemente evidente, sendo prescindível a justificativa sobre suas opções metodológicas ou conceituais, embora estas sejam perceptíveis no conjunto de suas produções acadêmicas. Apesar dessas referências robustas, a perspectiva material da cultura textual não se consolidou em análises sistemáticas até a passagem do século XX para o XXI, sendo ainda hoje necessária a explicação sobre a vinculação do social com o material (e vice-versa) no campo de estudos sobre a produção e a circulação da escrita.6

É como procede James Daybell em trabalho consistente sobre a epistolografia na Inglaterra nos séculos XVI e XVII, dialogando com o campo de estudos textuais sintetizado por G. Thomas Tanselle como “processo social de publicação”.7 Preocupado com a percepção das realidades sociais nas quais os escritos existem, esse campo não descarta as diversas circunstâncias das interações físicas do sujeito com a obra, como os casos de autoria colaborativa a partir de anotações marginais ou a participação dos espaços de leitura e produção como condicionantes da experiência. Daybell tem como uma de suas principais ferramentas teórico-metodológicas a vinculação dos elementos materiais das cartas com as práticas sociais, culturais e intelectuais, dialogando com autores do campo da cultura material como Peter Stallybrass e com os estudos linguísticos, estilísticos e históricos. Dissociada dos métodos das antigas disciplinas, como a codicologia, a paleografia, a sigilografia e a diplomática, a materialidade ganha como atributo o adjetivo “social”. Nas palavras do autor, em referência direta a Donald McKenzie, a “materialidade se relaciona não apenas ao significado das formas físicas, mas também à materialidade social (ou ‘sociologia’) dos textos, que são as práticas sociais e culturais de manuscritos e impressos nos seus contextos de produção, disseminação e consumo”.8

Visto que as experiências de associação entre as dimensões materiais e sociais da escrita já vinham sendo praticadas há décadas por pesquisadores do campo da história da cultura escrita,9 o uso do conceito “materialidade social” nos suscita algumas reflexões acerca da existência de outros tipos de materialidade: sensorial, política, cultural, físico-química, utilitária, espacial… Os qualificativos podem ser inúmeros. As considerações serão sustentadas na ideia da categorização das camadas de informação contidas nos artefatos gráficos, conforme sugerido por Spiros Zervos, Alexandros Koulouris e Georgios Giannakopoulos.[10] De maneira geral, a primeira camada, seja de caráter textual ou visual, é aquela que está inscrita ou impressa sobre o suporte. É uma mensagem de captação direta, e sua compreensão depende da experiência intelectual do leitor / observador. A segunda constitui a forma do objeto e a sua configuração material, características determinadas pelas tecnologias aplicadas e pelos materiais usados para o registro da informação. Para compreendê-la, são necessários exames organolépticos e alguns instrumentos capazes de aumentar as percepções sensoriais do observador, para além dos conhecimentos sobre as tecnologias aplicadas. [11] A terceira camada de informação é a estrutura físico-química dos materiais usados (papel, tinta, couro, tecido etc.), podendo ser considerada o DNA – ou as “digitais” – do objeto, pois carrega dados sobre sua origem geográfica e datação, possibilitando autenticações, atribuições e estudos da passagem do tempo e da ação humana sobre o objeto.

A primeira camada de informação não contém apenas elementos de ordem mental ou intelectual, como se poderia supor. Da mesma forma estão envolvidos modos de percepção e recepção da mensagem, aos quais são agregados valores e sentidos que irão determinar as condições materiais da sua perpetuação no tempo. [12] A relação do corpo com a escrita necessariamente está incluída nessas experiências, não apenas quanto ao deslocamento físico e ao ambiente favorável a essa relação, mas também pelas eventuais repercussões sensoriais suscitadas no observador pelas palavras ou imagens. A visualidade, ou seja, a maneira como o objeto se apresenta ao mundo, que igualmente é um vetor de aproximação do corpo com o texto, é resultante das práticas criativas, das técnicas e das condições materiais pré-existentes. [13] Sensorial, visual e técnico, neste caso, poderiam ser atributos associados à materialidade.

Os elementos materiais são mais evidentes na segunda camada, mas nunca estão dissociados das relações sociais. Nela estão expressas as vinculações entre materiais, técnicas e processos de trabalho: por exemplo, a divisão de atividades em uma oficina ou entre oficinas, a correspondência e a hierarquização entre as diversas especialidades – como as funções do editor, tipógrafo, compositor, gravador e encadernador. Essas inter-relações nas atividades laborais foram tratadas através da materialidade da escrita em vários trabalhos de Darnton [14] ou, mais recentemente, no campo da bibliografia material, por Guadalupe Rodriguez Dominguez e por Ana Utsch, [15] pesquisadoras da área de filologia e de preservação de documentos gráficos. Com esses estudos, percebe-se a dimensão material do objeto como resultado das escolhas e possibilidades de interação das técnicas aplicadas, determinantes da sua tridimensionalidade, no caso dos livros e códices, à exemplo dos formatos e do uso de determinados dispositivos tipográficos. Em uma relação de vinculação interdependente, a própria seleção dos materiais usados é decorrente das capacidades técnicas e intelectuais pertinentes aos momentos históricos.

A vinculação interdependente está presente não apenas na etapa de produção, mas também nas de uso e preservação. O consumo dos objetos deixa marcas materiais impressas nos seus suportes, revelando as diferentes ações e intenções humanas. [16] A mesma atenção deve ser dada às modificações impostas aos objetos em processos de restauração, atualização ou renovação. Qualquer intervenção é movida por conceitos, necessidades, materiais e conhecimentos disponíveis; sobretudo, está vinculada às demandas dos grupos sociais envolvidos e a seus valores. [17] Uma vez mais está evidente que condições físicas registram, e portanto evidenciam, a relação do sujeito e de seu corpo com a escrita durante sua feitura, recepção e perpetuação.

A camada menos visível contém dados registrados nas estruturas físico-químicas constitutivas dos materiais; eles fornecem informações não evidentes sobre sua biografia, do nascimento até os momentos atuais. É a mais difícil de ser apreendida, pois está invisível a olho nu, mas é evidenciada quando os processos de degradação ocorrem e algumas funcionalidades do objeto começam a falhar. A composição química original e suas alterações revelam a deterioração do objeto, fator direta ou indiretamente relacionado aos processos de fabricação e às intervenções posteriores. De outro ponto de vista, a identificação dos índices de degradação do objeto levará a outras ações humanas, como a execução de medidas de engenharia ambiental para aplacar a inevitável decomposição do material.

As informações da terceira camada são reveladas em prática de pesquisa interdisciplinar, pois são necessários métodos das ciências da natureza para extrair seus dados, os quais serão interpretados conjuntamente com métodos das ciências humanas, pois muitas vezes o “visível” não é explicável pela experiência empírica, nem o “invisível” compreendido sem a interpretação histórica. Em análise paleográfica do manuscrito Discurso Histórico sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720, [18] descobriu-se um método ainda desconhecido de correção de letras e palavras já inscritas na folha: a aplicação de uma massa branca sobre o papel. A consulta a manuais de escrita e caligrafia publicados nos séculos XVII e XVIII não foi suficiente para identificar o procedimento, levando até mesmo a conclusões iniciais equivocadas. A revelação da técnica só foi possível com a descoberta dos materiais usados, por meio de microscopia ótica e de fluorescência de raios X (EDXRF): [19] tratava-se de uma massa feita com cera e pigmento branco de chumbo, combinação usada em uma pomada curativa de problemas de pele conhecida à época por “pomada de saturno”. Com esses dados, a pesquisa histórica localizou outras fontes usadas pelo autor gráfico do documento – as farmacopeias –, não só desvelando a invenção de um modo de fazer por um agente da escrita para solucionar determinado problema, mas também agregando outro dado informativo sobre sua cultura intelectual. Mais um exemplo de interação entre os métodos científicos é o empenho de químicos e cientistas da conservação em pesquisar sobre a constituição química das antigas tintas de escrita para compreender seu processo de deterioração; historiadores, por sua vez, os mesmos dados para interpretar as capacidades operativas dos sujeitos em determinadas épocas. A dificuldade encontrada pelos primeiros é a existência de uma grande variedade de combinações de materiais, sem dúvida resultantes de escolhas humanas feitas em determinados momentos. Aqui seria possível a separação entre materialidade “físico-química” e materialidade “social”? Algum objeto existe e sobrevive sem a ação humana em determinada situação histórica?

Quem definirá a abordagem das dimensões materiais do objeto é o sujeito: o investigador, o cientista, o poeta. Para quê qualificar a materialidade se a dissociação entre material e social é impossível? Algumas das discussões sobre as relações entre texto, matéria e vida social são perceptíveis nos artigos deste dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita. Os textos estão reunidos em três grupos: a) relação física entre leitores e escrita; b) recursos tipográficos como conformadores de leitura; e c) opções materiais para transmissão textual.

O artigo de abertura é de Rafael Climent-Espino. Em “Objetos-livro e escrituras expostas: novas paisagens textuais e literárias na América Latina e Espanha”, o autor discute os limites das visões sobre a materialidade dos textos com base na distinção necessária entre objetos-livro e livros-objeto. Climent-Espino parte da ideia de que não existe escrita sem seus suportes materiais; desta forma, não há texto sem objeto, e a percepção do conteúdo depende dessa vinculação. No entanto, se desde a Antiguidade o texto literário tem a capacidade de existir em suportes diferentes, como pedra, cerâmica, tecidos, ossos etc., a primazia do formato códice e do suporte papel reduziu a nossa compreensão, forçando uma separação entre objeto-livro e livro-objeto. A surpresa do artigo de Rafael Climent-Espino reside em defender a capacidade literária contemporânea de existir fora do formato de códice sem perder o estatuto de literatura. Suas explorações apresentam objetos criados para transmitir texto e, portanto, passíveis de serem considerados “livros” na acepção mais ampla do termo. São, na verdade, “objetos-livro” com formas materiais diversas, como caixa de fósforos, alimentos ou moradias, e convocam o leitor a fazer uma leitura dinâmica e multidirecional. Em algumas dessas experiências, a leitura exige não a manipulação do objeto, mas do próprio corpo.

O “objeto-livro”, ou a escrita fora do códice, já existia no século de ouro espanhol. Bules, copos, taças, lamparinas, sopeiras, capacetes, armaduras, joias, colares, lenços, vestidos, calções, sapatos, edifícios, paredes e tumbas, sem esquecer os papeis, são testemunhos dessa prática. Naquele momento, cancioneiros ampliaram o conceito de suporte do texto e, com isso, aproximaram a cultura textual da cultura material. “Poesía fuera del cancionero: la inscripción de lo cotidiano y lo sublime”, o artigo de Ana María Gómez-Bravo, nos convida a perceber a íntima relação entre cultura escrita, material e visual ao buscar as conexões existentes entre texto, imagem, objetos e sensações corporais na poesia do século XV. Suas reflexões destacam a capacidade do texto de representar e propagar sensações provocadas por objetos e, por outro lado, modificar o estatuto simbólico de artefatos com a simples presença da escrita. Além dos numerosos exemplos de relações estabelecidas entre objetos e lugares através dos elementos gráficos, outros dois enfoques da cultura escrita destacados pela autora não podem deixar de ser mencionados. Um deles é a capacidade técnica plural dos profissionais da escrita para lidar com suportes tão diferentes quanto o vidro, o metal, o papel e a pedra; o outro é a promoção do livro-objeto a veículo de fortalecimento de relações sociais. Gómez-Bravo discute alguns exemplos de como o uso de elementos gráficos – como os monogramas reais em objetos privados de diversas naturezas (arquitetônica, decorativa ou utilitária) – revelava relações de fidelidade entre os membros da nobreza. O termo “bibliopolítica” é usado pela autora para se referir a quando os livros eram o veículo dessa prática social.

O fortalecimento de relações sociais entre a nobreza através dos livros é perceptível nas encomendas de manuscritos iluminados – sustentadoras da produção, comercialização e preservação desse tipo de obra20 – que posteriormente passaram a fazer parte de coleções bibliográficas reais. Este é o tema do artigo “Das mãos aos cofres: reflexões sobre transformações materiais e transferência de propriedade de livros devocionais do tardo-medievo”, de Márcia Almada. Após discorrer sobre circunstâncias da produção de códices iluminados na região da Europa central, a autora apresenta exemplos de como os objetos eram transformados materialmente para atender às demandas dos novos proprietários, cujas marcas distintivas de propriedade podem ser incluídas no conceito de “bibliopolítica” usado por Ana Gómez-Bravo. As galerias da Biblioteca de Mafra, em Portugal, são apresentadas para se compreender como a localização física e as condições de acesso no início do século XIX, além das alterações pontuais feitas ao longo do tempo, são elementos concretos para refletir sobre as diversas atribuições de sentido e possibilidades de experiências sensoriais do patrimônio bibliográfico. Afinal, como já afirmava Armando Petrucci, os modelos de bibliotecas acompanham os modos de ler e escrever,21 e a disposição espacial das estantes que guardam os livros revela muito sobre os modos como são utilizadas.

O segundo grupo de artigos discute a utilização dos recursos tipográficos como conformadores da leitura. Em “A primeira página da história: configuração material e funções da folha de rosto em livros de história alemães do século XVIII”, André de Melo Araújo reforça o coro de Gómez-Bravo e de Almada na perspectiva bibliopolítica sobre as ornamentações e técnicas aplicadas nos revestimentos externos do códice. Mas esse é apenas o argumento introdutório, pois o artigo está interessado em destacar a importância da folha de rosto como testemunha das inúmeras problemáticas envolvidas no trabalho editorial e a função desse dispositivo tipográfico de qualificar a obra comercial, social e intelectualmente. O historiador elucida, com exemplos concretos, a maneira pela qual as formas materiais dos livros impressos serviam para reforçar os vínculos do livro-objeto com a tradição cultural à qual se referenciava e com as práticas de leitura, pois formatos, dimensões e estilos tipográficos se adaptavam às demandas variadas dos consumidores, sendo estas escolhas determinadas pelo editor ou pelo autor. Araújo articula a análise visual, material e social do tratamento de obras impressas da era moderna, amparada pelas teorias que apreendem as escolhas técnicas e materiais como dimensões cultural e histórica. Predominam as referências bibliográficas de tradição alemã, proporcionando a oportunidade de ampliação da experiência de leitura no campo da história do livro, firmada predominantemente no viés francês ou britânico / estadunidense.

Kleber Clementino, em “Mina secreta, aríete forçoso: o livro na historicização da Guerra Holandesa (1625-1660)”, igualmente investiga os livros de história. No entanto, o foco dirige-se para as publicações sobre a Guerra Holandesa saídas de prelos da Península Ibérica. Sua problemática refere-se à utilização do gênero histórico como meio de propagar os relatos sobre a guerra, ao uso do livro como um “artefato bélico metafórico” e à percepção da atividade editorial como um evento da guerra. Essa batalha foi travada entre a fidalguia militar ibérica que retornava à Europa e a elite vinculada aos trópicos; do mesmo modo, ela existiu entre dois gêneros textuais: a relação de sucessos e a literatura histórica. Os conflitos foram tipificados materialmente pela concorrência da veiculação de panfletos ou de livros, e o uso desses dois produtos tipográficos revelou a descontinuidade não só de fórmulas discursivas, mas igualmente de forças políticas, favorecendo a promoção socioeconômica dos grupos sociais em ascensão nos domínios ultramarinos. O livro garantia a perpetuação duradoura dos relatos, a circulação mais restrita aos círculos elitistas da sociedade e a formação de camadas simbólicas. No entanto, ao requerer um juízo político e submeter-se à censura, o texto ou o autor poderiam ser envolvidos em uma disputa editorial, impedindo a impressão ou a circulação das obras.

O tema da guerra editorial também é explorado por Verônica Calsoni Lima em “Edição & censura: a materialidade dos panfletos de Sir Roger L’Estrange no início dos anos 1660”. A batalha descrita nesse caso se dá entre um escritor e censor e seus opositores. A personagem, em associação com seu editor, manejava os recursos tipográficos com habilidade para enfatizar passagens e mover as emoções do leitor no decorrer do texto. Por meio do exame textual e material das obras de L’Estrange, o artigo é construído sobre a perspectiva da dupla atuação literária da personagem e sua ascendência sobre as escolhas tipográficas das publicações. A manipulação desses dispositivos, na opinião da autora, facultava um trânsito entre as formas de comunicação textual, visual e oral, impactando a absorção do conteúdo discursivo usado no embate político-religioso. Outro trânsito de interesse é o deslocamento do corpo no exercício das atividades profissionais. Avaliando a instalação do escritório de L’Estrange na região londrina onde se aglomeravam as tipografias no século XVII, a autora procura compreender a relação física entre o censor e seus investigados e entre o autor e seu editor. Ademais, destaca a necessária interação entre condições de produção do autor, análise material e visual, e gênero textual, além de tecer considerações sobre as funções de autor e censor.

O terceiro tema do dossiê refere-se à disponibilidade de materiais e técnicas para a transmissão textual. Em “Um texto setecentista em três séculos: os conteúdos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de João Antonio Cabral Camello (XVIII-XX)”, Jean Gomes de Souza traça a biografia do relato textual sobre uma viagem fluvial de Sorocaba (SP) a Cuiabá (MT) ocorrida no ano de 1727. A história do escrito percorre o período de 1734, ano da primeira versão conhecida, a 1953, quando ressurge em obra organizada por Afonso d’Escragnolle Taunay – Relatos monçoeiros destaca-se entre as demais publicações do relato por ter se tornado referência para as publicações subsequentes no século XX. A compreensão das condições de produção de cada uma das edições é fundamentada na biografia de seus produtores, impedindo o deslocamento da obra textual das situações históricas nas quais é concebida, apropriada e preservada. A noção de versão utilizada pelo autor permite perceber o texto como uma obra em aberto, estando sujeita a desmembramentos, refazimentos e reajuntamentos que darão ao conteúdo condições diferentes de fruição e uso. Os métodos e as preocupações de disciplinas como a cultura material, cultura escrita, paleografia e bibliografia material são coordenados para perceber o texto escrito como representação histórica, social, linguística e material.

A questão material é evidente nos arquivos quando se lida com uma grande massa documental produzida pela administração pública dos Estados modernos. Diante dessa evidente e copiosa matéria, poucos foram os que se perguntaram: de onde vinha todo esse papel? Havia uma regulação do comércio desse material? Havia controle da administração quanto ao envio de papel para suas colônias? As tintas e as penas eram produzidas localmente ou compradas? Quem detinha esse saber: todos os capazes de escrever ou somente os especialistas? Quem era responsável pela produção de livros de notas, anotações e registros? E quem encadernava os “papéis vários”? Há muito a ser pesquisado sobre as atividades escriturárias e os saberes envolvidos além da leitura e escrita. Com um olhar de reconhecimento sobre as dimensões materiais das atividades humanas, Régis Quintão percebeu na documentação do Erário Régio do Arquivo Histórico do Tribunal de Contas de Portugal informações substanciais para iniciar um caminho para responder a algumas dessas questões. Em “‘Papel, penas e drogas para tinta’: materiais de escritório na administração diamantina no século XVIII”, o autor se debruça sobre registros textuais acerca dos insumos utilizados para a escrita administrativa. Como destacado, embora de uso corrente e necessário para as práticas administrativas, sociais e culturais, o dispendioso papel raramente é citado nas pesquisas sobre o comércio internacional, tampouco nos relatos de viajantes – talvez por ser óbvio demais. Mas, como disse José Newton Coelho Meneses,22 não se pode escusar de dizer o óbvio. Quem se interessa por essas questões encontrará algumas surpresas no artigo de Régis Quintão. São perguntas possíveis de marcar uma agenda de pesquisas necessárias no campo das dimensões materiais da cultura escrita.

