Ação integralista em Minas Gerais: estudos e historiografia | Everton Fernando Pimenta e Leandro Pereira Gonçalves

Instituto Metodista Granbery em 1934 Imagem Acervo de H. FerreiraMaria do Resguardo
Instituto Metodista Granbery em 1934 | Imagem: Acervo de H. Ferreira/Maria do Resguardo

Com a leitura, em 7 de outubro de 1932, do Manifesto de Outubro, Plínio Salgado oficializou a fundação do que viria a ser o mais bem-sucedido movimento fascista extraeuropeu: a Ação Integralista Brasileira (AIB). Por meio de um projeto pautado pela defesa do antiliberalismo e do anticomunismo, além de ideais nacionalistas, autoritários e corporativistas, o integralismo pronunciava-se como a única possibilidade de restauração do Brasil colapsado por uma crise material. Assim, difundia um ideal salvacionista, propondo a ordem e a unidade da nação a partir de um novo mundo espiritualista, que seria estabelecido por meio da implementação do “Estado Integral”. Amparado por esse discurso, o movimento fez-se presente em todo o território nacional, apresentando números expressivos em relação a militância no contexto da sociedade brasileira dos anos 1930.

A divulgação do integralismo ocorria por meio da imprensa, do uso intenso de simbologias, como as camisas verdes, a letra grega sigma (∑) e o lema “Deus, pátria e família”, e a partir de desfiles, atividades públicas e bandeiras integralistas. Estas últimas caracterizaram-se enquanto significativo meio de expansão da AIB: por meio de viagens feitas pelas principais lideranças, como Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, buscava-se divulgar o movimento nas mais diversas regiões do país, o que angariou muitos seguidores e auxiliou na amplificação dos núcleos integralistas em todo o território brasileiro. Leia Mais

A televisão em tempos de convergência | Soraya Ferreira

O livro “A televisão em tempos de convergência”, escrito pela professora Dra. Soraya Ferreira, lançado em 2014, pela editora UFJF, apresenta uma reflexão sobre como a televisão é influenciada pela constante renovação tecnológica em sua dinâmica produtiva. Traz também uma análise da introdução das novas tecnologias e dos processos de comunicação nas emissoras mineiras TV Alterosa, TV Assembleia, TV Integração, e Rede Minas.

O livro é subdividido em capítulos denominados ”A expansão da TV Panorama e as mudanças na linguagem para enfrentar a convergência”; “A convergência nas TVs públicas e comerciais da Zona da Mata Mineira e de Belo Horizonte”; “Mudanças no conteúdo dos portais das TVs nacionais, dos canais abertos e fechados” e “Repetição e reconfigurações estéticas”. Leia Mais

As estórias a favor da História: as Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga – FAGUNDES (RTA)

FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. As estórias a favor da História: as Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014. Resenha de: GIANELLI, Carlos Gregório dos Santos> Um inventário histórico de estórias inventadas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.339‐343. jan./abr., 2017.

A diferenciação entre o que é uma história verídica e o que seria uma ficção muitas vezes já é sinalizada no uso da palavra. Para citar o exemplo na língua inglesa, o story (estória) se apresenta quase sempre que uma ficção quer se fazer explícita em oposição à palavra history (história), que se trata do estudo, análise ou até mesmo relato de algum fato ocorrido. Na língua portuguesa praticada no Brasil essa diferenciação existe em nosso vocabulário, mas, vem sendo cada vez menos utilizada. Ao se checarem livros ou coleções mais antigas, as estórias em contraposição às histórias estão presentes. No entanto, a palavra estória vem caindo em desuso sendo que a história tem servido tanto para a dita ficção como para a realidade. Não é à toa que o título do livro de Bruno Flávio Lontra Fagundes faz uso desse jogo de palavras ao tratar do tema proposto. “As estórias a favor da História: As Efemérides Mineiras de José Pedro Xavier da Veiga” tem como um de seus objetivos e fio condutor refletir sobre essa tensão presente entre a ficção e realidade na tessitura das narrativas históricas. Historiador de formação, Fagundes buscou nesse trabalho, que resultou em sua dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós‐Graduação em Letras (Estudos Literários), da Faculdade de Letras da UFMG, aproximar duas áreas que muitas vezes foram consideradas totalmente opostas no campo da escrita: as estórias e as histórias.

Como indicado no título, o livro analisa a obra “As Efemérides Mineiras”, de José Pedro Xavier da Veiga, publicada em Minas Gerais no ano de 1897. Trata‐se de um livromonumento com mais de mil e oitocentas páginas, dividas em quatro volumes, que busca fazer um levantamento da história da província de Minas Gerais de 1733 a 1892. Torna‐se válido ressaltar que o próprio termo efeméride é pouco utilizado hoje, e cabe a breve explicação de que se trata do registro de algo importante que aconteceu em um dia específico. Levando‐se isso em consideração, fica um pouco mais clara a organização proposta por Xavier da Veiga em seu livro‐monumento. As efemérides não estão organizadas ano após ano, mas dia após dia. Essa primeira característica a ser observada logo no índice do livro já abre um espaço interessante de reflexão a respeito da organização cronológica e temporal que é proposta nessa obra do final do século XIX.

Fagundes ressalta que essa característica não era comum de outras efemérides realizadas na mesma época. Sendo assim, Xavier da Veiga propõe uma organização da história diferente deseus contemporâneos, tendo os anos como esteira condutora dos acontecimentos históricos. Nas “Efemérides Mineiras”, temos um calendário que parte de 1º de janeiro a 31 de dezembro, cobrindo não somente um ano, mas quase três séculos.

Nesse sentido, teríamos a organização mais ou menos desta maneira, como indica Fagundes: “1 de janeiro 1733 (…) 1740 (…) […] 2 de janeiro 1807 (…) 1811 (…).” O livro de Bruno Fagundes, a respeito da obra de Xavier da Veiga, se organiza da seguinte maneira: antes de fazer a sua análise das Efemérides, Fagundes mostra a apresentação que o próprio José Pedro Xavier da Veiga faz de sua obra monumental. O prefácio da obra de Xavier da Veiga contém desde instruções de como realizar a leitura, até uma espécie de pedido de desculpas pelas lacunas temporais presentes. Por se tratar de uma obra datada do ano de 1897, está inserida no contexto pós‐republicano em que se buscava de todo modo “re‐fundar” um novo país sob a égide dos novos ideais positivistas, materializados no lema ordem e progresso. Não se tratava apenas de buscar uma brasilidade moderna que fundamentasse as aspirações republicanas, mas de organizar a história do país muito mais por inventários documentais, como as efemérides, do que por outro tipo de produção historiográfica ou memorialística. Xavier da Veiga além de ser o autor das Efemérides foi o primeiro diretor do Arquivo Histórico Mineiro, o que denota o caráter depositário que a obra possuía para ele. Para Xavier da Veiga não se tratava apenas de contar estórias, mas de se guardar e, até mesmo, preservar a história.

