Une autre science est possible! Manifeste pour un ralentissement des sciences – STENGERS (BMPEG-CH)

STENGERS, Isabelle. Une autre science est possible! Manifeste pour un ralentissement des sciences. JAMES, William. Apresentação de Thierry Drumm., Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond/La Découverte, 2013. 215p. Resenha de: SARTORI, Lecy. Outra ciência? Conhecimento, experimentos coletivos e avaliações. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.13, n.3, set./dez. 2018.

“Une autre science est possible! Manifeste pour un ralentissement des sciences” (Uma outra ciência é possível! Manifesto por uma desaceleração das ciências) é o último livro da filósofa da ciência Isabelle Stengers, professora da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica. Filósofa, graduada em química e pesquisadora da história da ciência, Stengers é uma importante intelectual que reflete sobre a relação entre política, ciência e economia capitalista, e também discute sobre uma antropologia implicada em questionar os saberes, as disciplinas e as instituições.

Stengers participou do colóquio intitulado “Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da terra”, ocorrido em 2014 no Rio de Janeiro, evento que, de forma geral, discutiu os temas da catástrofe ambiental e da mudança climática global. A catástrofe ecológica global é analisada por meio do conceito de Gaia. Para Stengers (2014), Gaia não é apenas outra forma de nominar a Terra como um recurso a ser explorado de forma sustentável, mas sim um “[…] novo campo científico […]” ou “[…] um complexo conjunto de modelos e dados interconectados […]” (Stengers, 2014, p. 2, tradução nossa), produzindo novos sentidos e respostas ao capitalismo globalizado. Seu último livro publicado em português tem como título “No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima” (Stengers, 2015). Suas análises fazem-nos pensar em possibilidades criativas de ações de resistência política e de lutas anticapitalistas.

No livro ora resenhado, Stengers (2013, p. 8, tradução nossa) explora uma possibilidade de “[…] reconciliação do público com sua ciência […]”, no sentido de produzir saberes a partir das preocupações, das hesitações, das consequências e das opiniões sobre determinada ideia ou solução científica.

Aqui, “[…] produzir saberes […]” aproxima-se, como aponta Stengers (2013, p. 9, tradução nossa), daquilo que Latour (2004, p. 235) denominou de “[…] matter of fact […]” ou “[…] matter of concern […]”, para criticar a objetividade científica, ou do que Guattari (1987, p. 8) chamou de “[…] matière à préoccupation […]”. Stengers (2013) propõe não apenas produzir um campo de comunicação, mas discussões acerca das respostas dos cientistas para situações que nos dizem respeito, como os problemas sociais e econômicos (por exemplo, o desemprego, a poluição, o esgotamento dos recursos naturais, o efeito estufa, o câncer, as patentes de medicamentos). O livro apresenta a importância da elaboração de uma inteligência pública das ciências, por meio da noção de compreensão, que seria o mesmo que produzir em conjunto (com diferentes atores, cidadãos, especialistas e pesquisadores) ações que impliquem soluções sem ignorar as preocupações econômicas e sociais. A ideia principal é possibilitar o encontro entre uma multiplicidade de pessoas e os conhecimentos capazes de criar de forma inteligente propostas para grandes problemas. A partir dessa ideia, Stengers (2013, p. 83, tradução nossa) propõe a “[…] desaceleração das ciências […]” ou slow science (que apresenta a mesma lógica de iniciativas como slow foodslow cityslow economy). Ela fala, dessa forma, de uma ciência produzida de maneira lenta e em conjunto com outras pessoas e saberes, que ativam conhecimentos experimentais e criativos na formulação de novos modos de existência e de resistência, opondo-se à captura de regimes de subjetividade capitalista.

Este livro é composto por cinco capítulos e pela tradução de um texto do filósofo americano, médico e psicólogo William James (1948-1910). A tradução é antecedida por uma apresentação feita pelo pesquisador Thierry Drumm. A capa do livro exibe ilustração de Milo Winter, publicada no livro de Verne (2011), “20 mil léguas submarinas”. A publicação foi organizada pela editora Les Empêcheurs de Penser em Rond – La Découverte. O livro agrega artigos de Isabelle Stengers anteriormente publicados, uma conferência e um artigo inédito. Pode-se afirmar que esta obra apresenta reflexões e discussões muito mais amplas do que a ideia apontada no título, trazendo à tona temas como as avaliações de produções acadêmicas, a elaboração de uma ciência coletiva e experimental, assim como discussões sobre objetivos e funções dos experts.

Em seu manifesto, Stengers (2013) expõe o corporativismo referente ao financiamento acadêmico, bem como as contradições que sujeitam as pesquisas e as produções científicas. No primeiro capítulo, “Pour une intelligence publique des sciences” (Por uma inteligência pública das ciências), Stengers (2013) questiona a autoridade das ciências, por meio de discussões coletivas e da participação dos cidadãos na exposição dos problemas sociais. Essa forma coletiva de refletir sobres os problemas e de elaborar soluções foi denominada pela autora de “[…] inteligência pública das ciências […]” (Stengers, 2013, p. 10, tradução nossa). Desse modo, a autora resiste às “[…] pretensões dos saberes científicos […]” (Stengers, 2013, p. 15), participando da produção do que Haraway (1995, p. 18) denominou de “[…] saberes localizados”.

Nesse sentido, Stengers (2013) propõe a construção de um espaço de discussão com entusiastas que não fazem parte da academia para compor uma produção em conjunto. Isso, no entanto, não significa a popularização da ciência, a qual é entendida como a divulgação das produções científicas para um público amplo. O objetivo dessa popularização é conscientizar os cidadãos sobre direitos, deveres e responsabilidades sociais. Os cidadãos são educados a fim de que produzam reflexões e informações para os pesquisadores desenvolverem as análises científicas. Diferentemente dessa ideia, Stengers (2013) propõe a formação de grupos que sejam capazes de produzir conhecimento (ou uma ciência experimental) e desenvolver formas de ação junto aos elementos dos contextos sociais em que os próprios atores estão inseridos.

No subtítulo do livro, Stengers (2013) destaca a ideia de desaceleração da ciência ou de uma ciência lenta, feita no tempo necessário para a elaboração de suas questões, e não sujeita ao mercado do capital e aos indicadores de produção. A autora mostra como a ciência que está sujeita às necessidades do capital é elaborada de forma rápida, não refletindo sobre suas consequências futuras. Como exemplo, ela dispõe no segundo capítulo, intitulado “Avoir l’étoffe du chercheur” (Competências do pesquisador), as consequências das descobertas científicas como o uso de organismos geneticamente modificados (OGM). Segundo a autora, as descobertas científicas foram produzidas visando os interesses econômicos, ao invés de terem sido analisadas as suas consequências, buscando-se evitar a destruição do planeta. Para ela, as soluções deveriam ser produzidas de forma criativa, sem serem subestimados as dificuldades e os saberes locais. Nesse sentido, as lutas políticas não acionam a ideia de representação, mas devem produzir “[…] caixas de ressonância […]” (Stengers, 2015, p. 148) que explicitem as experiências, fazendo com que as pessoas reflitam sobre formas de ação e as produzam.

Uma interessante contribuição do livro é a discussão sobre a lógica econômica capitalista. Em seus efeitos, esta lógica diminui o tempo necessário para produzir questões e para analisar as consequências de determinadas ações científicas. Nesse contexto, as regras de financiamento à pesquisa direcionam a produção científica e diminuem a autonomia do pesquisador, o qual fica sujeito aos temas interessantes ao poder econômico e à indústria que investem em suas análises. Stengers (2013) explicita a regulação da produção científica por meio da “[…] fórmula de excelência […]” (Stengers, 2013, p. 52, tradução nossa), que dirige o comportamento para o “[…] conformismo, oportunismo e flexibilidade […]” (Stengers, 2013, p. 52, tradução nossa), exigências da nova forma de gestão do conhecimento.

No terceiro capítulo, “Sciences et valeurs: comment ralentir” (Ciências e valores: como desacelerar), Stengers (2013) apresenta uma análise da forma como o conhecimento científico é atualmente avaliado, procurando-se uniformizá-lo, sem se considerar a pluralidade e a qualidade da produção. Neste cenário, o que importa é o número de publicação, e não a qualidade do que está sendo produzido como conhecimento. Para exemplificar, ela expõe a produção científica do filósofo Gilles Deleuze, o qual, segundo o formato atual de exigência de publicação, seria um pesquisador com pouco êxito ou baixo desempenho em avaliações1 científicas. Conforme Stengers (2013), devemos questionar esse formato de produção rápida de conhecimento e formular ferramentas para resistir aos critérios de avaliação das universidades.

Outra contribuição do livro é a tradução de um texto de William James, apresentado por Thierry Drumm. O artigo de William James, “Le poulpe du doctorat” (ou The Ph.D. Octopus), foi publicado, pela primeira vez, em 1903, na revista Harvard Monthly. No texto, o filósofo apresenta, de forma jocosa, uma crítica à política acadêmica e à regra que torna o doutorado obrigatório para os professores universitários. A universidade, por sua vez, é comparada a uma máquina de produção de títulos. A contribuição do texto está na descrição crítica do modo de funcionamento da produção acadêmica de sua época. James mostra-se contrário ao status e ao prestígio daqueles que possuem um diploma, como o de doutorado. O título de doutor, segundo o autor, incentiva o esnobismo acadêmico e a publicidade individual. Acionar o título como uma ferramenta resulta no conformismo e na institucionalização de uma lógica quantitativa. Para James (1903), o objetivo da universidade é instruir as pessoas, e não valorizar um título concedido ao pesquisador que se dedica por um tempo a um determinado assunto.

Infelizmente, não existe uma versão em português do texto de William James. Recentemente, a editora da Universidade de São Paulo (Edusp) publicou um livro organizado pela historiadora Maria Helena P. T. Machado com as cartas que William James escreveu ao participar de uma expedição ao Brasil, em 1865-1866 (Machado, 2010). Ele apresenta o jovem William James questionando a ciência da época e a produção criacionista de seu professor e chefe da Expedição Thayer, Louis Agassiz. William James, mais simpático à teoria da evolução de Charles Darwin, criticou a posição política (com interesses americanos na exploração da Amazônia) e ideológica de Louis Agassiz, que defendia o racismo e as teorias da degeneração. Os escritos de William James explicitam os interesses políticos e o financiamento da coleta de dados prevista na Expedição Thayer, bem como a sua perspectiva de análise. Como William James, Isabelle Stengers analisa a produção científica, a política de financiamento à pesquisa e as formas de avaliação da sua época.

No penúltimo capítulo, “Plaidoyer pour une Science ‘Slow’” (A defesa de uma ciência “lenta), Stengers (2013, p. 83, tradução nossa) destaca a fabricação de uma “[…] economia do conhecimento […]” que produza vínculos de cooperação crítica e de produção coletiva. Trata-se de modificar o foco das avaliações para destacar o conteúdo das produções de conhecimentos, e não o número de artigos publicados ou patentes adquiridas. A slow science, antes de ser uma exigência de mais tempo e de autonomia para a formulação de questões importantes, procura estabelecer outras articulações, além dos vínculos firmados com o mercado e com o Estado.

O livro de Stengers (2013) é instigante ao analisar a forma como a produção científica atual é insustentável. A autora aponta o modo como os pesquisadores acreditam que as soluções dos problemas serão elaboradas de forma racional ou científica, ao mesmo tempo em que ignoram a opinião, as preocupações e os saberes daqueles que são afetados pelos problemas sociais. Ao afirmar que “[…] uma outra ciência é possível […]”, Stengers (2013, p. 6, tradução nossa) explicita no último capítulo, “Cosmopolitique: civiliser les pratique modernes” (Cosmopolítica: civilizar as práticas modernas), que não é uma questão relacionada à qualidade da informação que está em jogo, mas sim a necessidade de os pesquisadores serem capazes de produzir ciências a partir de uma inteligência coletiva, que conecte diferentes modos de elaboração de saberes e reative outras formas de resolver os problemas e de resistir às demandas impostas pelo mercado à produção científica.

Notas

1Algumas referências sobre o modo como as avaliações (ou ‘cultura de auditoria’) limitam as produções de saberes e as ações criativas são Strathern (2000)Shore (2009)Power (1994) e Giri (2000).

Referências

GIRI, Ananta. Audited accountability and the imperative of responsibility: beyond the primacy of the political. In: STRATHERN, Marilyn (Ed.). Audit cultures: anthropological studies in accountability, ethics and the academy. London: Taylor & Francis, 2000. p. 173-195. [ Links ]

GUATTARI, Félix. Les schizoanalyses. Chimères, Bedou, Paris, n. 1, p. 1-21, 1987. [ Links ]

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, quad. 1995. [ Links ]

JAMES, William. The Ph.D. Octopus. Harvard Monthly, Cambridge, v. 36, n. 1, p. 1-9, 1903. [ Links ]

LATOUR, Bruno. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical Inquiry, Chicago, v. 30, n. 2, p. 225-248, Winter 2004. [ Links ]

MACHADO, Maria Helena P. Toledo (Org.). O Brasil no olhar de William James: cartas, diários e desenhos, 1865-1866. São Paulo: Edusp, 2010. [ Links ]

POWER, Michael. The audit explosion. London: Demos, 1994. [ Links ]

SHORE, Cris. Cultura de auditoria e governança iliberal: universidades e a política da responsabilização. Mediações, Londrina, v. 14, n. 1, p. 24-53, jan.-jun. 2009. DOI: http://dx.doi.org/10.5433/2176-6665.2009v14n1p24. [ Links ]

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015. (Coleção Exit). [ Links ]

STENGERS, Isabelle. Gaia, the urgency to think (and feel). In: COLÓQUIO INTERNACIONAL OS MIL NOMES DE GAIA DO ANTROPOCENO À IDADE DA TERRA, 2014, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos… Rio de Janeiro: Departamento de Filosofia/PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 2014. Disponível em: <https://osmilnomesdegaia.files.wordpress.com/2014/11/isabelle-stengers.pdf>. Acesso em: 1 ago. 2018 [ Links ]

STRATHERN, Marilyn. New accountabilities: anthropological studies in audit, ethics and the academy. In: STRATHERN, Marilyn (Ed.). Audit cultures: anthropological studies in accountability, ethics and the academy. London: Taylor & Francis, 2000. p. 1-6. [ Links ]

VERNE, Jules. 20 mil léguas submarinas. Tradução e notas de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. [ Links ]

Lecy Sartori – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected]

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As quatro partes do mundo, história de uma mundialização – GRUZINSKI (BMPEG-CH)

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo, história de uma mundialização. Mourão, Cleonice Paes Barreto; Santiago, Consuelo Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. 576p. Resenha de: SÁ, Charles. Os quatro cantos do mundo: história da globalização ibérica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.12 no.2, mai./ago. 2017.

Historiador francês, especialista no estudo das mentalidades, Serge Gruzinski já é conhecido há algum tempo em relação aos quadros historiográficos brasileiros. Suas obras abordam as múltiplas facetas da colonização espanhola na América, particularmente aquelas ligadas ao estudo da história do México. Ele desenvolve pesquisas que discutem a construção de um mundo novo pelos espanhóis e a intercessão de novos padrões culturais no mundo Ocidental a partir das conexões estabelecidas entre os mais diferentes povos dominados pelo Império Espanhol. Esse fenômeno, fruto do aparecimento de uma nova sociedade por meio da conquista espanhola da América e de outras regiões do globo, emergiu da junção entre pessoas de diferentes paragens do globo, unificadas pela imposição do Império castelhano durante a Idade Moderna.

Com livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras, seu último trabalho, lançado em 2004, na França, ganhou tradução brasileira no ano de 2014 pelas editoras da Universidade Federal de Minas Gerais (Editora UFMG) e da Universidade de São Paulo (Edusp).

A obra “As quatro partes do mundo” apresenta discussão assaz interessante sobre a junção do planeta pela égide espanhola. Ao estudar, de modo particular, o mundo dominado por Felipe II até Felipe IV, dialoga com a colonização ibérica nos quatro cantos do globo. Do México, ponto fulcral dos estudos, para a África, do Brasil para a Ásia, de Goa para o Japão e daí para Lisboa e Madri, muitas são as junções que o autor se propõe a analisar. O livro está dividido em quatro partes: mundialização ibérica; cadeia dos mundos; as coisas do mundo; e a esfera de cristal. Possui gama generosa de ilustrações, mapas e fotografias de objetos dos séculos XVI e XVII.

Seu trabalho realça vozes que sempre ficam esquecidas nos estudos mais clássicos e tradicionais. Ao invés de líderes, generais, vice-reis, governadores, conquistadores, entre tantos outros ‘grandes homens’, vê-se, aqui, povos, pessoas subalternas, mestiços. Ao invés de focar em conceitos, como exploração, colonização, dominantes e dominados, ele aborda o período a partir da ideia de ‘mestiçagem’. Este conceito, segundo Gruzinski, é o elemento que ganha força para que se entenda e se explique o desenvolvimento do mundo ibérico no Novo Mundo e em outras partes do globo. Da união entre povos de culturas distintas, resultante da imposição das leis, da religião, dos modos de vestir, do trabalho e do viver inerentes ao mundo ibérico, surgiu uma sociedade não europeia e nem indígena: mestiça.

Esse conceito é assim definido: “As mestiçagens são, em grande parte, constitutivas da monarquia. Estão aí onipresentes. São fenômenos de ordem social, econômica, religiosa e, sobretudo, política, tanto senão mais que processos culturais” (p. 48). Na América colonial, não há mais um mundo ameríndio, tampouco ibérico, o que ecoa é um universo multiétnico e plural. Essa diversidade aponta para caminhos e fronteiras que serão parte constitutiva do mundo contemporâneo. A Modernidade e os questionamentos do século XXI sobre identidade e direitos dos povos podem olhar para o Império ibérico e perceber nele semelhanças com os debates que aconteciam no mundo dos Felipes. Nesse sentido, o diálogo hoje existente sobre o direito à identidade dos povos tem um de seus prelúdios nos primórdios da colonização ibérica em terras americanas. A necessidade de compreender o outro no período filipino foi feita por funcionários, clérigos e intelectuais, isso, porém, nem sempre significou tolerância ou respeito para com outras culturas.

Outro conceito interessante para aqueles que estudam a colonização ibérica é o de ‘mobilização’. Mais do que uma expansão, cuja ideia eurocêntrica tende a ver este povo como os mais destacados no processo de formação do Novo Mundo, a ideia defendida pelo autor para a colonização é a de uma mobilização em profundidade, a qual “provoca movimentos e entusiasmos imponderados que se precipitam, uns e outros, sobre todo o globo” (p. 53), fenômeno este que não pode ser controlado pelos seres humanos, nem mesmo pelos poderosos. Ele escapa das mãos daqueles que governam, bem como dos governados, da mistura desse processo dialético, que exclui e também agrega, tudo é mesclado e se espalha. Mesmo os micróbios são internacionalizados. Para o autor, “esse movimento não conhece limites” (p. 53).

A mundialização promovida pelo império ibérico disseminou valores, ideias, pensamentos, costumes, trabalho. Artesãos indígenas começaram a fazer uso de técnicas europeias; materiais feitos na América passaram a ser utilizados na África e na Ásia. Em pouco tempo, a habilidade dessas pessoas superava a dos europeus: roupas, alimentos, casas, pinturas, metais, temperos, tudo era assimilado e reproduzido. Mesclavam-se aos saberes ibéricos aqueles provenientes do mundo indígena, assim como valores vindos da África e da Ásia. Novos conhecimentos e produtos eram feitos. No entanto, quando pressentiam que estavam perdendo o saber para os mestiços, os europeus impunham, então, sua força: se não podiam dominar por meio do conhecimento, passavam a ter o controle da fabricação. Artesãos e trabalhadores eram cooptados pelos espanhóis para suas oficinas. O trabalho braçal e o fruto do saber mestiço foram dominados pelos castelhanos.

O mundo ibérico fez circular livros e saberes. O local e o global passaram a dialogar. Um indígena no Novo México falava das lutas e das disputas referentes ao trono espanhol. Um monge português apresentava sua visão sobre a Índia. Povos africanos eram explicados nas cortes europeias por viajantes vindos da América portuguesa, enquanto nas igrejas e em conventos da América meninos oriundos de aldeias ou assentamentos indígenas desenvolviam os saberes e os valores da religião transmitida da Europa.

Nesse cenário de povos e de culturas, as revoltas foram componentes intrínsecos ao sistema imperial. Membros da Igreja e governadores travavam embates pelo domínio dos novos espaços de conquista. Na Europa, a crise econômica da coroa espanhola no século XVII, consequência da guerra contra a França e a Holanda, fez com que as reformas propostas pelo ministro e cardeal Duque de Olivares encontrassem forte oposição na população mestiça no Novo Mundo. O aumento de impostos e a retirada de privilégios desse grupo, que não era composto nem por indígenas nem por espanhóis, fez com que a cidade do México entrasse em convulsão. Conexões envolvendo a mundialização de povos e economias tornaram-se parte do cotidiano da sociedade, a qual, por sua vez, não era harmônica ou subserviente. Desse modo, a contestação às leis e às ordens foi uma constante no mundo colonial ibérico.

Outro elemento que a mundialização erigida pelo Império ibérico estabeleceu foi a relativização do saber antigo. O mundo não mais se concebia como sendo plano ou com seres demoníacos em suas águas. Povos, bem como a fauna e a flora dos quatro continentes, são entendidos como pertencentes a uma mesma natureza. A difusão dos saberes e dos conhecimentos da Antiguidade foi o contraponto à sua relativização. Nas quatro partes do mundo, ouvia-se falar da Grécia e de Roma e, dessa maneira, a história europeia difundia-se entre povos não europeus, com as implicações que esse tipo de visão eurocêntrica trouxe para a compreensão da própria historicidade dos povos dominados pelos ibéricos. Da cidade do México a Goa, bebia-se dos valores da Antiguidade e dos padres da Igreja Católica. Uma sociedade paternalista, patriarcal e culturalmente judaico-cristã foi aí forjada, valores fundamentais para a cultura local foram realocados ou então dizimados, juntamente com os povos que o professavam.