Uma constante discussão no campo acadêmico, desde a predominância da digitalização de acervos como política de preservação e difusão de conteúdo, é referente à restrição do acesso presencial e seu impacto na análise material do objeto. Essa questão se tornou mais evidente durante o ano de 2020, quando a crise sanitária provocada pelo Sars-CoV-2, o novo coronavírus, impediu a presença física de pesquisadores nos acervos. A principal pergunta é: como analisamos materialmente um artefato através de imagens digitalizadas? Sem negar que o contato com o objeto é propulsor de questões, e levando em conta as experiências dos artigos publicados neste dossiê, pode-se desenhar algumas possibilidades. Quando a linha de estudo é de reflexão teórica / conceitual acerca das possibilidades materiais da expressão humana e da fruição de produtos, o contato físico com o objeto é voluntário; portanto, o uso de registros visuais dos artefatos não é proibitivo. O suporte teórico definirá as problemáticas de investigação. É o caso dos estudos de Rafael Climent-Espino, Ana María Gómez-Bravo e Kleber Clementino, que observam a existência de textos poéticos e narrativos em suportes materiais diferentes. Já Régis Quintão faz uso das fontes documentais para pesquisar sobre as possibilidades materiais da escrita. Nesse caso, os inventários, livros de registros de compras e livros de receita e despesa são ótimas fontes sobre as condições materiais existentes em determinadas épocas.

Outro caminho de pesquisa é aquele percorrido por André Araújo, Verônica Calsoni e Jean Gomes, firmado na análise visual para captar as condições materiais das escolhas técnicas e funcionais de agentes responsáveis pela produção textual, mesmo que eles tenham tido a oportunidade anterior de estar diante dos artefatos estudados e possivelmente tenham feito sua própria documentação por imagem. Usar a visualidade como um dado material exige do pesquisador um conhecimento aprofundado dos processos técnicos e das condições de produção para enxergar no produto final as ações implementadas e nelas encontrar as informações perseguidas.

Mais uma oportunidade de extrair dados das condições materiais de um artefato é a consulta aos catálogos e às fichas descritivas de bibliotecas, conforme feito por Márcia Almada. Segundo Armando Petrucci,23 durante o século XIX as bibliotecas nacionais viraram laboratórios de investigação no campo da cultura escrita. Nas minuciosas descrições feitas a partir dos métodos da bibliografia material, resgatam-se informações consistentes sobre aspectos técnicos e constitutivos, proveniência, posse e intervenções sofridas ao longo do tempo. A utilização e a elaboração desses catálogos devem ser estimuladas. Por outro lado, pesquisas recentes têm gerado trabalhos monográficos sobre objetos em particular e podem ser usados em análises paradigmáticas. A consulta às áreas dedicadas à produção de conhecimento sobre os aspectos constitutivos dos objetos pode ser um recurso extraordinário. Alguns centros de pesquisa disponibilizam resultados de projetos e de exames voltados para a análise material, como no caso do estudo sobre a cor nos manuscritos medievais portugueses realizado pelo Laboratório Associado para a Química Verde (LAQV-Requimte), formado por um grupo interdisciplinar de químicos e cientistas da conservação,24 e no caso do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, que recentemente disponibilizou sua base de dados sobre manuscritos medievais, com acesso aberto às fichas científicas dos manuscritos.25 Os relatórios de tratamentos de restauração também fornecem informações valiosas sobre a biografia dos objetos e podem ser usados como fonte.

O conjunto de artigos presentes no dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita nos apresenta resultados de reflexões e de pesquisas recentes sobre a presença material da escrita na história e na contemporaneidade. Da mesma forma, nos convida a visitar os suportes metodológicos dos autores vinculados à teoria que defende a materialidade como requisito fundamental para a existência dos textos e para a criação de condições específicas de recepção da mensagem. Como foi discutido, as três camadas da informação são interligadas, e não há como dissociar o material do mental ou do social, pois o processo criativo humano se concretiza concomitantemente nesses domínios. Torna-se desnecessário, portanto, qualificar o substantivo “materialidade”.

Notas

  1. Agradeço a José Newton Coelho Meneses pela parceria acadêmica que tem permitido o aprofundamento dos questionamentos. Estas reflexões são fruto das pesquisas realizadas no âmbito do Convênio de Cooperação Acadêmica entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a University of West Attica (Uniwa) e do projeto Capes Auxpe nº 585 / 2015.
  2. Professora do Curso de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes da UFMG. Pesquisadora do projeto “A materialidade dos documentos pintados, entre a história e a preservação” (Capes Auxpe nº 585 / 2015).
  3. Alguns autores que devem ser mencionados são Ulpiano Bezerra de Meneses, Marcelo Rede, Daniel Miller, Arjun Appadurai, Peter Stallybrass, Amanda Vickery e Leila Algranti.
  4. McKenzie (1999); Petrucci (1999); Gimeno Blay (1986).
  5. Darnton (2009, 2012); Chartier (2007); Bouza Álvarez (2001); Castillo Gómez (2002).
  6. Recentemente Álvaro Antunes realizou uma breve discussão conceitual sobre o uso do termo “cultura escrita” e “cultura do escrito”. Em ambas as definições, no entanto, destaca que, para a história, os “efeitos sociais, políticos e culturais” são o que se busca, extrapolando a perspectiva de tecnologia da informação (Antunes, 2020, p. 623).
  7. Tanselle apud Daybell (2012, p. 15). No original: “the social process of publication”.
  8. Daybell (2012, p. 15, grifo nosso). No original: “materiality relates not only to the significance of physical forms, but also to the social materiality (or ‘sociology’) of texts, that is the social and cultural practices of manuscript and print in the contexts in which they were produced, disseminated and consumed”.
  9. Antonio Castillo Gómez (op. cit., p. 20) define o campo da “história social da cultura escrita” relacionado a três conceitos-chave – os discursos, as práticas e as representações – e afirma que o que a distingue de outras formas de fazer história é a “importância outorgada à materialidade dos objetos escritos” (no original: “es la importância outorgada a la materialidade de los objetos escritos”). Para uma apresentação mais ampla do campo da cultura escrita e da dissociação entre material e social, ver Chartier (op. cit.).
  10. Zervos; Koulouris; Giannakopoulos (2011).
  11. Cf. Almada (2018).
  12. Cf. Petrucci, op. cit.
  13. Cf. Elkins (2008).
  14. Cf. Darnton (2009, 2012).
  15. Rodríguez Domínguez (2018); Utsch (2020).
  16. Cf. Correia (2015).
  17. Cf. Campos (2019); Castro (2012).
  18. Discurso… ([1720?]).
  19. Almada; Monteiro (2019). Exames foram realizados no Laboratório da Ciência da Conservação da Escola de Belas Artes da UFMG pelo professor João Cura D’Ars e pela técnica Selma Otília Gonçalves.
  20. Para um estudo mais aprofundado sobre a manutenção da produção de manuscritos iluminados até a era moderna, ver Almada (2012).
  21. Petrucci, op. cit., p. 283.
  22. Meneses (2017)
  23. Petrucci, op. cit., p. 287.
  24. O laboratório tem inúmeras publicações no campo, entre elas a de Nabais et al. (2020).
  25. Cf. Morais (2017).

Referências

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Pintura de História no Museu Paulista / Anais do Museu Paulista / 2019

O dossiê “Pintura de história no Museu Paulista”, parte das ações do Projeto Temático Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento, [2] insere-se em um esforço contemporâneo para que se expandam os estudos relativos à produção artística voltada às representações do passado, tendo em vista sua inescapável relevância para a formulação de imaginários sociais. Ainda muito negligenciada em função do desdém advindo dos postulados teóricos e críticos estabelecidos pelas correntes de vanguarda do século XX, a pintura de história da segunda parte do Oitocentos e das primeiras décadas do século XX foi tornada opaca nas grandes narrativas historiográficas sobre a arte europeia. Empalideceu-se, assim a compreensão dos desdobramentos das vertentes neoclássica e romântica da primeira metade do século XIX, motivo pelo qual restam notabilizadas, no caso da pintura de história francesa, sobretudo as obras de David, Gérard, Gros, Gericault e Delacroix.

No entanto, a pintura de história produzida a partir da segunda metade do Oitocentos vem, lentamente, voltando a ser objeto de estudos alentados, bem como de políticas curatoriais em museus que têm estimulado tanto a aquisição de telas quanto a restauração de acervos antes sepultados em reservas técnicas. Disso é exemplo o notável esforço do Musée d’Orsay em reverter anos de prevalência de interesse na pintura impressionista e pós-impressionista, alheias à temática histórica, empenho esse que resultou na restauração de pinturas históricas como a gigantesca tela de Auguste Glaize denominada Les femmes gauloises: épisode de l’invasion romaine (4,24 x 6,51 m), que, concluída em 1851, permaneceu enrolada por mais de 150 anos até ser restaurada em 2016, quando voltou finalmente a ser exibida, o que não acontecia desde o Salão de 1852. O mesmo museu dedicouse à aquisição e à exibição de pinturas históricas de artistas centrais para o sistema acadêmico francês, como Alexandre Cabanel, sub-representado nas coleções institucionais, o que levou tanto à compra de sua obra Le paradis perdu (1867), em 2017, quanto à transferência da tela Thamar (1875), após um depósito de cerca de 90 anos em Nice.

A gradual reversão do pouco interesse pelas pinturas de história vem ganhando espaço mesmo em museus históricos, nos quais tais obras de arte desempenham um papel central nas narrativas visuais formuladas desde a primeira metade do século XIX. A exposição Louis-Philippe et Versailles, [3] ocorrida entre 2018 e 2019, voltou-se ao processo de conversão do símbolo maior do Antigo Regime em museu histórico em 1837, no qual a pintura de história teve papel central. A imensa Galeria das Batalhas, quase sempre preterida pelo público – e pela divulgação oficial do Palácio de Versalhes – em prol da Galeria dos Espelhos, foi um dos temas centrais dessa exposição, que abordou ainda a constituição das Salas das Cruzadas, do Consulado e do Império, da Criméia e às dedicadas à África, em que está situada a tela Prise de la Smalah d’Abd-el-Kader par le duc d’Aumale à Taguin, 16 mai 1843, de Horace Vernet (concluída em 1845), com seus monumentais 4,89 x 21,70 m. Em todas essas salas, as pinturas de história foram o instrumento decisivo para que se pudesse construir uma narrativa visual da história da França, que se estendia desde a constituição do reino merovíngio até as conquistas ultra mediterrâneas. Tal narrativa, cuja ambição maior era ressignificar o palácio e consagrá-lo à memória da formação da nação francesa, tornava-se ainda um instrumento de reconciliação política nacional sob a Monarquia de Julho, que reunira ali a quase totalidade das pinturas de grande formato encomendadas ou adquiridas por Napoleão, que passaram a habitar o palácio junto com dezenas de outras dedicadas a celebrar “todas as glórias da França”.

Essa retomada de interesse pela pintura de história na França é verificável também na obra referencial de Pierre Sérié, que manifesta sua imensa vitalidade na segunda metade do século XIX, [4] apesar da historiografia comumente conceder espaço para a emergência do impressionismo, de um circuito comercial fortemente independente das encomendas públicas e enfatizar a decadência do sistema acadêmico. Sérié demonstra como as tensões que atravessavam a produção de pintura de história na primeira metade do século XIX, devido aos embates entre o Neoclassicismo e o Romantismo, se renovam nas décadas seguintes em função dos embates gerados pelas ideias renovadoras e anticlássicas de Gustave Moreau em face da plástica rafaeliana de Cabanel ou de Bouguereau, além da progressiva emergência da pintura decorativa mural como forma de renovação das representações do passado que retira das telas imensas a primazia de suporte visual para os discursos sobre o passado. Também Zsuzsanna Tóth, abordando a produção húngara da segunda metade do século XIX, reforça essa convicção de vitalidade da pintura de história no período, em função das numerosas encomendas a pintores de história, como Bertalan Székely, Viktor Madarász e Gyula Benczúr. [5] Tal demanda por produção de obras que promovessem a consciência nacional esteve fortemente associada aos embates pela autonomia política, que acabaram por resultar na implantação da monarquia dual com os austríacos em 1867 e na consagração de Budapeste como a outra capital dos Habsburgos. O célebre Mihály Munkácsy pode ser considerado a culminância desta intensa produção de artistas húngaros, tendo sido tanto ser um píncaro da evocação nacionalista magiar, como na tela Honfoglalas (Conquista Húngara, de 1893), que adorna o Parlamento de Budapeste, como o autor (não austríaco) da pintura Apotheose der Renaissance (Apoteose da Renascença, de 1890), situada sobre a escadaria principal do Kunsthistoriches Museum, da velha capital rival, a austríaca e germânica Viena.

Micah Joseph Christensen igualmente sinaliza como a produção de pintura de história na Espanha manteve seu vigor na segunda metade do Oitocentos, [6] período em que as encomendas públicas passaram paulatinamente a competir com um mercado privado, também voltado ao consumo de obras acadêmicas. O grande ciclo de exposições ocorridas no México na passagem dos séculos XX e XXI, denominado Los pinceles de la história, foi concluído em 2003 com a mostra La fabricación del Estado, 1864-1910, em que também se evidenciou a intensa produção de pinturas de história de vertente acadêmica durante a segunda metade do século XIX, desencadeada sob o Império de Maximiliano de Habsburgo e se estendendo sob a República Restaurada e sob o Porfiriato. Tal produção, contudo, permanece ainda opaca diante das sempre lembradas representações do passado geradas pelo muralismo moderno mexicano de Rivera, Siqueiros e Orozco.

A reflexão sobre a pintura de história no Brasil tem procurado demonstrar como, apesar da mesquinhez do mecenato imperial, houve uma progressiva expansão dessa produção desde a implantação do ensino de pintura de história pela Academia Imperial de Belas Artes. As viagens de formação complementar à Europa conectaram nossos pintores aos embates e às renovações mencionadas, às práticas de apropriação e criação que presidiam a formação nas academias e à pulsação das encomendas públicas memoriais na segunda metade do século XIX na Europa, bem como à frustração do retorno e ao esforço de vários desses pintores egressos em estimular uma demanda oficial, que teria seu canto do cisne no estado de São Paulo. Trata-se, ainda, de um desafio historiográfico que colide com o desapreço do cânon crítico modernista, que considera tradicionalmente a pintura de história como uma etapa anterior da pintura efetivamente nacional, muito embora, como frisou Leticia Squeff, o debate de uma “Escola brasileira” estivesse posto claramente desde 1879 e mesmo por Gonzaga Duque em A arte brasileira, de 1888.[7]

A expansão das reflexões sobre a produção de pintura de história no Brasil sobre a segunda metade do século XIX teve certamente uma inflexão com os trabalhos de Jorge Coli, sobretudo a partir de sua tese de livre-docência sobre Victor Meirelles.[8] Nela, Coli evidenciou a necessidade de estudar-se a produção acadêmica nacional dentro de seus sistemas de referências e modelos artísticos, de modo a que fossem percebidas as práticas de apropriação e de recriação realizadas por artistas brasileiros em relação a pintores franceses e italianos, a exemplo da rede de referências que criou em torno da Batalha dos Guararapes (1879). Sua comparação entre a Primeira Missa no Brasil (1861), de Meirelles, e a Première messe en Kabylie (1854), de Horace Vernet, esta pertencente ao Museu Cantonal Belas Artes de Lausanne, marcou época, tanto por evidenciar as aproximações, imediatas, quanto pela abordagem de suas diferenças, que distinguiu e qualificou a criação de Meirelles. Tal perspectiva relacional, que pode se referir tanto a modelos europeus quanto àqueles ligados à Academia no Rio de Janeiro, reinsere a produção de pintura história em seus circuitos de formação e produção, permitindo a compreensão da historicidade de uma vertente artística condenada pela crítica modernista à condição de mera cópia e, por conseguinte, ao ostracismo memorial.

A musealização tardia da pintura de história no Brasil – país que não abrigou durante o Império um museu a que se destinassem as obras para exibição pública – torna a mesma um tema de grande interesse nos estudos sobre o período republicano. Nesse sentido, o acervo do Museu Paulista configurou-se como um conjunto de obras privilegiado para a expansão de pesquisas sobre a pintura de história no país. A instituição foi não só o destino de telas pré-existentes à sua abertura em 1895, como a célebre Independência ou Morte (1888), mas de muitas outras adquiridas pelas autoridades republicanas para a expansão da Seção de História ou ainda daquelas encomendadas para a decoração do edifício, já sob a gestão de Afonso Taunay (1917-1945), em que constituíram o projeto narrativo visual mais ambicioso de São Paulo àquele tempo.[9] A gestão Taunay jamais encomendou telas de grande formato, mas mobilizou artistas cariocas, fluminenses e estrangeiros para adornar espaços parietais que restavam vazios desde a finalização do prédio em 1890. Tal processo, análogo ao que Sérié sinaliza para a expansão da pintura decorativa na França, é, no entanto, inversa à consagração de Munkáksy em Viena, pois se lá a velha capital era o destino do artista vindo da Hungria e da emergente Budapeste, aqui eram os artistas da Academia da velha Corte, como Henrique Bernardelli e Amoedo, a colaborar com a narrativa exaltadora na pujante e ainda provinciana capital da cafeicultura sob a Primeira República.

Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses inaugurou uma série de estudos voltados a esse acervo de pinturas de história com sua abordagem da tela Fundação de São Vicente (1900), de Benedito Calixto. Atendo-se ao complexo jogo de oposições formais manejado pelo pintor, Meneses atentou para a necessidade de se compreender uma pintura histórica não apenas como forma, mas como expressão de ideia sobre o passado – nesse caso, a conciliação política que funda a experiência urbana. Tal expressão ganhará dimensão imaginária ainda mais ampla, em função de sua inserção em um contexto museal. Já Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho refletiram sobre as pinturas que representavam ruas da cidade encomendadas por Taunay para serem exibidas no Museu. A princípio apenas representações de paisagens urbanas, as autoras demonstraram como tais pinturas sofreram muitas intervenções em relação às fotografias em que os pintores se baseavam, em prol da construção de uma visualidade correta do passado da cidade e, portanto, de sua história.[10] Construções, calçamentos e transeuntes deviam ser figurados segundo um decoro pautado pelas ambições de Afonso Taunay, que imaginava a cidade mais aburguesada do que as fotografias indicavam. Esse caráter decoroso que presidia a pintura de história, normalmente destinada à celebração, à pedagogia cívica ou religiosa, foi amplamente examinado nos estudos de Claudia Valladão de Mattos sobre o Independência ou Morte, e naqueles voltados às representações de bandeirantes realizados por Maraliz Christo e Ana Claudia Brefe, em que as interferências de Taunay se fizeram mais uma vez muito presentes.[11] Detive-me também na formulação da iconografia bandeirante, por meio da abordagem de telas e esculturas adquiridas para o Museu Paulista tanto na gestão de Hermann von Ihering quanto na de Afonso Taunay, em que se deram práticas de apropriação do modelo de representação corpórea do Rei estabelecida por Hyacinthe Rigaud para o enaltecimento desses sertanistas.