Após a apresentação do livro, “Por ele mesmo”, Bruno Flávio Lontra Fagundes adentra a obra sempre mostrando algo que lhe sobressai e uma possível análise a ser realizada. Nos próximos três capítulos após a apresentação do livro pelo próprio Xavier da Veiga, Fagundes analisa três questões em que dedica um capítulo para cada: temporalidades; memória; e a própria noção de invenção da História que acaba suscitando das Efemérides.

Adiante, no livro, Fagundes analisa em seu quinto capítulo como Xavier da Veiga lidava com a carga documental que recebia de várias partes do estado de Minas Gerais para a realização da obra; é neste momento que o título dado por Fagundes faz‐se presente: “As estórias a favor da História”. Este que poderia até mesmo ser um lema adotado por Xavier da Veiga na compilação de documentos e testemunhos. O arquivista mineiro considerava importante desde os documentos oficiais, como decretos‐lei, até relatos de casos estranhos como alguns títulos indicam: “diamante achado por um preto; grandioso meteoro; um esqueleto monstro, etc.” Como já foi dito, o cargo de administrador do Arquivo Histórico Mineiro vai conferir a Xavier da Veiga a responsabilidade de salvaguardar todos os retalhos de história que lhe são enviados.

Anexos aos documentos que chegam para ele estão presentes, muitas vezes, bilhetes pedindo para que o pacote seja preservado, ressaltando a preciosidade daquele documento em questão. Tal cuidado que o arquivista e escritor mineiro possuía com os documentos que aos quais tinha acesso permeia toda a obra das Efemérides, assim como a função social do devir histórico que lhe é incumbido.

É dentro dessa questão que Fagundes, em seu sexto capítulo, lança a reflexão voltada à autoria das Efemérides. Seria apenas José Pedro Xavier da Veiga o autor de um livro que conta com tantas páginas resultantes de dezoito anos de trabalho? Qual a parcela de contribuição das centenas de anônimos que enviaram seus relatos e documentos para a realização desta empreitada? Tais reflexões cabem tanto para Fagundes, ao analisar as Efemérides, como para qualquer historiador que tenha contato com obras grandiosas, ou que no momento de tecer a sua própria narrativa histórica reflita sobre o lugar dos documentos e testemunhos em sua produção.

Em seu sétimo capítulo, é feita uma análise a respeito da figura do próprio José Pedro Xavier da Veiga, que além de ter ocupado o cargo de primeiro diretor do Arquivo Histórico Mineiro, também foi deputado, vinha de uma família de letrados que chegaram a ser proprietários de livrarias e possuía grande respeito justamente por ser apontado como um dos guardiões da história de Minas Gerais. No oitavo e último capítulo, Fagundes trabalha a relação entre Xavier da Veiga e o seu livro, mostrando como determinadas obras além de monumentalizar os personagens retratados nela podem enaltecer seus autores. Xavier da Veiga é destacado no imaginário social pela grande empreitada de memória e identidade mineira que constituiu suas Efemérides.

Por fim, cabe ressaltar a importância que o livro “As Estórias a favor da História: As Efemérides Mineiras de José Pedro Xavier da Veiga”, de Bruno Flávio Lontra Fagundes tem para o campo da História. As questões que o autor levanta, aproximando os campos dos estudos literários e da teoria da história são de grande relevância para aquele pesquisador que busca uma perspectiva interdisciplinar para o seu trabalho que acaba, em muitos casos, levando a uma reflexão mais profunda acerca do tema pesquisado.

Poderíamos, por fim, elencar os seguintes temas como muito importantes para o fazer historiográfico que são problematizados pelo autor: a questão da memória de um povo; o desafio da delimitação das temporalidades (tendo em vista a característica peculiar de organização temporal das efemérides que reverbera em sua narrativa histórica); o tratamento dado para um grande acervo documental; a função social exercida por Xavier da Veiga enquanto historiador mineiro; reflexões a respeito da autoria das efemérides (como podemos afirmar que Xavier da Veiga é o único autor de um livro composto por centenas de contribuições e relatos? Como podemos pensar nessa mesma problemática na tessitura de nossos trabalhos historiográficos?) e, por fim, a relação entre autor e obra.

Fagundes analisa com bastante seriedade um livro que se porta como monumento histórico e não apenas como uma narrativa histórica.

Carlos Gregório dos Santos Gianelli – Doutorando no Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil [email protected].

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História das mulheres e do gênero em Minas Gerais / Cláudia Maia e Vera L. Puga

Escrever a história das mulheres e do gênero ainda é uma tarefa ousada. Desde os anos 1980, o tema chega ao Brasil e se consolida como um campo definido de pesquisa para as/os historiadoras/es ganhando visibilidade, apesar de ainda sofrer restrições no interior das instituições acadêmicas. O número significativo de publicações revela gradativo fortalecimento desse campo, como atesta o crescimento das publicações de livros, artigos em revistas especializadas, teses, dissertações e simpósios temáticos versando sobre o tema. O que significa escrever uma história das mulheres e do gênero? A história se tornou o lugar a partir do qual o feminismo questionou o sujeito universal moderno (homem, branco, heterossexual e cristão), fazendo emergir uma vasta gama de sujeitos históricos em suas especificidades de gênero, étnico-raciais, sociais e sexuais.

O livro História das mulheres e do gênero em Minas Gerais, organizado por Cláudia Maia (UNIMONTES) e Vera Puga (UFU) resulta de uma parceria de longa data entre as organizadoras, que são pesquisadoras conceituadas e bastante atuantes nos simpósios sobre “História das mulheres e do gênero” na Associação Nacional de Professoras/es Universitários de História (ANPUH). Cláudia Maia é doutora em História pela Universidade de Brasília, na área de Estudos Feministas e de Gênero, e pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Atua como professora adjunta do Departamento de História e dos Programas de Pós-graduação em História e de Letras/Estudos Literários, da Universidade Estadual de Montes Claros. Vera Puga é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), desde 1998, e atualmente faz parte de algumas comissões: do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (ENADE-Formação Geral) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (Comitê Técnico-Institucional, questões de gênero). É professora Associada II da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde atua no Programa de Mestrado e Doutorado em História Social, no Núcleo de Estudos de Gênero e Mulheres (NEGUEM) e na Revista Caderno Espaço Feminino, como editora.