Em um mundo que se globaliza cada vez mais, o pertencimento a um lugar continua sendo um item considerável. Ao se tornarem cidadãos do mundo, os ibéricos nem por isso deixavam de ser habitantes dessa península, pois o conhecimento por eles produzidos tinha em sua formação católica e europeia a base segundo a qual as relações e as novas concepções de mundo eram efetuadas. Os experts eram compostos por indivíduos europeus ou mestiços que pensavam esse novo mundo. Estes, por sua vez, eram oriundos da Igreja ou dos quadros administrativos do Império e dialogavam, por meio de seus livros e de viagens com esse novo universo que se abria para eles. Nesse contexto, emergiam novas elites: soldados, mulatos, comerciantes, fazendeiros, pessoas da pequena nobreza. Por meio do trabalho realizado em diversas partes do Império, efetivavam com suas ações e ideias o amálgama que concede unidade em meio à diversidade e ajudavam a compor as costuras que forjavam o império filipino.

As ideias e concepções vindas da Europa encontravam solo fértil no Novo Mundo, na África e na Ásia. Aristóteles e o tomismo da escolástica eram ensinados, debatidos e reproduzidos nos colégios e espaços acadêmicos do Império. Franciscanos, Jesuítas, Dominicanos, entre outras ordens religiosas, divulgavam e faziam com que se conhecessem as ideias advindas da Antiguidade grecoromana. Quadros, pinturas, poemas, tratados, esculturas e muitos outros objetos de arte reproduziam a concepção cristã e Ocidental de mundo.

Da mesma maneira que as artes e a fé se globalizavam, a língua também seguia o mesmo ritmo. Latim, português e castelhano tornaram-se o meio oficial de comunicação entre povos diversos. No entanto, estas línguas sofriam por um processo de hibridização: ao serem faladas por povos de outras regiões do globo, incorporavam elementos desses novos grupos. No Brasil, a Língua Geral, mescla da língua portuguesa com a língua tupi, foi o veículo pelo qual seus habitantes se comunicavam até a segunda metade do século XVIII.

Fé e linguagem uniram-se nas tentativas que jesuítas e demais ordens religiosas empreenderam para a propagação da Igreja Católica. Ao tentarem ver, nas crenças e nos valores dos povos que buscavam converter, elementos que possibilitassem exemplificar os ensinamentos de Cristo, houve, em muitos momentos, resultados inesperados. A partir do diálogo com crenças e cultos estrangeiros, alguns religiosos terminaram por adentrar em áreas que beiravam à heresia.

Em sua obra, Serge Gruzinski desenvolve a todo o momento uma escrita que direciona o leitor ao diálogo com outra época. Na tentativa de dominar as quatro partes do mundo, a monarquia católica da Espanha quase conseguiu seu intento. O tempo, esse monstro voraz, e as condições políticas e econômicas da Europa, bem como as resistências enfrentadas na África e na Ásia, contribuíram para que esse projeto não se concretizasse. Ainda assim, o contexto e as ideias da mundialização ibérica vicejam ainda hoje em nossa sociedade contemporânea, quer seja em seus filmes, obra de artes, romances, na linguagem e em atitudes que estão presentes em uma parte significativa do planeta.

A abordagem que se pretende na obra peca em um ponto: apesar de escrever sobre as diversas partes que compunham o Império espanhol, nota-se, ao longo de toda a obra, maior desenvolvimento de conceitos e de fatos circunscritos ao universo mexicano. Outras partes da América espanhola são menos abordadas do que a área do antigo império asteca. Nesse sentido, nota-se o olhar do especialista, já que Gruzinski tem como principal área de pesquisa o estudo da sociedade mexicana colonial.

Entender a globalização ibérica nos séculos XVI e XVII pode nos levar a refletir sobre a globalização capitalista em nossos dias. Ao adentrar em um mundo que se foi, percebe-se sua permanência. Discussões que foram aventadas na Espanha dos Felipes seguem ainda presentes nas sociedades da pós-modernidade. Dessa forma, a leitura da obra pode revelar formas de diálogos que devem ser buscadas na sociedade atual, bem como mecanismos de exploração que, ao persistirem, devem ser combatidos e extirpados. Boa leitura!

Charles Sá – Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]

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O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades – OLIVEIRA FILHO (BMPEG-CH)

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. 384p. Resenha de: ROSA, Marlise. O nascimento do Brasil: releituras a partir da antropologia histórica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.12, n.2, mai./ago. 2017.

O livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios: ‘pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades”, organizado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, reúne artigos de sua autoria, escritos em diferentes momentos de sua carreira. Professor-titular de Etnologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), com mais de quatro décadas de experiência em pesquisas sobre povos indígenas da Amazônia e do Nordeste, nos últimos anos vem desenvolvendo estudos relacionados à antropologia do colonialismo e à antropologia histórica, concentrando-se, principalmente, no processo de formação nacional, na historiografia, em museus e em coleções etnográficas. Nesta obra, resultado destas reflexões, o autor nos apresenta, além de um denso prefácio, outros nove textos, nos quais busca “[…] reexaminar criticamente as interpretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas formas de agência e participação que as populações autóctones tiveram na construção da nação” (p. 7). Por meio deste exercício, João Pacheco de Oliveira Filho chama a atenção para a inexistência de uma história indígena singular e contínua, demonstrando haver uma multiplicidade de histórias, com experiências e temporalidades diversas.

A reflexão introdutória, de certo modo, consiste em um capítulo à parte, no qual o autor não somente problematiza as formas de incorporação dos índios à história e a participação deles à formação do Brasil, mas também critica o próprio fazer antropológico, que negligenciou os modos pelos quais, mesmo em um contexto de dominação, os indígenas resistiram, organizaram-se e continuaram a atualizar sua cultura. Afirma, portanto, que houve uma anistia aos aspectos violentos da colonização por parte de intelectuais não indígenas, ao fazerem do relativismo a ferramenta única de seu horizonte ideológico e inviabilizarem a elaboração de etnografias sobre a tutela. Fala, ainda, sobre os múltiplos regimes de memória e a necessidade de entender a presença indígena em cada um dos contextos históricos em que tais representações foram formuladas. Nestes regimes, os indígenas são relatados como portadores de características variáveis, que podem, inclusive, ser antagônicas em contextos diferentes e sucessivos, pois cada fala corresponde a um regime específico. Por isso, o pesquisador não pode se fixar em apenas um deles, devendo também se beneficiar de pesquisas antropológicas e históricas contemporâneas.

No primeiro capítulo – “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma etnográfico” –, como o título sugere, o autor propõe uma revisão do paradigma historiográfico utilizado, a fim de compreender a presença indígena no Brasil atual, que, segundo ele, é baseado em categorias coloniais e em imagens reificadoras, sem utilidade à pesquisa e ao aumento do protagonismo indígena. Tais narrativas apresentam três grandes equívocos: 1) independentemente do período histórico, de região ou de etnia, os discursos sobre os indígenas passam pela polaridade proteção versus extermínio, legitimando, assim, a tutela; 2) a paz, enquanto objetivo da ação colonial, corresponde a um estado jurídico-administrativo que reflete apenas o ponto de vista dos colonizadores, negligenciando os modos como os indígenas recepcionam e se utilizam destas normas; 3) há o estabelecimento de uma clivagem radical entre índios e não índios, inspirado no modelo religioso de pagão versus cristão, que, diferentemente da questão do negro, não admite misturas, sobreposições ou alternâncias. Estes discursos, portanto, legitimam e naturalizam a ação tutelar, inviabilizando formas de resistência cultural e omitindo situações de incorporação de indígenas a famílias brancas.

Na sequência, com o artigo “As mortes do indígena no Império do Brasil: indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, Oliveira Filho constrói uma reflexão sobre narrativas e imagens de indígenas produzidas no século XIX, sobretudo durante o Segundo Reinado, momento no qual os ‘índios bravos’, por representarem empecilho para a expansão colonial, tornaram-se o centro do regime discursivo. As manifestações artísticas e expressões populares analisadas pelo autor indicam um conjunto de seis eixos geradores de sentido: 1) o nativismo; 2) a nobreza pretérita dos indígenas; 3) a morte gloriosa dos guerreiros; 4) o índio como elemento exterior à fundação do país; 5) a morte como o destino trágico dos indígenas; 6) a morte ‘quase vegetal’ do indígena. Em todas estas narrativas e imagens, a morte como elemento central tem efeitos sociais que implicam o esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade, relegando ao índio um lugar na história anterior ao Brasil.

No capítulo três – “A conquista do Vale Amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidade de trabalho compulsório” –, contrapondo-se ao que denomina como “história geral” da borracha na Amazônia, Oliveira Filho propõe que o seringal seja pensado como uma fronteira, “[…] isto é, como um mecanismo de ocupação de novas terras e de sua incorporação, em condição subordinada, dentro de uma economia de mercado” (p. 118). O pesquisador demonstra que, devido às condições favoráveis do mercado internacional da borracha em meados do século passado, o ‘seringal de caboclo’ transformou-se no ‘seringal do apogeu’, instaurando uma nova modalidade de trabalho compulsório e de usos distintos da terra e dos recursos naturais. Diante disso, defende que a história da Amazônia, ao ser escrita a partir da fronteira, contemplaria não somente a heterogeneidade deste processo histórico, mas também a pluralidade de sentidos assumidos pelos agentes que lhe foram contemporâneos.

A ideia de fronteira continua sendo seu objeto de análise no capítulo seguinte – “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual da fronteira” –, voltado para a análise das representações sobre as populações indígenas amazônicas e sobre a expansão da fronteira nesta região. Para o autor, a singularidade histórica da Amazônia só pode ser entendida quando são analisadas as diferentes formas de fronteiras que ocorreram no Brasil, com características e temporalidades distintas. Sua reflexão é iniciada com a problematização dos dois modelos de colonização vigentes na América portuguesa – a colônia do Brasil e a do Maranhão e Grão-Pará –, abordando, na sequência, as representações sobre o primeiro encontro nas “costas do litoral atlântico e no interior do vale amazônico” até chegar ao cerne do artigo, apresentando “[…] diferentes temporalidades, narrativas e regimes que singularizam essa trajetória histórica das populações autóctones da Amazônia até o momento atual” (p. 185).

No capítulo cinco, Oliveira Filho muda o foco para os povos indígenas do Nordeste, apresentando o artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, trabalho muito conhecido, escrito em 1997 para o concurso ao cargo de professor-titular do MN-UFRJ. Nele, o autor problematiza a ‘emergência’ de novas identidades étnicas no Nordeste, chamando a atenção para o fato de que, embora este fenômeno seja recente, a população se considera originária – são coletividades indígenas convertidas ao cristianismo e que, hoje, vivem como camponeses, parceiros e assalariados. Sua reflexão perpassa questões referentes à formação do objeto de investigação – os ‘índios do Nordeste’ –, discute conceitos-chave para a análise da etnicidade e, por fim, debate a respeito do americanismo, refletindo sobre as perspectivas para o estudo de populações tidas como culturalmente ‘misturadas’.

O capítulo seguinte – “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas” – consiste na análise, a partir de três aspectos específicos, de materiais quantitativos produzidos sobre os povos indígenas. O primeiro é o aspecto demográfico, apresentado por meio de censos nacionais e outros levantamentos; o segundo é o aspecto econômico, representado por meio de dados sobre terras, recursos naturais e conflitos fundiários; e o terceiro é representado pelas divergências em torno da compreensão da presença indígena nos dias atuais. Conforme o autor, o ato de contar sujeitos e processos sociais traz, implícito, os procedimentos de comparação e de normatização; o primeiro como parte do processo cognitivo e o outro como parte do ordenamento político. O ato de contar, portanto, quando realizado por um sujeito que detém algum tipo de poder ou autoridade sobre aqueles a quem observa, arbitra sobre direitos e, no que toca aos povos indígenas, “atropela as alteridades e engendra os subalternos” (p. 230).

Tais dados, contudo, “[…] sugerem um novo perfil demográfico, em que as unidades societárias e a situação de contato dos índios brasileiros já não mais correspondem às antigas interpretações sobre frágeis microssociedades isoladas na floresta amazônica” (p. 265). Por isso, no capítulo seguinte – “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil” –, Oliveira Filho analisa o processo de formação do movimento indígena brasileiro, identificando algumas estratégias, alianças e projetos que compõem o universo político contemporâneo. Sinteticamente, o autor agrupa as estratégias políticas dos indígenas a partir de três rótulos: índios funcionários, lideranças e organizações indígenas. Estas estratégias têm em comum a luta por uma cidadania indígena, construída por meio do território étnico; porém, divergem no que toca ao fortalecimento da sociedade civil e à defesa de interesses corporativos.

No oitavo capítulo – “Sem a tutela, uma nova moldura de nação” –, a reflexão tem como tema os dispositivos jurídicos que tratam das populações indígenas. O autor fala sobre os embates de forças durante o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, destacando a importância atribuída aos índios, bem como o protagonismo indígena, com presença massiva nas audiências públicas, em subcomissões e no debate diário com os parlamentares. Destaca, ainda, a originalidade da nova Constituição, quando comparada a outros marcos jurídicos voltados à regularização da presença indígena na história do Brasil. Em diálogo com a ciência política e a história, o artigo demonstra que a questão indígena impacta não somente os próprios índios, estendendo-se à estruturação do Estado e ao processo de construção de uma identidade nacional.

Para concluir, Oliveira Filho apresenta o texto “Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios”, cuja proposta é refletir sobre alguns usos, presentes e passados, da categoria ‘pacificação’. A sua intenção é analisar como esta categoria, por cinco séculos empregada apenas para a população autóctone, foi divulgada e celebrada como intervenção do poder público nas favelas cariocas. Em sua concepção, há uma clara analogia entre as ‘pacificações’ contemporâneas e as coloniais, pois ambas fazem referência à intervenção dos poderes públicos em áreas que antes escapavam ao seu domínio, recuperando “[…] a retórica da missão civilizatória da elite dirigente e dos agentes do Estado” (p. 338). Assim como os índios bravos da época colonial, os moradores das favelas são pensados como uma alteridade totalizadora, situada nos limites da criminalidade, por isso não são tratados como cidadãos comuns, sendo sujeitados a uma tutela de natureza exclusivamente militar e repressiva, implementada por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

A intenção do autor, nesta obra, foi abordar os fenômenos sociais a partir de uma postura etnográfica e dialógica, conjugando o olhar antropológico e a crítica historiográfica. Esse movimento rumo à chamada ‘antropologia histórica’, como ele mesmo destaca, reúne um conjunto de antropólogos, de diferentes países, que convergem no desconforto com relação ao antigo olhar imperial da disciplina e, por isso, propõem novos objetos de investigação e novas abordagens.

A inserção de Oliveira Filho nessa seara não se dá com o intuito de contrapor a história nacional, mas sim de – ao contemplar situações históricas e eventos em que agentes com interesses antagônicos interagem – demonstrar que, conjuntamente, esses sujeitos constroem instituições, significados e estratégias. Em outras palavras, é perceber que os sujeitos imersos nesse encontro colonial estão, apesar das assimetrias do contato, igualmente envolvidos no processo de intercâmbio cultural. Ele chama a atenção, portanto, para a necessidade de revermos, de forma crítica, os modos de construção de uma história nacional e as etnificações produzidas pelo saber colonial.

Por tudo isso, os diferentes eventos, personagens e momentos da história dos indígenas no Brasil analisados nesta obra, bem como as particularidades dos olhares empregados, fazem de “O nascimento do Brasil e outros ensaios” uma leitura fundamental, não somente para os estudiosos do tema, mas também para aqueles que se interessam por uma outra história de nosso país, que reconheça e problematize a dissonância entre os fatos concretos e as grandes interpretações.

Marlise Rosa – Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades – OLIVEIRA FILHO (BMPEG-CH)

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. 384p. il. color, ISBN: 978-85-7740-206-9.

O livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios: ‘pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades”, organizado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, reúne artigos de sua autoria, escritos em diferentes momentos de sua carreira. Professor-titular de Etnologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), com mais de quatro décadas de experiência em pesquisas sobre povos indígenas da Amazônia e do Nordeste, nos últimos anos vem desenvolvendo estudos relacionados à antropologia do colonialismo e à antropologia histórica, concentrando-se, principalmente, no processo de formação nacional, na historiografia, em museus e em coleções etnográficas. Nesta obra, resultado destas reflexões, o autor nos apresenta, além de um denso prefácio, outros nove textos, nos quais busca “[…] reexaminar criticamente as interpretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas formas de agência e participação que as populações autóctones tiveram na construção da nação” (p. 7). Por meio deste exercício, João Pacheco de Oliveira Filho chama a atenção para a inexistência de uma história indígena singular e contínua, demonstrando haver uma multiplicidade de histórias, com experiências e temporalidades diversas.

A reflexão introdutória, de certo modo, consiste em um capítulo à parte, no qual o autor não somente problematiza as formas de incorporação dos índios à história e a participação deles à formação do Brasil, mas também critica o próprio fazer antropológico, que negligenciou os modos pelos quais, mesmo em um contexto de dominação, os indígenas resistiram, organizaram-se e continuaram a atualizar sua cultura. Afirma, portanto, que houve uma anistia aos aspectos violentos da colonização por parte de intelectuais não indígenas, ao fazerem do relativismo a ferramenta única de seu horizonte ideológico e inviabilizarem a elaboração de etnografias sobre a tutela. Fala, ainda, sobre os múltiplos regimes de memória e a necessidade de entender a presença indígena em cada um dos contextos históricos em que tais representações foram formuladas. Nestes regimes, os indígenas são relatados como portadores de características variáveis, que podem, inclusive, ser antagônicas em contextos diferentes e sucessivos, pois cada fala corresponde a um regime específico. Por isso, o pesquisador não pode se fixar em apenas um deles, devendo também se beneficiar de pesquisas antropológicas e históricas contemporâneas.

No primeiro capítulo – “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma etnográfico” –, como o título sugere, o autor propõe uma revisão do paradigma historiográfico utilizado, a fim de compreender a presença indígena no Brasil atual, que, segundo ele, é baseado em categorias coloniais e em imagens reificadoras, sem utilidade à pesquisa e ao aumento do protagonismo indígena. Tais narrativas apresentam três grandes equívocos: 1) independentemente do período histórico, de região ou de etnia, os discursos sobre os indígenas passam pela polaridade proteção versus extermínio, legitimando, assim, a tutela; 2) a paz, enquanto objetivo da ação colonial, corresponde a um estado jurídico-administrativo que reflete apenas o ponto de vista dos colonizadores, negligenciando os modos como os indígenas recepcionam e se utilizam destas normas; 3) há o estabelecimento de uma clivagem radical entre índios e não índios, inspirado no modelo religioso de pagão versus cristão, que, diferentemente da questão do negro, não admite misturas, sobreposições ou alternâncias. Estes discursos, portanto, legitimam e naturalizam a ação tutelar, inviabilizando formas de resistência cultural e omitindo situações de incorporação de indígenas a famílias brancas.

Na sequência, com o artigo “As mortes do indígena no Império do Brasil: indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, Oliveira Filho constrói uma reflexão sobre narrativas e imagens de indígenas produzidas no século XIX, sobretudo durante o Segundo Reinado, momento no qual os ‘índios bravos’, por representarem empecilho para a expansão colonial, tornaram-se o centro do regime discursivo. As manifestações artísticas e expressões populares analisadas pelo autor indicam um conjunto de seis eixos geradores de sentido: 1) o nativismo; 2) a nobreza pretérita dos indígenas; 3) a morte gloriosa dos guerreiros; 4) o índio como elemento exterior à fundação do país; 5) a morte como o destino trágico dos indígenas; 6) a morte ‘quase vegetal’ do indígena. Em todas estas narrativas e imagens, a morte como elemento central tem efeitos sociais que implicam o esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade, relegando ao índio um lugar na história anterior ao Brasil.

No capítulo três – “A conquista do Vale Amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidade de trabalho compulsório” –, contrapondo-se ao que denomina como “história geral” da borracha na Amazônia, Oliveira Filho propõe que o seringal seja pensado como uma fronteira, “[…] isto é, como um mecanismo de ocupação de novas terras e de sua incorporação, em condição subordinada, dentro de uma economia de mercado” (p. 118). O pesquisador demonstra que, devido às condições favoráveis do mercado internacional da borracha em meados do século passado, o ‘seringal de caboclo’ transformou-se no ‘seringal do apogeu’, instaurando uma nova modalidade de trabalho compulsório e de usos distintos da terra e dos recursos naturais. Diante disso, defende que a história da Amazônia, ao ser escrita a partir da fronteira, contemplaria não somente a heterogeneidade deste processo histórico, mas também a pluralidade de sentidos assumidos pelos agentes que lhe foram contemporâneos.

A ideia de fronteira continua sendo seu objeto de análise no capítulo seguinte – “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual da fronteira” –, voltado para a análise das representações sobre as populações indígenas amazônicas e sobre a expansão da fronteira nesta região. Para o autor, a singularidade histórica da Amazônia só pode ser entendida quando são analisadas as diferentes formas de fronteiras que ocorreram no Brasil, com características e temporalidades distintas. Sua reflexão é iniciada com a problematização dos dois modelos de colonização vigentes na América portuguesa – a colônia do Brasil e a do Maranhão e Grão-Pará –, abordando, na sequência, as representações sobre o primeiro encontro nas “costas do litoral atlântico e no interior do vale amazônico” até chegar ao cerne do artigo, apresentando “[…] diferentes temporalidades, narrativas e regimes que singularizam essa trajetória histórica das populações autóctones da Amazônia até o momento atual” (p. 185).

No capítulo cinco, Oliveira Filho muda o foco para os povos indígenas do Nordeste, apresentando o artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, trabalho muito conhecido, escrito em 1997 para o concurso ao cargo de professor-titular do MN-UFRJ. Nele, o autor problematiza a ‘emergência’ de novas identidades étnicas no Nordeste, chamando a atenção para o fato de que, embora este fenômeno seja recente, a população se considera originária – são coletividades indígenas convertidas ao cristianismo e que, hoje, vivem como camponeses, parceiros e assalariados. Sua reflexão perpassa questões referentes à formação do objeto de investigação – os ‘índios do Nordeste’ –, discute conceitos-chave para a análise da etnicidade e, por fim, debate a respeito do americanismo, refletindo sobre as perspectivas para o estudo de populações tidas como culturalmente ‘misturadas’.