Oseias Singh Junior recuperou, em metodologia pioneira, a fortuna crítica de Partida da Monção (1897) de Almeida Junior, bem como procurou compreender essa e outras pinturas do artista no trânsito de modelos franceses da década de 1880, num arco que se estende de Léon Lhermitte a Puvis de Chavannes.[12] Também levando em conta as relações entre a produção de pintura de história, a pintura de costumes e o Realismo e Naturalismo franceses presentes nas pinturas de Almeida Junior, Fernanda Pitta estudou a mesma tela, detendo-se ainda em compreender a política de aquisição de pinturas em suas conexões com o pensamento de personalidades políticas e intelectuais paulistas da época, especialmente Cesário Motta Junior.[13] Já Caleb Faria Alves atentou para a progressiva aproximação de Benedito Calixto em relação ao Museu Paulista, cujas obras passaram de ofertadas a encomendadas para o mesmo a partir dos primeiros anos do século XX, situação que lhe garantiria a condição de pintor de história, e a abertura de oportunidades para outros edifícios públicos, como a Bolsa de Santos.[14]

As questões metodológicas afeitas às abordagens de gênero também se fizeram presentes no estudo das pinturas de história do Museu, como na abordagem de Ana Paula Cavalcanti Simioni sobre o retrato da Imperatriz Leopoldina (1922), de Domenico Failutti, cuja figuração de mãe é em tudo oposta à tela Sessão do Conselho de Estado, de Georgina de Albuquerque (também de 1922), pertencente desde então ao Museu Histórico Nacional e que a representa como uma líder.[15]

Este dossiê apresenta novos estudos que, alimentados por muitas das perspectivas metodológicas aqui assinaladas, expandem o conhecimento e as formas de abordagem de telas tão conhecidas, em função de sua exaustiva reprodução, quanto pouco estudadas. Carlos Lima Junior e Pedro Nery escrevem um artigo em parceria, abordando dois momentos do Salão Nobre do Museu Paulista, célebre por acolher a tela Independência ou Morte. A mesma sala, no entanto, acolheu muitas outras pinturas, que se sucederam em duas fases opostas quanto à narrativa da história paulista e nacional, incluindo-se os sentidos da Independência. Na primeira fase, o artigo apresenta a hipótese de que as pinturas Caipira picando fumo (1893) e Amolação interrompida (1894), pertencentes ao acervo do Museu Paulista até 1905, fizeram pendant com a tela de Pedro Américo, criando uma sinergia com a representação do povo paulista que assistia ao Grito, figurado em Independência ou Morte. Na segunda fase, o artigo apresenta a inversão dessa narrativa em direção à prevalência dos personagens nacionais vinculáveis aos destinos da nação, por meio das encomendas de episódios e próceres da Independência aos pintores Oscar Pereira da Silva e Domenico Failutti.

Eduardo Polidori volta-se, em seu artigo, à já mencionada tela Fundação de São Vicente (1900), de Benedito Calixto, de modo a compreender os sentidos de sua encomenda pelas elites do litoral de São Paulo que compunham a Sociedade Comemoradora do 4º Centenário da Descoberta do Brasil. Tratava-se de uma tela que, afinal, se referia a um evento que ocorrera em 1532 e não em 1500. A tumultuada transferência definitiva para o acervo do Museu Paulista, visto que Calixto não recebera o valor acordado para a realização da pintura, e as razões que levaram à sua escolha para figurar em salas durante as gestões von Ihering e Taunay são também exploradas por Polidori, que oferece estimulantes hipóteses tanto para sua justaposição a acervos geológicos, quanto para sua associação à cartografia e retratos históricos.

Outra tela sobre origens urbanas – a Fundação de São Paulo (1907), de Oscar Pereira da Silva – foi abordada por Michelli Cristine Scapol Monteiro. Inspirada, como demonstra a autora, na pintura Primeira missa no Brasil, de Meirelles, a tela foi pintada por Pereira da Silva como uma aposta para ampliar sua inserção no círculo de artistas consagrados da florescente metrópole da cafeicultura. Representando uma conciliação entre índios e colonizadores mediada pela fé, a tela foi rejeitada, em um primeiro momento, pelo então Presidente do Estado, Jorge Tibiriçá Piratininga, comprometido com o avanço da fronteira cafeicultora no Oeste do estado, além de ser incômoda ao diretor do Museu Paulista, von Ihering, nada tolerante em relação à resistência indígena. Contrariando interpretações oficiais, Monteiro revela que a tela foi adquirida para a Pinacoteca do Estado e não para o Museu Paulista, que acabou por receber a tela por transferência apenas em 1929, apesar do pouco apreço de Afonso Taunay pela mesma e por sua temática jesuítica. A autora ainda descortina diversas formas de apropriação social da tela após sua transferência para o Museu Paulista, instituição que certamente favorecia sua compreensão como imagem legítima sobre a fundação da cidade, apta, portanto, a ser reproduzida de maneira monumentalizada, especialmente até o IV centenário de São Paulo, comemorado em 1954.

O dossiê é finalizado pelo artigo de Ana Paula Nascimento, dedicado ao conjunto de pinturas de José Wasth Rodrigues disposto no peristilo do Museu e voltado à representação daqueles que eram considerados, por Afonso Taunay, como protagonistas do processo de ocupação da América Portuguesa, o rei Dom João III, o donatário da capitania de São Vicente Martim Afonso de Souza (ambos de 1932), o cacique Tibiriçá e seu genro, o português João Ramalho (concluídos em 1934), esses últimos acompanhados de seu neto e filho. Desencadeada pelo IV centenário de São Vicente (comemorado em 1932), a encomenda dessas obras permitiu a Taunay estabelecer o início de sua narrativa histórica, que seria concluída no Salão Nobre com a tela Independência ou Morte e as pinturas encomendadas para as comemorações de 1922, objeto do primeiro artigo desse dossiê.

Esses estudos, derivados em sua totalidade de pesquisas realizadas em âmbito de mestrado e estágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo, materializam um esforço institucional de convergir metodologias, aportes teóricos e grande empenho em pesquisa documental para que se compreenda a pintura de história no Museu Paulista de maneira multifacetada e atenta ao circuito curatorial de obras de arte em um museu histórico. Produção, aquisição, exibição e difusão são, portanto, eixos pelos quais é possível perceber não apenas a relação criativa das pinturas com seus modelos pictóricos, mas com a formação de artistas, as demandas nem sempre plácidas dos encomendantes, as interações com os debates historiográficos que orientam escolhas de representação, seu agenciamento em salas nas quais as semânticas dependem dos arranjos e justaposições expográficos, bem como com as fascinantes e infinitas práticas de apropriação de pinturas musealizadas, caminhos pelos quais se formaram e se ainda formam os imaginários que devemos desafiar.

Notas

  1. Historiador, Docente do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e em Arquitetura e Urbanismo da USP. Pesquisador principal do Projeto Temático Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento, financiado pela FAPESP, a quem o autor agradece o apoio.
  2. Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (Processo17 / 07366-1), sob coordenação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC / USP).
  3. Cf. Bajou (2018).
  4. Cf. Sérié (2014).
  5. Cf. Tóth (2012).
  6. Cf. Christensen (2016).
  7. Cf. Squeff (2012).
  8. Cf. Coli (1994).
  9. Cf. Meneses (1990); Chiarelli (1998); Mattos (2003); Makino (2003) e Brefe (2005).
  10. Cf. Lima; Carvalho (1993).
  11. Cf. Mattos (1999); Christo (2002) e Brefe (2005)
  12. Cf. Singh Junior (2004)
  13. Cf. Pitta (2013).
  14. Cf. Alves (2003).
  15. Cf. Simioni (2008; 2013; 2018).

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Métodos interdisciplinares de análise em acervos museológicos / Anais do Museu Paulista / 2019

A análise de acervos museológicos tem se consolidado como um âmbito de pesquisa científica em contínuo alargamento do conhecimento sobre materiais, datações, autorias e procedências, algo alcançado necessariamente por meio da aproximação e interação de diferentes profissionais, métodos e tecnologias. História, História da Arte, Arqueologia, Física, Química, bem como da Conservação e Restauro são algumas das áreas que têm configurado um campo científico efetivamente interdisciplinar, cujos resultados se desdobram para diferentes etapas do ciclo curatorial das coleções museais. Para além das fronteiras disciplinares, projetos colaborativos internacionais têm revelado as possibilidades de dar visibilidade não apenas a acervos de museus ainda pouco estudados e às informações científicas neles obtidos, mas de impulsionar a expansão do conhecimento de coleções há muito analisadas sobre as quais novas e sofisticadas tecnologias de análise podem aprofundar reflexões.3

A Universidade de São Paulo tem se integrado a tais esforços interdisciplinares e colaborativos de múltiplas maneiras, a partir da complexidade das coleções mantidas por suas unidades ou mesmo de origem externa. De forma mais sistemática, desde 2013, um grupo de docentes de diferentes unidades da USP decidiu reunir forças, aproximando as Humanidades e as Ciências Exatas, com o intuito de produzir novos conhecimentos a partir do estudo integrado de bens museais. Naquele ano fora criado o Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAP) de Física Aplicada ao Estudo do Patrimônio Artístico e Histórico (FAEPAH), coordenado pela Profa. Márcia Rizzutto, do Instituto de Física, que congregava membros do próprio IF, da Engenharia Química (Poli), do Museu de Arte Contemporânea, do Museu Paulista, do Museu de Arqueologia e Etnologia e do Instituto de Estudos Brasileiros.

O objetivo central do núcleo consistia no emprego de métodos físicos não invasivos para analisar obras e objetos dos museus. A reflectografia de infravermento (IR), a fluorescência de raios X, a radiografia digitalizada, a fotografia de fluorescência visível com radiação ultravioleta (UV) são técnicas utilizadas que muito podem evidenciar traços escondidos em pinturas, esculturas, móveis adornados, cerâmicas; caracterizar os pigmentos presentes nas obras de arte, seu estado de conservação e revelar informações em sua superfície como as áreas retocadas de uma tela.

Numerosos resultados inovadores advindos da cooperação dos diversos campos do saber envolvidos nesse NAP foram disseminados em eventos e artigos científicos e fortaleceram o grupo para a gestação de um projeto mais amplo centrado no processo curatorial pelo qual passam os acervos museológicos desde o ingresso nas instituições até sua difusão. Intitulado Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento, o projeto tem recebido, desde fins de 2017, financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), na modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático. Tendo a Profa. Ana Gonçalves Magalhães, do MAC, como pesquisadora responsável, congrega dezenas de pesquisadores e bolsistas dos quatro museus estatutários da USP – MP, MZ, MAE e MAC -, do IF, além de docentes da UNICAMP e da UNESP.

Iniciativas semelhantes visando a integração da ciência e da tecnologia para o estudo, a conservação e a restauração de bens culturais desenvolvem-se em outros centros de ensino e pesquisa do país, com investigações promissoras na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, no Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, no Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) e na Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, para citar algumas.4 Parte desses profissionais das mais diversas especialidades é membro da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência e Tecnologia do Patrimônio – Ciência, Tecnologia e Inovação (ANTECIPA), criada em 2015, que busca representá-los não só no cenário nacional, como também junto à Rede Europeia E-RIHS – European Research Infrastructure for Heritage Science.

É em face desse contexto de fortalecimento dos grupos que trabalhamos que o dossiê Métodos interdisciplinares de análise em acervos museológicos foi sugerido aos autores, com vista a se divulgarem as pesquisas recentes que se têm realizado no Museu de Arte Contemporânea e no Museu Paulista da USP, sobretudo no âmbito do Projeto Temático, bem como no Instituto Hercule Florence, frutos de diálogos com as áreas da Ciências da Natureza e suas Tecnologias.

O artigo que abre este dossiê apresenta mais uma cooperação exitosa entre Ana Gonçalves Magalhães e Márcia de Almeida Rizzutto. Parceiras acadêmicas de longa data, já desvendaram as trajetórias das telas dos artistas italianos Virgilio Guidi, Felice Casorati, Achille Funi e Mario Sironi e as pinturas e traços sob elas escondidos. Desta feita se debruçam sobre o Autorretrato, de Amedeo Modigliani, tal como os anteriores, pertencente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea – USP, escrevendo em conjunto com Dalva Lúcia Araújo de Faria e Pedro Herzilio Ottoni Viviani de Campos. Por meio de estudos de procedência, recepção e crítica de arte, análises físico-químicas e de imageamento, jogam novas luzes sobre uma tela que é referencial para o estabelecimento de parâmetros comparativos para o estudo do conjunto da obra de Modigliani, o qual abriga pinturas cuja certificação de autoria permanece em discussão.

Márcia Rizzutto assina mais dois artigos em coautoria, contudo os acervos analisados são de tipologias e de instituições diferentes. O primeiro, redigido com Francis Melvin Lee e Thierry Thomas, tem como objeto as fotografias produzidas por Hercule Florence na década de 1830, pertencentes ao acervo do Instituto Hercule Florence. Após a atuação como segundo desenhista da expedição Langsdorff (1825-1829), o artista francês radicou-se na vila de São Carlos (hoje Campinas), região cafeicultora, e ali constituiu família. Entre suas muitas atividades, implantou a primeira tipografia da cidade e desenvolveu numerosos inventos: a fotografia, novas técnicas de impressão (autografia, poligrafia e pulvografia), papel inimitável (para papel-moeda), registro das vozes dos animais em partitura (zoofonia) e tipo-sílabas (sinais precursores da taquigrafia). A partir de análises por fluorescência de raios X, o texto avança nos conhecimentos que até então se tinham sobre os materiais e técnicas empregados nas primitivas experiências fotográficas de Florence, comprovando sua originalidade nesse campo.

O segundo foi escrito com o historiador Rogério Ricciluca Matiello Félix e centra-se na discussão dos resultados dos exames arqueométricos aplicados por ambos em peças de mobiliário do Museu Paulista, alvos de sua dissertação de mestrado, intitulada Os móveis da terra: dinâmicas sociais a partir da produção e circulação do mobiliário em São Paulo (1700-1830), defendida em 2018.5 A conjugação de metodologias de análises da Física Aplicada com metodologias de análise de cultura material, possibilitou que os dados obtidos acerca dos materiais usados em pinturas, couros e metais presentes nos móveis fossem cruzados com informações compulsadas nas fontes textuais de natureza diversa, renovando interpretações sobre a dinâmica socioeconômica da cidade de São Paulo no setecentos e inícios do século XIX.

Foi também para um documento tridimensional – o beque de proa de uma canoa – pertencente ao acervo do Museu Paulista, que uma equipe multidisciplinar voltou os olhares em 2016 e 2017. O grupo foi composto por Maria Aparecida de Menezes Borrego, do Museu Paulista, Bernardo Luis Rodrigues de Andrade, do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Escola Politécnica, ambos professores da USP, alunos de graduação em Engenharia à época – Pedro Henrique Bulla, Fillipe Rocha Esteves e Gabriel Bustani Valente -, e ainda Gregório Cardoso Tápias Ceccantini, do Laboratório de Anatomia Vegetal do Instituto de Biociências da USP, e sua orientanda de doutorado Milena de Godoy Veiga. Para a análise do beque de proa, recorreuse aos métodos da análise histórica, da fotogrametria de curto alcance e da anatomia da madeira para identificar, reconstituir digitalmente a peça e traçar sua trajetória na instituição. Para além do artigo elaborado acerca das múltiplas abordagens sobre o artefato, o trabalho conjunto favoreceu a montagem da exposição Viagens fluviais: homens e canoas na rota das monções, exibida no Museu Republicano de Itu, em que a peça náutica é protagonista.

Por fim, o dossiê se encerra com o artigo escrito pelo professor Jorge Pimentel Cintra, do Museu Paulista, e o engenheiro Rodrigo Gonçales, em que analisam as potencialidades da aplicação de laser scan 3D e aerofotogrametria por drone para museus. Como parte da tese de doutorado de Gonçales em desenvolvimento acerca dos dados LIDAR planialtimétricos, ambos realizaram a aplicação das tecnologias no edifício monumento do Museu Paulista e, a partir dos resultados obtidos, procuram ampliar os conhecimentos sobre os estudos das chamadas realidades aumentadas.

As muitas mãos que escreveram cada um dos artigos do dossiê, por si só, já revelam a pluralidade de abordagens utilizadas e as áreas das ciências envolvidas, mas, antes de tudo, evidenciam os resultados originais decorrentes da pesquisa solidária e dos diálogos fecundos entre os profissionais de diferentes formações comprometidos com a produção do conhecimento. Não há dúvida, como já constataram Ina Hegert, Márcia Rizzutto, Francis Melvin Lee, Solange Ferraz de Lima e Jéssica Curado em artigo sobre outra parceria bem-sucedida entre o Museu Paulista, o Instituto de Física e o Instituto Hercule Florence em torno do caderno de notas de Aimé-Adrien Taunay que “as Universidades têm um papel muito importante para aprofundamento e ampliação das pesquisas multidisciplinares para a preservação do patrimônio”.6

Notas

  1. Historiadora. Docente do Departamento de Acervo e Curadoria do Museu Paulista e do Programa de Pósgraduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
  2. Historiador. Docente do Departamento de Acervo e Curadoria do Museu Paulista e dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
  3. É disso um efetivo exemplo o Modigliani Technical Research Study, que reúne pesquisadores de instituições europeias, estadunidenses e brasileiras, cujos resultados iniciais foram publicados em diferentes fascículos da The Burlington Magazine em 2018, entre os quais destacamos o artigo que conta com pesquisadores que integram este dossiê como autoras, as Profas. Ana Gonçalves Magalhães, Márcia Rizzutto e Pedro Herzilio Ottoni Viviani de Campos. Cf. Centeno et al. (2018).
  4. Várias iniciativas podem ser conhecidas por meio do caderno de resumos e x p a n d i d o s d a s comunicações apresentadas no 1o Encontro da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência e Tecnologia do Patrimônio, realizado nos dias 27 e 28 de novembro de 2018, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, disponível em: . Acesso em: 15 out. 2019.
  5. Félix (2018).
  6. Cf. Hegert et al (2016).

Referências

CENTENO, Silvia A.; DUVERNOIS, Isabelle, BEZUR, Anikó; CAMPOS, Pedro Herzilio Ottoni Viviani; JOSENHANS, Frauke V.; LONDERO, Pablo; MAGALHÃES, Ana Gonçalves; RIZZUTTO, Márcia; SCHWARZ, Cynthia. The Modigliani Technical Research Study. Modigliani’s late portraits. The Burlington Magazine, Londres, No. 1382 – Vol. 160. mai 2018.

FÉLIX, Rogério Ricciluca Matiello. Os móveis da terra: dinâmicas sociais a partir da produção e circulação do mobiliário em São Paulo (1700-1830). Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.

HEGERT, Ina; RIZZUTTO, Márcia Almeida; LIMA, Solange Ferraz de; LEE, Francis Melvin; CURADO, Jéssica. O trabalho interdisciplinar entre o Museu Paulista e o Instituto de Física da Universidade de São Paulo no processo de documentação de obras do acervo Taunay. Anais eletrônicos do 15o Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. Florianópolis, Santa Catarina, 16 a 18 de novembro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2019.

Maria Aparecida de Menezes Borrego – Universidade de São Paulo / São Paulo, SP, Brasil.

Paulo César Garcez Marins – Universidade de São Paulo / São Paulo, SP, Brasil.


BORREGO, Maria Aparecida de Menezes; MARINS, Paulo César Garcez. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.27, p.1-6, 2019. Acessar publicação original  [DR].

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O testemunho das coisas úteis e duráveis / Anais do Museu Paulista / 2018

Tomados como objetos de discussão e de busca de compreensão, para além de suas materialidades, os artefatos de uso humano – sejam instrumentais, simbólicos, práticos, utilitários ou como queiram pensá-los – remetem a questionamentos a respeito de como eles nos servem de fontes históricas e de como documentam contextos sociais, histórias de vida, vivências humanas, experiências cotidianas.

Neste dossiê, conjunto rico e diverso de textos interpretativos, as coisas dos homens apresentam-se como “cotidiano material”, “cultura material”, “elementos materiais”, “peças de uso funcional”, “bens do aparato social”, “objetos materiais”, artefatos “técnicos e materiais”, atendendo à busca compreensiva dos autores dos artigos no intuito de evidenciar a história das coisas e dos homens que as usam, ou a história dos homens usando coisas.

Usos e coisas; costumes e utilizações! A ideia do que é útil ao homem move o pensar sobre a construções culturais, sociabilidades, formas de pensar, de enriquecer, técnicas, estratégias de sobrevivência e, ainda, representações sociais de nosso mundo em tempos passados; e o faz pelos artefatos que a vida constrói.

Ulpiano Bezerra de Meneses nos alerta sobre o valor das coisas das pessoas como documentos de sua história, mas distingue a integridade física dos objetos – como a verdade acerca deles – dos discursos que se constroem a partir dessa physis. O autor afirma que “a simples durabilidade do artefato, que em princípio costuma ultrapassar a vida de seus produtores e usuários originais, já o torna apto a expressar o passado de forma profunda e sensorialmente convincente”.3 Durabilidade e utilidade dão aos objetos o caráter de testemunho e são, portanto, fatores que levam o historiador a ler o artefato que dura no tempo.