O livro em questão conta ainda com a participação de pesquisadoras/es de vários estados brasileiros que se debruçaram sobre  diferentes momentos da história das mulheres em Minas Gerais, partindo de variados tipos de fontes e abordagens metodológicas. Foi publicado pela Editora Mulheres e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Trata-se de uma coletânea de 552 páginas, organizada em quatro partes que indicam os múltiplos olhares sobre as mulheres mineiras: 1) transgressoras e insubmissas mineiras; 2) damas, donas do sertão; 3) saberes e fazeres femininos; 4) casamento e maternidade: mecanismos de um destino social.

A primeira parte da obra é constituída por textos que tratam das variadas ações de mulheres mineiras em diferentes temporalidades e espaços, para romper com as amarras das tradições patriarcais. Através da escrita sensível da pesquisadora Diva do Couto Muniz, conhecemos professoras mineiras cujo conjunto de ações “insubordinadas, indóceis e indisciplinadas” fincaram um marco de resistência ante o conjunto das estratégias elaboradas nas Minas oitocentistas, para circunscrevê-las a um ideal de mestra, recatada e submissa. Encontramos também as mulheres que ousaram contrariar regras “sagradas” e constituíram famílias com padres, mesmo estando sujeitas a sanções sociais, conforme divisou Vanda Praxedes. Mulheres mineiras livres ou escravizadas com suas práticas e estratégias em favor da abolição, como a escravizada Catarina que se destacou pela “astúcia empreendida em seus projetos de liberdade” (p.87), são desveladas por Fabiana Macena. A mineira Maria Lacerda de Moura, sua trajetória e escrita libertárias compõem o texto escrito por Cláudia Maia e Patrícia Lessa. Os três últimos textos discorrem sobre a escrita feminina: Maura Lopes Cançado e sua vida marcada pela insanidade e transgressão das normas de gênero, cuja obra Hospício é Deus foi discutida de forma densa por Márcia Custódio e Alex Fabiano Jardim. Contribuindo para visibilizar as mulheres negras e suas escritas, Constância Duarte nos presenteia com uma análise belíssima de parte da obra da escritora mineira Conceição Evaristo. Nos contos analisados, as personagens negras nos convidam a conhecer suas trajetórias, nas quais a intersecção entre gênero, etnia e classe se fazem presentes nas suas estratégias, vivências e resistências cotidianas. Fechando a primeira parte, conhecemos Márcia, prostituta de Pouso Alegre, cujas cartas são analisadas por Varlei do Couto a partir da noção foucaultiana de escrita de si. Vivendo e lutando num contexto em que as campanhas de moralização e higienização sociais têm como foco seu local de trabalho e residência, Márcia elabora táticas de resistência, enquanto troca correspondências com pessoas de sua estima, nas quais fala de si e de sua posição frente à sociedade em que vive.

Na segunda parte da obra, intitulada “Damas, donas do sertão”, os olhares das/os pesquisadoras/es se voltam para as regiões consideradas mais distantes de Minas Gerais: os sertões longínquos, tradicionalmente considerados como espaços do desmando e poderio falocêntricos, agora são relidos sob novo viés. Assim, conhecemos por meio do texto de Gilberto Noronha as imagens contraditórias construídas sobre Joaquina de Pompéu e sua atuação no Oeste de Minas Gerais, entre os séculos XVIII e XIX. Em alguns discursos, ela é a mulher reta, recatada e justa; em outros, figura como “caudilho de saias” ou “sinhá Braba”, colérica, descomedida sexualmente e cruel com seus subordinados. Dona Tiburtina de Andrade Alves é outra mulher cuja posição ativa suscitou inúmeras representações: seu envolvimento em episódio sangrento da política de Montes Claros, no início do século XX, foi lido e relido ao longo do tempo a partir de várias perspectivas, sendo ora louvada, ora criticada, conforme destacam as autoras Maria de Fátima Nascimento e Filomena Cordeiro Reis. Correndo mundo através da literatura, as personagens femininas de Guimarães Rosa, tão vivazes quanto os viventes de carne e osso, em suas ações destecem o tecido da tradição falocêntrica e conduzem os destinos por caminhos por elas mesmas traçados. Zidica, Rivília e “Dlena, aranha em jejum” apresentam possibilidades de “desarticular o estabelecido” e nos são apresentadas com sua astúcia, pela pena sutil de Telma Borges.

Os textos que compõem a terceira parteda obra, denominada “Saberes e fazeres femininos”, têm em comum o cuidado das/o autoras/res em ouvir as próprias mulheres acerca de seus conhecimentos e práticase das formas pelas quais atuaram em suas comunidades. As falas das narradoras são permeadas de satisfação em rememorar suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, reiteram sentidos tradicionais sobre as atividades consideradas como apanágio feminino ou masculino. Através do texto de Lúcia Helena da Costa, acessamos as narrativas das parteiras do norte de Minas Geraiscujas práticas de partejar sofreram a interferência dos médicos no processo de medicalização da saúde das mulheres e dos recém-nascidos, a partir dos anos de 1950. No texto de Cairo Katrib e Fernanda Naves, nas memórias de mulheres congadeiras em Ituiutaba se entrelaçam trajetórias pessoais e a prática cultural do Congado. Durante muito tempo silenciadas pela tradição judaico-cristã, as vozes das mulheres que atuaram na fundação de Igrejas pentecostais no Norte de Minas Gerais são enfim ouvidas por meio da pesquisa de João Augusto dos Santos. A ligação entre os fazeres considerados como femininos ligados à cozinha e aos hábitos alimentares mineiros são discutidos por Mônica Abdala. Ainda sobre saberes, temos as narrativas das mulheres trabalhadoras rurais no Triângulo Mineiro, visibilizadas por Maria Andréa Angelotti. A exclusão feminina do acesso à educação formal é discutida por Leila Almeida, que se debruça sobre as narrativas de mulheres de Januária acerca de suas trajetórias de escolarização. As hierarquias de gênero que comumente estabelecem restrições diversas às mulheres marcaram a vida de muitas das narradoras, que foram impedidas de estudar durante a juventude por maridos ciumentos e obrigações domésticas. Encerrando a terceira parte, conhecemos a luta pela terra travada pelas mulheres negras remanescentes de um Quilombo em Paracatu, através da pesquisa de Maria Clara Machado e Paulo Sérgio da Silva.