O capítulo seguinte – “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas” – consiste na análise, a partir de três aspectos específicos, de materiais quantitativos produzidos sobre os povos indígenas. O primeiro é o aspecto demográfico, apresentado por meio de censos nacionais e outros levantamentos; o segundo é o aspecto econômico, representado por meio de dados sobre terras, recursos naturais e conflitos fundiários; e o terceiro é representado pelas divergências em torno da compreensão da presença indígena nos dias atuais. Conforme o autor, o ato de contar sujeitos e processos sociais traz, implícito, os procedimentos de comparação e de normatização; o primeiro como parte do processo cognitivo e o outro como parte do ordenamento político. O ato de contar, portanto, quando realizado por um sujeito que detém algum tipo de poder ou autoridade sobre aqueles a quem observa, arbitra sobre direitos e, no que toca aos povos indígenas, “atropela as alteridades e engendra os subalternos” (p. 230).

Tais dados, contudo, “[…] sugerem um novo perfil demográfico, em que as unidades societárias e a situação de contato dos índios brasileiros já não mais correspondem às antigas interpretações sobre frágeis microssociedades isoladas na floresta amazônica” (p. 265). Por isso, no capítulo seguinte – “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil” –, Oliveira Filho analisa o processo de formação do movimento indígena brasileiro, identificando algumas estratégias, alianças e projetos que compõem o universo político contemporâneo. Sinteticamente, o autor agrupa as estratégias políticas dos indígenas a partir de três rótulos: índios funcionários, lideranças e organizações indígenas. Estas estratégias têm em comum a luta por uma cidadania indígena, construída por meio do território étnico; porém, divergem no que toca ao fortalecimento da sociedade civil e à defesa de interesses corporativos.

No oitavo capítulo – “Sem a tutela, uma nova moldura de nação” –, a reflexão tem como tema os dispositivos jurídicos que tratam das populações indígenas. O autor fala sobre os embates de forças durante o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, destacando a importância atribuída aos índios, bem como o protagonismo indígena, com presença massiva nas audiências públicas, em subcomissões e no debate diário com os parlamentares. Destaca, ainda, a originalidade da nova Constituição, quando comparada a outros marcos jurídicos voltados à regularização da presença indígena na história do Brasil. Em diálogo com a ciência política e a história, o artigo demonstra que a questão indígena impacta não somente os próprios índios, estendendo-se à estruturação do Estado e ao processo de construção de uma identidade nacional.

Para concluir, Oliveira Filho apresenta o texto “Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios”, cuja proposta é refletir sobre alguns usos, presentes e passados, da categoria ‘pacificação’. A sua intenção é analisar como esta categoria, por cinco séculos empregada apenas para a população autóctone, foi divulgada e celebrada como intervenção do poder público nas favelas cariocas. Em sua concepção, há uma clara analogia entre as ‘pacificações’ contemporâneas e as coloniais, pois ambas fazem referência à intervenção dos poderes públicos em áreas que antes escapavam ao seu domínio, recuperando “[…] a retórica da missão civilizatória da elite dirigente e dos agentes do Estado” (p. 338). Assim como os índios bravos da época colonial, os moradores das favelas são pensados como uma alteridade totalizadora, situada nos limites da criminalidade, por isso não são tratados como cidadãos comuns, sendo sujeitados a uma tutela de natureza exclusivamente militar e repressiva, implementada por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

A intenção do autor, nesta obra, foi abordar os fenômenos sociais a partir de uma postura etnográfica e dialógica, conjugando o olhar antropológico e a crítica historiográfica. Esse movimento rumo à chamada ‘antropologia histórica’, como ele mesmo destaca, reúne um conjunto de antropólogos, de diferentes países, que convergem no desconforto com relação ao antigo olhar imperial da disciplina e, por isso, propõem novos objetos de investigação e novas abordagens.

A inserção de Oliveira Filho nessa seara não se dá com o intuito de contrapor a história nacional, mas sim de – ao contemplar situações históricas e eventos em que agentes com interesses antagônicos interagem – demonstrar que, conjuntamente, esses sujeitos constroem instituições, significados e estratégias. Em outras palavras, é perceber que os sujeitos imersos nesse encontro colonial estão, apesar das assimetrias do contato, igualmente envolvidos no processo de intercâmbio cultural. Ele chama a atenção, portanto, para a necessidade de revermos, de forma crítica, os modos de construção de uma história nacional e as etnificações produzidas pelo saber colonial.

Por tudo isso, os diferentes eventos, personagens e momentos da história dos indígenas no Brasil analisados nesta obra, bem como as particularidades dos olhares empregados, fazem de “O nascimento do Brasil e outros ensaios” uma leitura fundamental, não somente para os estudiosos do tema, mas também para aqueles que se interessam por uma outra história de nosso país, que reconheça e problematize a dissonância entre os fatos concretos e as grandes interpretações.

Marlise RosaUniversidade Federal do Rio de Janeiro([email protected])

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. Hum. vol.12 no.2 Belém May/Aug. 2017.

 

As quatro partes do mundo: história de uma mundialização – GRUZINSKI (BMPEG-CH)

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. 576p. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Resenha de: SÁ, Charles. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas. vol.12 no.2 Belém May/Aug. 2017.

Historiador francês, especialista no estudo das mentalidades, Serge Gruzinski já é conhecido há algum tempo em relação aos quadros historiográficos brasileiros. Suas obras abordam as múltiplas facetas da colonização espanhola na América, particularmente aquelas ligadas ao estudo da história do México. Ele desenvolve pesquisas que discutem a construção de um mundo novo pelos espanhóis e a intercessão de novos padrões culturais no mundo Ocidental a partir das conexões estabelecidas entre os mais diferentes povos dominados pelo Império Espanhol. Esse fenômeno, fruto do aparecimento de uma nova sociedade por meio da conquista espanhola da América e de outras regiões do globo, emergiu da junção entre pessoas de diferentes paragens do globo, unificadas pela imposição do Império castelhano durante a Idade Moderna.

Com livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras, seu último trabalho, lançado em 2004, na França, ganhou tradução brasileira no ano de 2014 pelas editoras da Universidade Federal de Minas Gerais (Editora UFMG) e da Universidade de São Paulo (Edusp).

A obra “As quatro partes do mundo” apresenta discussão assaz interessante sobre a junção do planeta pela égide espanhola. Ao estudar, de modo particular, o mundo dominado por Felipe II até Felipe IV, dialoga com a colonização ibérica nos quatro cantos do globo. Do México, ponto fulcral dos estudos, para a África, do Brasil para a Ásia, de Goa para o Japão e daí para Lisboa e Madri, muitas são as junções que o autor se propõe a analisar. O livro está dividido em quatro partes: mundialização ibérica; cadeia dos mundos; as coisas do mundo; e a esfera de cristal. Possui gama generosa de ilustrações, mapas e fotografias de objetos dos séculos XVI e XVII.

Seu trabalho realça vozes que sempre ficam esquecidas nos estudos mais clássicos e tradicionais. Ao invés de líderes, generais, vice-reis, governadores, conquistadores, entre tantos outros ‘grandes homens’, vê-se, aqui, povos, pessoas subalternas, mestiços. Ao invés de focar em conceitos, como exploração, colonização, dominantes e dominados, ele aborda o período a partir da ideia de ‘mestiçagem’. Este conceito, segundo Gruzinski, é o elemento que ganha força para que se entenda e se explique o desenvolvimento do mundo ibérico no Novo Mundo e em outras partes do globo. Da união entre povos de culturas distintas, resultante da imposição das leis, da religião, dos modos de vestir, do trabalho e do viver inerentes ao mundo ibérico, surgiu uma sociedade não europeia e nem indígena: mestiça.

Esse conceito é assim definido: “As mestiçagens são, em grande parte, constitutivas da monarquia. Estão aí onipresentes. São fenômenos de ordem social, econômica, religiosa e, sobretudo, política, tanto senão mais que processos culturais” (p. 48). Na América colonial, não há mais um mundo ameríndio, tampouco ibérico, o que ecoa é um universo multiétnico e plural. Essa diversidade aponta para caminhos e fronteiras que serão parte constitutiva do mundo contemporâneo. A Modernidade e os questionamentos do século XXI sobre identidade e direitos dos povos podem olhar para o Império ibérico e perceber nele semelhanças com os debates que aconteciam no mundo dos Felipes. Nesse sentido, o diálogo hoje existente sobre o direito à identidade dos povos tem um de seus prelúdios nos primórdios da colonização ibérica em terras americanas. A necessidade de compreender o outro no período filipino foi feita por funcionários, clérigos e intelectuais, isso, porém, nem sempre significou tolerância ou respeito para com outras culturas.

Outro conceito interessante para aqueles que estudam a colonização ibérica é o de ‘mobilização’. Mais do que uma expansão, cuja ideia eurocêntrica tende a ver este povo como os mais destacados no processo de formação do Novo Mundo, a ideia defendida pelo autor para a colonização é a de uma mobilização em profundidade, a qual “provoca movimentos e entusiasmos imponderados que se precipitam, uns e outros, sobre todo o globo” (p. 53), fenômeno este que não pode ser controlado pelos seres humanos, nem mesmo pelos poderosos. Ele escapa das mãos daqueles que governam, bem como dos governados, da mistura desse processo dialético, que exclui e também agrega, tudo é mesclado e se espalha. Mesmo os micróbios são internacionalizados. Para o autor, “esse movimento não conhece limites” (p. 53).

A mundialização promovida pelo império ibérico disseminou valores, ideias, pensamentos, costumes, trabalho. Artesãos indígenas começaram a fazer uso de técnicas europeias; materiais feitos na América passaram a ser utilizados na África e na Ásia. Em pouco tempo, a habilidade dessas pessoas superava a dos europeus: roupas, alimentos, casas, pinturas, metais, temperos, tudo era assimilado e reproduzido. Mesclavam-se aos saberes ibéricos aqueles provenientes do mundo indígena, assim como valores vindos da África e da Ásia. Novos conhecimentos e produtos eram feitos. No entanto, quando pressentiam que estavam perdendo o saber para os mestiços, os europeus impunham, então, sua força: se não podiam dominar por meio do conhecimento, passavam a ter o controle da fabricação. Artesãos e trabalhadores eram cooptados pelos espanhóis para suas oficinas. O trabalho braçal e o fruto do saber mestiço foram dominados pelos castelhanos.

O mundo ibérico fez circular livros e saberes. O local e o global passaram a dialogar. Um indígena no Novo México falava das lutas e das disputas referentes ao trono espanhol. Um monge português apresentava sua visão sobre a Índia. Povos africanos eram explicados nas cortes europeias por viajantes vindos da América portuguesa, enquanto nas igrejas e em conventos da América meninos oriundos de aldeias ou assentamentos indígenas desenvolviam os saberes e os valores da religião transmitida da Europa.

Nesse cenário de povos e de culturas, as revoltas foram componentes intrínsecos ao sistema imperial. Membros da Igreja e governadores travavam embates pelo domínio dos novos espaços de conquista. Na Europa, a crise econômica da coroa espanhola no século XVII, consequência da guerra contra a França e a Holanda, fez com que as reformas propostas pelo ministro e cardeal Duque de Olivares encontrassem forte oposição na população mestiça no Novo Mundo. O aumento de impostos e a retirada de privilégios desse grupo, que não era composto nem por indígenas nem por espanhóis, fez com que a cidade do México entrasse em convulsão. Conexões envolvendo a mundialização de povos e economias tornaram-se parte do cotidiano da sociedade, a qual, por sua vez, não era harmônica ou subserviente. Desse modo, a contestação às leis e às ordens foi uma constante no mundo colonial ibérico.

Outro elemento que a mundialização erigida pelo Império ibérico estabeleceu foi a relativização do saber antigo. O mundo não mais se concebia como sendo plano ou com seres demoníacos em suas águas. Povos, bem como a fauna e a flora dos quatro continentes, são entendidos como pertencentes a uma mesma natureza. A difusão dos saberes e dos conhecimentos da Antiguidade foi o contraponto à sua relativização. Nas quatro partes do mundo, ouvia-se falar da Grécia e de Roma e, dessa maneira, a história europeia difundia-se entre povos não europeus, com as implicações que esse tipo de visão eurocêntrica trouxe para a compreensão da própria historicidade dos povos dominados pelos ibéricos. Da cidade do México a Goa, bebia-se dos valores da Antiguidade e dos padres da Igreja Católica. Uma sociedade paternalista, patriarcal e culturalmente judaico-cristã foi aí forjada, valores fundamentais para a cultura local foram realocados ou então dizimados, juntamente com os povos que o professavam.

Em um mundo que se globaliza cada vez mais, o pertencimento a um lugar continua sendo um item considerável. Ao se tornarem cidadãos do mundo, os ibéricos nem por isso deixavam de ser habitantes dessa península, pois o conhecimento por eles produzidos tinha em sua formação católica e europeia a base segundo a qual as relações e as novas concepções de mundo eram efetuadas. Os experts eram compostos por indivíduos europeus ou mestiços que pensavam esse novo mundo. Estes, por sua vez, eram oriundos da Igreja ou dos quadros administrativos do Império e dialogavam, por meio de seus livros e de viagens com esse novo universo que se abria para eles. Nesse contexto, emergiam novas elites: soldados, mulatos, comerciantes, fazendeiros, pessoas da pequena nobreza. Por meio do trabalho realizado em diversas partes do Império, efetivavam com suas ações e ideias o amálgama que concede unidade em meio à diversidade e ajudavam a compor as costuras que forjavam o império filipino.

As ideias e concepções vindas da Europa encontravam solo fértil no Novo Mundo, na África e na Ásia. Aristóteles e o tomismo da escolástica eram ensinados, debatidos e reproduzidos nos colégios e espaços acadêmicos do Império. Franciscanos, Jesuítas, Dominicanos, entre outras ordens religiosas, divulgavam e faziam com que se conhecessem as ideias advindas da Antiguidade grecoromana. Quadros, pinturas, poemas, tratados, esculturas e muitos outros objetos de arte reproduziam a concepção cristã e Ocidental de mundo.

Da mesma maneira que as artes e a fé se globalizavam, a língua também seguia o mesmo ritmo. Latim, português e castelhano tornaram-se o meio oficial de comunicação entre povos diversos. No entanto, estas línguas sofriam por um processo de hibridização: ao serem faladas por povos de outras regiões do globo, incorporavam elementos desses novos grupos. No Brasil, a Língua Geral, mescla da língua portuguesa com a língua tupi, foi o veículo pelo qual seus habitantes se comunicavam até a segunda metade do século XVIII.

Fé e linguagem uniram-se nas tentativas que jesuítas e demais ordens religiosas empreenderam para a propagação da Igreja Católica. Ao tentarem ver, nas crenças e nos valores dos povos que buscavam converter, elementos que possibilitassem exemplificar os ensinamentos de Cristo, houve, em muitos momentos, resultados inesperados. A partir do diálogo com crenças e cultos estrangeiros, alguns religiosos terminaram por adentrar em áreas que beiravam à heresia.

Em sua obra, Serge Gruzinski desenvolve a todo o momento uma escrita que direciona o leitor ao diálogo com outra época. Na tentativa de dominar as quatro partes do mundo, a monarquia católica da Espanha quase conseguiu seu intento. O tempo, esse monstro voraz, e as condições políticas e econômicas da Europa, bem como as resistências enfrentadas na África e na Ásia, contribuíram para que esse projeto não se concretizasse. Ainda assim, o contexto e as ideias da mundialização ibérica vicejam ainda hoje em nossa sociedade contemporânea, quer seja em seus filmes, obra de artes, romances, na linguagem e em atitudes que estão presentes em uma parte significativa do planeta.

A abordagem que se pretende na obra peca em um ponto: apesar de escrever sobre as diversas partes que compunham o Império espanhol, nota-se, ao longo de toda a obra, maior desenvolvimento de conceitos e de fatos circunscritos ao universo mexicano. Outras partes da América espanhola são menos abordadas do que a área do antigo império asteca. Nesse sentido, nota-se o olhar do especialista, já que Gruzinski tem como principal área de pesquisa o estudo da sociedade mexicana colonial.

Entender a globalização ibérica nos séculos XVI e XVII pode nos levar a refletir sobre a globalização capitalista em nossos dias. Ao adentrar em um mundo que se foi, percebe-se sua permanência. Discussões que foram aventadas na Espanha dos Felipes seguem ainda presentes nas sociedades da pós-modernidade. Dessa forma, a leitura da obra pode revelar formas de diálogos que devem ser buscadas na sociedade atual, bem como mecanismos de exploração que, ao persistirem, devem ser combatidos e extirpados. Boa leitura!

Charles Sá – Universidade do Estado da Bahia ([email protected])

Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos – CAMARGO; VILLAR (BMPEG-CH)

CAMARGO, Eliane; VILLAR, Diego. Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. 304p. Resenha de: REITER, Sabine. Acabou o tempo dos mitos? Uma historiografia caxinauá moderna. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.11, n.2, mai./ago. 2016.

O livro “Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos” é uma coletânea trilíngue (em caxinauá1, português e espanhol) de textos com relatos sobre o passado remoto e mais recente dessa etnia indígena que vive na região fronteiriça entre o Brasil e o Peru. Foi organizado por Eliane Camargo e Diego Villar, uma linguista e um antropólogo, em colaboração com Texerino Capitán e Alberto Toríbio, dois caxinauás de diferentes comunidades do rio Purus, localizadas no lado peruano da fronteira. Com cerca de 2.400 integrantes, o grupo étnico no Peru é menos extenso em número do que seus mais de 7.500 parentes no lado brasileiro, mas – devido ao maior isolamento na primeira metade do século XX – todos ainda falam a língua nativa, comparados aos caxinauás brasileiros, entre os quais há uma parte que fala apenas português2.

Apesar da presença de missionários em suas aldeias, a partir dos anos 1960, os caxinauás peruanos também conseguiram manter viva maior parte da cultura tradicional, enquanto, no Acre, os caxinauás – que conviviam com uma população não indígena nos seringais desde a época da borracha – perderam quase por completo os antigos costumes. Foi nesse grupo peruano que Camargo começou a pesquisar há mais de 25 anos e, principalmente, entre 2006 e 2011, quando levantou e arquivou dados de língua e cultura desse povo no âmbito do programa Documentation of Endangered Languages (DOBES, 2000-2016), com projeto de documentação sediado no Instituto Max-Planck de Antropologia Evolutiva (MPI-EVA), em Leipzig, e na Université X de Paris, em Nanterre (DOBES, 2000-2016).

Neste livro, publicado em 2013, Camargo foi responsável pelas transcrições e traduções ao português dos textos orais, em boa parte provenientes do acervo digital do projeto DOBES. Villar, que é pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas na Argentina e especialista de culturas pano, por sua parte, responsabilizou-se pela versão espanhola dos textos. Além disso, os dois organizadores restringiram-se a elaborar algumas frases introdutórias e comentários aos textos narrativos em notas de rodapé, onde explicam ao leitor o contexto narrativo, construções linguísticas e conceitos culturais. A escolha dos textos assim como a sua edição para formato escrito, no entanto, coube a uma equipe de jovens caxinauás, coordenada por Texerino Capitán, professor de escola bilíngue, e Alberto Toríbio, principal assistente de pesquisa do projeto DOBES. O livro, como informa Bernard Comrie, então diretor do departamento de linguística do MPI-EVA, na apresentação, é um dos produtos do projeto de documentação da iniciativa DOBES, que, através da perspectiva própria de um povo, “nos fornece uma visão diferente do mundo e a compreensão de nós mesmos” (Comrie, 2013, p. 23-25). Até hoje, é uma das poucas publicações que deixa falar – na sua totalidade – os próprios integrantes de um povo indígena amazônico.

O livro consiste em cinco partes principais. Nelas, os caxinauás informam sobre os hábitos dos seus antepassados, lembrados por alguns idosos e presentes na memória coletiva. Eles falam sobre os encontros com outras etnias pano, inclusive com aquelas encontradas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2008, celebradas pela mídia internacional como “os últimos selvagens”3, e sobre os primeiros contatos com os ‘nauás’, os outros, não indígenas de origem europeia. Relatam sobre as suas experiências em território alheio e nas grandes cidades, e sobre a história de migração e dispersão do próprio grupo, que se iniciou nos tempos míticos com uma briga entre o criador Txi Wa e seu parente Apu, e continuou com acontecimentos em consequência dos primeiros contatos com brasileiros nos seringais. O anexo que segue as partes principais do livro apresenta uma nota sobre a grafia utilizada e um léxico trilíngue extraído dos textos em caxinauá e de termos significativos.

As fontes das narrativas são diversas: cinco dos 25 textos provêm do livro “Rã-txã hu-ni kuï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá)”, de João Capistrano de Abreu (1914), o historiador brasileiro que – em inícios do século XX – montou uma primeira coletânea de mitos, textos históricos e de outros gêneros, em conjunto com dois jovens caxinauás da região do rio Murú, no Acre. A grande maioria dos textos é composta por depoimentos e memórias polifônicas, gravadas dos anos 1990 para cá, e informações obtidas por meio de entrevistas com pessoas mais idosas – todas do grupo peruano, um segmento da população caxinauá que fugiu de um seringal brasileiro no início do século XX. No Peru, esses caxinauás e seus descendentes viviam afastados da sociedade e só foram ‘redescobertos’ ao final dos anos 1940; contato que foi documentado pelo fotógrafo Harald Schultz, em 1951, constituindo um acervo de aproximadamente 80 fotografias, com imagens de uma pescaria e de uma festa.

Uma variedade de trabalhos desse fotógrafo teuto-brasileiro, mostrando cenas cotidianas daquela época, assim como imagens de objetos coletados por ele – que hoje se encontram no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) –, ilustra o livro, junto com fotografias recentes e desenhos feitos por integrantes do grupo especialmente para esta publicação. Entre eles encontramos os kene, grafismos tradicionais reproduzidos na tecelagem, na pintura corporal, em objetos e desenhos de cenas das narrativas, da vida cotidiana e de rituais. O que chama a atenção é que esses desenhos, produzidos em várias épocas, têm uma estilização própria: veem-se pessoas e objetos ‘deitados’ em uma vista de pássaro, para poder mostrar mais do que seria perceptível por meio do simples olhar de um espectador humano.