“Útil”, desde os dicionários do século XVIII, é palavra indicadora de uma coisa que tem proveito ou préstimo e serve para algo. “Utilizar” ou “usar” é aproveitar as coisas.4 A vida exige objetos úteis, os quais são criados em proveito das pessoas e por elas, para que sirvam à sua sobrevivência material e à sua inteligência, ao seu espírito, à sua sociabilidade. Ao usar proveitosamente os artefatos que inventa, o ser humano, com os gestos do uso, inscreve nos próprios objetos as marcas do tempo. Do seu tempo. O objeto e seu uso são fatos históricos e tornam-se documentos da História quando o historiador os submete à leitura crítica.

Os artefatos são parte da cultura e integram-se à vivência humana de forma inseparável. São elementos materiais da cultura e não apenas a representação material dela.5 Eles incorporam os gestos no uso e se reinscrevem em um cotidiano de que são parte, mas não só: o objeto integra-se ao corpo humano, associa-se à razão, participa da sociabilidade, do desejo dos homens e é símbolo de construções diversas da imaginação. São intrínsecos aos atos vividos.

A cultura material, reforçada pela tradição que nomeia assim a busca interpretativa dos bens materiais das sociedades,6 objetiva, em verdade, compreender os elementos materiais da cultura ou a dimensão palpável de uma realidade vivida. E é a partir dessas plataformas de observação que os historiadores e outros cientistas sociais têm buscado compreender as transformações sociais pela leitura das coisas da vida. Não há uma cultura material e outra imaterial, embora essa distinção tenha propiciado importantes mudanças no reconhecimento de patrimônios culturais. Existem culturas, e elas possuem elementos materiais e simbólicos integrados, articulados ao fazer e ao saber da vida em sociedade.

Os historiadores são reconhecidos em seu ofício porque dispõem de fontes; sabem lê-las à luz de perspectivas analíticas e de instrumentos metodológicos específicos; admitem suas historicidades e se valem delas como suporte para mediar o acesso a um mundo do qual elas são mais que vestígio. Os elementos materiais da cultura são documentos primordiais para o conhecimento histórico, e saber mobilizá-los favorece compreensões complexas de um passado que não passa por completo, um passado igualmente durável.

Como mostram os textos deste dossiê, segunda edição do publicado no ano de 2017, intitulado Cultura material no universo dos Impérios europeus modernos, os objetos se apresentam como coleções museológicas a denotarem o patrimônio das populações nativas das terras baixas da América do Sul que os produziram, testemunhando suas especificidades culturais, na abordagem de Glória Kok. Eles também são mostra das artes, dos saberes e das riquezas de homens do sertão colonial do Tejuco, em Minas Gerais, estudados por Régis Quintão, ou de Cantagalo, no Rio de Janeiro, pesquisados por Sheila de Castro Faria, nas últimas décadas do século XVIII e primeiras do XIX. Compõem, ainda, um repertório de técnicas, matérias-primas e circunstâncias sociais na construção de produtos visuais nos manuscritos do mesmo período, escrutinado por Marcia Almada. Em um tempo mais alargado, entre os séculos XVI e XVIII, Luís Frederico Dias Antunes analisa a vida social dos tecidos da Índia, entrelaçando algodões asiáticos e lanifícios europeus que frequentam o mundo português como mercadorias, presentes, objetos suntuários e comuns, aquecendo casas e corpos.

Os textos falam assim dos homens, suas coisas e suas vidas no mundo colonial português, vistos a partir de perspectivas técnicas, museais, arquivísticas e historiográficas, de tempos longos, sob a leitura de autores do século XXI. Largo mundo de coisas móveis e duráveis.

Notas

  1. Meneses (1998, p. 90).
  2. Bluteau (1721, v. 8, p. 600).
  3. Cf. Miller (2013).
  4. Assim nomeada na tradição historiográfica e teorizada, dentre outros textos e autores, por Bucaille e Pesez (1989).

Referências

Fontes impressas

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1721. 10 v.

Livros, artigos e teses

BUCAILLE, Richard; PESEZ Jean-Marie. Cultura material. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: IN-CM, vol.16, 1989, p. 11-47.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998, p. 89-103.

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

José Newton Coelho Meneses – Universidade Federal de Minas Gerais / Belo Horizonte, MG, Brasil.

Maria Aparecida de Menezes Borrego – Universidade de São Paulo / São Paulo, SP, Brasil.


MENESES, José Newton Coelho; BORRETO, Maria Aparecida de. Introdução – O testemunho das coisas úteis e duráveis. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.26, p.1-4, 2018. Acessar publicação original [DR].

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Cultura material no universo dos Impérios europeus modernos / Anais do Museu Paulista / 2017

Render-se ao óbvio

Os eventos da história podem significar para o pesquisador um encontro com as formas materiais que deles são parte. Essas podem, para quem lhes é sensível, funcionar como um choque sensorial. [2] Nessa agressão aos sentidos do investigador pode fundamentar-se a força da leitura dos artefatos de modo a compreendê-los. Dependendo da sensibilidade do pesquisador (e de suas escolhas) a compreensão dessas estruturas materiais leva-o a vê-las como coisas do homem e, mais ainda, partes do humano. Às vezes, as percebe como componentes indistintos das opções do homem, de suas ações, de seus atos, enfim, dos fatos históricos. Os fatos do homem social incorporam indivisivelmente seus artefatos.

Pensar sobre os elementos materiais da cultura e tê-los como fonte de compreensão do mundo dos homens é o que fazem os autores que apresentam interpretações do mundo neste dossiê. Mundo de vários tempos; temporalidades que buscam uma certa unidade desigual. Embora marcadas, pelos organizadores do dossiê, como “o universo dos impérios europeus modernos”, são complexas e díspares as temporalidades próprias deste universo. Os tempos marcam os objetos tanto quanto os objetos marcam o tempo. Os elementos materiais dos “impérios europeus modernos” têm a diversidade dos mesmos impérios na modernidade. Vastos impérios! Tempos diversos! Artefatos amplos! Sacros, de consumo, simbólicos, significativos e de técnicas, não importa, são as coisas materiais dos gestos do homem.

Os objetos dão-nos a compreensão de nós e dos outros. Identificam culturas e nos evidenciam a “marcha do tempo”. Do tempo dos homens. Do homem no tempo.

Alguns diagnosticam os objetos como a parte “não humana” da vida. Ora, é preciso desumanizar a vivência humana para perceber o material como humano e ver a vida social como a indivisibilidade entre o humano e o material. Em exercício de contraponto é necessário humanizar o artefato. O conjunto de objetos de uma vivência, a chamada “cultura material”, é mais que o trabalho do homem, o seu produto, o consumo do homem, a técnica e a tecnologia que ele cria, o saber que ele inventa, o progresso da sociedade humana, a simbologia ou a filosofia do homem. O objeto é o homem; é a extensão do seu gesto. É o próprio gesto.

O gesto é artifício, é expressão, é movimento corporal que une o corpo e a materialidade própria do organismo humano. O artefato, materialidade que estende o gesto ao seu mundo, é instrumento das intenções, opções e sentimentos do homem.

Como lê o objeto o historiador, o antropólogo, o sociólogo, o filósofo? Como reflexo, representação, apropriação? Deveria lê-lo como indistinguível do humano! O artefato é legível como mercadoria, consumo, convivialidade, celebração, urbanidade, ruralidade, produto, trabalho? Os textos que se seguem respondem a esses questionamentos e levantam questões novas para se pensar o homem social e a cultura material que ele constrói.

A “cultura material” indefinida e indefinível não existe mais para o cientista social. Ela tornou-se definível com claridade ao conjugar-se com a dinâmica do homem social e com as leituras das várias disciplinas sociais.[3] Teorias e perspectivas distintas têm contribuído para enriquecer as análises da materialidade das vivências históricas, a despeito de ser comum, ainda, lermos e ouvirmos discursos que clamam por maiores definições do que seja “cultura material” e por metodologias que permitam seu uso como fonte de compreensão da história dos homens.

Há, entretanto, uma dinâmica tradição nas ciências humanas em tomar o campo da cultura material para se compreender as vivências históricas. Essa dinâmica, como é próprio às tradições, se apresenta em ritmos de manutenção de perspectivas e de questionamentos a formas de análises e de leitura dos artefatos. Uma nova antropologia do consumo, por exemplo, crítica à perspectiva semiótica – que trata a materialidade como algo inanimado ou simples instrumento da representação social – impõe ao objeto a condição de constituinte do homem.[4] Aí o artefato material é gerador de sentidos para a compreensão das sociedades, não apenas para a representação delas. O simbólico e o material são, assim, analisados como unidade.

Para Daniel Miller, os trecos materiais “têm uma capacidade notável de se desvanecer diante de nossos olhos, tornam-se naturalizados, aceitos como pontos pacíficos, cenário ou moldura de nossos comportamentos.”[5] A solução para Miller seria, então, colocar nossas abstrações teóricas “de volta na algazarra da vida cotidiana e na gloriosa confusão de contradição e ambivalência que ali se encontram”.[6]

De modo geral, a historiografia, com honrosas exceções que não enumeraremos aqui para não cometermos injustiças, costuma dar um tratamento analítico restrito à chamada “cultura material”, tratando-a como reflexo da construção social e não como um repertório de manifestações e de elementos da cultura integrados em sua constituição histórica. Assim, os artefatos, os objetos, as materialidades são vistos como produtos, como consumos, como instrumentos técnicos do homem em sociedade, quando deveriam ser analisados como documentos do viver, das experiências de vida.

Não se deve ler os objetos deslocados do seu uso, dos seus sentidos sociais. Um garfo, por exemplo, tem sentido tanto como instrumento, quanto gesto humano; tanto como artefato, quanto fato. Um garfo é detentor de sentidos sociais. O garfo é um fato sócio-histórico.

A despeito da crítica acima, é grande a contribuição dos estudos de cultura material na área de história. Como vem acontecendo em sua tradição, ela possibilita aos historiadores compreender dimensões importantes da sociedade ao aquilatar a produção de riquezas, as construções técnicas e tecnológicas, as especificidades de categorias sociais, as distinções de ritos da vida, as representações sociais e simbólicas etc. Contribuição maior esses estudos dão quando dimensionam junto com tudo isso as experiências humanas, as vivências. Os objetos, afinal, são parte do conjunto complexo e dinâmico do viver.

De tão presentes, comuns, banais [7] e importantes para a vida, tendemos a naturalizar os objetos, desumanizá-los. Esquecemos que são construções do homem; são cultura. Repetimos a forma dicotômica de tratar o humano opondo as tríades mente / pensamento / linguagem à corpo / prática / matéria. Ao naturalizar os artefatos determinamos a eles a condição de obviedade de clareza axiomática, evidência intuitiva. É preciso valorizar o que parece óbvio; pensar as obviedades com curiosidade cognitiva. Necessário, enfim, deixar de opor o material ao simbólico, como temos deixado de opor o natural ao cultural.

Os textos que aqui se apresentam rendem-se à riqueza do que é óbvio. Eles impõem aos artefatos da vida a historicidade da qual são parte.

Notas

2. Farge (2015, p. 7).

3. Rede (2012), Appadurai (1986).

4. Miller (1987, 1998, 2013).

5. Miller (2013, p. 228).

6. Miller (2013, p. 230).

7. Roche (2000), Garcia (2011).

Referências

APPADURAI, Arjun. (org.). The social life of things. Cambbridge: Cambridge University Press, 1986.

FARGE, Arlette. Le peuple et les choses. Paris au XVIIIe siècle. Montrouge: Bayard, 2015. GARCIA, Tristan. Forme et objet. Un traité des choses. Paris: PUF, 2011.

MILLER, Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford: Blackwell, 1987.

MILLER, Daniel. (org.) Material cultures: Why some things matter. Chicago: The University of Chicago Press, 1998.

MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

REDE, Marcelo. História e cultura material. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo. (orgs.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Campus / ELSEVIER, 2012, p. 133-150.

ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo. Séc. XVII-XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

José Newton Coelho Meneses – Docente do Departamento de História – FAFICH-UFMG.


MENESES, José Newton Coelho. Introdução – Cultura material no universo dos Impérios europeus modernos. Anais do Museu Paulista. São Paulo n. Sérv., v.25, n.1, p.9-12, jan./abr., 2017. Acessar publicação original [DR].

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Arte e cultura material africana no Brasil: um campo em construção / Anais do Museu Paulista / 2017

Quando recebi o convite para organizar um dossiê dos Anais do Museu Paulista que tivesse como foco a cultura material da África, deparei-me com o grande desafio de encontrar estudiosos no Brasil que pudessem colaborar com esta edição. Se os nossos laços históricos com o continente africano propiciaram o estudo de temáticas abordadas por diversas áreas do conhecimento – como é o caso daqueles relativos à escravidão e mais recentemente os voltados para a história da África, que têm apresentando notáveis avanços no país – o mesmo não se pode dizer dos estudos que focalizam especificamente a cultura material africana, seja no domínio da arqueologia, da história social ou da história da arte.

Trata-se, sem dúvida, de um campo em construção, em que as iniciativas e ações para o seu fortalecimento são ainda bastante tímidas. Não é fácil compreender os motivos para toda essa falta de atenção, ainda mais se lembrarmos que o primeiro artigo que se tem notícia dedicado ao tema no Brasil data de 1904 – “As Bellas Artes nos colonos pretos do Brazil” – escrito pelo médico maranhense Nina Rodrigues, que abordou pioneiramente um conjunto de peças afro-brasileiras e africanas.

Se, por outro lado, pensarmos na existência e formação das coleções africanas no Brasil, é possível afirmar que sua presença também não pode explicar esse quadro deficiente. A coleção africana do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, tem, por exemplo, peças que entraram para o acervo desde o início do século XIX e, em meados do século XX, ela estava amplamente formada. Já a coleção africana do Museu paraense Emilio Goeldi, que foi constituída por peças coletadas na África central entre 1887 e 1904, passou a fazer parte do acervo do Museu desde a década de 1930.

Em 1958, Pietro Maria Bardi, em correspondência trocada com o galerista húngaro Ladislas Segy, tornou evidente o desejo de formar uma coleção africana para o Museu de Arte de São Paulo (MASP). Apenas um ano depois, Agostinho da Silva, uma das figuras fundamentais na criação do Centro de Estudos Afro-Orientais, em Salvador, também manifestou o interesse em formar uma coleção africana desde a exposição “A Arte de um povo de Angola”, realizada, em 1959, na Universidade da Bahia, com peças do Museu do Dundo.

Em 1969, Ulpiano Bezerra de Meneses, então diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, colocou em prática o projeto de formar uma coleção africana para o MAE. Antes disso, o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, havia adquirido um conjunto de peças africanas que pertenceu ao diplomata Gasparino da Mata e Silva.

Desde então, outras iniciativas voltadas para formar coleções africanas no Brasil foram encabeçadas por figuras como Pierre Verger, que se mostrou fundamental na formação, entre outros museus, da coleção do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, inaugurado em 1982. Mais recentemente, Emanoel Araujo foi determinante na constituição da coleção africana do Museu Afro Brasil, em São Paulo, instituição aberta em 2004.

Ainda que não seja voltado para o estudo dessas coleções africanas existentes em museus brasileiros, este dossiê tem o papel de colaborar para que mais um passo seja dado para o fortalecimento, no Brasil, do campo de reflexão sobre a cultura material da África, oferecendo aos leitores algumas das diferentes abordagens possíveis. Desde o início, imaginamos apresentar artigos de pesquisadores brasileiros e do exterior, de modo a permitir a confrontação de diferentes metodologias que vêm sendo aplicadas em estudos envolvendo o que se convencionou chamar de objetos, peças ou obras de arte da África.

O primeiro artigo, denominado “Tecido estrangeiro, hábitos locais: indumentária, insígnias reais e a arte da conversão no início da Era Moderna do reino do Congo” foi desenvolvido pela historiadora da arte e professora da Universidade de Chicago Cécile Fromont. Utilizando o conceito de “espaço de correlação”, já explorado em seu livro The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo, publicado em 2014, Fromont analisa as elaboradas transformações religiosas, políticas e materiais do reino do Congo, tendo como foco objetos como roupas, chapéus, espadas e imagens religiosas.

Já o artigo “‘Clara como céu, escura como água do Luembe’: trajetórias, usos e significados das contas de vidro entre as populações da África CentroOcidental (Lunda, 1884-1888)” é de autoria da historiadora e doutoranda Marcia Cristina Pacito Fonseca Almeida, no qual nos oferece um desdobramento de sua dissertação de mestrado. Aborda como a cultura material foi inserida na agenda científica da expedição portuguesa à Lunda, chefiada por Henrique de Carvalho entre 1884 e 1888, demonstrando o relevante papel que as contas vítreas, mais conhecidas como miçangas, desempenharam entre as sociedades centro-ocidentais africanas com as quais esse militar português teve contato.

De outra parte, Ana Cristina Pessoa Tavares e Maria do Rosário Antunes Rodrigues Martins, ambas do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, produziram o artigo “Singularidades museológicas de uma tábua com esculturas em diálogo: do alambamento ao casamento em Cabinda (Angola)”, no qual analisam a rica narrativa da tábua de casamento recolhida pelos missionários do Espírito Santo, revelando como um único objeto pode ser de grande relevância para a compreensão dos códigos sociais e simbólicos compartilhados pelos cabinda. Lembro que essa mesma tábua de casamento foi exposta em São Paulo na mostra “Da Cartografia do poder aos itinerários do saber”, realizada pelo Museu Afro Brasil em 2014.

O artigo seguinte – “As esculturas cokwe como respostas às assimetrias civilizacionais” – é de minha autoria e se trata de um desdobramento de minha tese de doutorado. Enfoca uma das muitas iniciativas desenvolvidas pelo Museu do Dundo voltadas para a preservação da produção artística dos povos da Lunda. O receio da extinção de uma arte reminiscente do “tempo tribal” fez com que o Museu do Dundo mantivesse em seus domínios um grupo de escultores a fim de evitar que as transformações ocasionadas pela situação colonial influenciassem os trabalhos desses homens. No artigo, busco mostrar como os anseios fictícios do Museu em relação a esses artistas foram fundamentais para compreender as constantes tensões e dificuldades em enquadrar no seu espaço esses homens e suas produções.

Em seguida, apresentamos o artigo de Lia Dias Laranjeira, antropóloga e professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira (UNILAB), denominado “Migração makonde, produção de esculturas e mercado de arte no Tanganyika: a questão do estilo Shetani (1950-60)”, que tem como objetivo mostrar como a escultura makonde é um exemplo paradigmático de uma produção escultórica que marca a transformação dos tipos das peças e a relação dos escultores com os comerciantes dessa arte. Laranjeira explora ainda como o contexto de criação desse tipo de escultura no Tanganyka relaciona-se diretamente com a imigração em massa dos makonde de Moçambique para o norte do Rio Rovuma entre as décadas de 1950 e 1960, por conta da violência do regime colonial português.

Encerra o dossiê o artigo de Marta Heloisa Leuba Salum (Lisy Salum), professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. A antropóloga se destaca como a mais importante estudiosa da arte africana no país, tendo um papel primordial na construção desse campo. “Vistas sobre arte africana no Brasil: lampejos na pista da autoria oculta de objetos afro-brasileiros em museus” é o único artigo deste dossiê voltado para as produções afro-brasileiras e nele Lisy Salum expõe, conforme suas palavras, “uma experiência de interpretação de objetos em coleções atribuídos aos antigos candomblés, a partir da formação prévia de um corpus composto de esculturas publicadas por estudiosos da primeira metade do século XX”. Trata-se da publicação de parte de um estudo mais amplo da autora focado em reconhecer as “marcas de um Brasil africano ou de uma África brasileira em objetos de coleção”.