O casamento e a maternidade têm sido apontados enfaticamente como formas de aprisionamento das mulheres, transformados em destinos social e biológico circunscrevendo as mulheres na esfera da casa e da família, submetidas a cerceamentos e violências. A quarta e última parte do livro se caracteriza por discutir os dispositivos sociais responsáveis por restringir as mulheres às funções de esposas e mães, bem como as estratégias encontradas por muitas para se livrarem de situações de violência em casamentos infelizes. Helen Ulhôa Pimentel examina documentação do século XVIII do tribunal eclesiástico instalado em Paracatu. A autora estuda o papel da Igreja quanto ao casamento e a possibilidade de anulação do mesmo. Entre a documentação encontrou vários casos nos quais as mulheres resistiram às imposições da Igreja e a procuravam buscando se livrar de situações intoleráveis, como casamentos violentos, o caso, por exemplo, de Joana de Souza Pereira. Na sequência, também tratando de casamento e divórcio, temos o texto de Dayse Lúcide Santos, que discute a legislação brasileira, do final do século XIX e início do século XX, acerca do tema e analisa alguns processos de separação ocorridos em Diamantina. Uma das conclusões a que chega é a de que havia um descompasso entre as normas instituídas pelo Estado e pela Igreja e as vivências de homens e mulheres, o que levava a transgressões da norma. Os discursos produzidos no início do século XX sobre os papéis das mulheres na formação dos cidadãos nas regiões do triângulo mineiro constituem foco da pesquisa de Florisvaldo Ribeiro Júnior. As mulheres eram “alvos de prescrições físicas e morais de jornalistas, médicos, intelectuais, políticos e padres”, que procuravam estabelecer normas e controle sobre os seus corpos e condutas. Temos, aqui, excelente análise a respeito da relação entre as representações de gênero e os projetos de Nação Moderna do período. Na sequência, os discursos de mães adolescentes sobre maternidade e casamento, em Uberlândia, são analisados por Carla Denari, que percebe um descompasso entre os discursos do Estado acerca da gravidez na adolescência e os sentidos positivos que as mães adolescentes atribuem à maternidade e ao casamento. A educação enquanto espaço de produção das diferenças de gênero é objeto de Vera Lúcia Puga que percorre criticamente o processo educacional dicotômico, desde o século passado, com os internatos separados por sexo, até o presente, com a permanência da educação binária que se evidencia pelo funcionamento da escola deprincesas em Uberlândia.

Enfim, o livro como um todo oferece uma importante contribuição paraa história eos estudos de Gênero; seu diferencial é a abordagem centrada nas mulheres mineiras de várias regiões do estado, suas atuações em cada contexto ondese inseriram na luta pela liberdade de existir e agir. Se por um lado a obra congrega estudos variados que pretendem visibilizar as ações das mulheres mineiras, por outro tem nessa diversidade de perspectivas a emergência de alguns problemas: em alguns textos percebe-se que as mulheres estão subsumidas nas condições históricas de suas sociedades, em outros é possível vislumbrar a ideia de predestinação de determinadas mulheres para a atuação política em seus contextos. Notam-se também algumas lacunas no que tange às mulheres indígenas e às lesbianas, denotando uma ausência de estudos sobre essas mulheres em Minas Gerais e apontando, por outro lado, para a possibilidade de exploração destes campos pelas novas levas de historiadoras/es feministas. As brechas apontadas não diminuem o mérito da obra, visto que, nós historiadoras/es feministas somos conscientes de que todo texto histórico é parcial. Nesse sentido, as organizadoras na apresentação explicam que o “livro não teve a pretensão de percorrer o conjunto dos estudos que têm sido desenvolvidos sobre mulheres e gênero em Minas Gerais no campo da História, mas é uma pequena mostra desses estudos”1. Dentro do proposto, o livro contribui imensamente para que se conheça um pouco mais da história das mulheres mineiras.

Rosana de Jesus dos Santos – Doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia.Bolsista Fapemig.E-mail: [email protected].


MAIA, Claúdia; PUGA, Vera Lúcia (Org.). História das mulheres e do gênero em Minas Gerais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015. 552p. Resenha de: SANTOS, Rosana de Jesus. História histórias. Brasília, v.3, n.6, p.223-227, 2015. Acessar publicação original. [IF]

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940) – BICCAS (RBHE)

BICCAS, Maurilane de Souza. O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, 216 p. Resenha de: GUIMARÃES, Paula Cristina David. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940), livro publicado em 2008 pela editora Argvmentvm, é resultante da pesquisa de doutoramento empreen­dida por Maurilane de Souza Biccas, pós-doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde integra a coordenação do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Niephe).

Com sólida experiência em trabalhos sobre impressos peda­gógicos que, recentemente, vem crescendo no Brasil e muito tem contribuído para os estudos em história da educação, Biccas realiza, neste trabalho, uma investigação sistemática sobre o impresso pe­dagógico mais representativo na história de Minas Gerais, a Revista do Ensino. A autora não se restringe somente à Revista; utiliza outras fontes documentais como jornais, decretos e leis da época pesquisada no intuito de complementar e esclarecer as informações obtidas da fonte principal de sua investigação.

Composto de seis capítulos, o trabalho destaca aspectos re­lacionados à materialidade, produção, circulação e distribuição da Revista do Ensino, “impresso pedagógico oficial de educação direcionado aos professores, diretores e técnicos da rede pública de ensino do estado de Minas Gerais” (p. 15), entre os anos de 1925 e 1940. A obra tem por objetivo “descrever e analisar os aspectos relacionados à materialidade da Revista aos conteúdos nela vei­culados, às mudanças ocorridas nos seus primeiros dezesseis anos de circulação e à produção de sentidos desencadeada por essas transformações editoriais” (p. 15). Para a realização do trabalho, autora fundamenta-se no campo de análise da “nova história cultural”, campo que vem impactando a produção historiográfica contemporânea e, de modo particular, a história da educação.