Todo o material recolhido neste livro foi selecionado pela equipe caxinauá, com o intuito de informar aos seus descendentes (filhos, netos) sobre a própria cultura, sendo veiculado na própria língua, a fim de manter viva a memória e uma identidade própria, como os dois colaboradores caxinauás escrevem no seu prefácio, que termina assim: “por esse motivo quisemos elaborar este livro. Dessa forma podemos todos juntos ler e aprender claramente a tradição” (Capitán; Toribio, 2013, p. 31). Ao mesmo tempo, o livro é um passo importante em direção a uma verdadeira participação dos povos indígenas na sociedade moderna através dos seus próprios discursos. Em uma época em que presenciamos ameaça cada vez mais forte à vida tradicional de povos indígenas em toda a América Latina, é essencial que um público maior tome conhecimento da história desse grupo, a qual reflete, de maneira exemplar, desenvolvimento ocorrido em muitos outros grupos, repetindo-se até hoje. Isso ocorreu desde o primeiro contato desses povos com a sociedade nacional, representada notadamente por bandeirantes/ coronéis, soldados da borracha, viajantes, missionários e pesquisadores, resultando em interferência cultural. Nas palavras dos caxinauás (traduzidas para o português), essa interferência se lê assim: “já nos tornamos nauás com suas roupas e comida. […] já não somos mais caxinauás! […] O governo diz que somos todos peruanos. É assim que falam” (2013, p. 227).

Ao mesmo tempo, a citação deixa bem claro que essa é uma visão de fora, a qual não reflete necessariamente a opinião do falante. A língua pano consegue expressar essas diferentes perspectivas de maneira elegante, através de marcadores de evidencialidade (no caso, -ikiki em akikiki, 2013, p. 226) que indicam, para os membros da comunidade de fala, o compromisso epistemológico com a informação dada. Essa técnica linguística pode até ser interpretada aqui como relevante indício de uma resistência clandestina e de uma mera adaptação superficial.

Uma atitude de ‘acostumação’, longe de ser assimilação por completo, também se manifesta em outro depoimento. Um caxinauá descreve como chegou a trabalhar como mecânico para um missionário americano: “um dia quebrei um parafuso e ele ficou furioso. […], achava que iria me bater. Achei isso porque me tratava assim. […] Depois eu me acostumei com ele. […] com suas palavras fortes” (2013, p. 203). Este trecho mostra mais um aspecto interessante do livro, a abertura para uma perspectiva intercultural: nós, os nauás, ficamos sabendo algo sobre como somos percebidos pelos caxinauás – como pessoas ameaçadoras pelo simples tom da voz! Ao passo que as narrativas exibem, em diferentes partes, uma visão caxinauá, o livro em si já é uma manifestação aberta da luta para a preservação de uma identidade própria.

Comparado com outras manifestações escritas na língua caxinauá, principalmente com a obra do grande historiador brasileiro do começo do século XX, este livro se destaca como marcador de uma mudança na percepção e no tratamento do elemento ‘indígena’ na sociedade. Enquanto o livro de Capistrano possui, sobretudo, relatos míticos, este é uma historiografia, em grande parte, de fatos vividos pelos caxinauás nos últimos 100 anos. Quem escolheu o material de “Rã-txã hu-ni ku-ï” foi o próprio Capistrano, tendo os dois caxinauás como fornecedores de informação e tradutores; aqui, os agentes principais são caxinauás, que selecionaram os textos baseados em critérios de informatividade a um público caxinauá atual e jovem4. Os textos de Capistrano também já eram traduzidos para o português na época, e existia uma explicação de ortografia destinada ao leitor brasileiro erudito. Porém, aquela tradução palavra por palavra deixou o texto original parecer ‘desajeitado’ ao leitor brasileiro monolíngue. Certamente, não fornece uma base para ser elaborada hoje em dia na educação bilíngue indígena, já que a ortografia desenvolvida pelo historiador autodidata em linguística não reflete bem a estrutura morfofonêmica da língua, não sendo legível para os caxinauás de hoje. A mesma crítica da ortografia inadequada pode se fazer a várias publicações recentes nessa língua indígena no Brasil. A maioria dos livros em caxinauá publicada, tanto no Brasil como no Peru, porém, é dirigida ao ensino nas escolas bilíngues, enquanto este livro pode ser de interesse de um público diversificado, mono e bilíngue, jovem e adulto, estudante e professor, leigo e acadêmico, voltado aos caxinauás e a cada pessoa que tenha curiosidade de conhecer outra perspectiva do mundo. Além de valorizar a cultura caxinauá, ele representa uma restituição ao grupo de coleta de relatos históricos, efetuada por pesquisadores, contribuindo igualmente para a difusão da diversidade do patrimônio cultural imaterial da Amazônia indígena.

Notas

1 O caxinauá pertence à família linguística pano.

2 Esses são os números oficiais do Instituto Socioambiental (Ricardo, B.; Ricardo, F., 2011, p. 12), que divergem consideravelmente de números informados em outras fontes, por exemplo, no site Ethnologue (Lewis et al., 2016). Segundo o Ethnologue, atualmente todos os caxinauás adquirem a língua nativa. Como o nível de conhecimento da língua indígena é uma questão política no Brasil, há diferenças entre os números oficiais em relação ao que se pode observar in situ.

3 Veja, por exemplo, Seidler; Lubbadeh (2008).

4 Neste contexto, pode-se questionar se o resultado realmente representa o ‘olhar caxinauá’, já que a equipe consiste de caxinauás escolarizados, parcialmente trabalhando na educação infantil, que, portanto, internalizaram um discurso padrão para texto escrito.

Referências

CAPISTRANO DE ABREU, João. Rã-txa hu-ni-ku-ï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá). Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1914. [ Links ]

CAPITÁN, Tescerino Kirino; TORIBIO, Alberto Roque. Prefácio. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 31. [ Links ]

COMRIE, Bernard. Apresentação. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 17-19. [ Links ]

DOCUMENTAÇÃO DE LÍNGUAS AMEAÇADAS (DOBES). Cashinahua. A documentation of Cashinahua language and culture. [S.l.]: Projeto DOBES, 2006-2011. Disponível em: <http://dobes.mpi.nl/projects/cashinahua/?lang=pt>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]

LEWIS, M. Paul; SIMONS, Gary F.; FENNIG, Charles D. (Ed.). Ethnologue: languages of the world. 19. ed. Dallas, Texas: SIL International, 2016. Disponível em: <http://www.ethnologue.com>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]

RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (Ed.). Povos indígenas no Brasil: 2006-2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. [ Links ]

SEIDLER, Christoph; LUBBADEH, Jens. Neuentdeckter Indianerstamm: “Das kann der Anfang vom Ende sein”. Spiegel Online, 30 maio 2008. Disponível em: <http://www.spiegel.de/wissenschaft/natur/neuentdeckter-indianerstamm-das-kann-deranfang-vom-ende-sein-a-556720.html>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]

Sabine Reiter – Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]

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Meio ambiente e Antropologia – WALDMAN (RMPEG-CH)

WALDMAN, Maurício. Meio ambiente e Antropologia. São Paulo: Editora SENAC, 2012. (Série Meio Ambiente, n. 6). 233 p. Resenha de: LELIS, Michelle Gomes; FERREIRA NETO, José Ambrósio. Um olhar antropológico sobre a questão ambiental. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.9, n.2, mai./ago. 2014.

O homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior, um ‘invasor de corpo’ preocupado em devorá-lo por dentro e, quem sabe, assumir de vez sua corporalidade (Waldman, 2012, p. 185).

Maurício Waldman, brasileiro, docente na Universidade de São Paulo (USP), onde leciona as disciplinas Administração dos recursos ambientais, Sociedade e meio ambiente, Ética profissional, Geografia da África negra e Introdução aos estudos africanos, é sociólogo, geógrafo e antropólogo pela USP. Possui Doutorado em Geografia Humana (2006) e Mestrado em Antropologia Social (1997), ambos pela USP. Com uma importante reflexão na área de antropologia social, escreveu “Meio ambiente e antropologia”, entre outros livros. Neste texto, seu objetivo central foi discutir as relações que conjugam a antropologia com a questão ambiental. Paralelamente a essa preocupação, outra intenção foi alinhavar as possíveis contribuições do enfoque antropológico, no sentido de aprofundar a compreensão da temática relacionada ao meio ambiente.

Na introdução, esclarece que somente a partir das três últimas décadas do século passado é que a defesa da natureza passou a inspirar crescentes manifestações, envolvendo os mais diversos segmentos sociais ao redor do mundo. Tal mobilização, explicitamente posicionando-se em favor de uma relação equilibrada com o meio ambiente, configurou-se por intermédio de um rol de reivindicações impensáveis, mesmo em passado histórico não muito distante. É nesse contexto que o autor justifica a importância da análise do meio ambiente, um tema contemporâneo e urgente de mudanças.

Como foco da sua reflexão, ele ressalta que a antropologia tem se voltado, cada vez mais abertamente, para o estudo dos processos sociais e culturais na sua acepção mais ampla, independentemente da localização no espaço ou no tempo. Na antropologia, a cultura distingue um modo de vida típico de um grupo de pessoas, fundamentado em comportamentos apreendidos e transmitidos de geração a geração, por meio da língua e do convívio social.

O primeiro capítulo do livro explana sobre a relação entre “Antropologia, questão ambiental e cultura”, trazendo algumas considerações relacionadas com as potencialidades da antropologia enquanto ciência da cultura. Waldman detalha o debate a respeito das possíveis contribuições da antropologia e sua particularidade diante das demais disciplinas. Para o autor, tanto a biologia quanto a geografia desconsideram a abordagem social e cultural, não as utilizando para analisar a questão ambiental.

O autor evidencia a proeminência dos estudos clássicos desenvolvidos no âmbito da antropologia relativamente às potencialidades da disciplina para o entendimento da questão ambiental. Ele aponta que uma grande produção teórica efetivou-se em termos do paradigma da oposição entre cultura e natureza, atentando para a postura do antropólogo.

No segundo capítulo, denominado “Cultura, mundo tradicional e meio ambiente”, a análise centra-se no homem tradicional e nas implicações do seu relacionamento com o meio natural. O autor deixa claro que, qualquer que seja o tipo de relacionamento estabelecido pela sociedade tradicional com o meio natural, este, no geral, mantém seus grandes ciclos em funcionamento. Ao contrário da sociedade contemporânea, o mundo da tradição pautou-se por uma convivência com a esfera do natural, e não pela sua exclusão.

No terceiro capítulo, “Temporalidade, modernidade e natureza”, visando sublinhar o que há de descontínuo nas duas grandes esferas da cultura humana que define como objeto da discussão – quais sejam, o mundo da tradição e o da modernidade -, o autor analisa as mudanças que o mundo contemporâneo instaurou na forma de compreensão do meio natural, assim como no relacionamento mantido com este. Isso sem perder de vista o mundo tradicional, cujo estranhamento conduz a se colocar em questão o que aparenta ser autenticamente novo.

Ele destaca que o tempo linear e progressivo, emanação de forças sociais que subentendiam os humanos e a natureza como elementos à disposição do progresso, excluiu todas as acepções sensíveis porventura existentes. Por isso mesmo, o homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior, um “invasor de corpo”, preocupado em devorá-lo por dentro e, quem sabe, assumir de vez sua corporalidade. Separado física e psiquicamente dos seus semelhantes, fica comprometido para o homem moderno qualquer vínculo duradouro e sincero do indivíduo com o coletivo e com o espaço público.

Até o quarto capítulo, “Antropologia, humanidade e questão ambiental”, o autor percorre um caminho que conduz o leitor desde os tempos mais remotos até as cintilantes metrópoles da modernidade. Nesse momento, Maurício Waldman traça alternativas, propõe enfoques e costura proposições referentes ao tema primordial. Conclui, nesta parte, que a diversidade cultural não pode estar dissociada da diversidade biológica, sendo redobrado o interesse pela perpetuação dos estilos de vida que se mantiveram regrados pela tradição.

A partir da análise construída por Waldman, ressalta-se que o conceito de cultura, além de materializar-se como um instrumental de indispensável importância para a análise das sociedades tradicionais, mantém, de igual modo, seu vigor operatório e sua eficácia na avaliação do dinamismo cultural contemporâneo. A cultura perpassa por todo um rol de comportamentos relacionados com o meio ambiente e, na ausência dessa perspectiva, necessariamente qualquer avaliação estaria prejudicada na sua fundamentação, nas suas propostas e nas suas conclusões.

Na “Conclusão”, o autor ressalta que o esforço de sua análise foi muito mais direcionado para construir uma perspectiva de avaliação, ao invés de pensar sobre formas de gestão, atividades gerais ou aplicadas da disciplina. Por outro lado, argumenta que essa opção em nada seria impeditiva da indicação de problemáticas com as quais a antropologia pode, com toda distinção possível, prontificar-se a destinar sua contribuição no que se refere à questão ambiental.

Para tanto, ao longo do texto, Waldman dialoga com diversos autores, entre eles François Laplantine (1988), “Aprender antropologia”, Edward Evans-Pritchard (1978), “Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições de um povo nilota”, e Walter Neves (1996), “Antropologia ecológica: um olhar materialista sobre as sociedades humanas”, para argumentar e refletir sobre a relação da antropologia com o meio ambiente. Ele apresenta uma abordagem educativa interdisciplinar por meio de duas áreas, meio ambiente e antropologia, transformando-as em uma antropologia ambiental, empenhada em revelar o caráter transformador do homem em sociedade diante do ambiente natural, instigado particularmente pela dimensão da cultura, da sociedade e das suas dinâmicas.

A antropologia, tendo por objetivo estudar a mais vasta gama possível da diversidade humana nos modos de vida, nas formas de organização social, nos comportamentos e nas crenças, foi levada a privilegiar a observação das sociedades que permanecem (ou que permaneceram) fora do quadro unificador, representado pela civilização técnica e científica corporificada no Ocidente moderno. Dessa forma, estudos antropológicos privilegiam permanentemente a periferia do sistema dominante.

Segundo o autor, é justamente nos marcos da modernidade que os problemas ecológicos se especificaram na sua plenitude. Dessa forma, esclarecer e discutir as perspectivas da antropologia, enquanto disciplina, para com este mesmo mundo moderno abre caminhos para evidenciar o alcance das possíveis contribuições, assim como da eficácia operacional das abordagens que agitam o interior do seu campo teórico.

A capacitação da antropologia em identificar opções diversas das que regram o mundo moderno pode, de igual modo, prontificar-se para consolidar propostas alternativas aos desafios criados ao longo do processo de expansão da civilização ocidental, entre esses evidentemente os de ordem ambiental.

Waldman discute os conceitos de cultura e de natureza, além de reforçar a importância da diferença entre etnografia e etnologia. Afirma que a antropologia cultural teve sua consolidação enormemente apoiada no paradigma da oposição entre cultura e natureza.

Outro argumento do autor é que o leque de consequências da modernidade possui rebatimentos inquestionáveis no relacionamento com o meio natural. Basicamente em razão de que, com a modernidade, o fruir do tempo se materializa a partir de uma sobreposição globalmente desarmoniosa para com o tempo da natureza, o dos homens e com todos os demais tempos sociais, entendidos como obstáculos à implantação dos ritmos e das sequências da temporalidade moderna.

O autor destaca que o conceito de meio ambiente diz respeito aos elementos habilitados a influenciarem o dinamismo social, a repercussão das intervenções culturais e o conjunto das condições que permitem o estabelecimento e a reprodução da vida humana. Assim, ele propõe a construção de uma antropologia ambiental, preocupada em identificar os vínculos indissociáveis que a crise do meio ambiente sustenta com o padrão civilizatório, que é origem da sua manifestação. Tanto no passado do homem quanto nos dias de hoje, a questão ambiental relaciona-se sumamente com um sistema de poder econômico, social, político e ideológico, não podendo ser aquilatada na sua devida extensão na ausência desses referenciais.

Este ensaio, ao mesmo tempo desafiador e aberto aos questionamentos, apresenta a importância de abordar diálogos entre duas áreas abrangentes, como meio ambiente e antropologia, reforçando a possibilidade e a necessidade do trabalho interdisciplinar, com o intuito de minimizar os problemas ambientais causados pelo homem. O autor manifesta nas entrelinhas sua esperança e expectativas de que a humanidade consiga construir um oikos comum a todas as pessoas, um mundo socialmente justo e ecologicamente responsável, no qual o homem não mais permaneça artificialmente dividido e encontre-se na sua totalidade.

Referências

EVANS-PRITCHARD, Edward E. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições de um povo nilota. São Paulo: Perspectiva, 1978. (Coleção Estudos, n. 53).         [ Links ]

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1988.         [ Links ]

NEVES, Walter. Antropologia ecológica: um olhar materialista sobre as sociedades humanas. São Paulo: Cortez, 1996. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 59).         [ Links ]

Michelle Gomes Lelis – Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

José Ambrósio Ferreira Neto – Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

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Arqueologia Guarani na laguna dos Patos e serra do Sudeste – MILHEIRA (BMPEG-CH)

MILHEIRA, Rafael. Arqueologia Guarani na laguna dos Patos e serra do Sudeste. Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2014. 306 Resenha de: RIBEIRO, Bruno Leonardo Ricardo. Arqueologia Guarani na ponta sul do Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.9, n.2, mai./ago. 2014.

Este livro é uma versão revisada da dissertação de mestrado de Rafael Guedes Milheira, composto por sete capítulos e prefácio de Paulo DeBlasis. A importância da obra é ressaltada já no prefácio, por ser a primeira a, de fato, sistematizar a ocupação Guarani no extremo sul do Brasil, mais precisamente na área entre a laguna dos Patos, a leste, e a região serrana, a oeste. Lançando mão de uma metodologia de enfoque regional, Milheira conseguiu realizar uma pesquisa arqueológica que possibilita o diálogo com a Antropologia e a História, além da “construção de uma História indígena propriamente dita” (p. 20), o que torna seu livro indispensável para aqueles que procuram estudar as ocupações Guarani no sul do Brasil, sejam eles especialistas da área ou estudantes.

Na introdução, Milheira informa que sua principal motivação para a pesquisa partiu da constatação da quase completa ausência de registros históricos que fizessem referência à participação da cultura indígena na formação identitária regional, relegando às populações indígenas um papel secundário e marginal no processo de construção social local. Ainda, e à contramão dos registros históricos, os achados arqueológicos atestam a presença significativa de variadas populações indígenas na região, envolvidas em um complexo sistema de relações e redes sociais que remetem a mais de 2.500 anos, sistematicamente eliminadas física e culturalmente desde a chegada dos primeiros colonizadores europeus. Mesmo que não levados ao completo extermínio, hoje ainda reside na região apenas uma parcela ínfima do que antes foi uma nação indígena sem precedentes.

Os dois primeiros capítulos são fundamentais para a compreensão da obra e da proposta do autor, e neles é apresentado um panorama geral da arqueologia Guarani, desde as primeiras pesquisas realizadas não apenas na área de estudo, mas também aquelas relacionadas às ocupações caracterizadas como pertencentes a este grupo em várias regiões do Brasil. É dada ênfase aos estudos realizados por Alfred Métraux na primeira metade do século XX e sua contribuição à formação do pensamento arqueológico brasileiro sobre os Guaranis, como as proposições que fez sobre a busca guarani pela ‘terra sem males’ e sobre a zona de fronteira entre os Tupinambás, ao norte, e os Guaranis, ao sul, no interior do estado de São Paulo – proposta posteriormente refinada por Scatamacchia (1990). O autor tece ainda algumas críticas sobre o papel pretensamente apolítico desempenhado pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) e seus impactos em estudos posteriores.

Em seguida, partindo de uma proposta que intercala informações em nível micro e macrocontextual, Milheira apresenta temas que vão desde a definição das estruturas arqueológicas pertinentes à interpretação dos dados empíricos por ele levantados – como estruturas funerárias e de combustão – até noções de territorialidade, organização social e expansão, definindo o processo de expansão territorial Guarani como ‘enxameamento’, conceito apresentado por Brochado (1984) e amplamente aceito na comunidade acadêmica. Essa definição parte da premissa de que o processo de expansão territorial Guarani foi contínuo, e a ocupação espacial se deu de forma radial, iniciada com uma grande pressão demográfica, que tornou obrigatória uma divisão celular da aldeia e a procura e obtenção por novas áreas de captação de recursos para ocupação e assentamentos permanentes (sobre este assunto, sugiro também o texto de Noelli, 1993).

Esse conceito é fundamental para o entendimento das áreas e dos tipos de atividades relacionados a cada sítio estudado, além de auxiliar na interpretação desses sítios como acampamentos temporários e/ou aldeias. Nessa parte do livro, torna-se claro o exaustivo levantamento bibliográfico realizado pelo autor no que tange à arqueologia Guarani.

Talvez uma única ressalva a ser levantada esteja relacionada ao caráter restritivo da discussão. Apesar de fazer um breve relato sobre o complexo panorama multicultural verificado na região quando da chegada do europeu, então compartilhada por grupos majoritariamente Guarani, mas também por povos Cerriteiros, Jê e Sambaquieiros, a pesquisa de Milheira quase não trespassa a temática Guarani ou extrapola o limite sul do Brasil, nem estabelece um diálogo significativo com pesquisadores ou estudos realizados acima do rio Paranapanema e referentes aos povos Tupi. Acredito que um maior diálogo com tal temática seria muito proveitoso, não apenas para a obra em si, mas também para pesquisadores futuros que utilizarão este livro como referência. Uma vez que Guaranis e Tupis são grupos similares, a ponto de representarem ramificações de um mesmo tronco linguístico ou, para alguns pesquisadores, uma mesma ‘tradição’ arqueológica, o estabelecimento de contraposições ou a verificação de similaridades, em qualquer nível ou de qualquer caráter, seria mais uma contribuição significativa para a construção do conhecimento arqueológico sobre estas populações de outrora.

No terceiro capítulo, partindo principalmente dos estudos realizados pelo Projeto RADAMBRASIL, o autor faz uma caracterização espacial e geomorfológica da área alvo da pesquisa. Salientando que ela abrange tanto a planície costeira quanto o escudo sul-rio-grandense, descreve sucintamente as paisagens serranas e litorâneas, logo iniciando a apresentação das metodologias adotadas em campo, onde articulou métodos de levantamento probabilístico e oportunístico com a proposta dos estágios múltiplos – reconhecimento geral da área de estudo, levantamento arqueológico, prospecção e escavação. Finalmente, mas não menos importante, Milheira explica sua opção por uma abordagem voltada à arqueologia regional. Sendo seu objetivo compreender o sistema de ocupação Guarani em uma área até então pouco pesquisada, tal enfoque lhe permitiria reconstruir o contexto de implantação dessas ocupações, em seu sentido mais amplo e em seu caráter de longa duração.