Esperamos que as diferentes propostas de análise da cultura material africana ou afro-brasileira apresentadas neste dossiê sejam um convite para que novos pesquisadores explorem esse rico universo temático, alargando um grupo ainda pequeno e colaborando para a consolidação desse importante campo de estudos no Brasil.

Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua – Historiadora, mestra e doutora em História social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisadora no Museu de Arte de São Paulo (MASP).


BEVILACQUA, Juliana Ribeiro da Silva. Introdução – Arte e cultura material africana no Brasil: um campo em construção. Anais do Museu Paulista. São Paulo, n. Sérv., v.25, n.2, p.7-10, mail./agor., 2017. Acessar publicação original [DR].

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Para além dos trópicos e dos consensos: atores, práticas e questões na história dos parques e jardins no Brasil / Anais do Museu Paulista / 2017

Para além dos trópicos e dos consensos: atores, práticas e questões na história dos parques e jardins no Brasil [1]

Entre 2012 e 2016, o Brasil teve dois de seus mais importantes marcos urbanos reconhecidos como patrimônio mundial pela Unesco. No Rio de Janeiro, essa honra recaiu sobre as “paisagens cariocas, entre o mar e a montanha” e, em Belo Horizonte, sobre o conjunto moderno de Pampulha. No primeiro deles, o perímetro de proteção abrangeu as montanhas cobertas de florestas tropicais do Parque Nacional da Tijuca, os famosos picos de granito do Corcovado e do Pão de Açúcar e parques como o Jardim Botânico, o Passeio Público e os jardins do Aterro do Flamengo. Na capital de Minas Gerais, a nominação incluiu os edifícios de Oscar Niemeyer que pontuam a lagoa da Pampulha, entre os quais se destaca a igreja de São Francisco de Assis e sua curvilínea silhueta, criações que deram a esse arquiteto brasileiro o início de seu reconhecimento internacional. Mas essas duas decisões da Unesco também constituem, em seus textos justificativos, uma homenagem explícita ao mais famoso paisagista brasileiro: Roberto Burle Marx (1909-1994). São de sua concepção a maior parte dos jardins da Pampulha, bem como os do Aterro do Flamengo e aqueles ao longo da praia de Copacabana, esses últimos ornados com mosaicos de pedra portuguesa igualmente desenhados pelo paisagista.

Burle Marx começou a obter seu reconhecimento internacional a partir da década de 1940. Foi nessa época que o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) exibiu projetos seus pela primeira vez, que passaram também a ser publicados regularmente nas páginas de revistas especializadas europeias e norteamericanas. A criação de novas linguagens artísticas modernas e a utilização de plantas tropicais em projetos de Burle Marx garantiram a presença de parques e jardins brasileiros em livros de referência sobre design paisagístico do século XX. As homenagens agora realizadas pela Unesco podem ser consideradas o ponto culminante desse processo de consagração internacional.

Mas para além das criações do mestre do paisagismo brasileiro do século XX, pode-se dizer que muitos outros parques considerados bens patrimoniais no Brasil – alguns deles datando dos séculos XVIII e XIX – são simultaneamente tema de interesse para pesquisadores, para gestores da esfera pública e para os cidadãos. Patrimônio multifacetado, esses espaços, que vêm atuando há séculos como mediadores da sociabilidade urbana, merecem mais atenção. Eles acolheram espécies de plantas de todos os continentes e permitiram experiências de criação artística e práticas inovadoras alcançadas por meio de sínteses realizadas por paisagistas, por jardineiros e por artesãos dedicados à sua ornamentação. Essas práticas paisagísticas, amplas e diversificadas, foram eclipsadas por aquelas advindas dos jardins tropicais criados por Burle Marx ou por seus discípulos, associados ao movimento moderno de arquitetura e de paisagismo. E, com efeito, a compreensão desse importante patrimônio cultural permaneceu, quase sempre, limitado principalmente aos aspectos relativos à sua concepção formal.

Pouco estudados pelas ciências humanas e sociais no Brasil, os parques e jardins de suas cidades são, no entanto, um objeto particularmente rico para quem está interessado nos modos de conceber, organizar, frequentar e preservar o espaço público. [4] Além disso, seu exame também permite iluminar questões e conflitos sociais, políticos e simbólicos. Esses locais, verdadeiros laboratórios de relações da sociedade, atravessam a história do urbanismo, do paisagismo e das políticas de definição e preservação do patrimônio cultural em nível local, regional ou nacional, bem como a própria história social das cidades. Tal temática também abrange o estudo da flora – que é selecionada, organizada e também revisitada para a composição e o desenho de um parque ou jardim – o que, no Brasil, ainda a relaciona ao imaginário dos trópicos e sua problematização. A escala, a preservação e a utilização dos espaços verdes das cidades brasileiras são, por fim, indicadores indispensáveis das condições da vida urbana. E se sua configuração atual nos interessa, tal se dá por relacionarem-se a uma história complexa, em que os mais diversos interesses econômicos e políticos ali convergem e se encontram. Tais lugares podem, portanto, tornarem-se ícones, dimensão que muito diz sobre o país, sobre as cidades e sobre a história que os moldaram. Trata-se, ao fim e ao cabo, de espaços-chave que, situados no centro das cidades e da vida urbana, viabilizam os encontros, o viver coletivo, o aprendizado tanto dos convívios quanto das exclusões, do reconhecimento entre os iguais e da experiência das desigualdades.[5] E constituem, sempre, referências centrais no mapa mental dos habitantes de uma cidade.

Inscritos na paisagem urbana brasileira desde o período colonial, os parques e os jardins remetem, assim, às tradições luso-tropicais de agenciamento desses espaços. O Passeio Público do Rio de Janeiro, criado na década de 1780, foi inspirado em jardins geométricos franceses, modelo que foi reinterpretado em Portugal e em seu mundo colonial. Ele é o exemplo mais conhecido do surgimento desses novos espaços urbanos brasileiros que, durante a segunda metade do século do século XVIII, associavam referências formais vindas da Europa ao cultivo de plantas nativas da América ou das Índias Orientais.[6] Nesse sentido, tais espaços foram laboratórios em que se reformulou a arte dos jardins vinda da Europa, favorecendo não apenas a reinvenção morfológica, mas também a seleção e adaptação de múltiplas espécies aos diferentes climas do Brasil. Essa aliança entre organização espacial e aclimatação vegetal marcou os jardins de numerosas cidades do país ao longo do século XIX.

Os parques e jardins franceses de estilo paysager concebidos e construídos em Paris durante o Segundo Império, de imensa repercussão internacional, constituíram outra referência para o paisagismo brasileiro, o que favoreceu a instalação de profissionais franceses em diversas cidades do país. O percurso profissional e a produção de Auguste Glaziou (1828-1906), o mais conhecido mediador dessas práticas paisagísticas entre a França e o império brasileiro, vem sendo tema de estudos recentes dedicados à compreensão de seu modo de trabalho e das soluções assumidas por ele em suas criações.[7] Seus discípulos frequentemente conciliaram a evocação do pitoresco, a técnica das rocailles (falseamento de pedras e troncos) e os traçados naturalistas característicos do estilo paysager com as aleias neoclássicas de palmeiras imperiais (Roystonea oleracea). Assim, Glaziou e seus seguidores realizaram sínteses audaciosas entre repertórios formais que se oporiam na Europa, fazendo com que o Brasil se tornasse berço dessas novas sínteses criativas. A reflexão sobre o paisagismo aqui se dava por meio das práticas, realizadas por agentes de origens diversas, cujas obras, muito embora fossem inspiradas em ideias e técnicas em voga na Europa, eram marcadas por especificidades locais.

Na virada para o século XX, a urbanização massiva ocorrida nas grandes cidades brasileiras – impulsionada pelas vagas de imigrantes e pelas intervenções urbanísticas ocorridas nas capitais por determinação das novas autoridades republicanas – reforçou a importância dos jardins e dos parques. Movidos por um imaginário europeizante, no mais das vezes afrancesado, os governantes multiplicaram as encomendas. Iniciativas de melhoramento e embelezamento foram facilitadas pela presença de artesãos qualificados em inúmeras especialidades, a maioria deles imigrantes, contratados tanto pelas autoridades públicas quanto pelas elites urbanas possuidoras de palacetes cercados de imponentes jardins privados.

Parques e jardins tornaram-se, então, verdadeiros cenários a céu aberto, que permitiam a exibição dos corpos de mulheres e homens de elite, a realização de práticas de lazer pelas camadas populares, bem como a percepção recíproca das diferenças sociais devidas tanto à emergência das classes médias quanto à própria complexificação da composição social. Espaços civilizacionais dos cidadãos por excelência, os jardins foram também lugares em que floresceram os equipamentos arquitetônicos e soluções paisagísticas característicos da Belle Époque: coretos para apresentações musicais, pavilhões, pérgulas, espelhos d’água, fontes e chafarizes, monumentos, bustos, esculturas e elementos decorativos variados, além de aleias e canteiros dos mais diversos tipos.[8]

Entretanto, conhecemos ainda muito pouco sobre a produção paisagística da Belle Époque brasileira. Os preconceitos interpretativos sobre tal produção, herdados do modernismo, estabeleceram uma barreira poderosa e longeva que desfavoreceram o seu estudo. Os idealizadores, artesãos e demais profissionais que a realizaram e mantiveram esses espaços são sempre ignorados. Tomados até muito recentemente como simples cópias sem grande interesse de modelos europeus, os jardins [e parques] da Primeira República começaram, a duras penas, a serem vistos como expressões efetivas de releituras locais em relação a seus referenciais. A retomada dos princípios paisagísticos herdados de Le Nôtre que caracterizou o paisagismo corrente nas principais cidades brasileiras a partir da década de 1900 – e que ali se deu quase simultaneamente ao que também ocorria na França – conectou tais cidades aos circuitos mundiais de difusão e de reelaboração desses princípios. Paisagistas franceses aqui estabelecidos foram promotores de tal fenômeno, sendo numerosos tanto no Brasil quanto em outros países latinoamericanos como a Argentina e o Uruguai, bem como no Ultramar francês.

Esse quadro foi transformado radicalmente a partir da década de 1930, quando a arquitetura moderna se aproximou das formas concebidas por Burle Marx para seus jardins brasileiros. Esse paisagista revolucionou as associações entre as floras nativa e exótica, bem como as relações entre espécies vegetais e os elementos arquitetônicos, em negação radical das referências historicistas correntes nas décadas anteriores. Autor de projetos que contribuíram de modo significativo para a configuração das identidades urbanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, entre outras cidades brasileiras, tanto quanto de obras icônicas do paisagismo de cidades [estrangeiras], tropicais e subtropicais, como Caracas, Kuala Lumpur ou Miami, Burle Marx é incontestavelmente o grande nome do paisagismo brasileiro do século XX. E esse protagonismo vem sendo reconfirmado no presente graças a exposições realizadas no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.[9]

A notoriedade incontornável de Burle Marx acabou, entretanto, por eclipsar uma produção variada tanto de parques e jardins que se vinculavam e reinterpretavam as correntes paysagère e historicistas, quanto aos muitos outros que se inseriam nos princípios modernistas ou pós-modernos. Essas realizações paisagísticas vêm, contudo, sendo (re)conhecidas, de maneira cada vez mais sistemática, graças a pesquisadores prontos a documentar produções e percursos profissionais para além das armadilhas conceituais estabelecidas pela tradição interpretativa modernista.[10]

Essas complexas intervenções urbanas de caráter paisagístico tornaram-se tardiamente um objeto de atenção por parte dos órgãos responsáveis pela preservação e valorização do patrimônio cultural. Frequentemente negligenciadas e, por vezes, destruídas – como foi o caso dos parques do centro da cidade de São Paulo concebidos pelo francês Joseph-Antoine Bouvard (1840-1920) – tais obras paisagísticas sofreram as consequências das tensões entre os interesses públicos e privados (sob o pano de fundo da especulação imobiliária), bem como daquelas que privilegiaram a expansão de avenidas em detrimento da expansão ou da preservação dos espaços verdes.

Essas contradições, se se mostram particularmente agudas hoje em dia, não são, no entanto, recentes e menos ainda exclusivas da contemporaneidade. Pelo contrário, estão enraizados em uma longa história de conluio entre os interesses privados e a ação das autoridades públicas nas cidades brasileiras, especialmente no que se refere à propriedade e à especulação da terra. Os processos de urbanização, frequentemente violentos e sem planejamento, são responsáveis pelo limitado espaço disponível para os jardins [e parques] urbanos e também por seu abandono devido à sua falta de rentabilidade.

Este dossiê, sem pretender ser exaustivo, volta-se a momentos marcantes da história dos parques e jardins no espaço público brasileiro. Os artigos que o compõe se atém a temas, atores, práticas sociais e conflitos políticos caracterizaram esses espaços ao longo de sua trajetória. Várias são as abordagens utilizadas, capazes de configurar não apenas a riqueza temática proporcionada pelo objeto proposto, mas de trazer à tona aspectos que lhe são comuns.

Cristiane Maria Magalhães volta-se a uma técnica ornamental utilizada ao longo do século XIX e princípios do século XX – a rocaille – bem como aos artesãos que a dominavam e difundiam. Concentrando-se especialmente no Sudeste brasileiro, a autora reconstitui os percursos de dois dos rocailleurs mais importantes do período – o francês Paul Villon e o português Francisco da Silva Reis. Almejando mimetizar a natureza, as rocailles geralmente imitavam a textura de troncos de árvores e de pedras por meio do uso de cimento. Elas podiam ser encontras sob múltiplos formatos, tanto em ornamentos quanto em equipamentos habitualmente presentes nos jardins em estilo paysager: pontes, bordas de lagos e espelhos d’água, cascatas e grutas artificiais, mirantes, coretos e pavilhões, bancos de jardim, mesas, refúgios… E, segundo o gosto da época, as rocailles não eram exclusivas de espaços públicos, pois famílias abastadas as utilizaram tanto em jardins de suas residências urbanas quanto em fazendas. Apesar da sua disseminação, a moda das rocailles não deixou muitas pistas fáceis para sua documentação, haja visto, por exemplo, a raridade de assinaturas de seus artífices inscritas em suas criações. Muitas das obras desapareceram com a chegada, logo após sua voga, do paradigma estabelecido pela arquitetura moderna, também adotado pelo paisagismo e pelo urbanismo brasileiros de então. A autora deste artigo mobilizou diversas fontes para identificar as obras remanescentes, bem como para reconstituir o savoir-faire dos técnicos especializados em rocailles [– chamados por vezes de cascateiros –] que, numa época de grandes intervenções urbanas, trabalharam primeiramente no Rio de Janeiro e em seguida em muitas outras cidades do país.

Aline de Figuerôa Silva leva-nos aos jardins de Fortaleza, no Nordeste do Brasil, na passagem dos séculos XIX e XX. Examina as relações que ali se davam entre as características atribuídas à flora natural e as da vegetação dos jardins públicos desta cidade quente e árida. O imaginário que privilegia os jardins exuberantes do trópico úmido, considerados uma marca de brasilidade, é ali contrariada. A autora volta-se às técnicas desenvolvidas para superar o problema [da aridez]. O cerne do artigo refere-se à escolha das espécies arbóreas plantadas nos espaços examinados e às soluções hídricas utilizadas para combater os efeitos da insolação excessiva e a crônica falta d’água [que assola] a cidade. Ela se detém na implantação de lagos artificiais com finalidades utilitárias (e não decorativas) e, sobretudo, na instalação de cata-ventos de fabricação estadunidense visando ao bombeamento de águas subterrâneas e sua estocagem em reservatórios metálicos. Desaparecidos a partir da década de 1930, esses equipamentos permanecem, contudo, registrados em diversas fontes documentais, escritas e iconográficas. Tais cata-ventos instalados em jardins foram uma singularidade de Fortaleza no âmbito dos jardins urbanos brasileiros.

Os outros três artigos referem-se a jardins marcados pelos princípios de arte e da arquitetura modernas brasileiras, em que a produção de Roberto Burle Marx se impôs com maestria. Vera Beatriz Siqueira detém-se na maneira como o paisagista utilizou elementos arquitetônicos, recolhidos entre os destroços das demolições de imóveis cariocas erguidos no século XIX e primeiras décadas do século XX, para criar composições inusitadas em meio ao seu jardim privado – o Sítio Santo Antônio da Bica, atualmente denominado Sítio Roberto Burle Marx, no Rio de Janeiro. A autora constata uma conexão entre essas práticas de composição a ele específicas e aquelas de colecionador de plantas e objetos de arte que Burle Marx também foi. Segundo Siqueira, ao levar-se em conta a “tradicional [perspectiva] da história do modernismo brasileiro” essas intervenções poderiam ser qualificadas de conservadoras, ou até mesmo de “regressivas”. Sua análise permite, porém, construir novas ferramentas críticas para reler a obra do paisagista. Ao preservar e valorizar esses vestígios arquitetônicos do século XIX e da Belle Époque, Burle Marx contrariou a tendência de menosprezar tais testemunhos praticado por seus colegas, embevecidos que estavam pelo modernismo. Considerado um ícone de sua geração – quando vivo e também depois que partiu – vê-se aqui, contudo, que ele não seguia cartilhas.

Trabalhando o contexto paulista, Fernanda Araujo Curi se interessa, por seu lado, pela longa história de relações particularmente complexas entre Burle Marx e o Parque Ibirapuera, o mais importante espaço paisagístico de São Paulo, inaugurado em 1954 por ocasião do quarto centenário da cidade. Enquanto a maior parte das numerosas construções ali erguidas levam a assinatura de Oscar Niemeyer e de sua equipe, o projeto inicial dos jardins foi concebido por Burle Marx. Esse projeto, no entanto, jamais se efetivou. Apesar disso, paisagista foi ainda o autor de dois outros projetos para o Parque, realizados nas décadas de 1970 e 1990 e somente o último deles foi realizado, ainda que parcialmente. Fernanda Curi examina, ao longo dessa trajetória, as resistências impostas à implantação de cada um desses projetos de Burle Marx. Para tanto, a autora percorre as veredas de uma gestão pública extremamente instável, durante as seis décadas de existência do parque. Ela retoma, ao final, o destino do primeiro projeto, de 1954, do qual algumas pranchas originais pertencem atualmente ao acervo do MoMA. Embora não tenha conseguido realizar esse projeto, Burle Marx, de alguma forma, o perpetuou.

De volta ao Rio de Janeiro, Márcia Regina Romeiro Chuva trata dos processos de patrimonialização do Parque do Flamengo, um projeto de Roberto Burle Marx e do arquiteto Affonso Eduardo Reidy tombado em 1965 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A autora detém-se especificamente sobre as tensões que envolvem os jardins e o projeto arquitetônico do parque nos debates ocorridos no âmbito do Iphan no momento de seu tombamento e também nos que a eles se seguiram. A decisão de tombar o espaço foi tomada no contexto de profundas transformações urbanas sofridas pelo Rio de Janeiro, ocorridas quando a cidade ainda era a capital do país e, em seguida, sob o governo de Carlos Lacerda (1960- 1965) e no período militar, a partir de 1964. Privilegiando uma abordagem centrada na questão do “direito à cidade”, a autora lança luzes contundentes sobre os antagonismos existentes entre a preservação do patrimônio e a especulação imobiliária. E prolongando sua reflexão até as políticas patrimoniais recentes, Márcia Chuva as examina no contexto dos grandes eventos esportivos que ocorreram na cidade, desde os Jogos Panamericanos de 2007 até as Olimpíadas de 2016. Articula essa questão, por fim, com o papel desempenhado pelo Parque do Flamengo na decisão da Unesco, ocorrida em 2012, de conceder à “paisagem cultural” do Rio de Janeiro o título de Patrimônio Mundial.

Este conjunto de artigos pretende contribuir para a renovação, já em curso, relativa aos estudos de parques e jardins do Brasil, especialmente no que toca à superação das perspectivas formalistas que tanto marcaram esse campo de pesquisas. Essas últimas abordagens – ainda bem vivas – emanam de uma história do paisagismo que, até muito recentemente, era sobretudo concebida como uma extensão da história da arte. Este dossiê, deliberadamente interdisciplinar e voltado a questionamentos inovadores, traz à luz atores inesperados, técnicas pouco conhecidas e raramente estudadas ou, ainda, de modos pouco usuais de exercer a preservação patrimonial. Ele almeja ainda contribuir para o questionamento de práticas e paradigmas tão estabelecidos quanto impermeáveis a qualquer problematização.