Quanto à materialidade da Revista, Biccas dispensa aten­ção especial à análise de capas, versos de capas, contracapas e quartas-capas dos números publicados. Como Marta Maria Chagas de Carvalho chama a atenção na apresentação do livro, a Revista do Ensino “não foi tratada como um veículo neutro para a comuni­cação dos conteúdos dos textos que edita, mas como performidade da ordenação da significação deles na materialidade mesma das diversas formas aplicadas à sua edição” (p. 13). Nesse sentido, Biccas recorre a autores que investem nesse mesmo pensamento quanto à importância da análise da materialidade dos impressos, tais como Roger Chartier e Michel de Certeau.

No primeiro capítulo do livro, “Ciclo de vida de um impresso oficial: Revista do Ensino 1925-1940”, a Revista é analisada dentro do seu momento histórico de constituição e circulação. A autora retorna ao momento de criação da Revista do Ensino, 1892, des­tacando que, após a publicação de apenas três números, a Revista foi desativada. Seu relançamento aconteceria em março de 1925, sendo interrompida entre os anos de 1940-1946 devido à Segunda Guerra Mundial, voltando a circular até 1971.

A Revista também é analisada como parte integrante e depo­sitária das mudanças educacionais ocorridas em Minas Gerais, como a Reforma Francisco Campos (1927). Na ocasião, o go­verno mineiro fez das páginas da publicação um valioso meio de apresentação, discussão, avaliação e estímulo à utilização das ideias pedagógicas renovadoras pretendidas por essa reforma. Esse impresso pedagógico também se revela como arena de disputas e acordos de diferentes interesses políticos e educacionais travados, por exemplo, entre católicos e “liberais”. Desse modo, e com as conexões que a autora realiza do momento histórico pesquisado, é possível perceber as relações de força que compunham o projeto editorial da Revista do Ensino.

Já no segundo capítulo, “Processos de produção e circulação”, a autora observa as formas de produção e as condições de circulação do periódico. Para tanto, faz uma descrição material e apresenta, de maneira detalhada e organizada, informações acerca de cada um dos 16 primeiros anos de circulação da Revista, relacionando: publicações, páginas por publicação, seções utilizadas, fotografias e ilustrações veiculadas, formato, presença ou não de propagandas, sumário e índice. Além disso, tendo em vista as diferentes formas de manipulação da Revista, a autora também analisa aspectos da dinâmica de apropriação que os professores faziam do periódico.

No capítulo três, “A dinâmica das formas e dos sentidos”, a pes­quisadora analisa as capas, versos de capas, quartas-capas e páginas finais que compõem a Revista do Ensino, a fim de explicitar como “conformam e se articulam os procedimentos de composição e de textualização” do periódico (p. 95). Nessa análise, Biccas percebe a capa como item de suma importância na composição da Revista, na medida em que atuava como um chamariz para a leitura. Para a autora, a capa representa um “espelho” dos diferentes projetos políticos e educacionais pelos quais a Revista passou, refletindo tensões, contradições e ambiguidades de tais projetos. Os diversos suportes que o periódico recebeu também foram objetos de análise para Biccas. Assim ela foi analisada, primeiramente, como anexo do Jornal Minas Gerais, depois como suplemento do mesmo Jornal e, finalmente, como Revista autônoma ao se desvincular do referido jornal. Oobjetivo dessa análise foi perceber como o suporte que veiculou a Revista marcava o modo como esta se apresentava para seus leitores.

No quarto capítulo, “Propaganda, publicidade e informação”, são analisadas a forma, o lugar e a intenção dos editores da Revista ao destinar um espaço para esse tipo de divulgação em um impresso educacional. Segundo a pesquisadora, 1929 foi o primeiro ano em que se veicularam propagandas na Revista de Ensino, além de ter sido o período de maior incidência propagandística. Nesse mesmo ano percebe-se que a maior parte dos anúncios de publicidade eram direcionados ao público-alvo da Revista do Ensino, os professores e diretores de escola. Os espaços destinados pelos editores a esses e outros tipos de anúncios foram as quartas-capas e, em alguns números, as páginas internas da Revista.

No capítulo cinco, “A Revista dada a ver: fotografias e ilustra­ções”, Biccas analisa as imagens veiculadas pelo periódico, para compreender a relação construída pelos editores ao apresentar fotografias e ilustrações como textos e também observar a atuação destes como elementos constitutivos do próprio periódico. Uma vez que a Revista do Ensino de Minas Gerais era um periódico oficial, os traços das políticas educacionais mineiras são evidentes em suas páginas. Por conseguinte, as imagens não são tratadas de forma periférica, mas analisadas como estratégias de transmissão de “mensagens que se pretende divulgar e inculcar” (p. 149). As fotografias e ilustrações utilizadas buscavam exprimir uma “men­sagem”, produzir um significado e um efeito junto aos leitores, chamando-lhes a atenção para uma nova concepção de educação que estava sendo forjada e deveria ser assimilada por eles. Nesse sentido, as imagens foram responsáveis pela divulgação de festas, prédios escolares, métodos pedagógicos e atividades escolares de crianças.

No sexto e último capítulo, “A síntese e difusão de modelos: esquadrinhando as seções”, a autora apresenta e analisa as seções que compõem os números da Revista, e observa que as seções sofreram processos importantes de constituição, permanências e rupturas dentro do projeto editorial. Para essa análise, Biccas apresenta dados sobre as seções, evidenciando o período em que elas foram criadas, o tempo de permanência e a que tipo de temá­tica se referiam. As seções também são analisadas tendo em vista a “política editorial adotada no período, procurando perceber que representação de professor-leitor os editores tinham e que propostas de formação foram traçadas a partir dessa concepção”.

Ao final da obra, Biccas conclui que os principais enfoques que guiaram a análise em sua pesquisa permitem considerar a Revista do Ensino “como um dispositivo de normatização pedagógica e de ampliação da cultura educacional dos professores” (p. 197). A Revista, ao mesmo tempo em que difundiu ideias e preceitos, promoveu determinados hábitos de leitura, modelados por suas indicações, configuração e forma como dispôs e organizou seus textos. Assim, a autora destaca que “ao mesmo tempo em que a Revista foi sendo produzida, também produziu e foi construindo o próprio campo educacional mineiro” (p. 200).

O livro resenhado expressa seu valor pela riqueza de detalhes, tais como a veiculação de gráficos e tabelas de informações, bem como pelos cruzamentos e comparações dos dados obtidos. Oolhar que a autora lança sobre seu objeto de pesquisa é, simultaneamente, singular e plural, ou seja, ao mesmo tempo em que isola os dados da Revista, Biccas os confronta e os articula, percebendo, assim, novos indícios de informações para suas análises.