Os capítulos quatro e cinco são os mais densos do livro. No quarto, é apresentada a arqueografia de cada um dos sítios identificados ao longo da pesquisa, agrupados de acordo com a fisiografia local – cinco sítios identificados na região litorânea da lagoa dos Patos e dez sítios identificados na região serrana. A apresentação das intervenções realizadas e dos vestígios arqueológicos identificados em cada um destes sítios é extremamente detalhada e minuciosa. Cabe salientar que, sempre que possível, Milheira realiza inferências e proposições acerca da funcionalidade dos contextos arqueológicos verificados em cada um dos sítios, correlacionando suas impressões sobre as escavações com os resultados das análises posteriores.

No capítulo cinco, são apresentados os resultados das análises dos vestígios arqueológicos propriamente ditos. Partindo de uma proposta tecno-tipológica, a metodologia elaborada para a análise dos vestígios cerâmicos é construída principalmente sobre um ‘tripé’ composto por La Salvia e Brochado (1989), Shepard (1985 [1956]) e Orton et al. (1993). A ficha descritiva e os procedimentos de análise também são detalhadamente apresentados, além de várias páginas serem dedicadas à discussão crítica sobre as potencialidades e as possibilidades de erros relacionados às mais do que comuns projeções de forma, quando elaboradas a partir de fragmentos cerâmicos de tamanhos diminutos. A primazia verificada nesta seção da obra é sem igual, assim como a confiabilidade dos resultados obtidos.

Por outro lado, pouca ênfase foi dedicada aos vestígios líticos, possivelmente em função de sua menor recorrência entre os sítios arqueológicos. A metodologia adotada se pauta pela proposta de cadeia operacional sugerida por Schiffer (1972, 1987), e a análise é de caráter tecno-tipológica, embasada principalmente no esquema elaborado por Dias e Hoeltz (1997). Não pude deixar de pensar que os trabalhos de análise dedicados aos materiais líticos foram, em certo grau, muito sucintos, principalmente se comparados aos realizados com os vestígios cerâmicos, e que, talvez, se uma maior profundidade tivesse sido atribuída a eles, como a adoção de uma metodologia embasada em parâmetros tecno-funcionais, apontamentos mais significativos teriam sido alcançados.

Tais estudos tiveram como objetivo não apenas a caracterização destas indústrias líticas e cerâmicas, mas também o levantamento de apontamentos que possibilitassem pensar o domínio e o uso territorial dos Guaranis na região, sobretudo após a constatação do autor de que as matérias-primas identificadas nos sítios litorâneos não estão presentes in loco, e remeteriam a cinco jazidas diferentes, que distam entre 30 e 200 km da Lagoa dos Patos, nas terras altas da serra do sudeste. Vestígios arqueofaunísticos também foram identificados, em baixas quantidades e em estado de conservação insatisfatório, em dois dos sítios escavados na área litorânea. Perante esta baixa relevância, a análise esteve voltada à procura por informações relacionáveis à dieta e às espécies consumidas nos sítios da região, além da procura de possíveis elementos cabíveis de inferências que correlacionassem espécie, apreensão e habitat, e da distribuição espacial dos vestígios com áreas de atividades específicas.

Concluindo a obra, os capítulos seis e sete são dedicados à hipótese elaborada para a ocupação territorial da área-alvo pelos Guaranis e à apresentação do modelo interpretativo adotado pelo autor. Embasado majoritariamente na perspectiva sistêmica de Binford (1980, 1991 [1983]) e no modelo de ocupação proposto por Noelli (1993), Milheira pressupõe a existência de um contexto macroespacial, onde todos os sítios estudados, sejam eles entendidos como aldeias ou acampamentos temporários, estão interligados por uma imbricada rede de relações sociais, ideológicas, ambientais e econômicas. Tal contexto seria o do ‘Teko’a do Arroio Pelotas’, abrangeria aproximados 35 km de raio e se dividiria em litoral e serra, não apenas pelo tipo de ambiente ocupado, mas também pelas modalidades e características de cada assentamento verificado – além do domínio territorial projetado.

Segundo o autor, estes dois ambientes de ocupação estariam intrinsecamente interligados, sendo a porção litorânea uma extensão da porção serrana. As ocupações da região serrana apresentam distribuição espacial mais aglomerada, maiores dimensões e remetem a períodos mais antigos. Estão situadas em áreas de melhor acesso a recursos naturais e mais propensas à agricultura. As ocupações da porção litorânea, por sua vez, seriam mais recentes e periféricas às ocupações serranas, de distribuição mais esparsa e voltadas à obtenção de recursos marítimos. Seriam oriundas da necessidade por novos territórios, em função de pressões demográficas e do processo de expansão por enxameamento, e apresentariam certo grau de dependência em relação às aldeias serranas centrais (em relação à obtenção de matérias-primas líticas, por exemplo).

Não posso deixar de exaltar os esforços realizados por Milheira em relação ao levantamento das fontes de matéria-prima e à correlação perspicaz entre as distâncias, o estabelecimento de redes de troca e o ciclo de vida dos instrumentos líticos. Isso é algo de extrema importância para a interpretação e distinção relacionadas à funcionalidade de determinados acampamentos litorâneos e à organização do ‘Teko’a do Arroio Pelotas’ em nível Guará, uma vez que, segundo sua hipótese, apenas uma das cinco jazidas de matérias-primas estaria dentro dos limites deste ‘Teko’a’, o que demandaria, obrigatoriamente, outras formas de obtenção das matérias-primas, além do simples aprovisionamento.

Por fim, elogios devem ser feitos ao autor pela utilização de verbetes êmicos Guarani, retirados de leituras etno-históricas e utilizados ao longo de toda a obra, mas principalmente ao nomear as funções exercidas pelos instrumentos líticos, quando inova ao apresentar a outros pesquisadores interessados em estudos similares as possibilidades de um diálogo etnográfico, como há muito vem sendo realizado entre aqueles que estudam cerâmica arqueológica.

Referências

BINFORD, L. R. Em busca do passado: a decodificação do registro arqueológico. Portugal: Europa-América, 1991 [1983]         [ Links ].

BINFORD, L. R. Willow smoke and dog’s tails: hunter-gatherer settlement systems and archaeological site formation. American Antiquity, Washington, v. 45, p. 4-20, 1980.         [ Links ]

BROCHADO, J. P. An ecological model of the spread of potter and agriculture into Eastern South America. 1984. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Illinois, Urbana, 1984.         [ Links ]

DIAS, A. S.; HOELTZ, S. E. Proposta metodológica para o estudo de indústrias líticas do Sul do Brasil. Revista do CEPA, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 21, p. 21-62, 1997.         [ Links ]

LA SALVIA, F.; BROCHADO, J. P. Cerâmica Guarani. Porto Alegre: Posenato e Cultura, 1989.         [ Links ]

NOELLI, F. S. Sem Tekohá não há Tekó: em busca de um modelo etnoarqueológico da subsistência e da aldeia Guarani aplicada a uma área de domínio no delta do Jacuí/RS. 1993. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993.         [ Links ]

ORTON, C.; TYERS, P.; VINCE, A. Pottery in archaeology. London: Cambridge University Press, 1993.         [ Links ]

SCATAMACCHIA, M. C. M. A tradição policrômica no leste da América do Sul evidenciada pela ocupação Guarani e Tupinambá: fontes arqueológicas e etno-históricas. 1990. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.         [ Links ]

SCHIFFER, M. B. Formation process of the archaeological record. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1987.         [ Links ]

SCHIFFER, M. B. Archaeological context and systemic context. American Antiquity, Washington, v. 37, n. 2, p. 156-165, 1972.         [ Links ]

SHEPARD, A. O. Ceramics for the archaeologist. Washington: Carnegie Institution of Washington, 1985 [1956]         [ Links ].

RIBEIRO, Bruno Leonardo Ricardo. Resenha: Arqueologia Guarani na ponta sul do Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 9, n. 2, p. 573-576, maio-ago. 2014

Bruno Leonardo Ricardo Ribeiro – Universidade Federal de Pelotas E-mail: [email protected]

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Abordagens estratégicas em sambaquis – GASPAR; SOUZA (BMPEG-CH)

GASPAR, Maria Dulce; SOUZA, Sheila Mendonça de (Orgs.). Abordagens estratégicas em sambaquis. Erechim: Habilis Editora, 2013. 311 p. Resenha de MILHEIRA, Rafael Guedes. Metodologia de pesquisa em sambaquis: uma leitura sobre abordagens estratégicas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.9 no.1, jan./abr. 2014.

Quando me deparei na livraria com esta obra, intitulada “Abordagens estratégicas em sambaquis”, eu já sabia que o conteúdo traria grandes contribuições metodológicas para a área de Arqueologia no Brasil. É o tipo de trabalho que eu costumo chamar de “Arqueologia na veia”, pois trata de temas específicos da Arqueologia (no caso, técnicas de campo), de maneira ortodoxa e interdisciplinar, contribuindo na direção de como e por que fazer trabalhos de campo, otimizando recursos e maximizando resultados. Ao iniciar as primeiras páginas, foi ficando evidente que o livro, embora tenha um foco centrado na temática dos sítios sambaquieiros da costa litorânea brasileira, dialoga e propõe técnicas de campo que podem ser facilmente utilizadas em todos os sítios arqueológicos pré-históricos (e não seria exagero incluir os sítios históricos) do Brasil. Aliás, essa foi também a impressão de André Prous na apresentação do livro, ao comentar que “o presente livro será, sem dúvida, de grande utilidade para os estudantes e pesquisadores – não apenas para aqueles que estudam os sambaquis, mas também para todos os praticantes de Arqueologia”.

Na introdução, as organizadoras recorrem a um breve histórico das pesquisas em sambaquis no Brasil desde o século XIX, os avanços e desafios dos últimos anos, sobretudo com o acúmulo de conhecimento resultante de grandes projetos temáticos financiados, predominantemente, por agências nacionais e públicas de pesquisa, amplamente divulgados no cenário nacional e internacional. Esses projetos foram a base das experiências dos autores dos treze capítulos do livro, e é claro que as discussões amadurecidas só chegaram ao alto nível de qualidade por conta da formação de equipes interdisciplinares, experientes e altamente comprometidas com o estudo dos sambaquis da costa brasileira. O livro, além do formato impresso, é acompanhado (opcionalmente) por um CD-ROM, que é o “Guia ilustrado das abordagens estratégicas em sambaquis”. Esse guia é um banco de imagens devidamente legendadas, que exemplificam as orientações metodológicas apresentadas nos textos, tornando a leitura da obra mais didática e acessível.

Seria demasiadamente enfadonho sintetizar aqui o conteúdo e as discussões de cada um dos capítulos do livro. Porém, arrisco-me a classificar os temas dos textos em três tópicos latu sensu: prospecção e registro de imagens em campo; estudos e coleta para sedimentologia e geoarqueologia; análises e coleta de material bioarqueológico (zooarqueologia, arqueobotânica e antropologia física). Embora haja uma divisão de temáticas abordadas no livro, há algumas questões que permeiam todos os textos e que merecem ser destacadas, por exemplo: como coletar amostras em campo, para que coletá-las e como registrá-las e acondicioná-las devidamente para análises futuras em laboratório. São questões relevantes e que atormentam (pelo menos, deveriam atormentar) qualquer coordenador de campo, na medida em que nos fazem pensar sobre a fragilidade e sutileza do registro arqueológico, a facilidade em confundir, misturar e perder amostras e, portanto, dados arqueológicos. E, por fim, refletir sobre o tamanho adequado das amostras versus o tamanho, geralmente limitado, das nossas reservas técnicas espalhadas pelo Brasil.

Eis uma das principais contribuições do livro: os autores conseguem, com maestria, demonstrar que é possível realizar intervenções pontuais nos sítios arqueológicos, minimizando os impactos físicos aos pacotes deposicionais e maximizando os resultados interpretativos. Essa conta positiva é possível com a padronização adequada e experimentada de coletas amostrais, que permitem obter vestígios microscópicos oriundos desses sítios arqueológicos monumentais, materiais que, embora sejam micro em tamanho, ao serem identificados, permitem avançar em discussões de larga escala, que vão da economia e dieta alimentar até práticas de manejo da paisagem e conformação territorial; vide o caso dos parasitos, o estudo da fauna ictiológica e o estudo dos carvões que compõem as fogueiras rituais e de aquecimento residencial.

A padronização das amostras em volume, formato e registro são temas importantes e que foram amplamente discutidos no livro por quase todos os autores. Da mesma forma, os autores foram bastante contundentes ao incentivar o uso de protocolos de coleta altamente padronizados, que permitam a comparação das amostras no processo laboratorial. Porém, há um aspecto que me preocupou na leitura e que poderia ter sido mais bem conduzido, talvez, até mesmo, por um capítulo à parte: o perigo da ‘superpadronização’. Os autores demonstraram uma grande preocupação em tecer uma escrita que, não obstante tenha um caráter bastante técnico, consiga atingir os recém-iniciados em Arqueologia. É até curioso um texto acadêmico que ensina como segurar a pá, para que lado e em que sentido se deve realizar uma limpeza e retificação de perfil, e de que forma se deve preencher um diário de campo.

Com certeza, os autores estiveram preocupados em manter uma linguagem bastante clara e acessível, visto que, no cenário nacional universitário, novos cursos de graduação em Arqueologia vêm sendo criados sistematicamente, o que gera novos leitores. Eu, como professor de práticas de campo e laboratório, fico extremamente agradecido, pois vale lembrar que, nas graduações brasileiras, utilizar um texto em língua estrangeira é quase um atentado, portanto textos que ‘traduzam’, por assim dizer, técnicas e métodos difundidos internacionalmente são muito bem-vindos. Entretanto, retomando minha preocupação com a ‘superpadronização’, fiquei pensando que um jovem leitor poderá facilmente entender que as escavações arqueológicas devem atingir um alto nível de padronização, em que todas as informações devem ser protocoladas em fichas de conteúdo fechado e limitadas em seus campos de respostas, uma espécie de ‘ficha de ticar’, em que caberia ao arqueólogo coletar amostras em volumes pré-determinados, preencher os protocolos e armazená-las adequadamente para incorrer corretamente às análises laboratoriais. Certamente, não foi essa a mensagem que moveu o interesse dos autores ao compor a obra, contudo vale a pena lembrar os leitores de que fazer ciência requer um alto grau de sensibilidade e subjetividade e que, não seria incorreto dizer, em Arqueologia, pelo caráter empírico, confiar no feeling não é ceder à falta de objetividade.

Trago essa discussão exatamente pela minha experiência como professor de graduação e pós-graduação em Arqueologia, e por estar imerso num cenário em que essa disciplina é cada vez mais demandada pelos empreendimentos de engenharia no Brasil, por conta das práticas de licenciamento ambiental. No contexto das atividades de licenciamento, vem se tornando senso comum que a qualidade das pesquisas arqueológicas está relacionada ao volume de dados que gera e, sobretudo, à confiabilidade técnica que conformou os dados. Nesse sentido, a padronização das informações registradas em campo vem sendo tomada como essencial, refletindo qualidade e confiabilidade na pesquisa. Logo, o estabelecimento de um protocolo de coleta, em todas as etapas do quotidiano da pesquisa, permite aos arqueólogos gerarem dados ‘a toque de caixa’, com baixo índice de subjetividade científica e que nega ou dificulta o exercício da reflexão. Nesse sentido, é importante ressaltar que o livro em tela contribui para a divulgação de técnicas padronizadas, que devem ser adotadas nas diferentes pesquisas após reflexões aprofundadas, algo que, muitas vezes, a Arqueologia de contrato não atende.

Há, ainda, outro aspecto a destacar. A coleta e o estudo cuidadoso das coleções artefatuais e das amostras biológicas em campo elucidam uma discussão emergente no Brasil. Cada vez mais, arqueólogos têm se debruçado sobre uma tendência recente em desvalorizar, de certa forma, atividades interventivas nos sítios arqueológicos, baseando-se no discurso do preservacionismo e da limitação das reservas técnicas. Da mesma forma, desconsideram a importância de análises sobre coleções fragmentárias, argumentando que somente as coleções artefatuais mais significativas deveriam ser abordadas, pelo seu cunho elucidativo, simbólico e educativo. Porém, com a leitura da obra, fica também evidente que foi somente com novas intervenções arqueológicas em sítios já bastante estudados, e com base em análises de coleções até então desconsideradas pelo seu aspecto microescalar ou secundário, que novos modelos teóricos sobre as sociedades sambaquieiras puderam ser constituídos, ou seja, esses modelos são fruto de trabalhos de campo exaustivos, experimentação, discussões amadurecidas e publicação de dados. Invariavelmente, essas novas intervenções arqueológicas avolumaram as reservas técnicas, o que leva a discussão para além da Arqueologia tradicionalmente realizada no Brasil, invadindo temas como gestão do patrimônio arqueológico, reservas técnicas, ciência da conservação e museologia.

Na busca da popularização de uma abordagem estratégica bem pensada, que dialogue com pesquisas nacionais e internacionais, a obra contribui amplamente para o desenho de projetos de pesquisa e, com certeza, se tornará uma boa referência. Considerando o pool de pesquisadores que contribuíram para a tessitura do livro, e pelo seu conhecimento de técnicas importantes que ultrapassam as práticas de campo, fico na expectativa da publicação de um segundo volume, composto por abordagens metodológicas em laboratório, envolvendo as mesmas temáticas já abordadas na obra.

Rafael Guedes Milheira – Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

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Encontro de Antropologia: homenagem a Eduardo Galvão – MAGALHÃES et al (BMPEG-CH)

MAGALHÃES, Sônia Barbosa; SILVEIRA, Isolda Maciel da; SANTOS, Antônio Maria de Souza (Orgs.). Encontro de Antropologia: homenagem a Eduardo Galvão. Manaus: Editora da UFAM; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2011. 560 p. Resenha de: SCHRÖDER, Peter. Homenagem tardia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.9, n.1, jan./abr. 2014.

Estranheza. Esta foi uma das primeiras reações ao folhear esta coletânea com seu motivo de capa atraente. A razão? Não o tema do livro, mas o tempo que levou para ser lançado. Trata-se de um conjunto de exposições e comunicações apresentadas por ocasião do Seminário Eduardo Galvão, realizado no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), de 2 a 5 de setembro de 1997.

O objetivo do evento era, como fica evidente com a leitura das contribuições, tanto uma homenagem quanto uma avaliação crítica de vida e obra de Eduardo Galvão (* 25/01/1921, Rio de Janeiro – † 24/08/1976, Rio de Janeiro) no contexto da antropologia brasileira, ou seja, um tema que pode ser justificado com facilidade. Mas resta a questão por que levou 14 anos (ou talvez 16, quando se leva em conta algumas divulgações de lançamento em meados de 2013?) para se publicar as contribuições ao evento. Geralmente, o interesse por anais de eventos, por exemplo, dissipa-se depois de poucos anos, a não ser que fossem publicados alguns papers excepcionais, apreciados por especialistas. Na coletânea resenhada, no entanto, não é possível encontrar a resposta pela questão do hiato temporal entre evento e publicação.

Organizar um evento para avaliar as contribuições e os impactos de um pesquisador importante em sua área e depois publicar as conferências e comunicações não são tarefas cotidianas nas ciências humanas, mas nenhuma coisa incomum. Entre os diversos aspectos que podem ser citados com relação a tais homenagens críticas figura a distância entre o falecimento do homenageado e o ano do evento. Será que um intervalo de vinte anos permite uma avaliação historicamente equilibrada e sóbria sobre o homenageado? Ou será que as impressões subjetivas ainda exercem influências muito fortes nas avaliações? Parece ser mais fácil garantir tal distanciamento em casos de pesquisadores temporalmente mais afastados, como Nimuendajú ou Radcliffe-Brown.

No caso da coletânea resenhada, porém, pode ser apresentada uma justificativa importante: o fato de Galvão quase ter desaparecido, desmerecidamente, das leituras canônicas em antropologia brasileira, tanto nas graduações quanto nas pós-graduações. Desse modo, o livro podia ser um estímulo para ‘redescobrir’ um autor importante na história da antropologia brasileira. No entanto, sempre existe o perigo, no caso de eventos com publicações como a coletânea, de produzir uma obra cujas contribuições majoritariamente têm pouco a ver com o homenageado, como já aconteceu no caso de um colóquio, realizado em Jena, Alemanha, em 2005, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte de Nimuendajú (Born, 2007).

O título do livro é uma alusão explícita a “Encontro de sociedades”, coletânea com textos de Galvão postumamente publicada em 1979. Infelizmente, não se encontra, como se podia esperar, uma síntese biográfica do homenageado e nem uma lista de suas publicações (como em Galvão, 1996). A “resenha biográfica” no final do livro, de basicamente uma página (p. 551-552), não faz jus a Galvão.

Em toda a coletânea, há apenas quatro artigos, de 32, no total, que de fato se concentram em aspectos da vida e obra de Galvão. O primeiro, de Orlando Sampaio Silva, é uma sistematização descritiva dos enfoques regionais e temáticos na obra de Galvão, relacionando as áreas onde este realizou suas pesquisas de campo com as publicações resultantes. O autor chama a atenção para as delimitações temáticas e situacionais de Galvão nos estudos de aculturação realizados nas décadas de 1950 e 1960, a distinção sistemática entre mudança cultural e aculturação, os exercícios classificatórios (áreas culturais) e as referências teóricas (principalmente, a antropologia americana da época), porém, a síntese da obra ficou inacabada nesse texto. Neste sentido, o segundo artigo, de Pedro Agostinho, oferece uma abordagem interpretativa mais abrangente, embora trate ‘apenas’ do “tempo de Brasília” de Galvão (1963-1965). O artigo de Roque Laraia, por sua vez, destaca a importância histórica da obra de Galvão no contexto da antropologia brasileira. Além disso, é uma bela reflexão sobre sense e nonsense de publicar diários de campo. Chama a atenção que este assunto também é discutido na introdução escrita pelos organizadores da coletânea. No caso dos diários de campo de Galvão (1996), a questão principal é se eles revelam novidades sobre o autor ou sobre suas pesquisas publicadas, e o fato de esta dúvida existir é revelador em si.