Lembremos, por fim, que Fernanda Curi destacou claramente a procrastinação das autoridades públicas de São Paulo em implementar os sucessivos projetos de Burle Marx, privando assim a cidade de espaços complexos e de alta qualidade. A história recente do aterro do Flamengo, como relatado por Márcia Chuva, é outra demonstração da permeabilidade das autoridades públicas aos interesses privados pouco afeitos ao tombamento federal do parque e à sua inclusão no perímetro de proteção da Unesco em 2012. Da mesma forma, as iniciativas recentes da Prefeitura Municipal de São Paulo que têm por objetivo privatizar a gestão de todos os seus parques e jardins estão inscritas, sem qualquer contraste, numa história, no mínimo turbulenta, das práticas de valorização e de proteção desses patrimônios pouco conhecidos das cidades brasileiras – que este dossiê espera ter podido auxiliar em sua melhor compreensão.

Notas

1. A concepção desse dossiê – publicado em português por Anais do Museu Paulista e em francês por Brésil(s). Sciences humaines et sociales – originou-se de reflexões vinculadas ao projeto internacional “Do mundo em miniatura ao jardim planetário: imaginar, viver e (re)criar o jardim, dos mundos antigos aos nosso dias”, sediado na Universidade Sorbonne Paris Cité (USPC), reunindo pesquisadores da École des hautes études en sciences sociales (EHESS), da l’École nationale supérieure d’architecture de Paris-Val de Seine, da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

4. Ver, por exemplo, no que tange a São Paulo, o estudo de Vladimir Bartalini (1999)

5. Ver David Scobey (1992) e Elijah Anderson (2011, p. 104-150).

6. Ver Hugo Segawa (1996).

7. Ver Jean-Pierre Bériac (2012) e Carlos G. Terra (2000 e 2015).

8, Ver Guilherme Massa Dourado (2011).

9. Ver Lauro Cavalcanti e Farés El-Dahdah (2009); Lauro Calvalcanti, Farés El- -Dahdah e Francis Rambert (2011) e Jens Hoffmann e Claudia J. Nahson (2016). Essas três publicações foram editadas por ocasião de exposições dedicadas a Burle Marx. A primeira delas, realizada no Paço Imperial do Rio de Janeiro e no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e denominada Roberto Burle Marx 100 anos – a permanência do instável, foi posteriormente reapresentada na Cité de l’architecture et du patrimoine em Paris. A segunda exposição, denominada Roberto Burle- -Marx: A Brazilian Modernist, foi exibida em 2016 no Jewish Museum de Nova York (2016) e, posteriormente, no Deutsche Bank Kunst Halle em Berlin.

10. Ver, por exemplo, os trabalhos de Silvio Soares Macedo (1999 e 2012); Silvio Soares Macedo e Francine Gramacho Sakata (2002) e de Fabio Robba e Silvio Soares Macedo (2002), todos oriundos do projeto de pesquisa Quapá (Quadro do Paisagismo no Brasil, realizado na FAU-USP).

Referências

ANDERSON, Elijah. The Cosmopolitan Canopy: Race and Civility in Everyday Life. Nova York; Londres: W.W. Norton & Company, 2011.

BARTALINI, Vladimir. Parques públicos municipais de São Paulo: a ação da municipalidade no provimento de áreas verdes de recreação. Tese (doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.

BERIAC, Jean-Pierre. Auguste Glaziou, un paysagiste entre Bordeaux et Rio de Janeiro. Revue Archéologique de Bordeaux, Bordeaux, n. 103, p. 231-262, 2012.

CAVALCANTI, Lauro; EL-DAHDAH Farés. Roberto Burle Marx: a permanência do instável. Rio de Janeiro: Rocco. 2009.

CALVALCANTI, Lauro; EL-DAHDAH Farés; RAMBERT, Francis (org.). Roberto Burle Marx: la modernité du paysage. Paris: Cité de l’architecture et du patrimoine / Institut français d’architecture; Barcelone: Actar. 2011.

DOURADO, Guilherme Mazza. Belle Époque dos jardins. São Paulo: Ed. Senac, 2011.

HOFFMANN, Jens; NAHSON, Claudia J.. Roberto Burle Marx: Brazilian Modernist. Nova York: The Jewish Museum; New Haven: Yale University Press, 2016.

MACEDO, Silvio Soares. Quadro do paisagismo no Brasil. São Paulo: FAU-USP, 1999.

________. Paisagismo brasileiro na virada do século – 1990-2010. São Paulo: Edusp / Ed. Unicamp, 2012.

MACEDO, Silvio Soares; SAKATA; Francine Gramacho. Parques urbanos no Brasil. São Paulo: Edusp / Impresa Oficial. 2002.

SEGAWA, Hugo. Ao amor do público: jardins no Brasil. São Paulo: FAPESP / Studio Nobel. 1996.

TERRA, Carlos Gonçalves. Os jardins no Brasil no século XIX: Glaziou revisitado. Rio de Janeiro: EBA / UFRJ. 2000.

TERRA, Carlos Gonçalves. Exchange of Useful Plants between Brazil and England in the Second Half of the Nineteenth-Century: Glaziou and the Botanists of the Royal Botanic Gardens. Kew Bulletin: Official Journal of the Royal Botanic Gardens, Kew, v. 70, n. 1, p. 1-10, 2015.

ROBBA, Fabio; MACEDO, Silvio Soares. Praças brasileiras. São Paulo: Edusp / Imprensa Oficial, 2002.

SCOBEY, David. Anatomy of the Promenade: The Politics of Bourgeois Sociability in Nineteenth-Century New York. Social History, v. 17, n. 2, p. 203-227, 1992.

Paulo César Garcez Marins – Historiador, docente e membro da esquipe curatorial do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), docente dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e em Arquitetura e Urbanismo da USP; editor de Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material.

Mônica Raisa Schpun – Historiadora, pesquisadora do Centre de recherches sur le Brésil colonial et contemporain de l’École des hautes études en sciences sociales (CRBC / Mondes américains – EHESS, Paris) e professora-visitante na FAUUSP (2017-2020); editora de Brésil(s). Sciences humaines et sociales.


MARINS, Paulo César Garcez; SCHPUN, Mônica Raisa. Introdução – Para além dos trópicos e dos consensos: atores, práticas e questões na história dos parques e jardins no Brasil. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.25, n.3, p.9-18, set./dez., 2017. Acessar publicação original [DR].

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O PCH, Programa de Cidades Históricas: um balanço após 40 anos / Anais do Museu Paulista / 2016

Em 1937, um grupo de intelectuais modernistas, mormente arquitetos, ligados ao Ministro Gustavo Capanema, criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) com uma articulação discursiva para a proteção legal de bens culturais sobretudo do período colonial. O Sphan ancorava-se na intenção de localizar e valorizar os suportes da nacionalidade, seja por meio de tombamentos, seja por diversas intervenções de conservação e restauro. Objetivando sobretudo um viés contemplativo e celebrativo dos bens protegidos, as ações federais são a própria sinonímia do Sphan ao longo de décadas, e chamaram a atenção de várias gerações de pesquisadores desde os anos 1980 quando foram defendidas as primeiras teses e dissertações que as analisaram.

No começo da década de 1970, estruturaram-se políticas de preservação do patrimônio cultural em âmbito federal que recolocaram de maneira significativa os conceitos, as estratégias e os atores sociais historicamente envolvidos em sua atuação. As transformações na forma de atuação e, sobretudo, na inserção política da preservação nos anos 1970 e seus desdobramentos no período da redemocratização, têm sido pouco estudadas e compreendidas pela historiografia nacional voltada à problematização das políticas patrimoniais. Apesar do crescimento expressivo de pesquisa nessa temática na última década, há ainda um grande vácuo crítico sobre o lugar da preservação nas políticas de Estado durante a ditadura civil-militar

Sabe-se que os Encontros de Governadores de 1970 e 1972 foram momentos fundamentais de reorganização do aparato estatal na criação de um sistema nacional de patrimônio cultural envolvendo a União, os estados e municípios, e entidades públicas e privadas, como as universidades. A Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) foi transformada em instituto, tendo suas atribuições reforçadas e modificadas.

O esgotamento da eficácia das práticas do órgão nos anos 1960 já levara à aproximação com a Unesco, à sedução pelo turismo e ao interesse pelo planejamento urbano, orientações que serão em boa parte absorvidas pelos projetos governamentais de preservação do patrimônio cultural consubstanciados pelo “Programa de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste para fins turísticos”, mais conhecido por Programa de Cidades Históricas (PCH), de 1973 em diante. A partir da gestão de Jarbas Passarinho no Ministério da Educação e Cultura, entre 1969 e 1974, as práticas federais de preservação se aproximaram dos temas da chamada “herança histórica”. O projeto de “modernização conservadora autoritária” dos governos militares dos anos 1960 e 1970 incluiu os temas da educação e do patrimônio cultural, revalidando identidades criadas na era Vargas.

As ações do PCH, e o próprio campo disciplinar da preservação, serão imersas no referido projeto de modernização conservadora, levada a termo pelo regime militar como parte da estratégia mais ampla pelo Ministério do Planejamento. O PCH foi organizado a partir do final de 1972 como ação interministerial do Planejamento e da Educação e Cultura com vistas a realizar projetos de restauração em monumentos tombados nas cidades históricas do Nordeste. Gestado e gerido fora da área central do Iphan entre 1973 e 1979, o PCH foi um programa de governo para a preservação de cidades históricas no Brasil em que se buscou romper com as rotinas e as práticas históricas do patrimônio cultural de fiscalização de bens privados nas cidades tombadas (garantindo a preservação de certos critérios estético-estilísticos) e de restauração de monumentos considerados excepcionais.

Com objetivo de recuperar cidades históricas da região Nordeste, o Programa viabilizou-se sob argumentos, então em voga, do aproveitamento turístico e econômico das áreas urbanas preservadas. Estimulando a descentralização das ações do patrimônio, valeu-se dos órgãos estaduais de preservação recém-criados para os contratos, obras de restauração e apoio técnico. As universidades foram envolvidas por meio do oferecimento de cursos de restauração, que contaram com a coordenação técnica do Iphan, ao longo de toda a década de 1970.

Conhecer e problematizar as realizações, ideias, os conceitos e práticas desses anos motivaram a organização do dossiê temático “O PCH, Programa de Cidades Históricas: um balanço após 40 anos” dos Anais do Museu Paulista, ancorados na dupla inquietação em relação à pequena reflexão acadêmica sobre o PCH e a profusão de estudos sobre a ditadura civil-militar. Se a ocasião dos 50 anos do Golpe Militar de 1964 redundou recentemente em inúmeras pesquisas e publicações, para o campo das políticas de preservação o período tem passado praticamente incólume, como de resto nas interpretações sobre o lugar da arquitetura e do urbanismo brasileiros no período pós-Brasília. A proposta do dossiê é colocar em debate por meio dos artigos aqui reunidos, as múltiplas ações estabelecidas pelo PCH de maneira direta e indireta.

Em novembro de 2015, foi realizado um seminário de mesmo nome que este dossiê na Universidade de São Paulo, viabilizado pela parceria entre algumas de suas unidades (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Centro de Preservação Cultural e Museu Paulista) e o Iphan, em que se pôde colocar em discussão a temática aqui abordada. A partir da única pesquisa então realizada especificamente sobre o PCH – o mestrado da arquiteta do Iphan Sandra Corrêa – foi estabelecida uma parceria muito frutífera e produtiva com essa autora e com o Iphan, que viabilizou ampliar as perspectivas de compreensão do programa. O evento reuniu a comunidade acadêmica interessada e agentes públicos da área de preservação de estados, prefeituras e do governo federal, fomentando o diálogo a respeito das políticas de preservação na contemporaneidade, a partir de um balanço crítico do legado das experiências de preservação daquele período autoritário. Tais experiências lograram deslocar, pela primeira vez, os artefatos patrimoniais de sua condição inicial de suporte e evidência identitária para novas camadas semânticas, pautadas pelas inquietações ligadas às dimensões de uso e à potencialidade de serem convertidas, em grande medida, a mercadorias ofertáveis ao consumo turístico.

Os artigos aqui apresentados foram, assim, reunidos com o objetivo de problematizar a experiência de preservação nos anos 1960 e 1970, tendo o PCH como mote. Embora as ações do programa tenham se estendido pela década de 1980, trabalhamos prioritariamente com a periodização proposta por Sandra Corrêa, autora do artigo que abre este dossiê e que preconiza que, após 1979, com a absorção do programa pelo sistema Sphan / pró-Memória, o programa muda de concepção e distancia-se dos contornos conceituais e práticos do projeto inicial. Ademais, o cenário político da redemocratização recoloca as políticas da modernização conservadora dos anos anteriores, cujos desdobramentos práticos ainda precisam ser estudados. No entanto, não nos restringimos exatamente aos anos de funcionamento dessa primeira fase do programa, visto que alguns artigos recuaram nos anos 1960 e outros chegam até a contemporaneidade, avaliando os desdobramentos e lições quanto ao programa.

O dossiê organiza os artigos em quatro blocos temáticos. Abrem o conjunto de textos três artigos que interpretam o programa de maneira mais geral, permitindo uma compreensão das realizações e dos debates acerca do PCH nas suas relações com o campo político e cultural do período, de autoria de Sandra Correa, Márcia Sant’Anna, Márcia Chuva e Laís Lavinas.

O segundo grupo de artigos trata do contexto mais ampliado dos temas de preservação nas décadas de 1960 e 1970 como a política de aproximação com a Unesco, o interesse pelo patrimônio natural e arqueológico, objeto do artigo de Cláudia Leal. Leila Aguiar analisa a estrutura turística organizada no período militar e sua relação com as cidades históricas e sua fundamental articulação com o PCH. O historicamente importante lugar da fotografia e do Arquivo do Iphan é tratado no artigo de Eduardo Costa, em face do quadro de mudanças institucionais em curso.

O terceiro bloco de artigos verticaliza as abordagens em experiências concretas realizadas no âmbito do programa. Uma das mais emblemáticas restaurações promovidas pelo PCH – a da Sé de Olinda –, é abordada por Renata Cabral. Os seminais cursos de especialização em restauração e conservação de monumentos realizados por universidades em parceria com o Iphan, são analisados por Flávia Brito do Nascimento. Paulo Ormindo de Azevedo finaliza o dossiê com um artigo que se concentra na figura instigante de Renato Soeiro, propondo novos entendimentos para sua gestão, ainda pouco compreendida em suas ações e implicações.

O olhar ao PCH valeu-se, portanto, de lentes variadas. Da escala ampliada das políticas e dos resultados mais gerais do programa até o olhar a um caso de restauração, esforçamo-nos por compreender as suas temporalidades e experiências diversas, apresentando aos leitores perspectivas, interpretações e inquietações variadas. Buscou-se contemplar temas que fossem essenciais à compreensão e à crítica da experiência do PCH como turismo, políticas culturais, ensino, restauração, além de perspectivas mais globais sobre o funcionamento do programa. Outras inquietações igualmente estimulantes estão sugeridas nos métodos de aproximação utilizados pelos autores, como o questionamento de periodizações, novas propostas de interpretação de personagens e agentes da preservação, além da relação do patrimônio cultural com o Estado autoritário, que ajudam a reconfigurar o PCH num quadro mais ampliado da historiografia corrente. Desse modo, vislumbramos novas possibilidades para pensar criticamente a história do patrimônio cultural no Brasil, que esperamos que sirvam também como convite a novos e necessários estudos.

Flávia Brito do Nascimento – Arquiteta, urbanista e historiadora, docente da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Paulo Cesar Garcez Marins – Historiador, docente do Museu Paulista da USP e dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e em Arquitetura e Urbanismo da USP.

NASCIMENTO, Flávia Brito do; MARINS, Paulo Cesar Garcez. O PCH, Programa de Cidades Históricas: um balanço após 40 anos. Anais do Museu Paulista. São Paulo, n.Sérv., v.24, n.1, p.11-14, jan./abr., 2016. Acessar publicação original  [DR].

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Tendências contemporâneas de reflexão sobre museus e museologia / Anais do Museu Paulista / 2013

Este dossiê indica preocupações atuais de seis pesquisadores, todos professores que têm os museus e ou a museologia como centro de seus estudos. O conjunto destes artigos revela, antes de mais nada, o quanto este campo tem suscitado reflexões cuja interação vem construindo uma teoria que, hoje, é muito mais robusta do que há vinte ou trinta anos atrás.

Em um momento anterior, após a segunda Guerra Mundial, houve uma onda de revisão do papel dos museus no mundo, principalmente a partir do Conselho Internacional de Museus, encabeçada por pessoas como Georges Henri Rivière, onda essa que se traduziu em várias inovações marcantes nos museus, em suas políticas, conceituações, práticas, formações e conformações materiais, mas que correspondeu, no plano teórico, a uma produção dispersa e por vezes ligeira. A genialidade daqueles criadores foi aplicada, sobretudo, aos museus propriamente ditos.

As conquistas por uma museologia social foram amplas, mas reverberações daqueles movimentos iniciados no pós-guerra acabaram por gerar, em várias frentes, um certo abandono do interesse pelo objeto, como se ele representasse apenas uma antiqualha já sem sentido, associada a conceitos e procedimentos científicos ultrapassados (no caso dos museus de ciências), a uma história positivista e celebrativa, já defasada dos novos caminhos tomados pela disciplina histórica (no caso dos museus de história) ou a práticas de elites fetichistas (no caso dos museus de arte). As preocupações com o envolvimento entre museus e comunidades, entre museus e usuários (recusou-se falar, por vezes, em visitantes), levou, paradoxalmente, a um afastamento dos acervos, que acabaram relegados a segundo plano em não poucos museus, principalmente nos menores e mais ligados a seus contextos sociais específicos.

Desde os anos 1980, o panorama dos estudos sobre os museus, sobre a museologia, sobre as coleções e o colecionismo mudou, o mesmo ocorrendo, de forma radical nas últimas décadas, também no Brasil e na América Latina. Contamos hoje não só no panorama internacional, como também no nacional, com novas e diversas publicações – grande parte delas disponível on-line – e diferentes propostas curriculares nos estudos de graduação ou pós-graduação, que abrigam o campo – necessariamente transdisciplinar – dos estudos museológicos. Perspectivas históricas abrangentes trazidas sem dúvida dos continentes norte-atlânticos, mas também da Austrália e da América Latina, têm instigado novas abordagens para enfrentar os desafios dos museus do século XXI. Experiências locais discutindo as especificidades de cada uma das novas tipologias e especialidades dos museus superpõem dados e agregam valor às inúmeras dimensões que os museus reúnem para além dos aspectos mais proeminentes de suas exposições.

Este dossiê que ora se apresenta aos Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material é uma espécie de confluência de caminhos que podem, agora, se cruzar para dar sua contribuição para o fortalecimento da museologia como disciplina acadêmica. Nesse cruzamento, um dos pontos a ressaltar é uma retomada do objeto, dos acervos ou coleções como alvo de preocupações atuais. Ela é clara nos autores que transitam pelo campo da história dos museus, pois reconhecem no objeto o eixo principal tanto do estabelecimento das instituições como dos sentidos de que os museus puderam se revestir (Lopes e Podgorny; Poulot). Outro ponto de destaque é a retomada de uma ideia de experiência sensível, agora entendida como vivencial, propiciada especificamente pelos museus (Semedo). Esses autores fazem releituras muito atuais daquilo que é essência do museu e, assim, matéria para reflexão da museologia: sua conformação centrada, de um lado, nas coleções e de outro, naqueles que, de alguma forma, as experimentam.