No sentido empregado por Foucault (2002), a Revista do Ensino pode ser analisada como uma “tecnologia de poder”, na medida em que atuou como objeto de ação e de controle do gover­no mineiro sobre a atuação docente, sendo um suporte para leis, normas e recomendações das diretrizes educacionais durante seu período de circulação.

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940) é tema relevante para a história da educação na medida em que nos leva a uma reflexão sobre as diferentes possibilidades de pesquisa oferecidas pelo impresso pedagógico, principalmente no que tange às ideias em formação no campo educacional de um determinado período.

É possível perceber, ainda, o processo em que se deu a pesquisa com a materialidade do objeto quando a autora expõe, de forma clara e objetiva, a forma como lidou com os processos de orga­nização da Revista para a realização do trabalho. Demonstrando sua posição sobre a importância de análise do material impresso, Biccas apresenta, durante sua obra, análises meticulosas da Revista do Ensino, evidenciando sua riqueza de indícios dos aspectos pe­dagógicos no contexto histórico do período analisado. Por isso, ao ler a obra, é possível perceber que, ao voltarmos nosso olhar para um objeto de pesquisa como o impresso pedagógico, acabamos por decifrar complexos processos educativos que permearam a educação brasileira em determinado tempo e espaço.

Com uma multiplicidade de dados, análises minuciosas e com um convite para novas pesquisas, o livro resenhado constitui um rico material de referência para historiadores da educação que pesquisam ou desejam pesquisar acerca de im­pressos pedagógicos.

Referências

Foucault, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Paula Cristina David Guimarães – Mestranda em Educação pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: [email protected]

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Minas e os fundamentos do Brasil moderno | Ângela de Castro Gomes

Minas e os fundamentos do Brasil moderno é uma obra capitaneada pela Fundação Israel Pinheiro e integra o projeto “Os caminhos do Brasil moderno”, um conjunto de ações promovidas pela própria entidade, que inclui também a edificação do Espaço Israel Pinheiro, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, além da criação do Museu Casa de João Pinheiro, na cidade de Caeté (MG). Ou seja, este livro deve ser compreendido como uma obra integrada a uma série de iniciativas que procuram preservar uma dada memória do desenvolvimentismo no Brasil, tendo como foco central a contribuição de João Pinheiro e, mais tarde, de seu filho Israel Pinheiro na política brasileira.

Em síntese, os artigos procuram sustentar a concepção de que a gênese do projeto desenvolvimentista já estava configurada desde o início da República na figura do próprio João Pinheiro, presidente do Estado de Minas Gerais, e que tal ideário teria sido conduzido por seus filhos, parentes e políticos de um círculo de influências que incluiu, entre outros, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves. Para defender essa hipótese explicativa, o livro conta com um prefácio, uma apresentação, um texto de abertura e 10 capítulos divididos em três partes bem distintas – e bastante desiguais. Leia Mais

Condição Feminina – Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias têxteis – NEVES (VH)

NEVES, Magda Maria Bello. Condição Feminina – Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias têxteis. Tese de Mestrado. DCP/UFMG. Resenha de: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 139-143, jun., 1986.

A mulher, as condições de trabalho da mulher, a dupla jornada de trabalho, a mulher dona de casa, a mulher mãe, a mulher profissional, a mulher operária, as condições especiais nas quais a mulher é contratada, são vários dos muitos aspectos através dos quais a questão feminina tem sido tratada. A literatura que trata do tema expande-se a um ritmo cada vez mais crescente. São depoimentos individuais de vida, são romances, são teses acadêmicas, são poesias, são artigos de revistas e jornais. especializados ou não. E um fenômeno mundial. A mulher adquiriu um estatuto novo e um’ reconhecimento diferenciado que cada dia se torna mais evidente. O trato â questão feminina S · e amplia e ultrapassa o mundo dos impressos. Os meios de comunicação audio-visual passam a apresentar programações inteiras e diárias que tratam com exclusividade da questão feminina. Tanto nos meios de comunicação impressos ·como nos audio-visuais o tratamento do tema adquire uma característica inovada. Questões sexuais, relacionamento afetivo, relação com os filhos, maternidade. controle de natalidade, profissão, tarefas domésticas, moda … são temas tratados permanentemente pela imprensa falada. televisada e escrita. Outro tipo de publicação que proliferou nos últimos tempos é a imprensa feminista. De alcance e público mais restrito este tipo de publicação tem tido importância vital, como elemento de vanguarda no novo tratamento que a questão feminina exige.

Nesta leva tão ampla de publicações sobre o tema “mulher”, dentre os vários livros acadêmicas publicados e as várias teses defendidas nas universidades surgem alguns trabalhos que contribuem sem dúvida para’ ampliação e aprofundamento da literatura especializada. Este é o caso da tese de Mestrado em Ciência Política defendida por Magda Maria Belfo Neves na UFMG em 1983. Sob o título “condição Feminina -Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias texteis”, a autora aborda de forma simples, mas com densidade as questões mais pungentes que compõem o cotodiano das operárias tecelãs. O texto é de uma leveza não comum às pesadas teses acadêmicas normalmente escritas nas universidades. Mesclado de depoimentos das operárias, de citações bibliográficas e de ligeiras análises teóricas a leitura se faz solta sem dificuldades. O caráter descritivo do trabalho facilita seu acesso a um público não universitário, sendo inclusive possível a sua leitura pelas próprias protagonistas da pesquisa, as operárias tecelãs.

Devido a essa facilidade de compreensão do texto, cremos que um objetivo fundamental da Universidade vem a ser atendido pelo trabalho de Magda, ou seja. a produção não só para o público vinculado ao mundo acadêmico, mas também e especificamente para a comunidade na qual a Universidade está inserida.

A ESTRUTURA DO TRABALHO

O texto da tese se divide em uma introdução, quatro capítulos e uma conclusão. No que se refere à reflexões teóricas, a introdução é a parte mais rica desta tese. Aliás, o forte do trabalho não é a parte teórica, sua riqueza e importância maior estão na exaustiva pesquisa empírica levada a cabo pela autora. Ela própria assim define seu trabalho:

” … este trabalho é um estudo monográfico, um estudo de caso, que não têm pretensões de generalizações teóricas, mas sim, de descrever e analisar as condições materiais e cotidianas de um grupo de mulheres, trabalhando numa fábrica de fiação e tecelagem. Enfim, de como se dá a subordinação da mulher operária trabalhando no processo de produção capitalista, o que existe de específico neste processo em relação a mulher”.