O quarto artigo, de Heraldo Maués, focaliza os ‘pais fundadores’ da antropologia institucionalizada no Pará: Galvão, no MPEG, e Napoleão Figueiredo, na Universidade Federal do Pará. De forma imprevista, a estupidez da máquina ditatorial, que afastou Galvão de Brasília, favoreceu o fortalecimento da antropologia em Belém. Como Maués bem observa, com isso foi rompido certo padrão de relacionamentos profissionais de antropólogos com a região, já que por muito tempo a Amazônia foi considerada exclusivamente como ambiente para coletar informações a serem analisadas em contextos institucionais fora da região.

Há mais quatro artigos na primeira parte do livro, sobre as contribuições de Galvão à antropologia brasileira, porém estes textos, de Yonne Leite, Samuel Sá, Isidoro Alves e Mark Harris, focalizam menos o pesquisador Galvão do que os quatro anteriores. A segunda parte do livro, por sua vez, está composta por fragmentos de mitos coletados por Galvão e por quatro álbuns fotográficos muito interessantes (do alto Xingu, do alto rio Negro, dos Kaiowá e dos Tenetehara), inclusive mostrando diversos colaboradores e interlocutores de Galvão.

A terceira parte, com 24 artigos, representa mais de dois terços do livro, mas os textos muitas vezes não têm nada a ver com Galvão ou estão relacionados com sua obra apenas indiretamente, por afinidade temática ou regional. Às vezes, Galvão é citado ‘de alguma maneira’, sem que isto tenha consequências para as análises apresentadas; e em várias contribuições nem se encontra referência bibliográfica alguma a ele. Até um leitor muito ingênuo pode se perguntar: onde estão as conexões com o tema do evento?

Uma parte das contribuições parece representar projetos de pesquisa em andamento, porém certamente já concluídos em 2011 (por exemplo, o artigo de Denize Genuína da Silva Adrião sobre concepções de natureza e cultura no médio rio Negro). Certos temas ou conjuntos temáticos, por sua vez, predominam: por exemplo, estudos sobre populações pesqueiras e suas práticas econômicas, com dez artigos, o que evidentemente tem a ver com os interesses de Galvão. Também há diversos textos sobre meio ambiente e sobre saúde.

Na introdução à coletânea, os organizadores explicitam sua visão da obra de Galvão: por um lado, caracterizada por perspicácia analítica, por outro lado, ultrapassada em termos epistêmicos. Certos aspectos de sua atuação acadêmica são destacados: sua capacidade de formar novos pesquisadores, seus estímulos inovadores, seus interesses bem articulados numa antropologia prática e suas contribuições à institucionalização da antropologia na Amazônia. Também é abordada a questão de qual foi a linhagem acadêmica constituída por Galvão.

Os organizadores também explicam que ainda há muito material documental nos arquivos do MPEG, que poderia servir de base empírica para pesquisas futuras sobre vida e obra de Galvão. Em todos os casos, o livro resenhado é muito interessante, tem diagramação bastante agradável e permite uma primeira abordagem ao homenageado, mas não fornece uma base de consulta sistemática. E certamente esta nem era a intenção da publicação, a qual, de alguma forma, representa um estado da arte: aquele da pesquisa antropológica na Amazônia em meados dos anos 1990.

Referências

BORN, Joachim (Org.). Curt Unckel Nimuendajú – ein Jenenser als Pionier im brasilianischen Nord(ost)en. Wien: Praesens, 2007. (Beihefte zu “Quo vadis, Romania?”, 29).         [ Links ]

GALVÃO, Eduardo. Diários de campo de Eduardo Galvão: Tenetehara, Kaioá e índios do Xingu. Organização, edição e introdução de Marco Antonio Gonçalves. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Museu do Índio/FUNAI, 1996.         [ Links ]

Peter Schröder – Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]

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Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940 – FRANCO; DRUMMOND (BMPEG-CH)

FRANCO, José Luiz de Andrade; DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, 272p. (Coleção História e Saúde). Resenha de: HEIZER, Alda. A construção da identidade nacional (1920 e 1940): entre práticas e projetos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.5, n.3, nov./dez. 2010.

“Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940”, de José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond, é um livro que apresenta ao leitor uma análise que se afasta das interpretações reducionistas e, por vezes, anacrônicas que têm como objeto a ‘conservação do mundo natural’. Os autores, ao explicitarem o lugar de suas reflexões na produção historiográfica sobre a conservação da biodiversidade, privilegiaram como a ‘conservação do mundo natural’ foi pensada em determinado contexto, sem perder de vista as especificidades das propostas em questão, olhando para um passado escolhido (1920-1940), num lugar também escolhido, o Brasil. Ao se debruçarem sobre uma geração de ‘protetores da natureza’, relacionando suas formulações à temática da identidade nacional, os autores trouxeram para a cena atores, instituições e trajetórias.

Resultado de pesquisa minuciosa, o livro foi dividido em introdução, quatro capítulos e epílogo. A apresentação ficou a cargo de Regina Horta Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisadora e referência obrigatória para quem quer estudar o período e as relações entre biologia e natureza. A ‘orelha’ do livro, escrita pela pesquisadora Magali Romero Sá, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, demonstra o cuidado dos editores do livro ao escolher quem o apresentaria ao leitor.

Na introdução, os autores anunciam suas preocupações: estudar um grupo de cientistas brasileiros e suas preocupações com a proteção da natureza num período específico, 1920-1940, ressaltando como eles pensaram a questão e a presença de suas ideias nas estratégias de ação em um cenário de discussões sobre o nacional e o cientificismo.

Ao se disporem a refletir sobre esse quadro, Franco e Drummond se valeram de uma bibliografia abrangente, que nos permite identificar no texto uma aproximação de questões relacionadas à interpretação das culturas, bem como à importância de se ressaltar a trajetória de conceitos e seus conteúdos.

Os autores utilizaram textos de época de um mesmo autor, em diversos suportes de publicação e para finalidades diversas. Por exemplo, o relatório, a resenha histórica, a iconografia de plantas de Frederico Carlos Hoehne (1882-1959), como a flora de Mato Grosso publicada nos “Archivos do Museu Nacional”, o clube de amigos da natureza na “Revista Nacional de Educação”, entre outros. É nesse quadro que é preciso ler os autores escolhidos por Franco e Drummond.

“As Contribuições de Alberto José Sampaio e Armando Magalhães Corrêa para um programa de proteção à Natureza” é um capítulo em que, particularmente, os autores alcançam o objetivo anunciado. Ele apresenta como os dois personagens escolhidos pretendiam articular a proteção da natureza e a construção de uma identidade nacional. Sem dúvida, a opção por tecer um relato biográfico de Sampaio e de Magalhães Corrêa foi importante para que o leitor pudesse compreendê-los em seus contextos específicos. Um exemplo é a preocupação de Sampaio – que foi assistente de botânica do Museu Nacional e professor chefe da Seção de Botânica do mesmo museu – em não se restringir à botânica sistemática, ao fazer viagens de campo e ao dedicar sua obra sobre a flora de Mato Grosso (estudo de 1916) aos botânicos da Comissão Rondon. Sua relação com as academias científicas, os conselhos e as frentes internacionais mostram igualmente ao leitor a práxis deste cientista e homem público, distanciando a biografia dos cientistas de certa assepsia predominante em trabalhos da área.

Outro aspecto fundamental na obra é a preocupação dos autores com a reprodução de documentos, como a lista dos 62 congressos realizados entre 1884 e 1935, nos quais o tema de proteção da natureza havia sido debatido. Ou ainda destacar as preocupações de Corrêa, que, em 1936, em “O Sertão Carioca”, conclamava o “esforço abnegado dos patriotas” por um “Brasil grande, forte (…) com leis brasileiras para os brasileiros”.

No terceiro capítulo, os autores trazem “Cândido de Mello Leitão e o ponto de vista da Zoologia”, utilizando-se do mesmo formato do capítulo anterior ao apresentar o cientista, porém dedicando mais tempo à obra “A Biologia no Brasil”. Os autores apresentam também a preocupação dos cientistas com a divulgação de suas práticas. Tal postura é igualmente reconhecida no trabalho de Mello Leitão, que atuou com a mesma preocupação e teve o referido livro prefaciado por Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), que o considerava um “naturalista de raça” com “elevadas preocupações sociais referentes à sua gente e à sua terra”.

Os autores buscaram registrar a interpretação do Mello Leitão para o “caráter utilitário que os portugueses atribuíram à natureza”, a ordenação cronológica e o relato dos viajantes, bem como o que significou o século XVII para a História da Biologia. Interessante notar, ainda que não nos caiba aqui uma análise detalhada, a afirmação de Mello Leitão a respeito de a Península Ibérica ter ficado alheia às especulações científicas, afirmação esta que foi atualizada por seus sucessores e que está presente na maioria das análises, o que restringe bastante a possibilidade de pensar a Península Ibérica sob outras lentes, o que já vem sendo realizado em pesquisas no Brasil, como as de Carlos Ziller Camenietzki.

O último capítulo, “Frederico Carlos Hoehne e a Conservação da Natureza em São Paulo”, é de uma atualidade excepcional. Os autores permitem ao leitor ter acesso a fragmentos dos trabalhos de Hoehne em diferentes momentos de sua trajetória, desde sua atuação no Museu Nacional, incluindo sua publicação de 1930 sobre as “Plantas Ornamentais da Flora Brasílica”. Para Hoehne, trata-se de uma publicação cuja “intenção é nobre e patriótica, porque é pura, despida de vaidade e orgulho…”, corroborando um movimento visível na produção da época, resultado de um projeto ideológico que não poderia prescindir de uma produção que levasse ao conhecimento nacional o que havia sido feito por brasileiros, sempre valorizando uma nova ordem.

Outro aspecto salientado pelos autores e presente ao longo do texto é o propósito de demonstrar que nos escritos dos cientistas contemplados no livro havia uma preocupação em valorizar um saber que não era acadêmico, como o do indígena, presente, por exemplo, no texto de Hoehne, datado de 1930, sobre a devastação dos campos e das florestas do Paraná e de Santa Catarina, a preocupação com o colono e sua relação com o entorno. A intenção do cientista era alertar os governos sobre a proteção do ‘patrimônio natural’, tema que lhe era caro desde o início do século XX. Seu relato é permeado de lembranças tristes sobre sua participação na Comissão Rondon, em 1909; bem como sua publicação posterior a respeito da importância do Código Florestal Brasileiro, que ressaltava que “as florestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituem bem de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade com limitação que as leis em geral, e especialmente este Código, estabelecem”.

Franco e Drummond finalizam o livro chamando a atenção para a importância de revisitar os autores estudados e o conteúdo de suas preocupações com a inclusão da proteção à natureza em políticas públicas eficientes. Por certo, com uma análise mais rica que uma resenha pode comportar, o livro traz à cena intelectuais que foram fundamentais para formulações futuras relacionadas à proteção da natureza. Também contribui para o mapeamento de como uma mesma preocupação se apresenta de forma diferenciada em diferentes tempos, e muitas vezes na obra de um mesmo cientista, justificando a localização do livro na fronteira de áreas do conhecimento que são pouco exploradas, e num movimento necessário da história de mudanças e permanências. Trata-se de um livro que abre caminho para pesquisas futuras sobre assuntos urgentes e profundos.

Alda Heizer – Doutora em Geociências pela Universidade Estadual de Campinas. Tecnologista do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Problemáticas sociais para sociedades plurais: políticas indigenistas, sociais e de desenvolvimento em perspectiva comparada – SILVA et al (BMPEG-CH)

SILVA, Crishian Teófilo da Silva; LIMA, Antônio Carlos de Souza; BAINES, Stephen Grant (Orgs.). Problemáticas sociais para sociedades plurais: políticas indigenistas, sociais e de desenvolvimento em perspectiva comparada. São Paulo: Annablume; Distrito Federal: FAP-DF, 2009, 244p.  Resenha de: SILVA, Nathália Thaís Cosmo da; DOULA, Sheila María. Desenvolvimento, políticas sociais e acesso à Justiça para os povos indígenas americanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.3, nov./dez. 2010.

O livro “Problemáticas sociais para sociedades plurais” aborda grandes temas relacionados às sociedades indígenas americanas, tais como identidade étnica, cidadania, direitos coletivos e diferenciados e problemas sociais. Dividida em três partes, a obra foi organizada por Cristhian Teófilo da Silva e Stephen Grant Baines, ambos professores da Universidade de Brasília, e por Antonio Carlos de Souza Lima, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A primeira parte do livro discute indigenismo e desenvolvimento, com ênfase na questão da convivência interétnica nas Américas; a segunda analisa as políticas sociais para povos indígenas em perspectiva comparada; e a terceira parte aborda os direitos diferenciados de acesso à Justiça.

Os fios condutores da primeira parte do livro são a construção da identidade e da autonomia indígena em face da identidade, da soberania e dos modelos de desenvolvimento nacionais, e as limitações da nova semântica multiculturalista. Os artigos são: “Desenvolvimento, etnodesenvolvimento e integração latino-americana”, de Ricardo Verdum; “Conflitos e reivindicações territoriais nas fronteiras: povos indígenas na fronteira Brasil-Guiana”, de Sthephen Grant Baines; “Políticas indigenistas e cidadania no México e EUA: John Collier, Moisés Sáenz e os índios das Américas”, de Thaddeus Gregory Blanchette; “Indigenismo, antropologia y pueblos índios en México”, de Mariano Baez Landa.

Sob a ótica da relação entre identidade indígena e soberania nacional, o texto de Verdum discute o conceito de ‘etnodesenvolvimento’ como alternativa que leva em consideração a autonomia dos grupos étnicos dos Estados Nacionais, destacando o papel protagonista do Banco Mundial (BIRD) na disseminação deste ideário. O autor assinala a existência de um campo de interesses e disputas presentes nas representações e nos discursos acerca do lugar dos povos indígenas no desenvolvimento da América Latina, enfatizando que as manifestações de diversidade cultural são limitadas por concepções sociais e econômicas de ‘pobreza’ e ‘marginalidade’. Segundo ele, a concepção do Banco Mundial sobre o ‘empoderamento’ é impregnada pela ideologia progressista com o intuito de capacitar os indígenas para participarem de todo o “ciclo de desenvolvimento”.

Seguindo o fio argumentativo sobre as fronteiras e a soberania nacional, o texto de Baines analisa o conflito social em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mostrando que a regularização desta área pelo governo brasileiro garante a Soberania Nacional e também o manejo sustentável pelos povos indígenas, ao passo que a exploração da terra pelos grileiros rizicultores tinha como objetivo a privatização das terras da União e, como consequência, danos ambientais irreversíveis pelo uso intensivo de agrotóxicos. Baines aponta, no contexto de fronteira entre Brasil e Guiana, o conflito de interesses entre os povos indígenas e o Exército, salientado o desrespeito histórico que marcou a construção de rodovias, de usinas hidrelétricas e a abertura de minas nos territórios indígenas Makuxi e Wapichana. Assim, a fronteira, como sugere o autor, deixa de ser uma questão militar – tendo em vista que ambos os povos expressam patriotismo em relação às suas nações – e passa a ser uma questão econômica.

Blanchette, por sua vez, contextualiza os períodos da construção da identidade indígena na história norte-americana e mexicana. No âmbito do indigenismo norte-americano, assinala a passagem do período de assimilação forçada no final do século XIX, quando os índios tinham a condição de cidadãos de segunda classe, para as primeiras décadas do século XX, quando eles foram representados como um símbolo nacional, assumindo o papel de protetores da fronteira. Esta transformação possibilitou o surgimento do pluralismo e do relativismo cultural dentro do campo político, abrindo caminhos para que, mais tarde, em meados do século XX, o grande personagem do indigenismo americano, John Collier, reformulasse a política assimilativa, priorizando a integração dos grupos numa estrutura pluralista. Collier, com o apoio do presidente Franklin Roosevelt e dos indigenistas mexicanos Moisés Sáenz Garza e Manuel Gamio, foi responsável por mudanças legislativas relevantes em relação às políticas indigenistas nas Américas.

Já na história mexicana, os índios eram considerados um ‘problema’ da nação, de modo que a lógica do progresso induzia o seu desaparecimento. O indigenismo mexicano somou esforços a fim de incorporar os índios como cidadãos, mas essa reorientação acabou se limitando à aparência, uma vez que os índios continuaram a ser vistos como imperfeitamente civilizados.

No que se refere à representação do indígena na trajetória mexicana, Landa expõe que, com uma história marcada por levantes e rebeliões, a figura do índio era a de um bravo combatente pela independência frente à Espanha. No entanto, após esse período, ele passou a significar um entrave à integração e ao desenvolvimento da nação. De acordo com o autor, a identidade nacional construída no México nega as diferenças, tanto pela via da exclusão, que separa e isola as diferentes etnias, quanto pela via da inclusão, que apaga as identidades. Landa sustenta que o indigenismo moderno se impôs igualando pequenos produtores, índios, latinos e mestiços para serem atendidos pelos programas de combate à pobreza e de compensação social, o que culminou na renúncia da condição étnica para obtenção de recursos governamentais.

A segunda parte do livro trata das políticas sociais envolvendo os povos indígenas em temas como a educação superior, as relações de gênero, saúde, contaminação com o vírus HIV e previdência social. Os artigos são: “Cooperação Internacional e Educação Superior para indígenas no Brasil: reflexões a partir de um caso específico”, de Antonio Carlos de Souza Lima; “Políticas sociais, diversidade cultural e igualdade de gênero”, de Lia Zanotta Machado; “Políticas de saúde indígena no Brasil em perspectiva”, de Carla Costa Teixeira; “Un acercamiento a la problemática del HIV/SIDA al interior de los pueblos índios”, de Patrícia Ponce Jimenez; “‘No soy mandado, soy jubilado’: previsión social y pueblos indígenas en el Amazonas brasileño”, de Gabriel O. Alvarez.

No que se refere à educação superior, é a partir da reflexão sobre o projeto “Trilhas do Conhecimento” que Lima discute a utilização dos recursos advindos da cooperação internacional e das políticas públicas. Argumenta que, embora a inovação promovida no cenário das políticas para os povos indígenas tenha se ancorado em subsídios da cooperação técnica internacional, com destaque para a Fundação Ford e para a Fundação Rockfeller, não se pode esquecer que os recursos de natureza privada servem a ações demonstrativas de curta duração e que, portanto, são incompatíveis com tarefas de longo prazo próprias das políticas públicas.

As relações de gênero são problematizadas por Machado, que alerta para o fato de que agressões morais e físicas podem não ser consideradas como violência em determinados contextos culturais e que o significado de violência e discriminação contra as mulheres é construído sem o reconhecimento da cultura local. A autora defende, pois, a diversidade cultural e a igualdade de gênero como questões que dizem respeito fundamentalmente à dignidade humana e, portanto, se antepõe a uma sociedade tradicional que tem arraigadas as práticas da discriminação.

Em outra perspectiva, por meio da análise do processo histórico e político institucional, Teixeira argumenta que a política pública brasileira de saúde para os povos indígenas é dotada de uma profunda força antidemocrática, uma vez que as intervenções sanitárias buscam a incorporação de novas práticas e valores higiênicos pelos indígenas. Aponta no Manual de Orientações Técnicas destinado aos agentes de saúde o predomínio da função simbólica nas ilustrações do texto, que enfatizam a proximidade de comportamentos entre índios, animais e fezes, evidenciando que o foco não é a ausência de infraestrutura sanitária, mas sim o inadequado comportamento higiênico dos indígenas, o que reforça a missão de “sanear pessoas” para o agente indígena.

Quanto à epidemia do vírus HIV, Ponce destaca os perigos de se desconsiderar sua proliferação entre os povos indígenas, entendendo que as políticas públicas nesse setor partem de alguns pressupostos equivocados: os índios são concebidos como exóticos que moram em lugares inacessíveis, inclusive para a AIDS, e a crença de que todos os índios são heterossexuais, sendo também comum a associação da epidemia com a homossexualidade. Novamente, portanto, a crítica recai na incapacidade verificada na formulação de políticas públicas que considerem a diversidade e as especificidades culturais. Essa situação remete a uma “vulnerabilidade multidimensional” que exige novas posturas de líderes e de comunidades indígenas, e também da academia no sentido de assumir o imperativo de falar de sexualidade e diversidade sexual.

O texto de Alvarez discute o impacto das políticas previdenciárias nas comunidades indígenas por meio de três experiências na Amazônia. Em primeiro lugar, nota-se uma valorização social dos aposentados, na medida em que, em alguns casos, os beneficiários conseguem abandonar a condição de trabalhadores e tornam-se patrões; em outros casos, verifica-se um fenômeno mais complexo, no qual o dinheiro passa a ter impacto sobre a vida cultural do grupo, pois os idosos assumem as despesas com rituais e ocupam um lugar proeminente no grupo; finalmente, a aposentadoria tem servido para reverter a situação de marginalidade econômica, subordinação social e estigmatização histórica sofrida, por exemplo, pelos Ticuna, representados como inaptos para o mundo do trabalho, alcoólatras e selvagens. O autor relata, ainda, o recente “drama dos documentos” em decorrência da atuação autoritária da Fundação Nacional do Índio, que, diante da apuração de denúncias de fraudes pontuais com a população indígena Ticuna no município de Tabatinga (AM), mandou suspender a emissão de declarações que dão início aos trâmites para obtenção de recursos previdenciários. Este episódio, por um lado, evoca a atualização dos estigmas ligados aos Ticuna; por outro, traz a reflexão de que, ao contrário do passado, quando muitos deles renunciaram sua identidade indígena, no presente, com a implementação de políticas diferenciadas, seus descendentes assumem suas identidades para ter acesso aos benefícios.

A terceira parte do livro se destina a discutir os direitos diferenciados de acesso à Justiça. Os artigos são: “A Convenção 169 da OIT e o Direito de Consulta Prévia”, de Simone Rodrigues Pinto; “Criminalização indígena e abandono legal: aspectos da situação penal dos índios no Brasil”, de Cristhian Teófilo da Silva.

As proposições de Pinto se referem ao direito de consulta prévia, que foi instituído na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e seu papel fundamental de intermediar e negociar as reivindicações dos povos indígenas e dos Estados. No caso brasileiro, esse direito ainda carece de regulamentação e a falta de definição clara do papel dos povos indígenas acarreta no risco de a consulta se tornar mera formalidade. Faz-se necessário, neste processo, a informação qualificada, que implica tradução não só dos aspectos linguísticos, mas dos “modos de pensar”. Tomando como exemplo os impactos causados por 200 obras propostas pelo Programa de Aceleração do Crescimento, a autora analisa as possíveis manipulações por parte das empresas responsáveis e chama a atenção para os empreendimentos que afetam diretamente as comunidades indígenas, mesmo que não estejam situados em suas terras.