Irina Podgorny e Margaret Lopes trazem a contribuição de bibliografia internacional sobre os museus, em seu olhar voltado particularmente para os museus argentinos, discutindo entre outros aspectos os papéis que os museus desempenharam no final do século XIX, ressaltando a importância da constituição de seus arquivos frente ao paradoxo criado pela própria missão impossível de armazenamento de diversos mundos e de torná-los inteligíveis. Lançam como desafio, às novas gerações de estudiosos de museus, museólogos que começam a se formar, a proposta de pensar como escrever essas histórias incorporando seus agentes humanos e não humanos e o conjunto de acontecimentos e circunstâncias que sustentam seus êxitos e fracassos.

Dominique Poulot propõe uma aproximação da história com os estudos de cultura material e a antropologia para uma mudança ou acréscimo de perspectiva nas pesquisas sobre história dos museus, trazendo para isso uma visão ampla dos caminhos que este campo vem tomando, com fundamento em um leque rico e diversificado de bibliografia que, por ele conectada, torna-se referencial. Propõe olhar o objeto de museu com mais atenção, colocando-o no centro dos significados e valores a investigar, não mais como algo que possa trazer respostas apenas por sua materialidade, mas porque esse objeto é resultante de uma seleção, de uma escolha daquilo que, por suas qualidades, se decide preservar e continua a atrair e interessar a diferentes públicos.

Alice Semedo, partindo da experiência do curso de Museologia da Universidade do Porto, que já conta mais de duas décadas de existência, indica a possibilidade de defender uma museologia crítica e reflexiva, cujo lugar de investigação é baseado nas tendências mais recentes, que mudam o centro da reflexão do museu institucional e sua força produtiva para a experiência vivencial e sensível do visitante; do valor cognitivo do objeto para o valor educacional da experiência. Com esse pressuposto, propõe trabalhar num espaço de encontro da teoria com a prática para superar a ideia, ainda corrente, de que a museologia teórica seja algo distante do mundo real dos museus. Afirma a necessidade de desenvolvimento teórico da museologia para possibilitar a versatilidade e a adaptabilidade do museu e de seus profissionais às mudanças sociais e às questões que elas trazem ao longo do tempo.

Henrique Coutinho Gouveia em um exemplo explícito de quanto o interesse histórico pelos museus se alargou, apresenta um panorama museológico de Cabo Verde, recuperando seus antecedentes setecentistas e oitocentistas, para analisar a trajetória e os desafios enfrentados pelos museus desse país, especialmente no período posterior à sua independência em 1975. Esse panorama é ainda ampliado por abranger uma análise comparativa com outros países africanos também correspondentes a antigos territórios coloniais portugueses de ultramar: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

O dossiê é finalizado com uma sistematização analítica das revistas de museus e de museologia em língua espanhola e portuguesa, elaborada por Jesús- Pedro Lorente. Publicações científicas são canais fundamentais de institucionalização dos diversos campos disciplinares. Não seria diferente no caso da Museologia. O artigo de Lorente contempla um levantamento histórico das revistas voltadas para os estudos museais desde as primeiras publicações espanholas, inclusive com comentários sobre periódicos brasileiros. Disponíveis ou não online, publicações brasileiras associadas aos novos cursos de museologia no país começam a contribuir para consolidar a área no Brasil e na América Latina, somando-se a outras publicações como os Anais do Museu Histórico Nacional e estes Anais do Museu Paulista, que de há muito sistematicamente divulgam reflexões na área.

Este dossiê espera contribuir aos estudos de Museologia que se ampliam pelo país, atraindo novos públicos leitores, de áreas tão diversas como a Antropologia e ou a Ciência da Informação, que abrigam os novos cursos de graduação na área e as três pós-graduações já implantadas, nos últimos anos, no Brasil (UNIRIO, USP e UFBA). Além daquela diversificada gama de pesquisadores que se deparam, em um momento ou outro de suas trajetórias, com as questões dos museus, de seus públicos, de objetos, de coleções e do patrimônio cultural material ou imaterial.

Maria Margaret Lopes – Professora convidada dos Programas de pós-graduação de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP, de Ciências da Informação da UNB, Brasil e de História da Ciência/Museologia da Universidade de Évora- -CEHFCi, Portugal. E-mail: <mariamargaretlopes@ gmail.com>.

Heloisa Barbuy – Professora e curadora do Museu Paulista e Museu Republicano “Convenção de Itu”/USP. Professora do Programa de pós-graduação em História Social da FFLCH/ USP e do Programa de pós-graduação interunidades em Museologia/USP. E-mail: <[email protected]>.


LOPES, Maria Margaret; BARBUY, Heloisa. Tendências contemporâneas de reflexão sobre museus e museologia. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Pauo, v.21, n.1, p.11-13, jan./jun., 2013.

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Cartografia de uma história – São Paulo colonial: mapas e relatos / Anais do Museu Paulista / 2009

O dossiê que ora apresentamos não é mera tradução de Cartografia de uma historia São Paulo colonial: mapas e relatos, exposição realizada no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, entre 11 de março de 2005 e 11 de junho de 2006, sob coordenação da Cátedra Jaime Cortesao‑USP. É também seu desdobramento. A interação com pesquisadores de diferentes áreas e instituições, ao longo da concepção e montagem da exposição, motivou o convite para elaborarem ensaios relacionados aos vários temas propostos pela curadoria, de modo a ampliar os debates e reflexões então suscitados. Desse esforço, resultaram dois dossiês para publicação nos Anais do Museu Paulista, neste número e no próximo.

Este primeiro dossiê trata da concepção curatorial e da cartografia quinhentista e seiscentista, contemporânea da expansão marítima européia; o segundo, vai focalizar a cartografia setecentista e o processo de formação territorial do Brasil. Ambos têm em comum uma perspectiva teorico‑metodologica que entende a cartografia como fonte material para estudos históricos, evitando‑se seu recorrente uso ilustrativo. Tomados como evidência material para a história social e cultural, os documentos cartográficos também apresentam enorme potencial para os estudos geopolíticos e fundiários, que extrapolam seus atributos de raridade estética ou mercantil, tão banalizados no mundo contemporâneo.

O primeiro Dossiê, publicado neste número, foi dividido em duas partes: a primeira, dedicada aos exercícios cartomuseográficos realizados durante a montagem da referida exposição; a segunda, orientada às diferentes leituras da cosmologia e cosmografia do Renascimento. A primeira parte, denominada Experimentações cartomuseográficas, apresenta três ensaios sobre o processo de concepção interdisciplinar e interdepartamental [4] da exposição no Museu Paulista – na atualidade, um dos principais centros de pesquisa dedicados aos estudos de cultura material. Estas experimentações foram motivadas pelo desafio de enfrentar esse “lugar de memória” (na expressão consagrada de Pierre Nora), arquitetado por Affonso d´Escragnolle Taunay (seu terceiro diretor), para evocar a épica bandeirista.

Uma das primeiras iniciativas de Taunay quando assumiu a direção do Museu Paulista, em 1917, foi iniciar a coleta de documentos visuais e referências textuais que pudessem celebrar o passado sertanista. A concepção da sala Cartografia colonial e documentos antigos (Figura 1), vinculou-se diretamente com esse intento. Ali foi exposta a monumental Carta Geral das Bandeiras Paulistas, executada sob sua orientação e desenhada por Gregório Colás e José Domingues Santos Filho, cartógrafos do Museu Paulista, em escala de 1:5.500.000, em 1921. Figurando com grande destaque no centro da principal parede da sala, a Carta procurava ilustrar didaticamente a importância dos bandeirantes paulistas na construção do território nacional. Na sala, a Carta Geral esteve circundada pelos retratos de grandes vultos da pátria: Rio Branco, Alexandre de Gusmão (evocados por sua relação com a definição de fronteiras), D. Pedro I, José Bonifácio, Domingos Jorge Velho, etc. Não seria um exagero dizer que a cartografia foi um recurso muito importante na “cenarização museológica” proposta por Taunay, como fica patente no seu empenho em mandar copiar os mapas brasileiros nos principais arquivos estrangeiros e nacionais.

Romper com esse viés interpretativo, materializado pelo acervo permanente e pelos espaços internos pre‑definidos, obrigou‑nos a buscar novos recursos tecnológicos e museográficos para, simultaneamente, desconstruir e reconstruir uma outra lógica de associações entre os objetos do acervo e a documentação cartográfica que tínhamos em mãos. Procurando escapar da perspectiva cartográfica tradicional de uma exposição linear de mapas, instrumentos e livros, recorremos aos novos suportes audiovisuais disponibilizados por tecnologias contemporâneas de georreferenciamento, composição musical e animação em 3D.

O artigo de Ricardo Bogus – responsável pela concepção museográfica – expõe a estrutura e as peculiaridades deste projeto expositivo. As fotos publicadas revelam os artifícios lúdicos mobilizados na ambientação das diversas salas, com o intuito de captar a atenção dos visitantes, instigando o ato de descobrir. Já Anna Maria Kieffer apresenta o roteiro sonoro elaborado para a sala dedicada à cartografia dos sertanistas e às experiências de devassamento dos sertões da capitania de São Paulo. As representações gráficas e discursivas foram convertidas sonoridade como suporte, recriando com rara sensibilidade uma cartografia inédita das vivências no sertão. Inspirada nas leituras de diários, testamentos, atas das câmaras, documentos etnográficos e mapas rústicos feitos nos caminhos, nas trilhas e rios, a trilha sonora pôs em destaque os aspectos intangíveis das percepções de tempo e espaço: durações das viagens, os sabores da culinária bugre, as rezas e as ladainhas de proteção dos sertanistas.

No artigo de Paulo Martini, Joaquim Godoy, Ricardo Arduino, Sílvio Coimbra e Guilherme Silva, o leitor terá oportunidade de acompanhar os resultados da parceria com a equipe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que permitiu o georreferenciamento das redes – urbanas e de caminhos – e seus fluxos, transpondo, para imagens de satélite, informações de mapas antigos. Tais exercícios nos dão a real dimensão virtual inscrita no impulso cartográfico, que plasmou o território ao dar‑lhe tangibilidade. As tecnologias de última geração facultam não só esse diálogo mas também a aproximação de tempos distintos, permitindo revisitar antigos debates historiográficos sobre a configuração geofísica e geopolítica do território brasileiro, bem como assinalar as redes de caminhos e cidades desenhadas ao longo dos três primeiros séculos da colonização, acompanhando as mutações das fronteiras políticas da Capitania de São Paulo.

A segunda unidade deste dossiê – Leituras da cosmologia e cosmografia do Renascimento –, com perfil mais investigativo do que experimental, apresenta um conjunto de cinco estudos, aprofundando as possibilidades de leitura dos mapas. Partindo do pressuposto epistemológico de que mapas são representações visuais e culturais (e não, imagens miméticas da realidade espacial), esta unidade traz uma pequena amostra das potencialidades de abordagem da temática em questão. Com olhares variados para exemplares da era dos Descobrimentos, os autores interpretam as cosmologias e cosmografias que, desde a chegada dos europeus à América, transformaram completamente o modo de ver e representar o mundo.

Mundos em miniatura: aproximacao a alguns aspectos da cartografia portuguesa do Brasil (seculos XVI a XVIII), de Joaquim Romero Magalhães, explora, numa perspectiva de conjunto, o lento processo de conhecimento e tradução visual resultante da expansão ultramarina e da colonização dos Novos Mundos conquistados por Portugal.

Por intermédio de um estudo de caso, o artigo A carta nautica de Piri Reis, 1513, do Almirante Max Justo Guedes, descortina as práticas de apropriação de conhecimentos cartográficos presentes no famoso mapa do Almirante otomano Piri Reis, que se valeu da experiência portuguesa para compor a sua carta náutica.

O ensaio Volta ao mundo por ouvirdizer: redes de informacao e a cultura geografica do Renascimento, de Plínio Freire Gomes, problematiza a dimensão estratégica da circulação das informações geográficas na época da expansão ultramarina. Mostra como os segredos cartográficos registrados nas cartas‑padrao ibéricas, monopolizadas pelas casas de contratação, estiveram sujeitos a um contínuo processo de corrosão. De maneira curiosa, versa sobre a contraditória necessidade das Coroas ibéricas de ratificar a posse dos novos territórios coloniais através da publicidade, o que contrariava a política do sigilo, então vigente.

No mesmo diapasão, Dante Martins Teixeira – em seu Todas as criaturas do mundo: a arte dos mapas como elemento de orientacao geografica – empreende uma densa interpretação iconológica dos mapas medievais e renascentistas, mostrando o papel e o significado das figurações no reconhecimento de terras desconhecidas pela cristandade européia. Num mundo em que latitudes e longitudes eram pouco precisas ou confiáveis, os acidentes da paisagem, os povos existentes e até mesmo determinados componentes da fauna e flora foram variáveis de extrema importância para a orientação geográfica, extrapolando sua dimensão de meros adereços decorativos.

Por fim, o artigo de Ana Paula Torres Megiani – Memoria e conhecimento do mundo: colecoes de objetos, impressos e manuscritos nas livrarias de Portugal e Espanha, seculos XVXVII – repisa a temática da circulação e consumo de mapas nas Câmaras de Maravilhas e Gabinetes de Curiosidades, assim como nos espaços da Corte filipina. Explora a especificidade do “colecionismo” no período, analisando as livrarias privadas de homens como Manoel Severim de Faria, em Portugal, e Jerônimo de Mascarenhas, na Espanha, ambos contemporâneos da União Ibérica.

Completa esse dossiê o audiovisual Desenhos do Mundo, executado por Paulo Pastorello e João de Abreu Sodré, que o leitor poderá acessar virtualmente no site da coleção SciELO Brasil. Concebido para uma das salas da exposição supracitada, entre as modernas tecnologias empregadas na mostra, o audiovisual pretendeu desnaturalizar as representações e percepções morfográficas dos oceanos e continentes, convencionalmente cristalizadas em nosso imaginário.

Nessa empreitada, contamos mais uma vez com a sensibilidade do compositor eletroacústico belga Leo Kupper, que compôs a trilha sonora. No mesmo site, também será possível ouvir a trilha sonora de Anna Maria Kieffer, idealizada para sala dos sertanistas.

Nesta longa trajetória, da exposição ao dossiê que ora apresentamos, contamos com as gentis colaborações de diversos pesquisadores e profissionais, aos quais agradecemos imensamente o apoio: o Almirante Max Justo Guedes, Rosemarie Érika Horch (in memoriam), o professor Joaquim Romero de Magalhães, João Carlos Garcia, Maria Marlene de Souza (Ministério das Relações Exteriores), Dulce Maria Faria (Biblioteca Nacional) e a equipe de Miguel Pacheco Chaves, especializada no tratamento de imagens digitais e impressão em alta resolução.

Nada disso teria sido possível sem o entusiasmo e ímpeto realizador de Eni Mesquita Samara, diretora do Museu Paulista na ocasião da exposição.

Notas

4. Professores, pesquisadores e estagiários do Museu Paulista, do Departamento de História da FFLCH e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Beatriz P. Siqueira Bueno – Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, curadora‑cientifica da exposição Cartografia de uma historia Sao Paulo colonial: mapas e relatos. E‑mail: <[email protected]>.

Íris Kantor – Docente do Departamento de História da FFLCH‑USP, curadora‑cientifica da exposição Cartografia de uma historia Sao Paulo colonial: mapas e relatos. E‑mail: <[email protected]>.

Vera Lúcia A. Ferlini – Docente do Departamento de História da FFLCH‑USP, coordenadora‑geral da exposição Cartografia de uma historia Sao Paulo colonial: mapas e relatos. E‑mail: <[email protected]>.


BUENO, Beatriz P. Siqueira; KANTOR, Íris; FERLINI, Vera Lúcia A. Cartografia de uma história: exercícios cartomuseográficos e releituras cosmográficas – séculos XVI e XVII. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.17, p.11-15, jan./jun., 2009.  Acessar publicação original [IF].

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Fazer história: o estatuto das fontes e o lugar dos acervos nas pesquisas de história de arquitetura e da cidade no Brasil / Anais do Museu Paulista / 2016

Entretanto acontece com isso o mesmo que com a caça às

borboletas; o pobre animal treme na rede, perde suas mais belas

cores; e quando se apanha de supetão, está finalmente duro e

sem vida; o cadáver não faz todo o animal, há alguma coisa a

mais, uma parte essencial e nesse caso, como em todo outro,

uma parte essencialmente essencial: a vida.

Goethe, Carta a Hetzler, 1770

Cidade e arquitetura são objetos de pesquisa que apresentam uma multiplicidade de abordagens e de interpretações. Se ambas podem ser vistas a partir de suas características materiais, parece igualmente importante, ao se buscar construir as suas narrativas históricas, recuperar aquilo que Goethe lembrava como “uma parte essencialmente essencial: a vida”. Pode-se afirmar sem constrangimentos que esse tem sido um dos caminhos de pesquisa mais profícuos nos últimos tempos, incorporando-se às interpretações, além das dimensões técnicas e disciplinares, a dimensão humana da cidade e da arquitetura.

Ao recuperarmos o caminho que os estudos no campo seguiram no Brasil com a consolidação dos programas de pós-graduação em arquitetura e urbanismo, entre os anos de 1980 e 1990, juntamente a um conjunto significativo de eventos acadêmicos, [3] notamos, por um lado, um progressivo distanciamento da prática projetual – o que sem dúvida contribuiu para a autonomização das pesquisas em história –, e, por outro, uma aproximação às ciências humanas, num “processo controlado de empréstimos recíprocos” em que se incentivou a interdisciplinaridade (SALGUEIRO, 2001, p. 16).

Nesse percurso, houve uma ampliação e diversificação não apenas do número de pesquisas nessa área, mas das próprias tipologias documentais mobilizadas, incorporando-se, para além de fontes mais afeitas ao campo, como planos urbanos e projetos de arquitetura, um sem-número de outros artefatos que passaram também a ser vistos como documentos (LE GOFF, 1990, p. 535-553). Ao mesmo tempo, referenciais teóricos de outras disciplinas, sobretudo os da História, mas ainda da Sociologia, Antropologia, Psicologia, Economia, entre outros, passaram a alimentar investigações que revisavam temas e agentes de narrativas consagradas e formulavam novos objetos de pesquisa, contribuindo para um aprofundamento historiográfico significativo.[4] A sofisticação dessas abordagens e análises produziram ao longo do tempo obras de referência fundamentais para a formação de novas gerações, incentivando a continuidade da reflexão pelos jovens pesquisadores que aprofundariam as pesquisas, formulando novos problemas e estabelecendo novas linhas de investigação.

Como um passo decorrente dos avanços conseguidos até aqui, e considerando as especificidades da cidade e da arquitetura como objetos de estudo da História, parece oportuno refletir de maneira mais detida sobre questões teórico-metodológicas atinentes à área. Do nosso ponto de vista, tanto a cidade como a arquitetura devem ser entendidas como construções sócio-históricas que envolvem relações diversas e assumem sentidos culturais complexos, exigindo para a sua análise uma multiplicidade de escalas de observação, sem se definir previamente hierarquias entre macro e microfenômenos (REVEL, 1996; LEPETIT, 2001, p. 191-226).

Compartilhamos daquilo que Bernard Lepetit nomeou de uma compreensão “sistêmica” da cidade, e também da arquitetura, na qual o objeto a ser investigado é sempre entendido dentro de um sistema que o engloba e, ao mesmo tempo, analisado ele próprio como um sistema cujos elementos ganham sentido uns em relação aos outros (LEPETIT, 2001, p. 56). Isso implica em considerar as dimensões de artefato da arquitetura e da cidade como coisa fabricada, mas que geram e suportam um complexo campo de forças econômicas, territoriais, especulativas, políticas, sociais e culturais, historicamente produzidas a partir do envolvimento de diversos agentes, comportando ainda uma terceira dimensão, também fundamental, da representação (MENESES, 1996, p. 149). Frente a essa abrangência conceitual e analítica, e ao fato de que o passado não é simplesmente conservado, mas reconstruído na história continuamente por meio de problemas, a escolha das escalas de abordagem define, além de um ponto de vista, estratégias e possibilidades de conhecimento, assumindo não apenas um papel descritivo, mas também explicativo (LE GOFF, 1990; LEPETIT, 2001).