As questões teóricas da introdução sustentam-se basicamente em textos de Karl Marx, Taylor, Robert Linhart e Claude Durand(1). Com base na análise e discussão dos conceitos teóricos destes autores Magda redige o pano de fundo sobre o qual se assenta o objeto maior de sua pesquisa, ou seja, analisar a inserção da mulher no processo de trabalho na indústria de fiação e tecelagem. Realizando uma discussão detalhada da conceituação do processo de trabalho, a autora acaba por concluir que além da rotina normal do trabalho operário que oprime indiscriminadamente a homens e mulheres, as condições de trabalho da mulher, são especialmente mais dolorosas, já que, uma série de outros fatores contribuem ainda mais para caracterizar, para elas, uma situação de submissão duplicada. São fatores de ordem política e cultural, que preponderam na sociedade e que são habilmente usados, de forma particular pela fábrica, para seleção, controle e rendimento da força de trabalho feminina ali empregada. Tendo como referência estas reflexões preliminares a autora define o objetivo de seu trabalho da seguinte maneira:

“o objetivo deste trabalho é analisar como se dá nas indústrias de fiação e tecelagem a inserção da mulher no processo de trabalho e. quais os fatores políticos e culturais articulados pela fábrica para subordinar a mulher à divisão sexual do trabalho. Além disto, nos interessa compreender como as mulheres enfrentam essa imposição e esse controle no cotidiano da fábrica”.

Além disso. ultrapassando o mundo do trabalho enquanto puro mecanismo de produção, a autora se propõe, segundo a citação acima, a compreender a reação da mulher frente às condições de trabalho e de vida que lhe são impostas. Se a reação é de passividade e aceitação, se de revolta, ou são impostas. Se a reação é de passividade e aceitação, se de revolta, ou de crítica. Procura também identificar as maneiras através das quais estas reações se expressam.

Para melhor atender aos objetivos propostos por seu trabalho, Magda percorreu uma longa trajetória de pesquisa empírica dentro e fora da fábrica. Uma trajetória na coleta de dados que ultrapassou os limites da academia e penetrou nas emoções das protagonistas de tão importante estudo de caso. Partindo de contatos extra fábrica e usando a fundo a sua sensibilidade e identificação feminina com as operárias entrevistadas, Magda conseguiu conquistar não só a sua confiança, mas também penetrar no cotidiano de suas vidas e melhor compreender, a partir daí, suas dificuldades, anseios, aspirações, alegrias e tristezas O maior mérito do trabalho é exatamente este, sem perder seu caratér sociológico e político, transforma-se por este mesmo caratér adicionado à emoção presente em cada depoimento das operárias num testemunho cheio de vida da dura realidade ,que é o cotidiano da mulher operária tecelã de uma indústria de fiação e tecelagem de Belo Horizonte.

Desenvolvendo um eficaz trabalho de rompimento da dissimulação característica de postura operária em relação ao mundo intelectual, Magda conseguiu que as mulheres falassem livremente de sua experiência de vida e do seu cotidiano. Para tal freqüentou suas casas, e participou de seu cotidiano extra-fábrica. Só depois de vencida esta fase é que a pesquisadora entrou na fábrica, e aí já tendo conquistado na etapa anterior das operárias tecelãs passou a fazer entrevistas no próprio local de trabalho. Tomando como modelo a Enquete Operária de Marx de 1880 a autora entrevistou vinte operárias e dez técnicas administrativas.

No contato extra-fábrica a autora teve a oportunidade de penetrar no uni· verso operário mais amplo, podendo observar e conviver com aspectos como: condições de moradia, de transportes, hábitos de lazer, trabalho doméstico .. , durante três meses utilizou o mesmo transporte coletivo usado pelas tecelãs, percorreu o percurso por elas percorrido na ida e volta para o trabalho, conversou com elas e com seus familiares visitando suas casas inúmeras vezes. Este contato, segundo a própria autora, revestiu-se de um caratér especial marcado inicialmente por um choque ~entre a concepção acadêmica da maior parte da intelectualidade de que o científico se busca em verdades exatas, e as contradições inerentes à vida das tecelãs, contradições estas que ultrapassam em sentimentos e emoções os conceitos dos textos teóricos e manuais acadêmicos.

Neutralizado o choque inicial de dois mundos tão diversos superou-se a primeira etapa da pesquisa e o trabalho no interior da fábrica pôde ser desenvolvido com maior facilidade. A conquista da confiança das operárias já havia sido conseguida, só restava à pesquisadora adaptar-se às condições imperantes no local de trabalho e assim dar início a uma segunda série de entrevistas. A própria autora afirma que as dificuldades de adaptação à fábrica foram inúmeras e o incômodo provocado pelo calor, poeira e barulho, foi seu companheiro permanente durante todo o tempo em que permaneceu no interior da empresa aplicando questionários.

Aplicados os questionários deu por concluída a fase de pesquisa empírica e iniciou então a etapa da redação do texto. Uma: etapa na qual com especial sensibilidade conseguiu compor com rara perfeição um retrato real e completo da vida das operárias tecelãs.

Cinco capítulos alem da Introdução e da Conclusão, compõem o caminho percorrido para a formação de um interessante painel sobre o trabalho e vida das tecelãs da indústria de Fiação e Tecelagem ., A” de Belo Horizonte: São eles : Desenvolvimento Tecnológico e Presença Feminina na Indústria Textil; Divisão Social e Sexual do Trabalho na Fábrica; Processo de Trabalho e Produção; Condição de Trabalho e Saúde do Trabalhador; Politica Salarial e Dupla Jornada de trabalho.

Percorrendo uma vasta bibliografia sobre a presença feminina nas indústrias de fiação e tecelagem{2), Magda utilizou ao máximo os avanços teóricos e conceituais alcançados por estes textos, mas além disso deu um salto de qualidade e desvendou a fundo a condição feminina no trabalho e na vida das operárias tecelãs da indústria ”A”.