Finalmente, no âmbito da criminalização indígena, o artigo de Silva denuncia o abandono legal dos índios nas prisões e a necessidade de um aprofundamento empírico e teórico sobre essa realidade no Brasil. O autor alerta para o não reconhecimento do status jurídico dos índios pela justiça criminal, apontando para uma distorção no uso das categorias ‘índios’ e ‘pardos’, e a consequente descaracterização étnica. Evidencia também o racismo institucional e a manipulação da indianidade pelos agentes que relegam aos índios, sob o discurso da aculturação, o tratamento diferenciado. Resta aos estudiosos somar esforços para tentar compreender o que a realidade desses processos de criminalização dos índios que estão nas prisões brasileiras nos diz sobre a pretensa democracia étnica e plural do país.

Nathália Thaís Cosmo da Silva – Mestranda em Extensão Rural na Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

Sheila Maria Doula – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora Associada da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

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Oleaginosas da Amazônia – PESCE (BMPEG-CH)

PESCE, Celestino. Oleaginosas da Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2 ed., 2009. 334 p. Resenha de: MANTOVANI, Waldir. Oleaginosas da Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.2, maio/ago. 2010.

O livro “Oleaginosas da Amazônia”, de Celestino Pesce, teve a primeira edição publicada em 1941, sendo agora publicada sua segunda edição, revisada e ampliada, pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Esta edição da obra traz a estrutura original, é acrescida de um capítulo sobre “O potencial da flora oleífera na Amazônia” e recebe ilustrações de espécies apresentadas.

Antes de ser uma obra que descreve características de espécies de plantas da Amazônia com sementes oleaginosas, o livro reflete a preocupação do autor com a conservação da região e com a necessidade de investimentos na produção racional e em pesquisas sobre o tema, incluindo o melhoramento e o cultivo das espécies cujas sementes eram, até então, colhidas após a queda no solo e armazenadas em condições inadequadas, com a perda de suas qualidades.

As descrições feitas para muitas das espécies tratam de seus habitats e das suas características botânicas, demonstrando a experiência de observação em campo adquirida pelo autor em várias regiões da Amazônia, além de apontar para as melhores formas de obtenção e de conservação das sementes, de extração e de manutenção de propriedades químicas e físicas de suas gorduras e óleos, enquanto para outras espécies são apontados usos potenciais, ainda a serem explorados, incluindo o de consumo das polpas dos frutos.

Ressaltam, nessas descrições, as observações feitas sobre o uso de sementes diversas pelos índios, a exploração feita pelos lavradores do interior e os limites de extração do óleo ou da gordura, seja pela ausência de equipamentos adequados ou pela distância entre o local de produção e o de comercialização, incluindo a exportação para países da Europa, ou pela forma de extração e armazenagem, refletindo a preocupação do autor com a produção em toda a sua cadeia.

Nesta obra, é ressaltada a importância da flora composta pelas palmeiras, das quais descreve características de 36 espécies, além de 64 outras de famílias diversas, ressaltando-se Clusiaceae, Euphorbiaceae e Sterculiaceae. As informações apresentadas para as espécies são desiguais, havendo algumas bastante detalhadas em todos os seus aspectos, enquanto outras, principalmente aquelas para as quais indica potencial de uso, são descritas superficialmente.

Em um momento extremamente controverso acerca do valor da biodiversidade contida em biomas no Brasil, o livro “Oleaginosas da Amazônia” aponta para um dos muitos potenciais recursos de interesse humano ainda não completamente explorados, mostrados pelo olhar de um estrangeiro que se interessou pela região de forma ampla, como quando escreveu sobre a sua conservação: “O próprio caráter da região onde se encontram tais sementes indica que a vegetação das plantas que as produzem é a que deve predominar”.

Trata-se de uma obra que interessa à conservação de recursos naturais, à botânica econômica e, nela, particularmente, à produção de combustíveis alternativos, de óleos aromáticos, de sabões, entre outros produtos. Com um texto rico em informações diversas sobre a Amazônia e sobre as espécies tratadas, de uma forma agradável de ser lida e olhada devido à qualidade da impressão, à variedade e aos detalhes das figuras, este livro escrito em 1941 é extremamente atual em sua mensagem, compondo uma obra incomum.

Celestino Pesce (1896-1942) era italiano, químico, vindo de São Paulo, que se interessou pelas plantas oleaginosas da Amazônia e, desde 1913, dedicado à extração de óleos e gorduras de sementes de várias espécies já conhecidas e de novas descobertas feitas em diversas viagens que realizou pela região. Morreu afogado durante um banho em águas do rio Amazonas. Neste livro, vive para nos alertar.

Waldir Mantovani – Doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas Professor Titular da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Grandes Expedições à Amazônia Brasileira, 1500-1930 – MEIRELLES FILHO (BMPEG-CH)

MEIRELLES FILHO, João. Grandes Expedições à Amazônia Brasileira, 1500-1930. São Paulo: Metalivros, 2009. 241 p.  Resenha de: DRUMMOND, José Augusto. Expedição literária pela Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.2, maio/ago. 2010.

Este livro de Meirelles é capaz de abalar, mesmo entre os mais céticos, a noção de que os brasileiros não se esforçam para conhecer a Amazônia, mais da metade da qual pertence ao território do Brasil. É verdade que a atenção maior dada à região nas últimas décadas originou-se em boa parte fora do país, incentivada por estudos, relatos e preocupações de não-brasileiros. De resto, o mesmo aconteceu no passado mais distante, conforme registrado pela própria obra resenhada, pois grande parte das expedições abordadas teve iniciativa, apoio e participantes estrangeiros. No entanto, temos há algum tempo uma massa crítica instalada no país, dentro e fora da região amazônica, dotada da capacidade de estudar, conhecer e divulgar as suas singularidades e os seus significados em escala nacional, continental e global.

Resultado de um longo e abrangente trabalho de pesquisa e de um admirável esforço de síntese de escrita, este livro exemplifica essa capacidade. Foi composto por uma grande equipe de pesquisadores, consultores, tradutores, revisores, diagramadores, designers e técnicos em reprodução de imagens, trabalhando numa empreitada de longa duração. Embora seja principalmente uma obra de divulgação para um público ampliado, a alta qualidade dos textos e das ilustrações e o rigor da documentação das informações fazem dela uma rica fonte para estudos acadêmicos, monográficos e técnicos. Ela sobressairia mesmo se fosse apenas uma obra de divulgação, pela seriedade, pelo capricho e pela resolução impecável.

João Meirelles é escritor e ativista ambiental (dirigente do Instituto Peabiru), envolvido com diversas instituições do Terceiro Setor e participante de projetos de proteção de áreas naturais, dentro e fora da Amazônia. É autor de “O Livro de Ouro da Amazônia” (Ediouro, 2004). É o responsável pelo texto deste novo livro, que, com a ajuda de riquíssimas ilustrações, narra e costura entre si 42 expedições selecionadas que percorreram diferentes partes da Amazônia brasileira entre 1500 e 1930. Este amplo período é delimitado no seu início pelas primeiras viagens periféricas de navegadores europeus em torno da foz do rio Amazonas e, no seu final, pelas últimas expedições basicamente terrestres de Cândido Rondon até o coração continental da Amazônia.

Escolher essas 42 expedições, deixando de fora cerca de 30 outras, deve ter sido uma das tarefas mais difíceis do autor na montagem desta publicação, mas o seu esforço de síntese funcionou: permitiu que o livro ficasse dentro de dimensões razoáveis para o tipo de obra que ele pretendia fazer – um livro de textos, fartamente ilustrado e com o adicional de apresentar uma alta qualidade de impressão. Pode-se esperar, com fundamentadas razões, que a obra aqui resenhada vá merecer pelo menos um segundo volume, que inclua as três dezenas de expedições que, embora registradas e estudadas, ficaram de fora. Para dar a dimensão do contexto ainda maior de expedições na região amazônica, Meirelles teve o cuidado de listar, em breves verbetes que compõem um anexo, outras 525 viagens que percorreram trechos da Amazônia, muitas em territórios dos demais países que compartilham a Grande Amazônia com o Brasil. A amostra de expedições analisadas por Meirelles pode até ser considerada pequena em face desse universo enorme, mas a obra é de peso, pois parece ser única, pela sua abrangência e pela sua concepção.

O formato adotado na obra merece ser comentado, pois é sistemático e eficaz. Cada expedição analisada recebe um texto padronizado, acompanhado por uma programação gráfica que combina beleza e funcionalidade. O texto é distribuído por quatro colunas em cada página, com inserções de ilustrações que variam em tamanho, forma, natureza e cores – mapas, fotografias, gravuras e pinturas (com paisagens, animais, plantas), roteiros etc. Muitas ilustrações são de página inteira. Todos os textos contêm as mesmas seções – contexto, líder, colaboradores, percurso, obra (textos ou outros materiais produzidos pelos expedicionários), principais contribuições (literárias, científicas, econômicas, geopolíticas, etnográficas etc.) e as notas bibliográficas. As duas primeiras páginas referentes a cada expedição trazem, ao alto, informações adicionais e sintéticas sobre duração, financiadores e percursos. Cada ilustração é acompanhada da identificação de autores, das datas e da sua fonte original – livros, coleções de museus e arquivos, acervos científicos, acervos particulares, álbuns de exposições e muitas outras.

O autor explica brevemente, na introdução, porque incluiu alguns viajantes e excluiu outros. Ressalta que o critério principal foi o de incluir aqueles que “empresta[m] um novo olhar, nova perspectiva sobre a região, a partir de [suas] andanças” (p. 17). Ele buscou evitar redundâncias, fazendo variar as particularidades individuais e as missões dos expedicionários escolhidos – bandeirantes, clérigos, missionários, militares, demarcadores de fronteiras, cientistas (etnólogos, arqueólogos, botânicos, zoólogos, geólogos, linguistas), pintores etc. Fica patente que era impossível incluir todos. No entanto, em face da relevância dos aspectos humanos e naturais da região e da própria abundância de expedições e de documentação conexa, nenhum critério de seleção agradará a tantos leitores quanto a esperança de que Meirelles e a sua equipe produzam um ou mais volumes que incluam as expedições que a obra resenhada foi obrigada a excluir.

Dada a homogeneidade dos 42 relatos, é difícil destacar qualquer um deles. Algumas expedições e alguns expedicionários chamam a atenção exatamente por serem mais conhecidos – Pedro Teixeira, Condamine, Alexandre Rodrigues Ferreira, Spix e Martius, Langsdorff, Wallace, Agassiz e Rondon. Em outros relatos há ilustrações de qualidade excepcional que seduzem o leitor predisposto a usufruir de um livro tão ricamente ilustrado. As cristalinas fotos das expedições de Rondon, as suaves borboletas pintadas por Bates e as densas gravuras de Orton são exemplos disso.

Apenas para enriquecer a apreciação da obra, destaco o capítulo dedicado a Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), militar brasileiro, já que brasileiros propriamente ditos (como Couto de Magalhães, Euclides da Cunha e Mário de Andrade) formam uma pequena minoria dos líderes das expedições selecionadas. Além disso, Meirelles destaca que Rondon, entre todos os expedicionários estudados, foi o “grande viajante”, ou seja, aquele que percorreu as maiores distâncias, acumuladas ao longo de quatro décadas de excursões por áreas hoje incorporadas aos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Amazonas, Pará, Goiás, Tocantins, Amapá e Roraima.

Meirelles registra outros feitos notáveis de Rondon. As suas numerosas expedições geraram abundantes 140 relatórios (mais de 20.000 páginas) e outros materiais impressos. Mesmo exercitando a sua notável capacidade de síntese, Meirelles se viu obrigado a dividir as numerosas expedições de Rondon em 14 ciclos, cada um dos quais abrange muitas viagens. Essas expedições foram também as maiores coletoras de materiais científicos e etnográficos depositados no Museu Nacional do Rio de Janeiro e em outras instituições. É relevante notar também que Rondon cumpriu uma grande variedade de missões em sua longa carreira de viajante – construtor de picadas e de linhas e estações telegráficas; produtor de documentação cartográfica; fornecedor de materiais para estudos científicos; demarcador de fronteiras internacionais; pacificador e protetor de indígenas; fundador e primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio. Rondon exerceu até o curioso papel composto de líder expedicionário e guia do ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que se incorporou como convidado do governo brasileiro a uma de suas mais difíceis expedições (ao rio da Dúvida). Roosevelt quase morreu nessa expedição e escreveu sobre ela um ótimo relato de viagem, com fartos elogios a Rondon. Dessa forma, Meirelles ajuda a recuperar a memória deste grande brasileiro que foi Rondon.

Resta dizer que o texto não tem uma ‘tese’ central a argumentar ou provar, conforme destaca o próprio autor na sua introdução. No entanto, seria errado dizer que o livro é meramente descritivo, pois nenhum autor, ao reunir, refletir sobre, selecionar e usar tantos materiais sobre uma região de tão grande complexidade poderia se comportar como um narrador descomprometido. Com efeito, o autor manifesta as suas preocupações e a sua atenção para com questões como a dizimação física, territorial e cultural dos povos indígenas da região, a repartição da região entre a soberania de vários países, a escassez de instituições científicas e de cientistas brasileiros instalados na e estudiosos da região, o papel do avanço das fronteiras agrícolas, pecuárias, mineradoras e madeireiras contemporâneas na degradação do bioma Amazônia, entre outras. No entanto, a alma do livro é a recuperação da memória e dos feitos dos expedicionários e das expedições.

Meirelles produziu um livro vitorioso que merece ser lido pelo público mais variado e amplo possível, desde estudiosos da Amazônia a cidadãos comuns, brasileiros da região e de fora dela e estrangeiros que se interessam por ela. Conforme sugerido acima, fica a esperança de que ele e sua equipe produzam um ou mais novos volumes que tratem de outros expedicionários e outras expedições, para assim enriquecer o acervo de produções nacionais sobre a Amazônia.

José Augusto Drummond – Doutor em Land Resources pela Universidade de Wisconsin, USA. Professor Associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

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Priprioca: um recurso aromático do Pará – POTYGUARA (BMPEG-CH)

POTYGUARA, Raimunda Conceição de Vilhena; Zoghbi, Maria das Graças Bichara (Orgs.). Priprioca: um recurso aromático do Pará. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi/Universidade do Estado do Pará, 2008. 204 p. Resenha de: ALMEIDA, Samuel Soares. As pripriocas: seus aromas e suas estruturas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.1, jan./abr. 2010.

O livro “Priprioca: um recurso aromático do Pará” foi organizado por Raimunda Conceição de Vilhena Potyguara e Maria das Graças Bichara Zoghbi, da Coordenação de Botânica do Museu Paraense Emílio Goeldi, especialistas em diferentes aspectos da botânica amazônica. A primeira, doutora em Botânica Tropical, atua na investigação da morfologia interna de órgãos e estruturas vegetais de espécies com interesse econômico, tais como plantas fibrosas, alimentícias e aromáticas. A outra organizadora é doutora em Química Orgânica, com atuação em química de produtos naturais, especialmente na prospecção de espécies e identificação de substâncias e estruturas químicas de essências aromáticas, empregadas em perfumes e cosméticos.

A obra é um marco referencial do conhecimento científico e tecnológico sobre a priprioca (Cyperus articulatus L.), uma erva que cresce naturalmente em campos, áreas úmidas e costeiras, sendo também cultivada em pequenas áreas agrícolas, quintais e hortas caseiras. A priprioca é exclusivamente distribuída na Amazônia, concentrada no leste do estado do Pará, nos baixos cursos dos rios Acará, Moju e Tocantins; parte dos campos inundáveis do arquipélago do Marajó e das microrregiões do Salgado e Bragantina.

A obra é multidisciplinar e seus 12 capítulos podem ser divididos em três grupos de assuntos afins: o primeiro trata de aspectos taxonômicos, morfológicos e de distribuição geográfica. O segundo é direcionado ao entendimento de aspectos químicos e agronômicos, incluindo a propagação da espécie; e o último se refere às cadeias produtiva e comercial, bem como às informações sobre usos e botânica econômica.

Conhecida e comercializada há bastante tempo nas feiras e mercados da região, a priprioca, antes de se tornar de interesse para a indústria de perfumaria, era utilizada em pequena escala na preparação e composição de banhos de cheiro e perfumes artesanais, sendo o ‘cheiro-do-pará’ o mais requisitado deles, e em sachês e aromatizantes de roupas e armários. A obra reúne informações sobre aspectos científicos, tecnológicos e agronômicos recentes, produzidos em instituições científicas e acadêmicas públicas da região. Com ela toma-se conhecimento que a priprioca não é apenas uma espécie, mas pelo menos três – e que os seus rizomas, ou raízes subterrâneas, possuem células oleíferas, secretoras das substâncias aromáticas. A parte química revelou a identidade e as estruturas orgânicas dessas substâncias; suas propriedades alelopáticas, ou o efeito inibidor de seu extrato sobre a germinação de sementes e crescimento de mudas de outras espécies; e, ainda, a ação de contração muscular em cobaias. Os estudos agronômicos recomendam técnicas de cultivo e tratos culturais; propagação vegetativa através dos rizomas; densidade de plantio, produção e produtividade; cadeia produtiva, mercado; e informações sobre outros usos das pripriocas, além do aromático, na medicina tradicional e no artesanato.

A obra representa um avanço considerável para a domesticação da espécie, mas deve-se considerar e creditar que grande parte dos saberes e conhecimentos acumulados sobre os usos e o cultivo das pripriocas advém da experiência e das práticas tradicionais de erveiras, mateiros, perfumistas e pequenos produtores. Ainda há um longo caminho a ser percorrido a fim de disponibilizar mais informações sobre o cultivo da espécie, que permitam às pripriocas se constituir num recurso sustentável que possa ser produzido e comercializado numa escala mais abrangente de mercado.

Samuel Soares de Almeida – Mestre em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Pesquisador Associado do Museu Paraense Em ílio Goeldi. E-mail: [email protected]

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Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa – JULIÃO; BITTENCOURT (BMPEG-CH)

JULIÃO, Letícia; BITTENCOURT, José Neves (Orgs.). Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais/Superintendência de Museus, 2008. 180p. Resenha de:  RANGEL, Marcio. Curadoria em museus: múltiplos olhares. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.1, jan./abr. 2010.

O “Caderno de Diretrizes Museológicas 2 – Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa”, publicado pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais através da Superintendência de Museus, tem por objetivo promover, a partir de uma perspectiva multidisciplinar, um debate sobre as diferentes abordagens relacionadas com a mediação museológica, com especial ênfase nos processos curatoriais desenvolvidos pelos museus. Os artigos reunidos no livro propõem novas reflexões e interpretações para este tema, que, com a complexidade de sua natureza, tem sido objeto de variadas discussões.

A principal intenção dos organizadores e autores que compõem o livro é dar visibilidade às múltiplas possibilidades da curadoria, neste caso, por meio de artigos que apresentam diferentes perspectivas de compreensão do tema e, em outros momentos, evidenciam percepções convergentes.

Além de um texto introdutório de José Neves Bittencourt, que analisa a etimologia da palavra curadoria e apresenta a estrutura da obra, os trabalhos foram organizados em três partes, sendo a primeira composta por três artigos, a segunda por oito artigos e a terceira por um vídeo.

O trabalho de abertura é de autoria de Cristina Bruno, que inicia sua discussão com a análise do percurso conceitual do termo curadoria, tendo como referencial um olhar sobre os “diferentes tempos históricos, distintos campos de conhecimento e múltiplos usos” (p. 15). Após indicar a difícil tarefa de mapear a trajetória do conceito de curadoria, Bruno estrutura seu artigo pontuando algumas perspectivas: os aspectos do percurso histórico do conceito de curadoria que geraram heranças relevantes para a atual proposta de definição; os matizes de sua ampliação contemporânea e os reflexos desta herança; o delineamento do perfil profissional do curador e o desenvolvimento do processo curatorial dentro dos museus. Bruno afirma que sua análise tem como base uma perspectiva museológica.

No artigo seguinte, Nelson Sanjad e Carlos Brandão definem curadoria “como o ciclo completo de atividades relativas aos acervos, compreendendo a execução ou a orientação da formação e desenvolvimento de coleções, segundo uma racionalidade pré-definida por uma política de acervos…” (p. 25). Podemos perceber nesta definição a influência da experiência profissional dos autores, ambos vinculados a museus com forte tradição na formação de coleções de história natural: Museu Paraense Emílio Goeldi e Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. O eixo central do artigo trata da relação da comunicação museológica com a política curatorial dos museus, priorizando os processos expositivos. Nesta análise, Sanjad e Brandão estruturam seus argumentos em três partes: a primeira apresenta a relação entre a história dos museus e o desenvolvimento dos acervos; nas seguintes, abordam a exposição como processo de comunicação, produtora de um discurso específico, incluindo neste processo a recepção do discurso pelos diferentes públicos.

Concluindo esta primeira parte da publicação, o artigo de Tereza Scheiner afirma que “não é possível tratar dos processos curatoriais sem, entretanto, definir que ideia de museu lhes serve de fundamento” (p. 36). Para Scheiner, a análise da trajetória do museu no quadro simbólico das diferentes sociedades é uma tarefa da Museologia, disciplina que, segundo a autora, “não tem como objeto de estudo os museus, ou a instituição museu, mas sim a ideia de museu desenvolvida em cada sociedade, em cada momento de sua história” (p. 40). De acordo com a autora, cabe à Museologia analisar as diferentes tipologias de museus atualmente existentes, “tratando de compreender em profundidade quais os contextos, razões e propósitos que as fundamentam, e buscando identificar como algumas delas se realizam hoje na sociedade contemporânea” (p. 43). Neste cenário, os processos curatoriais são compreendidos como “dispositivos técnicos, segundo os quais se realizam as funções intrínsecas a cada um destes tipos de museu” (p. 46).