Os artigos que compõem o dossiê Fazer história: o estatuto das fontes e o lugar dos acervos nas pesquisas de história da arquitetura e da cidade no Brasil compartilham dessa compreensão. Partindo de trabalhos anteriores comprometidos com as revisões historiográficas em curso no campo da arquitetura, da cidade, da habitação e do patrimônio acima mencionadas, os autores reunidos neste dossiê apresentam os andaimes teórico-metodológicos de suas pesquisas, enfatizando as relações entre problemas históricos, fontes e arquivos. Seus trabalhos foram desenvolvidos individual e coletivamente em diferentes instituições, apresentados e debatidos em eventos acadêmicos e no cotidiano da prática docente, incorporando críticas e sugestões, e avançando em seus resultados.

Esse diálogo teve início, em 2010, no I Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (Enanparq) com a mesa Leituras, diálogos e conflitos: as relações no espaço construído e imaginado entre Brasil, América e Europa, da qual participaram Ana Claudia Veiga de Castro, Artemis Rodrigues Fontana, Fernando Atique, Flávia Brito do Nascimento, Joana Mello de Carvalho e Silva, Maria Luiza de Freitas, Marianna Boghosian Al Assal e Silvana Barbosa Rubino. Uma nova rodada de discussões, intitulada Diálogos e conflitos no espaço construído e imaginado entre Brasil, América e Europa, foi apresentada, em 2012, no XI Congresso Internacional da Brazilian Studies Association (Brasa). Nessa oportunidade, foram incorporados ao grupo os pesquisadores Dinalva Derenzo Roldan, Michelly Ângelo, Sabrina Studart Fontenelle Costa, Sidney Piocchi Bernardini e Nilce Aravecchia-Botas. As conversas e trocas de experiências travadas nesses encontros animaram a proposição de dois simpósios temáticos articulados, Documentos e arquivos da história da arquitetura e da cidade: problemas e métodos I e II, realizados no III Enanparq, em 2014, ganhando as contribuições dos pesquisadores Amália Cristóvão dos Santos, Eduardo Augusto Costa e Fernanda Pitta e avançando a partir dos comentários de Paulo Cesar Garcez Marins.

Como desdobramento dessas reflexões e no intuito de consolidá-las, criamos, em 2015, um grupo de pesquisa, Teoria e Método em História da Arquitetura e da Cidade, no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).[5] Um primeiro resultado do grupo foi apresentado no Simpósio Temático Teoria e método em História da Arquitetura e da cidade, durante o IV Enanparq (2016), buscando ampliar a rede de pesquisadores interessados em discutir as questões teórico-metodológicas indicadas a partir da perspectiva da história cultural e transnacional.[6]

Esse dossiê, que compõe mais um desses resultados, recupera o conjunto de discussões travadas especialmente durante o III Enanparq que seguiram sendo debatidas em outros fóruns e em muitos casos refletem o avanço das próprias pesquisas. Isso permitiu reformulações importantes em cada texto, no sentido de precisar questões, refinar argumentos e aprofundar a compreensão e o manejo dos instrumentos teórico-metodológicos escolhidos. Publicá-los aqui permite ao debate uma nova etapa. Convém notar que, diferentemente do que foi apresentado no III Enanparq, os artigos ora publicados enfatizam a reflexão acerca das relações entre problemas históricos e fontes documentais, procurando historicizar a sua produção, difusão e consumo, motivo pelo qual, em alguns casos específicos, também os arquivos foram objeto de análise crítica.

Várias são as possibilidades de diálogo e cruzamentos entre os textos, mas priorizou-se na organização desse dossiê um movimento que parte da reflexão dos arquivos, caminha para a análise dos documentos e volta aos arquivos, numa espécie de círculo analítico que engloba da escala do edifício à da cidade e a partir dela volta-se ao edifício, no qual arquivos, documentos e escalas de abordagem diversas perpassam todos os trabalhos em enfoques variados.

Outro ponto comum aos trabalhos do grupo, deve-se notar, é a filiação teórica, explícita ou implícita, à Escola dos Annales e seus desdobramentos, evidenciada na recuperação do passado sempre a partir de questões do presente, considerando-se a multiplicidade do tempo histórico e a necessidade da aproximação às demais ciências sociais. Se esse caminho não é particular dos Annales, é evidente que a força dessa escola historiográfica no Brasil e, em particular, na Universidade de São Paulo, impregna os trabalhos aqui reunidos (NOVAIS; SILVA, 2011, p. 7-70). Não à toa, a atenção em todos os trabalhos ao estatuto das fontes de pesquisa, tomando como documento “tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”, como já formulou uma vez Jacques Le Goff, mas sem jamais esquecer o papel fundamental da crítica a esse documento como um “monumento” (LE GOFF, 1990, p. 540).

O artigo que abre o dossiê, Da fotografia à cultura visual: Arquivo Fotográfico e práticas de preservação do Iphan, assinado por Eduardo Augusto Costa, desconstrói a lógica, a estrutura, o funcionamento e o discurso do arquivo fotográfico daquela instituição, revelando seu papel-chave na construção da narrativa da história da arquitetura e do patrimônio no Brasil. Dominando a historiografia em ambos os campos, o autor contribui para o debate ao apontar a centralidade que a fotografia assumiu na organização e manutenção do projeto cultural para o país encampado pelo Iphan desde a sua fundação. Centralidade esta que envolveu usos diversos da fotografia, seja como registro supostamente objetivo, seja como prova do bem em análise em seu estado dito original, seja como obra acabada; definidos conforme intenções específicas que o autor recupera com precisão ao investigar os conjuntos documentais que compõem o referido arquivo e a sua organização. Assim, além da atenção ao arquivo, o autor ilumina o estatuto da fotografia como fonte, um documento recorrente entre os historiadores da arquitetura e do patrimônio, nem sempre objeto de uma crítica acurada e circunstanciada.

Se o Arquivo Fotográfico do Iphan surgiu a partir de uma concepção clara de arquitetura e patrimônio nacional, cuja imagem se procurou controlar a partir da seleção e circulação rigorosa de imagens, como revela Costa, o Acervo de Projetos da FAUUSP – também aqui analisado – foi resultado de um conjunto de contingências que garantiu a guarda de diversas propostas e práticas arquitetônicas. A diferença, como procura mostrar Joana Mello de Carvalho e Silva no artigo Um acervo, uma coleção e três problemas: a Coleção Jacques Pilon da Biblioteca da FAUUSP, tem relação com as especificidades do processo de constituição dos campos profissional e historiográfico da arquitetura. Além da análise aprofundada do acervo em questão, também ele entendido como um constructo sócio-histórico, a autora se dedica a criticar os documentos ali guardados, apresentando os rendimentos que eles podem alcançar à luz de três problemas interligados, referentes à prática dos arquitetos, às possibilidades de inserção social e profissional dos estrangeiros e a sua contribuição para a construção da cidade de São Paulo entre os anos 1930 e 1960.

A relação dialética entre pesquisa histórica e constituição de arquivos é também um dos aspectos tratados por Nilce Aravecchia-Botas no artigo Habitação pública e modernização capitalista: uma relação dialética entre fontes de pesquisa e procedimentos de análise, como se verá mais adiante. Antes de recuperá-lo, contudo, cumpre seguir com o enfoque mais detido a respeito da natureza dos arquivos a partir do texto apresentado por Amália Cristovão dos Santos, A América portuguesa sob as luzes do scanner: arquivos, reprodução e manipulação digital da cartografia histórica. Nesse caso, a escala de observação se amplia do edifício para o território e o enfoque desliza da organização dos arquivos para a difusão dos documentos, considerando a informatização da consulta e da produção de documentos cartográficos.

Como nos artigos anteriores, Amália dos Santos faz uma revisão historiográfica precisa, seguida de uma detida análise documental, para chamar a atenção para a importância de se pensar na produção, circulação e consumo da cartografia, desde a sua elaboração original até a sua digitalização, bem como de se empreender as análises a partir de problemas históricos bem definidos. Por meio de exemplos específicos, pondera que as transformações da informática que incidiram sobre os processos de reprodução, divulgação e manipulação de mapas não garantem em si novas descobertas ou pontos de inflexão na discussão historiográfica, se não forem observadas as questões anteriormente indicadas, mas aponta que elas permitem novas articulações entre dados de pesquisa, tirando da sombra agentes sociais antes ausentes na construção das narrativas.

Do território passamos à cidade com o artigo Figurações da cidade: um olhar para a literatura como fonte da história urbana, escrito por Ana Claudia Veiga de Castro. A autora foca na escala urbana e atenta para um documento que tem sido recorrente na história da cidade, a literatura, cujos desafios para sua incorporação impõem um conjunto de reflexões de ordem teórico-metodológica. Ao recuperar alguns autores que se apoiaram na literatura para pensar ou tratar da cidade moderna, ainda hoje importantes dentro e fora desse campo, tais como Raymond Williams, Marshall Berman, Antonio Candido, Nicolau Sevcenko, Flora Süssekind, Maria Stella Bresciani, constrói um panorama dos estudos urbanos como um campo ampliado que engloba a História, a Sociologia e as críticas literária e urbana, em busca de precisar a maneira com que a literatura foi e é mobilizada em cada um desses trabalhos. Alinhada com a perspectiva histórica cultural urbana que, de algum modo, atravessa todos esses trabalhos, Ana Castro retoma as pesquisas que desenvolveu inicialmente sobre São Paulo, e a mais recente, voltada para a América Latina, apresentando reflexões sobre o uso da literatura como documento, seja através de experiências empíricas, seja por meio de investigações de cunho teórico, seja ainda na articulação entre as duas abordagens, em sua pesquisa atual.

Se no texto de Ana Castro a literatura é o documento central para se pensar a cidade, no artigo Patrimônio cultural e escrita da história: a hipótese do documento na prática do Iphan nos anos 1980, de Flávia Brito do Nascimento, a própria cidade é tomada como fonte central da reflexão. Tal apropriação surge na esteira das revisões historiográficas empreendidas a partir dos Annales pelos próprios técnicos do Iphan, que definiriam cidades como Laguna, em Santa Catarina, e Cuiabá, em Mato Grosso, além de localidades urbanas como o Morro da Conceição e a Praça XV de Novembro no Rio de Janeiro, como fontes históricas, justificando por sua potência documental então atribuída a necessidade de seus tombamentos. Tomando o caso de Laguna, Flávia Brito mostra como essa concepção implicou e foi motivada por um entendimento novo não só do espaço urbano, como do próprio tombamento, no momento exato em que aquela revisão historiográfica conhecia novos desdobramentos que ressignificariam os artefatos em suas diversas escalas.

As mudanças nas políticas patrimoniais e o tenso diálogo estabelecido com a população atravessam também o artigo de Fernando Atique, A midiatização da (não) preservação: reflexões metodológicas sobre sociedade, periodismo e internet a propósito da demolição do Palácio Monroe. Sem perder de vista a escala da cidade, o autor apresenta o complexo circuito social que envolveu a produção do Palácio Monroe no início do século XX, a recusa da proposta de seu tombamento e a consequente demolição do edifício nos anos 1970, bem como sua rememoração contemporânea. Para tanto, Atique se vale não apenas de documentos oficiais, advindos dos órgãos de preservação e da administração estatal ou do discurso autorizado dos arquitetos, mas de uma plêiade de fontes documentais, algumas delas já incorporadas pelos historiadores do campo, como revistas e jornais, outras novas, advindas dos processos de informatização, como sites, blogs e páginas produzidas por um público na maioria dos casos leigo, mas interessado pela cidade, seu passado e patrimônio. Tais documentos dão espaço para outras vozes, à semelhança do artigo de Santos, que, neste caso, reforça o argumento de que a preservação não é um problema técnico, restrito ao campo da arquitetura e do urbanismo, mas antes de tudo um problema social, algo que ressoa nos artigos de Costa e Brito.

O esforço de manejar um conjunto amplo e interligado de documentos – projetos e planos, fotografias, entrevistas, periódicos, documentos administrativos, a própria arquitetura, entre outros – foi enfrentado também por Nilce Aravecchia com o intuito de investigar a produção pública de habitação social no Brasil entre os anos 1930 e 1964. Esse empreendimento foi apoiado e contribuiu para constituição do acervo do Grupo Pioneiros da Habitação Social no Brasil, coordenado por Nabil Bonduki, cujos documentos foram revistos à luz de novas questões e aportes teóricos, que ajudaram a construir uma interpretação própria sobre essa produção, dentro do processo de consolidação do sistema capitalista, e considerando suas contradições, limitações, mas também potências, tanto disciplinares quanto sociais.

Como se vê por esta Introdução, há entre os artigos um conjunto de pressupostos teórico-metodológicos comuns, fruto de um trabalho que se buscou coletivo, sem perder de vista as especificidades de cada uma das pesquisas. Trabalho que tem compromissos com a investigação acadêmica, sem abandonar os seus sentidos políticos, construído nos arquivos, mas também em sala de aula, e que quer ser uma contribuição para aqueles que se dedicam a pensar a história da cidade e da arquitetura a partir de uma perspectiva cultural ampliada.

Notas

3. Merecem destaque pela contribuição na formação dos pesquisadores que aqui escrevem, e pelos diálogos estabelecidos com os seus trabalhos, os programas e grupos de pesquisa estabelecidos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (IAU USP), e nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAU UFRGS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU UFRJ), da Universidade de Brasília (FAU UnB) e da Universidade Federal da Bahia (FAU UFBA). Dos eventos, destacam-se o Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (SHCU), os encontros da Associação Nacional de Pesquisa e Pós- -Graduação em Arquitetura (Anparq) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur), bem como o Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação e o recém-criado Seminário Ibero-americano de História Urbana. Ainda deve-se mencionar os seminários promovidos pela representação brasileira da organização não governamental Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourghoods of Moderna Movement (Do. co.mo.mo), que também contribuiu para tais aprofundamentos.

4. Para um breve histórico da consolidação dos dois campos, ver Ana Claudia Veiga de Castro e Joana Mello de Carvalho e Silva (2016).

5. O grupo conta atualmente com oito pesquisadores: Ana Claudia Veiga de Castro, Joana Mello de Carvalho e Silva, que coordenam o grupo, e ainda Amália dos Santos, Eduardo Costa, Fernanda Pitta, Flávia Brito do Nascimento, Marianna Boghosian, Nilce Aravecchia e Julianne Bellot Rolemberg Lessa.

6. Também como resultado do grupo destaca-se a criação da disciplina História da Arquitetura e da cidade: Teoria e Método dentro do PPG – FAUUSP, oferecida desde 2015

Referências

CASTRO, Ana Claudia Veiga de; SILVA, Joana Mello de Carvalho e. História e historiografia da arquitetura e da cidade. In: CABRAL, Claudia Costa; COMAS, Carlos Eduardo (Orgs.). ENANPARQ, Estado da Arte, 4., Porto Alegre, 2016. Anais… Porto Alegre: PROPAR / UFRGS, 2016. Disponível em: . Acesso em: ago. 2016.

LE GOFF, Jacques. Documento / Monumento. In: _____. História e memória. Tradução de Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. p. 535-553.

LEPETIT, Bernard. Por uma nova História Urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação de Heliana Salgueiro. Tradução de Cely Arena. São Paulo: Edusp, 2001.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, p. 11-36, jul. 2003.

__________. Morfologia das cidades brasileiras: introdução ao estudo histórico da iconografia urbana. Revista USP: Dossiê Brasil dos viajantes. São Paulo, SP: USP, CCS, n.30, jun. / ago.,1996.

NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério. Introdução. In: ______ (Orgs.). Nova História em perspectiva. São Paulo: Cosac & Naify, 2011. p. 7-70.

REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.

SALGUEIRO, Heliana Angotti. Apresentação. In: LEPETIT, Bernard. Por uma nova História Urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação de Heliana Salgueiro. Tradução de Cely Arena. São Paulo: Edusp, 2001. p.11-30.

Ana Claudia Veiga de Castro – Arquiteta e urbanista, docente da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP).

Joana Mello de Carvalho e Silva – Arquiteta e urbanista, docente da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.


CARVALHO E SILVA, Joana Mello de. Fazer história: o estatuto das fontes e o lugar dos acervos nas pesquisas de história de arquitetura e da cidade no Brasil. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, n. Sérv., v.24, n.3, p.11-18, set./dez., 2016. Acessar publicação original [DR].

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A história do corpo / Anais do Museu Paulista / 1995

Aqui está o número 3 dos Anais do Museu Paulista. Estamos todos nós, da direção ao mais humilde funcionário, empenhados em dar a esta publicação a periodicidade absolutamente necessária, a fim de que ela ganhe a çredibilidade que todos queremos. E tarefa complexa e difícil…Mas vamos tentando atingir esse objetivo.

Este número traz em suas páginas não um mas dois “dossiês”, que englobam textos básicos e comentários de especialistas. Um deles, “Museu histórico e conhecimento histórico”, de Ulpiano T. Bezerra de Meneses, é continuação do n° 2*; enquanto o tema de Mary Lucy Murray Dei Priore, “A história do corpo”, é a pedra angular deste n° 3. Ambos, acrescidos dos comentários de renomados professores, dão o tom à publicação. Completam-no os Estudos de Cultura Material, Museus e Bibliografia comentada. Além, é evidente, dos Resumos.

Tenho, mais uma vez, o privilégio de apresentar um novo número da publicação, que começa a se firmar como marca do Museu. E este número sai numa data muito significativa para o Museu Paulista da Universidade de São Paulo – no ano do centenário da abertura da Instituição à visitação pública e, se nele estão trabalhos intelectuais de alto valor, é preciso registrar que, neste 1995, são iniciadas as obras de recuperação do edifício.

É um registro necessário porque uma data histórica. Reuniram-se na sala da Diretoria do Museu Paulista: Flávio Fava de Moraes, Reitor da Universidade de São Paulo; Francisco Weffort, Ministro da Cultura; Carlos Eduardo Moreira Ferreira, Presidente da FIESP e Jacques Marcovitch, Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária da USP, e então foi tomada a decisão de se recuperar o Museu do Ipiranga, um dos símbolos desta incomparável São Paulo, na véspera do aniversário da grande metrópole, dia 24 de janeiro de 1995.

As obras em andamento, neste final de 1995, com o apoio da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, FAPESP- Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, do Ministério da Cultura e da Universidade de São Paulo, é evidente, garantirão a integridade do edifício.

Somando-se tudo o que vem sendo realizado no Museu Paulista e o esforço no sentido de preservar o edifício e seu acervo, e mais a recuperação da peridiocidade de suas publicações, sente-se que a Instituição tento consolidar o suo destacada posição nos diferentes setores da sociedade da qual é parte significativa.

José Sebastião Witter – Diretor do Museu Paulista / Universidade de São Paulo

[* Esse segundo dossiê referido por José Sebastião Witter não está disponibilizado no site da revista].

WITTER, José Sebastião. Apresentação. Anais do Museu Paulista. São Paulo, n. Serv., v.3, p.5-6, jan./dez., 1995. Acessar publicação original  [DR].

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Museu Paulista | USP | 1993

Anais do Museu Paulista1 Museu Paulista

Anais do Museu Paulista (São Paulo, 1993-) vem sendo publicado desde 1922. A partir de 1993, o periódico passou a circular em nova série, com o subtítulo História e Cultura Material. Trata-se de revista acadêmica que traz à discussão temas afeitos à cultura material como mediadora de práticas sociais, bem como abordagens inovadoras sobre processos históricos e museológicos.

Em 2018, o periódico passou a operar no sistema de publicação contínua, em um único volume anual, com submissão de manuscritos tramitada exclusivamente no sistema informatizado para recebimento e gestão de manuscritos do Portal de Revistas da Universidade de São Paulo (USP).

Periodicidade anual.

Acesso livre

ISSN 0101-4714 (Impressa)

ISSN 1982-0267 (Online)

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