Relacionando processo de trabalho com trabalho feminino, e também analisando o grau de desenvolvimento tecnológico alcançado pela empresa nos ·últimos 20 anos, Magda chega a três conclusões: A fábrica não passou por modificações tecnológicas de peso nos últimos 20 anos; a maior parte da força de trabalho ali empregada é composta por pessoas do sexo feminino (de 1300 operários 670 são mulheres); a mão-de-obra feminina é empregada nos trabalhos menos qualificados e de menor remuneração. A justificativa para o emprego desse elevado número de mulheres na fábrica e também para a sua baixa remuneração é bem expressa petas seguintes palavras de um supervisor reproduzidas no texto da Magda: ” … a mulher aceita receber salários baixo, seu salário é de complementação, é uma “ajuda” em casa e, por outro lado, ela está ali esperando para casar, é um emprego provisório, por isso ela aceita mais e reivindica menos;’. É portanto fundamental numa empresa deste tipo o controle dos salários em um nível mais baixo e a certeza de que as reivindicações serão quase inexistentes.

A política desenvolvida pela empresa de se prevenir ao máximo movimentos reivindicatórios dentro da fábrica começa, de acordo com a análise desenvolvida pela autora, a ser colocada em prática já na seleção e contratação de pessoal. Os critérios para a contratação passam por uma rede de amizade e de família. Qualquer pessoa só pode ser contratada se for indicada por outra pessoa que já trabalhou na fábrica, e mais, a preferência de contratação recai sobre familiares dos operários da empresa. Esta estratégia de controle revela-se como sendo de uma eficácia extrema, os compromissos tornam-se pessoais e os contratados têm medo de romper a rede em algum ponto. Ninguém quer comprometer ninguém, perder o emprego ou indicar pessoas que possam comprometê-las negativamente na empresa.

No que diz respeito especificamente à contratação da mulher, a autora aponta mais uma questão que revela o quanto são fortes as artimanhas usadas para se levar as operárias a uma submissão cada vez maior. A estrutura do trabalho na empresa reproduz integralmente a estrutura do patriarcalismo que predomina na sociedade em geral. O Chefe, superior na hierarquia da fábrica, não abre mão de pressionar, com o uso do seu poder de chefia, as moças que ali trabalham. São pressões, na maioria das vezes, revestidas de características sexuais. A operária vê-se pressionada a submeter-se “à autoridade masculina” sob pena de perder o emprego.

Outra questão ressaltada com prioridade pela autora é a posição da mulher na estrutura hierarquica da fábrica. Baseado em argumentos de que mulher é dócil, meiga e paciente a elas são dados trabalhos especiais, normalmente localizados hierarquicamente abaixo daqueles destinados aos homens. Tal situação~ muito bem expressa no depoimento de uma tecelã citado no trabalho:

“… As mulheres na fábrica, apesar de trabalharem muitos anos, estão sempre assim em posição inferior. Mesmo aos homens mais novos, por exemplo, tem ocupado lugares de chefes, encarregados, etc. E a mulher está sempre permanecendo mais baixo. Eles não dão assim muito valor e oportunidade para a mulher”.

Outros aspectos do trabalho da mulher tecelã também são abordados com muita propriedade pela autora. Ela descreve em detalhes o treinamento das operárias, sua jornada de trabalho, suas funções, sua relação com a máquina, seu lazer, sua concepção de vida, suas esperanças. Além disso retrata exaustivamente todo o processo de produção desde a preparação dos fios, até o acabamento final do tecido. Um retrato inteiro da realidade sofrida das operárias, marcado pelo testemunho de fiandeiras, tecelãs e bobinistas.

Para compor melhor o quadro a autora dedica um capítulo inteiro de seu trabalho a analisar as condições de saúde e trabalho das tecelãs. Condições de trabalho cuja composição básica é o barulho, a poeira e o calor. Uma mescla de elementos que provoca nervosismo, alergia, constantes irritações e inflamações de garganta, tuberculose, sinusite, dor de cabeça, doenças na pele, palpitação, inchaço de perna e envelhecimento precoce. Os depoimentos das tecelãs colhidos pela pesquisadora, são pungentes e revelam senão uma situação de impotência das trabalhadoras diante das condições de trabalho que lhes são impostas pelo menos um misto de perplexidade e de revolta.

Além dessas condições aviltantes que as tecelãs enfrentam no seu dia a dia da empresa, condições. que as levam a um esgotamento crônico, outros fatores também contribuem para o seu envelhecimento precoce. Os salários· são baixos, e portanto insatisfatórios e insuficientes. O trabalho é duplo, quando finda a jornada de trabalho na fábrica a operária se vê obrigada a se envolver no trabalho doméstico. Inicia-se então, a jornada da lavação de roupa, preparo de ali· mentes, cuidado com os filhos. E a tecelã que tem filhos é a que mais se sacrifica. Optando pelo trabalho noturno, ela tem o dia (“livre”) para os afazeres domésticos. A luta dessa trabalhadora é incessante e continua. Seu fazer é praticamente inexistente e só lhe resta sonhar, sonhar aliás, por sua condição de mulher operária jamais alcançará.

A conclusão do trabalho é curta, e esta aliás tem sido, infelizmente a norma dos trabalhos acadêmicos. No entanto, apesar das poucas páginas a ela dedicada, a autora consegue sintetizar com bastante eficácia o que é a vida e o trabalho da tecelã da Indústria “A” de Minas Gerais. Uma vida e um trabalho onde o patriarcalismo se une ao capitalismo, para através da subordinação da mulher operária, alcançar lucros maiores para a empresa.

Notas

1 MARX, Karl – O Capital. Rio, Civilização Brasileira, s. d. (Livro 1).

2 A bibliografia usada compõe-se basicamente dos seguintes textos, dentre outros:

Referências

TAYLOR, F. W.- Princípios de Administração Científica. São Paulo. Atlas, 7ª ed., 1970.

CORIAT, Benjamin – d’ Atelier et Ie Chronométre. Paris, Christian Boujours editeur.

DURANO, Claude- Le Travaíl Enchaine. Paris. Seuil, 1978.

UNHART, Robert- I’Organization du Travail lndustriel. Rio, mimeo., 1980.

CORIAT, Benjamin- Ciência, Técnica e Capital. Madrid, Blume, 1976.

RODRIGUES, Jessita Martins – A Mulher Operária – Um estudo sobre tecelãs. São Paulo. Hucitec, 1979.

ACECO, LIliana – La Muyer en el Processo de trabajo- una fábrica têxtil– ANPOCS. 1980.

PEREIRA. O coração da fábrica- Um estudo de casos entre operárias têxteis. Rio, Paz e Terra, 1981.

PENA, Maria Valéria Junho –Mulheres e trabalhadoras- Presença Feminina na Constituição do Sistema Fabril. Rio, Paz e Terra. 1981.

Lucília de Almeida Neves Delgado – Professora Adjunto do Departamento de História da FAACH/UFMG.

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