A segunda parte da obra é aberta por Aline Montenegro e Francisco Régis, que analisam a curadoria de exposições em museus de história, mais especificamente no Museu Histórico Nacional e no Museu do Ceará. Os autores discutem os processos expositivos destas instituições e apresentam as diferentes possibilidades de abordagem de um tema histórico. Ressaltando a importância dos “indícios do passado”, apontam para a importância da “elaboração de problemáticas históricas sobre as relações entre passado, presente e futuro” (p. 49). Montenegro e Régis problematizam a combinação de imagens, objetos, textos e outros recursos na elaboração das exposições, tendo em vista que, segundo os autores, “tudo indica que há uma dependência da escrita para se chegar a certos sentidos do objeto” (p. 68). Além das múltiplas possibilidades e desafios do processo curatorial em museus de história, o artigo também ressalta a importância do caráter educacional neste processo.

A partir do campo da arte, Roberto Condurú discute os principais traços característicos do fazer artístico e problematiza as formas de comunicação adotadas pelos salões, bienais e museus. Percebendo os curadores como intermediários nas relações entre as obras, os artistas e os públicos, o autor aponta para o papel de destaque deste personagem na estratificação dos agentes do campo artístico. De acordo com Condurú, uma característica marcante dos tempos atuais é a percepção da exposição de arte como “uma obra em si, com autorias, teorias, práticas e histórias” (p. 76). Sendo assim, torna-se fundamental o equilíbrio entre a exposição como obra e as obras de arte exibidas entre o curador e os demais autores envolvidos.

Em um outro campo e tendo como referencial as exposições de ciência e tecnologia, Cátia Rodrigues Barbosa reflete sobre a capacidade comunicativa desta tipologia de acervo e o papel exercido pelo curador neste processo de comunicação. Para Barbosa, o curador é um comunicador que cria elos entre o visitante e o objeto.

Ao descrever a implantação do Museu Municipal de Pains, Gilmar Henrique, Pablo de Oliveira Lima e Márcio Castro destacam o caráter multidisciplinar do projeto curatorial da instituição. Tendo o acervo arqueológico como eixo central de todas as discussões, os autores apresentam as diferentes categorias estabelecidas pelo projeto que orientaram a formação do acervo e a organização expositiva do museu: “artefatos líticos polidos; artefatos líticos lascados; artefatos de cerâmica; restos humanos e artefatos fabricados sobre material orgânico” (p. 97). Deve-se destacar que neste artigo os autores discutem um processo curatorial amplo, ou seja, da criação de um museu, considerando neste processo a formação de seu acervo, sua missão, sua exposição permanente/longa duração; sua estrutura física e organizacional.

No artigo seguinte, Cláudia Penha e Marcus Granato, ambos do Museu de Astronomia e Ciências Afins, optam por discutir o conceito de curadoria de acervos museológicos. Os autores definem esta curadoria como um processo que se inicia com a coleta e culmina com a divulgação e disseminação dos acervos. Ao longo do artigo, Santos e Granato, além de apresentarem “opiniões formuladas por diversos autores sobre o papel do curador e da curadoria de acervos” (p. 124), afirmam que “o que precisamos é uma abordagem do trabalho curatorial que reconheça o inter-relacionamento dos objetos, pessoas e sociedades, e expressem essa relação em contextos sociais e culturais” (p. 113).

Ao analisar o Museu Histórico Abílio Barreto, Thaís Velloso e Thiago Costa problematizam o papel das exposições como produto final dos museus. De acordo com os autores, mesmo que reconheçamos o papel de destaque exercido por este modelo de comunicação, devemos tornar evidente a “articulação solidária” (p. 129) existente entre todas as ações desenvolvidas pela instituição. Entre as atribuições do curador, os autores destacam a pesquisa como parte integrante de suas responsabilidades, pois esta possibilita o adensamento do tema ou conceito que irá nortear a estruturação da exposição.

Em uma outra perspectiva, mas com o mesmo objeto de análise, ou seja, o Museu Histórico Abílio Barreto, Célia Regina Alves e Nila Rodrigues discutem “as atividades práticas de avaliação, organização e tratamento técnico das informações de acervos formados por documentos cujo suporte é o papel, observando também a conservação física dos mesmos” (p. 145). No processo curatorial de documentos textuais e iconográficos, Alves e Rodrigues destacam três aspectos básicos: a compreensão do processo de formação da coleção em si; a obtenção das informações contidas nas unidades documentais; e a elaboração da documentação museológica.

O último artigo do “Caderno de Diretrizes Museológicas 2”, de autoria de Magaly Cabral e Aparecida Rangel, aborda o tema da educação. Podemos afirmar que, de forma direta e indireta, esta questão transpassa todos os trabalhos desta publicação. Localizando a “curadoria educativa” dentro dos processos educativos definidos pelas instituições, as autoras afirmam que, assim como as demais curadorias abordadas nos artigos anteriores, a curadoria educativa também deve fazer parte do Plano Museológico (p. 165). De acordo com Cabral e Rangel, esta ação não estaria somente relacionada ao desenvolvimento de materiais complementares destinados a segmentos específicos de público, estendendo-se também aos processos de avaliação. Para as autoras, “a exposição deve ser um ponto de partida e não de chegada, na forma de comunicação com o público” (p. 168).

Com imagens de museus de diferentes regiões e variadas tipologias, o DVD que acompanha o livro apresenta de forma dinâmica e ilustrativa o depoimento de profissionais sobre curadoria. Apesar de ser estruturado em outra mídia e em outra linguagem, José Neves Bittencourt chama a atenção para o fato de que “o vídeo não é um complemento do livro” (p. 8). O mesmo deve ser considerado a terceira e última parte da publicação.

Finalizando, desejo destacar a contribuição desta obra para a prática curatorial desenvolvida nas instituições museológicas brasileiras. Os trabalhos apresentados nesta publicação enfatizam a necessidade de reinterpretar continuamente o próprio fazer expositivo e todas as ações derivadas desta prática. O “Caderno de Diretrizes Museológicas 2” é um convite reflexivo sobre um dos principais meios de comunicação dos museus.

Marcio Rangel – Doutor em História das Ciências e da Sa úde pela Fundação Oswaldo Cruz. Pesquisador do Museu de Astronomia e Ci ências Afins/MCT. E-mail: [email protected]

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Bildungsbürger im Urwald: Die deutsche ethnologische Amazonien-forschung (1884–1929) – KRAUS (BMPEG-CH)

KRAUS, Michael. Bildungsbürger im Urwald: Die deutsche ethnologische Amazonien-forschung (1884–1929). Marburg: Curupira, 2004. 539 p. Resenha de: DRUDE, Sebastian. Expedições alemães que fundaram a etnologia da Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.1, jan./abr. 2010.

Existem hoje, no Brasil, várias instituições, especialmente universidades e museus, onde se realizam pesquisas científicas dedicadas à população nativa, suas culturas e línguas, em particular na Amazônia. É impossível se interessar por esta área de estudos sem conhecer bem os nomes de seus fundadores, entre eles muitos alemães, como Karl von den Steinen, Theodor Koch-Grünberg e outros. Mas quem eram esses ilustres personagens? Cientistas eruditos? Aventureiros? O que fizeram aqui, como se organizavam, como obtinham financiamento, como aproveitaram suas viagens? O que os motivou? Quais eram os principais conhecimentos buscados e obtidos por suas pesquisas? E por que a tradição etnológica alemã, que tanto prometia no século XIX, foi praticamente interrompida nos anos 1920?

Com esta obra, cujo título em português poderia ser “Burgueses de educação (ou de formação) na selva: a pesquisa etnológica alemã na Amazônia (1884–1929)”, o antropólogo alemão Michael Kraus1 apresenta um estudo completo e detalhado com algumas respostas para estas perguntas. Esta obra preenche uma lacuna, pois além de algumas notas bio- e bibliográficas (em especial as feitas no Brasil por Herbert Baldus e Egon Schaden), não há muito material disponível sobre os fundadores dos estudos científicos antropológicos e linguísticos sobre a população indígena das terras baixas da América do Sul2. No entanto, mesmo que hoje não seja um fato amplamente conhecido, esta área de estudos foi uma das mais destacadas no estabelecimento da disciplina ‘etnologia/antropologia’.

O estudo de Kraus tem quase 500 páginas, além de 35 páginas de referências. Estas proporções são indício de uma das características mais notáveis do livro: um grande cuidado e respeito pelas fontes originais e pelos seus autores. Apesar deste rigor científico exemplar (em média, três notas de rodapé por página, muitas com valiosas observações adicionais), o livro em nenhum momento é uma leitura seca ou chata – ao contrário, é muito bem escrito (a linguagem chega a ter qualidades literárias) e prende o leitor em todas as páginas.

O foco do trabalho são as viagens ou expedições dos pesquisadores alemães; as condições institucionais e pessoais constituem seu fundo; os resultados científicos são abordados de forma sucinta. O livro é estruturado em cinco partes, iniciadas por um curto prólogo que explica a ênfase e a abordagem escolhidas. A segunda parte, “condições básicas na Alemanha”, tem três capítulos: um apresenta os pesquisadores examinados; o seguinte, as instituições envolvidas; enquanto que o último analisa as motivações individuais e institucionais, a concorrência e o papel da então jovem disciplina ‘etnologia’, ainda em processo de constituição, discutindo, por exemplo, sua fixação em objetos etnográficos.

Os pesquisadores examinados são Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Konrad T. Preuss, Theodor Koch-Grünberg, Max Schmidt e Fritz Krause (ao final do livro, o leitor parece conhecer estes pesquisadores como se tivesse convivido algum tempo com eles). São incluídos, ainda, mas com menos ênfase, três pesquisadores que não foram amazonistas ou que não foram cientistas profissionais: Hermann Meyer, Wilhelm Kissenberth e Felix Speiser.

A parte principal do trabalho, “expedições à Amazônia”, consiste de três capítulos extensos dedicados a três ‘passos’ das expedições: 1) os preparativos e a viagem até a América do Sul; 2) as viagens até a região dos índios; e 3) as pesquisas em si, no local de destino. Para cada etapa, Kraus organiza sua exposição em três ou quatro subcapítulos temáticos. Por exemplo, o sub-capítulo III.2.4, “Trabalhadores braçais de mula, lenha e remo: – Os ‘camaradas’ da ciência”, consiste de 25 páginas dedicadas às relações de cooperação, amizade, conflito, dependência e poder entre os pesquisadores e seus acompanhantes europeus, crioulos e indígenas. Analisa desde a quantidade de pessoas envolvidas (ao longo do tempo, as expedições levavam cada vez menos acompanhantes, o que ajudava a intensificar o contato direto entre os pesquisadores e a população nativa estudada, indicando que o ideal moderno da pesquisa de campo como experiência de imersão cultural já existia na época) até as personalidades e os estilos dos pesquisadores ao lidar com este aspecto das expedições. Para cada um destes aspectos, Kraus apresenta o que encontrou no rico material deixado pelos pesquisadores e, ao comparar diferentes expedições e relatos, identifica padrões e características individuais dos cientistas e de suas pesquisas. A maioria dos subcapítulos são estudos preciosos, que podem ser considerados separadamente, sem perder seus méritos.

A parte quatro, “a antropologia dos etnógrafos”, dirige seu foco sobre a história da ciência, analisando as ideias, a visão e as contribuições dos pesquisadores, sem, contudo, apresentar análise e avaliação abrangentes de seus resultados etnográficos e antropológicos, a partir das teorias e dos conhecimentos atuais. Em vez disso, os dois capítulos elucidativos desta parte, “metodologia e temática” e “teoria e visão global”, tentam se aproximar do native’s point of view – ou seja, da visão e concepção dos próprios pesquisadores estudados.

Isto, aliás, é um dos pontos mais marcantes do livro. Kraus sempre procura se aproximar dos pesquisadores que estuda como um etnógrafo deve se aproximar de uma população nativa – procurando um entendimento profundo e holístico, ciente das próprias limitações e do fato de não estar livre das influências de sua própria origem e formação, respeitando a visão ‘êmica’ em vez de julgá-los etnocentricamente ou, neste caso, ‘cronocentricamente’. Evidentemente, esta abordagem encontra seus limites nas fontes existentes – não foi possível para Kraus entrevistar os pesquisadores estudados e muito menos participar como observador das suas pesquisas (é interessante ver como os alemães eram, em geral, francos e honestos o bastante para admitir suas próprias limitações e falhas – o que contrasta com a visão muitas vezes difundida sobre eles, de acordo com a qual estes buscariam esconder os lados menos bem sucedidos de suas pesquisas, na suposta tentativa de construir uma imagem impecável).

O procedimento escolhido por Kraus tem o mérito de ser muito mais instrutivo do que a simples confirmação (ou não) das opiniões modernas difundidas sobre a etnologia do final do século XIX. Assim, um ponto que Kraus discute em várias passagens do livro é que, muitas vezes, o discurso moderno e supostamente ‘desmistificador’ sobre os fundadores da disciplina é, de fato, preconceituoso e algo arrogante, não conseguindo fazer jus à obra realizada e ao avanço científico que esta trouxe. Isto vale, em particular, para o discurso pós-moderno e desconstrutivista – em muitas ocasiões, em contraste com os nossos preconceitos, é possível perceber que os pesquisadores antigos tinham uma visão muito mais diferenciada dos ‘índios’ e de suas culturas do que a que seus críticos modernos têm destes pesquisadores.

Felizmente, Kraus raramente corre o risco de idealizar os pesquisadores alemães, e tampouco fecha os olhos diante de ideias ou comportamentos que são inaceitáveis, do atual ponto de vista (e, às vezes, também a partir de um ponto de vista humanista já existente na época). Em geral, os pesquisadores estudados surgem como humanistas e críticos do etnocentrismo e das crenças progressistas de sua época; e como pensadores independentes e, em vários aspectos, céticos das teorias universalistas (em particular, do evolucionismo e do difusionismo). Depois da Primeira Guerra Mundial, chegaram a ser pessimistas sobre a própria cultura ao compararem-na com as culturas indígenas por eles observadas. Este contraste entre ‘nossa’ cultura e as dos povos indígenas já era bastante visível nas próprias viagens, no contexto colonial e de exploração do interior da Amazônia, em particular durante o primeiro ciclo da borracha, que marca a época das viagens estudadas por Kraus. As pesquisas não deixaram de se realizar neste contexto violento, que, às vezes, era vantajoso para elas, outras vezes não. Isso não significa que as pesquisas fossem de motivação ou caráter colonialista ou explorador, como tantas vezes se proclama. Como Kraus mostra convincentemente, ao menos entre os pesquisadores interessados na Amazônia, a tradição humanista e liberal se manteve viva nos anos 1920. Os homens aqui abordados estavam muito mais preocupados em contribuir para a construção de conhecimento, universal sobre a diversidade cultural ainda existente, do que com interesses nacionais e imperialistas, econômicos ou missionários3.

Lamentavelmente, preconceitos contra pesquisadores do ‘primeiro mundo’ retornam, hoje, por exemplo, sob o rótulo de ‘combate à biopirataria’, no discurso nacionalista e também no discurso anti-imperialista e anti-globalização, supostamente progressista, colocando sob suspeita todo tipo de cooperação internacional. Este não é o único paralelo à situação atual que se pode estabelecer ao ler a obra de Kraus. Quem já fez expedições para estudar grupos indígenas pode ver as próprias experiências espelhadas nos relatos dos viajantes de 100 ou 120 anos atrás, por exemplo, quando são abordados problemas de financiamento ou de transporte, o ritmo diferente do tempo na viagem e ‘no campo’, e, em particular, os relacionamentos (sempre muito diversos e heterogêneos) com indivíduos e grupos indígenas. Estas relações são descritas muito vivamente pelos pesquisadores – e Kraus consegue transmitir esta plasticidade em seu trabalho.

Prosseguindo na comparação da situação da época com a de hoje: embora a população indígena tenha se mostrado, em geral, bem mais resistente do que se poderia imaginar a partir dos cenários pessimistas de alguns dos ilustres cientistas de um século atrás, a situação geral das populações amazônicas, inclusive no Brasil, não é muito animadora, pois continua a ser marcada pela dominação, pela ignorância, pelo desrespeito, pela negligência e, às vezes, pela violência brutal. Na época, como hoje, qualquer pesquisa que ignora esta realidade está condenada a ser julgada de forma negativa pela posteridade. Muito se perdeu nos últimos 100 anos. Assim, os relatos dos pesquisadores são, muitas vezes, as únicas fontes de informação sobre elementos culturais ou sobre grupos indígenas que não existem mais. Como o processo da globalização (interno e externo) está se acelerando cada vez mais, o risco de perder muito mais nos próximos 100 anos é iminente. Na época, como hoje, somente uma parcela pequena da sociedade está ciente destas questões, e muitas vezes não é fácil achar aliados e apoio substancial nas instituições estatais na tentativa de documentar e preservar a riqueza cultural e linguística ainda existente, tarefa cada dia mais urgente4.

Também neste sentido, há boas razões para crer que é lamentável que a tradição alemã da etnologia dos grupos indígenas que habitam as terras baixas da América do Sul não tenha conseguido se recuperar da ruptura que significou a Primeira Guerra Mundial. É deplorável que esta área de estudos não tenha conseguido estabelecer-se nas universidades alemãs (até hoje, na Alemanha, pouquíssimas cadeiras de Etnologia possuem professores com esta especialidade), sendo, posteriormente, quase esquecida nesse país, muito embora em outros, inclusive nos Estados Unidos5 e no Brasil, suas contribuições sejam valorizadas até hoje. No seu epílogo, Kraus reflete brevemente sobre os caminhos desta área de estudos na Alemanha depois da época delimitada pelo seu trabalho (de 1884 a 1929, anos da primeira expedição ao Xingu e da morte de Karl von den Steinen, respectivamente).

A única crítica que se poderia fazer às 500 páginas do livro de Kraus é a mesma que J. R. R. Tolkien acatou em relação ao seu “Senhor dos Anéis”: “O livro é curto demais”. Porém, era necessário, embora lamentável, que o livro se restringisse para poder ser finalizado e publicado. Seria muito bom podermos dispor de uma abordagem semelhante para os precursores (em particular, von Martius) e para alguns estudiosos que não faziam parte da comunidade científica alemã, não tendo sido, por isso, incluídos neste estudo. O próprio autor admite que, provavelmente, muitos iriam sentir falta de Curt Nimuendajú na lista dos estudados. Uma das maiores lacunas na historiografia da antropologia brasileira é a ausência de estudos detalhados sobre as viagens deste pesquisador e sobre os resultados que obteve, e a não publicação da sua volumosa obra inédita6 (o mesmo vale para outros pesquisadores, ainda falando de alemães, como Emilie e Emil Snethlage).

Em suma, o estudo de Michael Kraus é de grande valor e merece ser conhecido internacionalmente, sobretudo entre os antropólogos no Brasil. Por sorte, várias das obras dos ilustres alemães vêm sendo traduzidas e continuam nas listas de leitura dos cursos universitários. É desejável que o mesmo aconteça com o livro de Kraus.

Notas

1 O alemão Michael Kraus, que obteve seu doutoramento em 2002 em Marburg com uma tese que depois transformou neste livro, não deve ser confundido com Michael E. Krauss, linguista norte-americano baseado em Fairbanks, Alaska, que estuda as línguas nativas norte-americanas, nem com os desportistas alemães homônimos.
2 No Brasil, felizmente, existe o tomo editado por Vera Penteado Coelho (1993), embora este seja limitado aos estudos do Alto Xingu e, em particular, aos de Karl von den Steinen.
3 Nisto, Kraus confirma os resultados de Penny (2002), que salientam a visão humanista, anti-racista e o interesse pelo entendimento holístico, do ponto de vista êmico, das culturas humanas (no plural, já nos anos 1880), dominantes na etnologia na Alemanha entre 1870 e 1920.
4 Recentes iniciativas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como os projetos de documentação de línguas e culturas indígenas do Museu do Índio, são motivo para alguma esperança neste contexto. Ver http://prodoc.museudoindio.gov.br/.
5 Neste contexto, vale lembrar que Franz Boas recebeu uma parte importante de sua formação nos museus etnológicos alemães. Suas ideias anti-etnocentristas, que hoje são um dos pilares da antropologia moderna, mostram que ele, como também os pesquisadores aqui em foco, era parte da mesma tradição humanista pluri-culturalista alemã, iniciada por Herder e continuada por Wilhelm Humboldt e Adolf Bastian (Bunzl, 1996; Frank, 2005).
6 Existem poucos estudos em alemão sobre este pesquisador, notadamente Dungs (1991), que também merecem ser conhecidos no Brasil.

Referência

BUNZL, Matti. Franz Boas and the humboldtian tradition: from Volksgeist and Nationalcharakter to an anthropological concept of culture. In: STOCKING JR., G. W. (Org.). Volksgeist as Method and Ethic. Madison: University of Wisconsin Press, 1996. p. 17-78.         [ Links ]

COELHO, Vera Penteado (Org.). Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo: EDUSP, 1993.         [ Links ]

DUNGS, Günther F. Die Feldforschung von Curt Unckel Nimuendaju und ihre theoretisch-methodischen Grundlagen. Bonn: Holos, 1991. (Série Mundus Ethnologie, v. 43).         [ Links ]

FRANK, Erwin. “Viajar é preciso”: Theodor Koch-Grünberg e a Völkerkunde alemã do século XIX. Revista de Antropologia, v. 48, n. 2, p. 559-584, 2005.         [ Links ]

PENNY, H. Glenn. Objects of Culture: Ethnology and Ethnographic Museums in Imperial Germany. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2002.         [ Links ]

Sebastian Drude – Doutor em Linguística pela Freie Universität Berlin. Dilthey-Fellow da Goethe-Universit ät Frankfurt e Pesquisador Associado do Museu Paraense Em ílio Goeldi/MCT. E-mail: [email protected] 

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Museu Emílio Goeldi | MPEG | 2006

Museu Emilio Goeldi5 Emílio Goeldi

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas (2006) é sucessora do “Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia”, fundado por Emílio Goeldi em 1894. A missão da revista é publicar trabalhos originais em Antropologia, Arqueologia, Línguas Indígenas e em áreas afins. Aceita contribuições em português, espanhol, inglês e francês para as seguintes seções: artigos de pesquisa, artigos de revisão, comunicações breves, memória, resenhas de livros, teses e dissertações. É publicado trimestralmente (abril, agosto e dezembro).

A abreviatura de seu título é Bol. Mus. Pára. Emílio Goeldi. Cienc. Murmurar. , que deve ser usado em bibliografias, notas de rodapé e referências e tiras bibliográficas.

O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas tem uma política de acesso aberto.

Periodicidade quadrimestral

ISSN 1981-8122

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